quarta-feira, 2 de março de 2016

O DEMÔNIO MUDO

Erat (Iesus) eiciens daemonium, et illud erat mutum — 'Estava (Jesus) expelindo um demônio, e ele era mudo' (Lc 11, 14)

I. O demônio mudo de que fala o Evangelho é o falso pejo com que o espírito infernal procura fazer-nos calar na confissão os pecados cometidos, depois de primeiro nos ter cegado para não vermos o mal que cometemos e a ruína que nos preparamos ofendendo a Deus. 'Com efeito', exclama São João Crisóstomo, 'o demônio faz em todas as coisas o contrário do que Deus faz'. O Senhor pôs vergonha no pecado, para que não o cometamos; mas depois de o havermos cometido, anima-nos a confessá-lo, prometendo o perdão a quem se acusa. O demônio, ao contrário, inspira confiança ao pecador com a esperança do perdão; mas cometido o pecado, cobre-o de vergonha, para que se não confesse.

Por este ardil diabólico, ó, quantas alma já foram precipitadas e ainda se precipitam cada dia no inferno! Sim, porque os miseráveis convertem em veneno o remédio que Jesus Cristo nos preparou com seu preciosíssimo sangue, e ficam presas com uma dupla cadeia, cometendo depois do primeiro pecado outro mais grave: o sacrilégio. Irmão meu, se por desgraça a tua alma está manchada pelo pecado, escuta o que te diz o Espírito Santo: Pro anima tua ne confundaris dicere verum. Sabe, diz ele, que há duas qualidades de vergonha; deves fugir daquele que te faz inimigo de Deus, conduzindo-te ao pecado; mas não da que se sente ao confessá-lo e te faz receber a graça de Deus nesta vida e a glória do paraíso na outra.

Se, pois, te queres salvar, não te envergonhes de fazer uma boa confissão; caso contrário, a tua alma se perderá. As feridas gangrenosas levam à morte, e tais são os pecados calados na confissão; são chagas da alma que se gangrenaram.

II. 'Meu filho, vergonhoso é o entrar nesta casa, mas não o sair dela'. Assim falou Sócrates a um seu discípulo que não quis ser visto ao sair de uma casa suspeita. É o que digo também àqueles que, depois de cometerem um pecado grave, tem pejo de o confessar. Meu irmão, coisa vergonhosa é ofender a um Deus tão grande e tão bom; mas não o é confessarmos o pecado cometido e livrar-nos dele. Foi porventura coisa vergonhosa para Santa Maria Madalena o confessar em público aos pés de Jesus Cristo, que era uma mulher pecadora? Foi motivo de pejo confessar-se uma Santa Maria Egipcíaca, uma Santa Margarida de Cortona, um Santo Agostinho, e tantos outros penitentes, que algum tempo tinham sido grandes pecadores? Por meio de sua confissão, fizeram-se santos.

Ânimo, pois, meu irmão, ânimo! (Falo a quem cometeu a falta de ocultar por vergonha um pecado). Tem ânimo e dize tudo a um confessor. Dá glória a Deus e confunde o demônio que, como diz o Evangelho, quando saiu do homem, anda por lugares secos, buscando repouso, e não o acha. Porém, depois de teres confessado bem, prepara-te para novos e mais violentos assaltos da parte do inimigo infernal. Ai de quem o deixa entrar novamente, depois de o haver expulso! Et fiunt novíssima hominis illius peiora prioribus — 'O último estado do homem virá a ser pior do que o primeiro'.

Ó meu amabilíssimo Jesus! Iluminai o meu espírito, a fim de que nunca mais me deixe obcecar pelo espírito maligno a cometer de novo o pecado. Pesa-me de Vos haver ofendido, e proponho com a vossa graça antes morrer que tornar a ofender-Vos. Mas, se por desgraça recair, dai-me força para sempre vencer o demônio mudo e confessar-me sinceramente ao vosso ministro. Peço-Vos, Deus Todo-Poderoso, que atendais propício às minhas humildes súplicas, e que em minha defesa estendais o braço de vossa majestade'. Doce Coração de Maria, sede a minha salvação. 

