quinta-feira, 25 de junho de 2015

O MILAGRE DA VIRGEM DO PILAR

INTRODUÇÃO

A tradição nos informa que no dia 2 de janeiro do ano 40, a Virgem teria, não aparecido, mas vindo à Saragoça 'em carne mortal', para reconfortar o apóstolo São Tiago e os primeiros cristãos ibéricos. Nesta data ela não tinha ainda subido ao Céu, mas permanecia em Jerusalém, ao lado do apóstolo São João. Já se tinham passado 10 anos desde a Ascensão de Jesus Cristo, e parece que o apóstolo São Tiago tinha muita dificuldade em implantar a nova fé nas terras ibéricas. 

Nesta data de 2 de janeiro do ano 40, o apóstolo reuniu os poucos batizados – oito, diz a tradição – às margens do rio Ebro. Desencorajado pelo insucesso de sua pregação, ele estava para lhes anunciar o seu próximo retorno à Palestina. Mas eis que, de repente, a noite se iluminou e uma multidão de anjos lhes apareceu. Eles cantavam e transportavam a Virgem Maria sobre uma coluna. Chegados perto de São Tiago e de seus oito companheiros, os anjos fixaram a coluna no solo. A Virgem Maria então se dirigiu ao apóstolo nestes termos, que a tradição transmitiu:

'É aqui, meu filho, o lugar marcado com um sinal, e destinado a me honrar. Aqui, graças a ti e em memória de mim, minha igreja deve ser construída. Tome conta desta coluna sobre a qual me encontro, pois, esteja certo, foi o meu Filho, teu Mestre, que a enviou do Céu pelo ministério dos anjos... Neste lugar, pelas minhas orações e pela minha intercessão, a força do Altíssimo realizará prodígios e maravilhas admiráveis para os que me invocarem em qualquer necessidade'.

Esta coluna, símbolo da força e da tenacidade da fé e sinal de um lugar de graça é uma simples coluna cilíndrica de jaspe, de 1,77 cm de altura e 24 cm de diâmetro, preciosamente revestida de prata e bronze. Sobre a coluna está uma imagem da Virgem com o Menino Jesus [Nossa Senhora do Pilar] em madeira negra, que data provavelmente do século XIV ou XV, já que a original desapareceu. É interessante notar que essa coluna jamais foi deslocada, apesar das vicissitudes da história e das sucessivas reconstruções do santuário; ela continua no lugar onde os anjos a colocaram. 

O PERSONAGEM

Miguel Juan Pellicer, filho de modestos agricultores, nasceu em 1617 no povoado de Calanda, próximo a Saragoça, na Espanha. Quando tinha 19 ou 20 anos, deixou a casa dos pais e se instalou na região de  Castellón de la Plana. Aí, no final de julho de 1637, sofreu um grave acidente, quando teve a perna direita, logo abaixo do joelho, transpassada por uma pesada charrete de carga, o que lhe custou a amputação do membro.  Na transcrição formal dos fatos, este evento é assim descrito:

'Em meados do mês de outubro, o professor Juan de Estanga e o mestre cirurgião Millaruelo se encarregaram da amputação, cortando a perna direita "4 dedos abaixo do joelho", procedendo em seguida à cauterização. Para atenuar o quanto possível os sofrimentos atrozes desta operação praticada com a serra e o escalpelo, e depois com ferro incandescente, só se podia administrar ao doente uma bebida alcoólica e narcótica usada na época: seria necessário esperar mais dois séculos para se ver a aparição dos primeiros anestésicos eficazes (éter e clorofórmio). Antes e durante a operação, 'no seu tormento, o jovem invocava sem cessar e com fervor a Virgem do Pilar'.

Os dois cirurgiões eram assistidos por um estudante em cirurgia, Juan Lorenzo Garcia, que se ocupou de recolher a perna cortada e colocá-la na capela onde são reunidos os corpos dos pacientes mortos. Mais tarde, ajudado por um colega, enterrou a perna numa parte do cemitério do hospital reservada para isto, "num buraco de mais ou menos vinte e um centímetros". O respeito cristão para com o corpo destinado à ressurreição impunha, nesses tempos de fé, que mesmo os restos de partes do corpo fossem tratados com piedade, de modo que era considerado vergonhoso jogá-los fora como lixo'.

Inválido, com uma perna de madeira e privado de trabalho, Miguel deixou o hospital na primavera de 1638 e passou a viver como mendigo na capela de Nossa Senhora da Esperança em Saragoça, onde a pequena imagem da Virgem com o Menino permanece em cima da coluna de pedra - 'El Pilar'. Aí assistia devotamente a santa missa a cada manhã e periodicamente ungia o coto da perna amputada com o óleo das lamparinas do altar da capela. Cerca de dois anos depois, retornou à casa dos pais em Calanda, em março de 1640. Poucos dias depois, Miguel vai ser personagem de um milagre extraordinário.

O MILAGRE

'Era o dia 29 de março de 1640, quinta-feira da Semana da Paixão que precede a Semana Santa. Faltavam portanto nove dias para o Domingo da Páscoa... Este ano de 1640 foi bem particular do ponto de vista religioso: faziam exatamente 16 séculos que a Virgem tinha 'vindo em carne mortal', nas margens do Rio Ebro. Ora, neste 29 de março de 1640, Miguel não partiu como de costume para pedir esmolas, mas se esforçou para ajudar os seus, não pedindo esmolas, mas com os seus braços. Ele foi, montado no asno da família, trabalhar num campo que pertencia a seu pai, perto do vilarejo, e encheu de esterco 9 vezes os cestos transportados pelo animal. 

É provável que ele não tenha partido para mendigar por causa da necessidade que se tinha do animal para esse trabalho. Cada uma das nove vezes, o asno foi levado ao pátio da casa por uma das irmãs mais novas de Miguel, Jusepa ou Valeria. O pai e Bartolomé, o pequeno empregado, descarregaram o animal e o mandaram de novo ao campo onde o jovem inválido esperava, equilibrando-se com dificuldade na perna de madeira e nas muletas.

De tardinha, cansado, e com o coto da perna doendo mais que de costume, Miguel (que tem então 23 anos e 3 dias), voltou para casa. Uma surpresa desagradável o esperava: por ordem do governo, os Pellicer deveriam acolher naquela noite um soldado da cavalaria real. Duas companhias de cavalaria ligeira marchavam em direção da fronteira da França: estávamos na guerra dos Trinta Anos, e a França tinha atacado a Espanha. Este soldado, confiado à hospitalidade dos Pellicer, partirá de novo de madrugada, depois da noite do prodígio, e chegará com o resto da companhia em Caspe, uma pequena cidade às margens do rio Ebro. E lá ele procurará um capuchinho a fim de se confessar, coisa que ele não fazia desde 10 anos.

A presença do hóspede imprevisto obrigou Miguel a ceder sua cama, e sua mãe, Maria, preparou então para seu filho inválido um colchão improvisado ao lado da cama de casal: tratava-se de um colchão de crina de cavalo posto sobre uma peça de couro para proteger da umidade do solo, e um lençol. A coberta foi emprestada ao militar, e só havia a capa de seu pai para proteger do frio, mas esta era muito pequena para cobrir todo o seu corpo. Às dez horas, depois de um jantar frugal, Miguel deu boa noite aos seus pais, ao soldado, ao empregado e a dois vizinhos, Miguel Barrachina e sua mulher, Ursula Means, que tinham vindo como de costume conversar com seus amigos, os Pellicer. Os dois serão as duas primeiras pessoas fora da família (junto com o militar, despertado logo depois), que constatarão, espantadas, o acontecimento.

Durante a conversação, o jovem tinha se queixado, mais que de costume, das dores na perna cortada, dores que tinham aumentado por causa dos esforços no trabalho, e ele mantinha descoberta a ferida cicatrizada, que todos os presentes podiam ver e tocar. Miguel deixou sobre uma cadeira da cozinha a perna de madeira, e também as tiras de lã que ele utilizava para fixá-la ao que lhe restava da perna. As muletas foram postas no mesmo lugar. Apoiando-se à parede para se manter de pé, dirigiu-se, saltando com o pé esquerdo, para o quarto de seus pais, ao lado da cozinha. Pouco depois, os esposos Barrachina, Miguel e Ursula, se despediram e voltaram para a casa vizinha.

Entre dez horas e dez e meia, a mãe de Miguel entrou no quarto com uma lamparina, percebendo logo 'um perfume, um odor suave' desconhecido para ela, 'um perfume vindo do Paraíso, diferente de todos os perfumes da terra' e que permanecerá por vários dias, impregnando não somente o quarto, mas também todos os objetos que lá se encontravam. Espantada com este perfume, ela levantou a sua lamparina e se aproximou do colchão improvisado para ver como seu filho estava. Ele dormia profundamente. Mas ela percebeu também, pensando estar enganada por causa da pouca luz, que não somente um pé ultrapassava a capa de seu pai, mas dois, 'um sobre o outro, cruzados'.