(Excertos da obra 'Meditações para Todos os Dias e Festas do Ano -  Tomo I, de Santo Afonso Maria de Ligório)

terça-feira, 1 de março de 2016

FOTO DA SEMANA

A duração da vida humana é quando muito cem anos. No dia da eternidade, esses breves anos serão contados como uma gota de água do mar, como um grão de areia (Ecl 18, 8)

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XIV)

Certo homem tinha três amigos. Dois desses amigos ele amava de forma tão especial que seria capaz de sacrificar tudo por tais amizades. Para o primeiro amigo, dedicava todo o seu tempo e todo o seu afeto e, para satisfazer todas as suas vontades, esquecia todo o resto e todos à sua volta. Na verdade, ele tinha também uma dedicação acentuada por um segundo amigo. Este segundo amigo o consumia por inteiro nas horas vagas do primeiro amigo, e estar com ele proporcionava uma felicidade particular e uma alegria extrema. E, para não faltar com a verdade, tinha ele ainda um terceiro amigo. Que não era exatamente como os outros dois. A sua companhia não era assim tão frequente, nem tinha realmente um zelo característico de uma amizade sincera e continuada. Era, enfim, um amigo das horas que sobravam.

Certa noite de um incerto dia, foi acordado por uma forte batida na porta. Levantou-se algo sonolento e, apressado, atendeu ao chamado. Era um estranho oficial com uma ainda mais estranha intimação - 'Eis aqui uma intimação que convoca você a participar de uma audiência judicial' - 'Audiência judicial? Mas de que estou sendo acusado?' respondeu o homem, apavorado - 'Eu não sei. Sou apenas o oficial da intimação. Tenho outras tantas intimações a fazer. Você deve comparecer amanhã diante do juiz. Favor assinar aqui, por favor'. E, em seguida, partiu apressado. 

O homem, agora um suspeito intimado pela justiça, estava perplexo e apavorado. 'De que estarei sendo julgado? O que pode ter acontecido, que coisa mais inesperada e sem sentido. O que posso fazer? O que devo fazer? Tenho poucos recursos e não tenho como pagar advogados'. As perguntas e as dúvidas consumiam o pobre homem. 'Meus amigos, devo procurar os meus diletos amigos, a quem poderia recorrer senão a eles? Eles poderão me ajudar, eles vão depor a meu favor, pois conhecem a minha integridade moral. Eles certamente me ajudarão a sair desta enrascada'. E, sem mais esperar, aprontou-se e saiu para contactar os seus amigos.

Chegado à casa do primeiro e maior amigo, bateu à porta resoluto. 'Este vai me ajudar de pronto, tenho sido para ele um amigo fiel e servil, nele tenho colocado toda a minha dedicação e todo o meu apuro'. 'Quem é?' rugiu uma voz impaciente. 'Quem vem me incomodar a esta hora da noite?' - 'Sou eu, meu bom amigo, preciso imensamente de sua ajuda generosa e imediata'. A contragosto, a porta se abriu e o amigo mal humorado o atendeu: 'Mas, você precisa de minha ajuda justo agora?' - 'Desculpe-me, velho amigo, mas preciso de você desesperadamente'. E contou-lhe sobre o oficial, a intimação, o tribunal, o julgamento do dia seguinte. - 'Conto com você, para me apoiar e me defender nesta questão. Você sabe que eu sou inocente. Por favor, me ajude'.  

- 'Sinto muito, mas infelizmente não será possível. Tenho todo o dia de amanhã tomado por um importante encontro de negócios, ao qual tenho me devotado há bastante tempo. Levo em enorme consideração a nossa frutuosa amizade e o seu zelo para comigo durante tanto tempo, mas não posso perder este negócio. Sei das suas dificuldades materiais e, neste sentido, posso lhe ajudar de alguma maneira'. Entrou em casa e voltou em seguida com um elegante terno nas mãos. 'Eis um terno refinado, que muito lhe ajudará a fazer boa figura frente ao juiz durante a sua defesa'. Desculpe-me, mas isto é tudo que posso fazer neste momento'. E, sem mais delongas, deu boa noite e lhe fechou a porta na cara. - 'Um terno', pensava o homem, dobrando cuidadosamente a roupa, 'uma amizade que eu julgava eterna tem o preço de um terno?'.