Maria se aproximou com cuidado, constatando que ela de forma nenhuma se havia enganado, e pensou então que tinha havido um mal entendido, que o lugar reservado a seu filho estivesse ocupado pelo soldado. Chamou então seu marido, que ficou na cozinha, para esclarecer a situação. O pai de Miguel chegou apressado, levantou a coberta, e os dois esposos descobriram o impensável: tratava-se de seu filho. Tirando completamente a coberta, espantados, confirmaram que os dois pés cruzados eram mesmo os do jovem Miguel. E viram que estes dois pés estavam unidos à perna, como no dia em que, há mais de três anos, tinham visto seu segundo filho partir, cheio de vigor e esperança, a buscar fortuna, pela estrada de Castellón de la Plana.

Maravilhados e estupefatos diante de uma maravilha tão inaudita, os pais sacodem seu filho, gritando para o despertar. Com os gritos, o rapazinho empregado acorreu da cozinha, onde ele se aprontava para dormir no seu lugar habitual. Os pais tiveram muita dificuldade para despertar Miguel, pois este tinha um sono extremamente profundo, como se estivesse num coma ligeiro. Foi preciso para o despertar 'mais tempo que a duração de dois Credos'. Quando, depois de muito esforço, Miguel abriu os olhos e tomou consciência, a primeira coisa que lhe disseram foi de 'olhar, pois há duas pernas de novo'. O rapaz ficou 'maravilhado', e sua reação imediata é a de pedir a seu pai de 'lhe dar a mão' em sinal de perdão pelas ofensas que tenha feito contra ele. 

Quando lhe perguntaram, com emoção, se ele 'tinha alguma ideia de como isto ocorreu', o jovem respondeu que ele nada sabia. Mas declarou que, quando estava para acordar 'sonhava que ele se encontrava na santa capela de Nossa Senhora do Pilar, e que ele ungia sua perna cortada com o óleo de uma lâmpada, conforme tinha o costume de fazer quando estava no santuário'. Acrescentou que, nessa mesma noite, antes de se deitar, recomendou-se a Nossa Senhora do Pilar com muito fervor, como de costume. Tinha certeza de que 'fora Nossa Senhora do Pilar que lhe devolvera a perna cortada'.

Passada a primeira emoção, o jovem começou a “mover e apalpar sua perna, pois lhe parecia que isto não podia ser verdade. Mas ele mesmo e seus parentes, à luz da lâmpada, examinaram o membro e logo descobriram as marcas que não deixam lugar a nenhuma confusão. Pois eram as marcas que se encontravam outrora sobre a perna amputada. A mais importante, a mais visível, era a cicatriz deixada pela roda da charrete que tinha fraturado a tíbia no acidente de Castellón de la Plana. Também podia-se ver outra cicatriz, menor, provocada pela extração, quando Miguel ainda era menino, de um grande quisto, na parte inferior e interior da perna. E depois, dois arranhões profundos causados por uma planta espinhosa. Finalmente, os traços de uma mordida de cachorro, na panturrilha. 

Além dos parentes e do miraculado, outras testemunhas se lembrarão dos traços visíveis na perna direita do seu jovem concidadão antes que ela fosse cortada, já que a roupa usada pelos camponeses aragoneses deixava ver a panturrilha, a calça só descia um pouco abaixo do joelho. Miguel e seus parentes adquiriram logo a certeza de que 'a Virgem do Pilar obteve de Deus Nosso Senhor que a perna que tinha sido enterrada há mais de dois anos lhe fosse devolvida'. Efetivamente, pesquisas foram efetuadas no cemitério do hospital de Saragoça. Mas não se encontrou nenhum vestígio da perna enterrada na parte reservada aos membros amputados. Só havia um buraco vazio na terra. Portanto, não houve criação, mas antes uma espantosa restauração; não uma expulsão, mas uma união. 

Três dias ainda foram necessários para que o calor natural penetrasse progressivamente na perna e no pé direitos. Os dedos, antes recurvados, se endireitaram, a pele retomou a sua cor normal, e desapareceram as estrias arroxeadas que a sulcavam. Pouco a pouco, o pé reencontrou a sua flexibilidade, e todo vestígio de coloração anormal desapareceu. O fato de que a cura total não tenha sido instantânea, não diminui a grandeza do prodígio. Como observará o arcebispo de Saragoça, é preciso distinguir entre o que a natureza é capaz e o que lhe é impossível. Somente a restituição de uma perna a uma pessoa que foi dela privada durante vários anos é que constitui propriamente o caráter prodigioso do acontecimento.

Alertado pelos clamores dos esposos Pellicer e prevenido pelo jovem empregado, acorreram o vizinho Miguel Barrachina, companheiro da conversação, e que pouco antes tinha visto Miguel com a sua única perna. Viu o que tinha acontecido e logo chamou da rua sua esposa Úrsula, já deitada, para que ela também viesse. Os clamores de seu marido eram de tal modo ininteligíveis, e as palavras deformadas pela emoção, que ela se enganou sobre o que era dito. Perto da cama de Miguel, Úrsula encontrou todas as pessoas como fora de si mesmas, cantando em altas voz hinos de louvor e ação de graças à Virgem do Pilar e a Jesus Cristo.

Logo chegaram outras pessoas, entre as quais a avó materna do miraculado. Quando o sol nasce nesse dia 30 de março – sexta-feira da Semana da Paixão - a incrível notícia se espalhou em todo o vilarejo e Dom Jusepe dirigiu-se à casa dos Pellicer, seguido de muita gente. Entre elas, os notáveis de Calanda, o prefeito, Miguel Escobedo, e seu adjunto, Martín Galindo. E ainda o notário real, Lázaro Macário Gómez. O prefeito declarou mais tarde que, não conseguindo compreender como uma coisa tão extraordinária pudesse se produzir, ele tinha 'apalpado a perna e feito cócegas na planta do pé'. Também ali estava o juiz de paz, que deveria assegurar a ordem pública, Martín Corellano. Este redigiu o primeiro relato dos acontecimentos que deveria ser enviado às autoridades de Saragoça, no dia seguinte aos fatos. Este documento foi entregue pela mesma família Pellicer quando, algumas semanas depois, ela se dirigiu em peregrinação de ação de graças ao santuário do Pilar. Na capital aragonesa, a coisa foi considerada tão extraordinária, que se julgou necessário informar logo as autoridades supremas do reino. Assim, este primeiro documento de um obscuro funcionário de Calanda foi enviado a Madrid pelo correio e chegou às mãos do rei Filipe IV.

No meio da multidão, que se reuniu em torno da casa dos Pellicer, se achavam também dois médicos de Calanda. Uma espécie de procissão se formou para acompanhar o jovem até a igreja paroquial, onde o resto dos habitantes o esperava. Todos, dizem os documentos, 'ficaram estupefatos vendo-o de novo com a sua perna direita, pois eles tinham-no visto antes com uma só perna até o dia anterior de tarde'. Na igreja, o vigário, depois de ter confessado o miraculado, celebrou uma missa de ação de graças, durante a qual Miguel comungou.

O PROCESSO CANÔNICO

Foi a municipalidade de Saragoça que pediu a abertura do processo, a fim de que o acontecimento fosse completamente esclarecido. O primeiro signatário desse pedido de investigação sobre o que verdadeiramente tinha se passado no vilarejo do reino de Aragão foi o prefeito de Saragoça, Lupercio Diaz de Contamina. Depois de ter recebido a autorização do arcebispado, as autoridades civis nomearam três pessoas que foram incumbidas de representá-los no júri. 

No dia 5 de junho, os três representantes de Saragoça se apresentaram diante do vigário geral da diocese, D. Juan Perat, e o processo canônico foi oficialmente aberto. Para que houvesse uma maior transparência, ele seria público e não a portas fechadas. As minutas, com todos os interrogatórios, as objeções, as deduções e as contra-deduções, seriam integralmente e imediatamente publicadas e postas à disposição de todos aqueles que quisessem as consultar, tanto mais que se quis deixá-las em castelhano, a língua do povo. Somente a sentença solene do arcebispado será redigida em latim – mas ela será também, logo traduzida. 

As regras estabelecidas na 25° sessão do Concílio de Trento e claramente enunciadas no decreto sobre a veneração dos santos e de suas relíquias e sobre o reconhecimento dos 'novos milagres', foram rigorosamente seguidas. A organização formal do processo foi confiada ao vigário-geral. D. Perat. Mas foi o arcebispo de Saragoça em pessoa, D. Pedro Apaolaza Ramirez, que se constituiu juiz e presidente do tribunal, assistindo a todo o desfilar de testemunhas e ao seu minucioso interrogatório. O arcebispo era um pastor de grande experiência (tinha 74 anos), sábio autor de trabalhos de teologia apreciados. Cumpriu seu cargo episcopal com zelo e severidade na aplicação dos decretos conciliares, ao ponto de atrair para si ressentimentos. Em conformidade às regras do Concílio de Trento, um colégio de nove teólogos e canonistas (entre os quais um leigo, professor universitário), se assentou ao lado do arcebispo. Todos assinaram com ele a sentença definitiva.