'Esqueça a ingratidão, homem, para que serve ter mais de um amigo? Vamos atrás de quem vai me receber de braços abertos e me confortar neste momento: o meu bom e velho segundo amigo'. Com estes pensamentos otimistas, dirigiu-se o pobre homem a uma segunda casa. A recepção, embora mais tarde da noite, foi mais calorosa. O segundo amigo o recebeu na ante-sala e perguntou-lhe o motivo de tanta ansiedade. O oficial, a intimação, o tribunal. O amigo o interrompeu solícito: 'Que absurdo, que acusação mais temerária. Como podiam acusar o amigo de coisas tão terríveis? Claro que ele estava à disposição, ele podia voltar na semana seguinte e aí pensariam juntos a melhor defesa, como responder às insinuações caluniosas, como provar a ilibada reputação do amigo...' - 'Agradeço a consideração, meu amigo, sabia que podia contar com você. Mas preciso de sua ajuda logo, urgente, porque o julgamento já está marcado para amanhã!'.

-'Amanhã?' O riso fácil desapareceu do rosto amigável do segundo grande amigo. 'Amanhã... amanhã é impossível!' É que amanhã já estou comprometido com uma festa da minha família. Vai ser o aniversário de 50 anos do meu irmão e já combinamos uma festa de dia inteiro, num sítio muito aprazível e com a participação de toda a minha família. Até a minha filha mais velha que anda sumida vai dar as caras. Sinto muito, meu amigo, entendo as suas necessidades, mas amanhã... amanhã é impossível'. - 'Amanhã é impossível; amanhã é impossível'. A frase ficou martelando na cabeça do pobre vistante. - 'Olha, o máximo que eu posso fazer é lhe acompanhar até a porta do tribunal; quem sabe a minha companhia pode lhe ser útil em alguma coisa? Assim, vou até lá com você logo cedo e ainda dará tempo para ir para o sítio e para a festa da minha família; o que você acha?' A pergunta ficou sem resposta pois o pobre homem, em total desconsolo, já havia alcançado a rua...

'Resta-me apenas o terceiro amigo, que mal conheço e por quem pouco apreço tenho. Estou perdido', a angústia começava a devorá-lo. 'Mas, depois de duas decepções tão grandes, de amizades que pareciam tão sinceras, o que seria mais um não de um amigo de poucas horas?'. Rumou o nosso desconsolado homem para a casa do seu terceiro amigo. À sua chegada, abriu-se uma espaçosa porta e lhe foi concedido o imediato assento no interior da casa. - 'Minha casa é a casa dos meus amigos. Seja bem-vindo e não se intimide por me procurar em momento inoportuno e a esta hora tardia. Os amigos, os verdadeiros amigos, não são para estas horas?'. Balbuciante e deveras trêmulo, esfregando as mãos no terno em desalinho, o pobre homem revelou ao seu terceiro e afastado amigo, todas as peripécias do seu drama: o oficial, a intimação, o tribunal, o julgamento do dia seguinte. - 'Você poderia me ajudar de alguma forma?' - 'Meu amigo, você ainda me pergunta se eu posso ajudar? Eu sou seu amigo, amigo de todas as horas, mesmo quando não estamos juntos. Você vai pernoitar na minha casa e quero que você se sinta aqui como se estivesse em sua própria casa. Amanhã iremos juntos ao tribunal e juntos ficaremos diante do juiz e eu serei, em todos os momentos, a sua segunda voz. Afinal, eu sou ou não sou o seu amigo?'

******

Três amigos. Tão próximos de todos nós, homens comuns, como eu e você. Todos nós temos três amigos. O primeiro amigo que servimos incondicionalmente é o dinheiro. Fazemos tudo por ele, a ele damos toda a nossa atenção, todo o nosso tempo, toda a nossa devoção. O nosso segundo amigo são os parentes: pais, irmãos, filhos e netos. A eles, damos afeição, carinho, submissão; esquecemos de nós e lhes damos tudo o que possuímos, todos os presentes e todas as benesses. O terceiro amigo, o escondido de nós mesmos, são as nossas boas obras, são aqueles pequenos gestos, palavras e sentimentos que formam a nossa vocação de Filhos de Deus.

Um dia, numa manhã luminosa ou numa noite fria, um oficial de justiça virá bater à porta da nossa alma - esse visitante sobrenatural é a morte. E nos convocará sem ressalvas a prestarmos contas dos nossos atos diante do tribunal de Deus. Não haverá delongas, nem subterfúgios, nem instâncias a recorrer. Eu, você, a humanidade dos homens comuns terá apenas os três amigos a recorrer nestes derradeiros instantes.

O primeiro amigo - o dinheiro - há de lhe conceder apenas um terno. Toda a sua riqueza, ainda que enorme, vai lhe valer apenas o terno da sua última quimera. O seu segundo amigo - seus parentes - quer o amem muito ou mais ou menos, quer os tenha amado de todo coração, vão seguir os seus passos somente até a campa no cemitério. Não seguirão contigo, nem lhe farão companhia além; ali haverão de o deixar sozinho e retomar o cotidiano de suas próprias vidas.

Estará consigo, então, neste derradeiro adeus, apenas o seu terceiro amigo - as boas obras. Elas, sim, não lhe vestirão de galas externas e nem lhe abandonarão à beira do túmulo, mas compartilharão, como testemunhas fieis e solidárias, as suas palavras e a sua defesa diante do trono do juízo de Deus. E somente por elas, pela estrita intervenção cuidadosa deste seu terceiro amigo, é que o seu nome será escrito eternamente no Livro da Vida.

(texto de autor desconhecido, reescrito e adaptado pelo autor do blog)

domingo, 28 de fevereiro de 2016

A FIGUEIRA ESTÉRIL

Páginas do Evangelho - Terceiro Domingo da Quaresma


Neste Terceiro Domingo da Quaresma, o Evangelho nos exorta a viver contínua e decididamente o caminho da plena conversão. E a busca da conversão exige de nós o afastamento incondicional do pecado e a via da santificação plena, como receptáculos abertos a toda a graça de Deus. Entre a retidão de nossos propósitos e a misericórdia do Pai, encontra-se o nosso lugar no portal da eternidade.

E Jesus nos fala primeiro que a grande tragédia humana é o pecado: 'Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa?' (Lc 13,2). Jesus falava dos galileus que tinham sido assassinados no templo por ocasião da Páscoa, a mando de Pilatos. Ele mesmo responderia que não, da mesma forma que não eram mais pecadores as 18 pobres vítimas da queda da torre de Siloé. A justiça divina não é amalgamada pelo castigo em si, mas pela resistência persistente e obstinada aos tesouros da graça. Não são desgraçados os que morrem em tragédias humanas, são miseráveis os que perdem a alma e a vida eterna consumidos na tragédia pessoal de apenas querer ganhar o mundo. 'Se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo' (Lc 13, 5).

Jesus ratifica estes ensinamentos com a parábola da figueira estéril, que não produz bons frutos, ano após ano, símbolo da alma fechada a todas as graças recebidas. Mas o Senhor busca incessantemente a volta da ovelha desgarrada e a espera e a consome de favores e bênçãos, porque o 'Senhor é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e compassivo' (Sl 102). É como o vinhateiro que nunca descuida da planta bruta, cultiva o solo, dispõe o adubo, rega a terra, acompanha ciosa e pacientemente os seus primeiros frutos. No nosso caminho de vida espiritual, o vinhateiro é o próprio Cristo, é Nossa Senhora, é a Santa Igreja, são os santos intercessores, é o nosso próprio Anjo da Guarda. Um derramamento abundante de graças à espera de nosso arrependimento sincero, de nossa dor ao pecado, de nossa conversão definitiva.

Mas o Evangelho termina também com uma determinação explícita: 'Se (a figueira) não der (fruto), então tu a cortarás’ (Lc 13,9). Assim, uma vez desprezados todos os limites da graça e tornados vãos todos os esforços do vinhateiro, a figueira torna-se inútil e a tragédia humana se consome na perda eterna das almas criadas para a glória de Deus.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

POEMAS PARA REZAR (XIX)

E POR QUE NÃO?


Por que não refletir no dia que passou?
Nestas vinte e quatro horas que me uniu ao tempo
Como mais uma parte de mim mesmo;
Parar um pouco esta sequência cronológica,
imbuída de ciclos e vaivéns,
e me projetar, sobre a sombra deste caminho,
sob a perspectiva de um peregrino que sabe para onde vai...

Será que não ouvi o ‘bom dia’ dado pelo vendedor de jornais na banca da esquina?
será que partilhei a muda felicidade da jovem mãe, grávida de poucos meses, que passou por mim no burburinho da rua?
será que percebi a beleza da manhã de sol que me seguiu ao trabalho?
será que não encontrou, com os meus, os olhos do mendigo que me pediu esmolas?
será que eu não distingui, entre vozes, buzinas e aceleradores, o grito silencioso destas crianças
que tem tantas ruas para andar e nenhum caminho para seguir?

quem sabe eu não tive hoje, entre minhas mãos, outras mãos ainda mais vazias...
quem sabe não acalentei meu coração com um pensamento bom e puro;
quem sabe não pronunciei as palavras certas para quem precisava ouvi-las de mim;
quem sabe não me dei conta do problema que afligia meu colega de trabalho, mais um fruto ruim da minha insensibilidade;
quem sabe não assumi plenamente o peso da responsabilidade que ficou melhor ser dividida;

talvez não tenha dado importância a quem se preocupou comigo;
talvez não me tenha lembrado de uma pessoa ausente;
talvez não tenha dito um ‘muito obrigado’ a quem me fez um favor sem exigir gratidão;
talvez não tenha sido o ouvinte atento aos que tinham algo a me dizer;
talvez não tenha esperado o suficiente para ouvir o que tinham a me pedir;

pensando bem, será que foi verdadeira a minha alegria ao rever, depois de tanto tempo, aquela pessoa quase esquecida?
Será que priorizei realmente o fato de ter visto meu filho engatinhando no tapete da sala?
Será que eu dei à minha esposa, nesta noite, um amor digno da graça que nos uniu diante de Deus um dia?
Será que eu rezei?

Pai! Conforta-me diante o Teu temor e aquieta-me diante o Teu juízo!
Amanhã é um novo dia, um novo hoje que a muitas coisas direi NÃO!
Porque tão terrível quanto o não que não se diz
Pela tentação de pecar
É o não que a gente diz a cada instante
Pela chance de se omitir!

Pai, que meu sim seja sim, que o meu não seja não,
E que, entre meu sim e o meu não,
Esteja sempre a Tua vontade de cada dia!

(Arcos de Pilares)

BREVIÁRIO DIGITAL - CATECISMO ILUSTRADO DE 1910 (XXXII/Final)





(Catecismo Ilustrado de 1910, parte XXXII - Final)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

AS INVESTIDAS DO DEMÔNIO NA VIDA DE SANTO ANTÔNIO CLARET

Pe Claret viu um esquadrão de demônios ao lado esquerdo de sua cama quando, ainda seminarista, foi vítima de horrorosa tentação que se dissipou com a doce aparição de Maria Santíssima. E este exército infernal combateu-o principalmente na época das missões, com as quais tantas almas o Pe. Claret arrebatou ao inferno, para apresentá-las a Jesus como gloriosos despojos de combate. 

***

Certa ocasião encontrava-se em Vich o santo missionário. Uma manhã, as pessoas da casa onde ele estava hospedado viram com grande surpresa que ele não descia para tomar seu café, na hora de costume. Temeram que estivesse indisposto. Bateram à porta, entraram no quarto e perguntaram-lhe se se encontrava adoentado: 'Sinto uma dor profunda no lado esquerdo' – respondeu. Alarmados com isto, pois o Pe. Claret não costumava queixar-se, chamaram o médico. Chegando este, mandou que descobrisse o lado afetado, e afastando a roupa, viu no lado esquerdo uma ferida como se uma fera lhe houvesse despedaçado a carne com as garras, deixando à mostra algumas costelas. 

Ninguém conhecia a causa desse ferimento, porque o Pe. Claret nada dizia; mas todos acreditaram ser efeito do demônio que assim queria atormentar as carnes do inocente missionário. Voltou por duas vezes o médico, e vendo que havia sinais de gangrena, após uma demorada consulta, resolveu ser necessária uma intervenção cirúrgica, e determinou fazê-la na manhã seguinte. 

Ao retornar, bateu à porta do doente, mas este não respondeu. Perguntou por ele, alarmado, e enquanto esperava, apareceu risonho o doente prodigioso: 'Não se espante', disse-lhe, 'ajude-me a agradecer a Deus este favor. Esta noite Nossa Senhora curou-me'. O doutor, atônito, mandou descobrir o lugar da ferida; e notou com surpresa que já havia cicatrizado, e o lugar estava recoberto de pele branca e firme. 

***

As perseguições do demônio eram mais frequentes na época das missões. Pregava o Pe. Claret em Sarreal, província de Tarragona. As multidões, comovidas, tomaram quase que de assalto a igreja; invadiam-na, deixando-a repleta; e muita gente se acotovelava no adro por não poder entrar no templo. Quando o missionário estava mais fervoroso e emocionante no sermão, desprendeu-se do arco central do templo uma pedra enorme, que caiu em pedaços sobre a multidão. 

'Não é nada!' gritou o Pe. Claret, 'ninguém se mova! É o demônio que quer impedir o fruto da santa missão. Mas não tem permissão de Deus para vos fazer mal'. Assim foi; pois os diversos pedaços não feriram a ninguém. 

***

Pregava, de outra feita, perante enorme concorrência. Estava já na metade da missão. O povo cada dia dava maiores demonstrações de piedade e arrependimento. Era de noite. Quase todos os habitantes estavam reunidos na igreja. Quando o Pe. Claret tomou nas suas mãos o santo crucifixo para findar o sermão com fervorosa súplica, um desconhecido entrou à viva força no templo, alvoroçando o povo e gritando: 'Fogo! Fogo! Que se queima uma casa. Auxílio! Socorro!' O Pe. Claret, com voz forte, disse, interrompendo o sermão: 'É o demônio! Não há casa alguma a arder. E para que vos convençais, que vá o sacristão constatar o fato. Se houver fogo, iremos todos apagá-lo; mas, enquanto não vier o aviso, ficai tranquilos e sossegados'.

Chegou o sacristão e disse não haver sinal nenhum de incêndio. Então o povo quis dar uma sova no homem, mas este, misteriosa e subitamente, desapareceu. 'Não vo-lo dizia?' exclamou o Pe. Claret, 'era o demônio, inimigo de vossas almas, que pretendia impedir o fruto desta santa missão'. E tomando pé deste fato, pregou novo sermão sobre a importância da salvação.

***

Foi em Masnou, província de Tarragona. Pregava o Pe. Claret uma missão. As povoações vizinhas, entusiasmadas e a se penitenciar, vinham todas as tardes escutar atentamente a palavra do missionário. Uma multidão compacta e fervorosa enchia o vasto templo paroquial. Apareceu na capela-mor o Pe. Claret e entoou, em frente do auditório, um cântico da missão. A multidão, que conhecia aquele cântico, acompanhou-o unissonamente, como um imenso coral. 

O organista, Pe. João Quintana, carmelita calçado, assentou-se ao órgão para acompanhar o canto. Mas, contra a vontade do organista, saía dos tubos do órgão a música de uma canção escandalosa, muito em voga naquele tempo em teatros e tabernas. O público emudeceu, escandalizado, e logo alvoroçou-se diante do insulto. O organista, espantado, trabalhava para dominar o teclado do órgão, mas seu esforço era em vão. A canção continuava soando escandalosamente. 

Então o Pe. Claret subiu rapidamente ao púlpito e, dirigindo-se à multidão, disse com voz dominadora: 'Meus irmãos, não vos espanteis! É o demônio que, com esta canção escandalosa, quer inutilizar o fruto dos sermões' E erguendo a mão em direção ao coro, gritou: 'Sr. Organista, abra o registro flautado, porque dentro dele está o demônio'. Assim fez o organista, e o demônio fugiu vencido. O órgão acompanhou harmoniosamente os cantos da missão; serenou o auditório e, ao findar a pregação, puderam recolher os ceifadores evangélicos do campo espiritual magnífica colheita de pecadores convertidos. 

***

De outra vez foi em Igualada. A missão estava dando belos resultados. Já de público se contavam as grandes conversões, e estavam prestes a dar esse passo outros muitos pecadores. Para mover a estes que permaneciam hesitantes, o Pe. Claret preparou com a oração e o estudo, um sermão especial: o sermão da Madalena. Todos choravam ao escutá-lo. Sua palavras era uma concentração luminosa e palpitante de todas as ternuras, de todos os arrependimentos, de todos os amores que sentiu na hora feliz da sua conversão a Madalena, a sublime penitente.

Quando mais ardentes e gerais eram os soluços no auditório, um ruído espantoso alvoroçou o público. Milhares de cães raivosos brigavam, mordiam-se, despedaçavam-se invisivelmente na igreja; perseguiam-se, desgarravam-se com uivos aterradores. A multidão, consternada, lançou um grito de espanto. Todos olhavam em redor, mas ninguém via onde estavam os cachorros. 

Então o Pe. Claret, estendendo a mão sobre o auditório disse: 'Calma, meus irmãos! Calma! Não vos espanteis. Esses cães são os demônios que receiam vos aproveiteis da santa missão. Desprezai-os e logo vos largarão'. Tranquilizou-se o público ao ouvir estas palavras do santo missionário; os demônios fugiram e a matilha de cães emudeceu.

(Excertos da obra 'Santo Antônio Claret', do Pe. João Echevarria, 1962)