Uma confirmação suplementar do rigor jurídico e teológico deste processo veio de que ele se desenrolou sob o olhar atento e desconfiado da Inquisição que, todavia, não interferiu diretamente. No apogeu de sua organização e de seu poder em Aragão, a Inquisição velava com autoridade pelo respeito estrito da ortodoxia católica, intervindo de maneira inexorável em todos os casos onde ela acreditava detectar novidades perigosas ou traços de superstição. Contrariamente ao que nos queria fazer crer a 'Lenda Negra' da Espanha, o tribunal da Inquisição gozava de um apoio total e convencido da parte de todas as classes sociais, a começar pelo povo. O fato de que o tribunal da Inquisição não tenha exigido de proceder por ela mesma à investigação do impressionante prodígio é uma garantia da objetividade e da regularidade do trabalho jurídico feito pelo tribunal constituído.

Este tribunal não se contentará em buscar as provas a fim de estabelecer a verdade sobre o objeto do processo, pela audição das vinte e quatro testemunhas oculares. Depois deles, durante cinco audiências, foram outras nove testemunhas de 'credibilidade' que compareceram diante dos juízes. Estes foram chamados a ser avalistas dos testemunhos precedentes, para confirmá-los sob juramento de credibilidade. No total, as minutas do processo mencionam 102 nomes, ilustres ou obscuros: juízes, escrivães, procuradores, meirinhos, testemunhas oculares ou 'de credibilidade', médicos, enfermeiros, eclesiásticos, donos de albergue, camponeses, carreteiros... Um jurista moderno e leigo, depois de uma análise dos procedimentos e do desenrolar do processo, podia falar de um 'excesso de garantias' e de uma 'prudência quase impertinente na verificação'.

A decisão do arcebispado declarando o acontecimento de Calanda autenticamente miraculoso foi pronunciada no dia 27 de abril de 1641, ou seja, depois de onze meses de trabalho e catorze sessões públicas e plenárias, menos de treze meses depois dos fatos. Num latim solene, o arcebispo concluía nestes termos a sentença que selava o fim de um longo e complexo processo:

'Por isto, tendo considerado os argumentos ditos acima e muitos outros, com o conselho dos ilustres doutores em Sagrada Teologia e em Direito Canônico nomeados acima, nós afirmamos, pronunciamos e declaramos que a Miguel Juan Pellicer, nascido em Calanda, que foi objeto deste processo, lhe foi devolvida milagrosamente sua perna direita, que lhe tinha sido anteriormente amputada; que não se tratou de um fato natural mas de uma obra admirável e miraculosa; e que se deve julgar que se trata de um milagre, todas as condições requeridas pelo Direito tendo sido reunidas para que, no caso aqui examinado, se possa falar de um autêntico prodígio. E assim devemos inscrevê-lo no número dos milagres, e nós o aprovamos, declaramos e autorizamos como tal'.

(Excertos de artigo publicado na revista Sel de la Terre, n. 49, pelo Pe. Philippe Nahan)

quarta-feira, 24 de junho de 2015

GALERIA DE FOTOS: NASCIMENTO DE SÃO JOÃO BATISTA

'Completando-se para Isabel o tempo de dar à luz, teve um filho. Os seus vizinhos e parentes souberam que o Senhor lhe manifestara a sua misericórdia, e congratulavam-se com ela. No oitavo dia, foram circuncidar o menino e o queriam chamar pelo nome de seu pai, Zacarias. Mas sua mãe interveio: Não, disse ela, ele se chamará João. Replicaram-lhe: Não há ninguém na tua família que se chame por este nome. E perguntavam por acenos ao seu pai como queria que se chamasse. Ele, pedindo uma tabuinha, escreveu nela as palavras: João é o seu nome'.


Zacarias escrevendo: 'João é o seu nome'




Houve um homem enviado por Deus, 
e João era seu nome. João veio dar testemunho da Verdade (Sl 14).

  


'Importa que ele cresça e que eu diminua' (Jo 3, 30)

Nossa Senhora com Jesus e São João Batista




DA VIDA ESPIRITUAL (83)


Invoca sempre ao Pai Eterno com as palavras do salmista: 'Ó Deus, cria em mim um coração puro, renova um espírito firme em meu peito; não me rejeites para longe de tua face, não retires de mim teu santo espírito'. A caminhada é longa e muitos são os percalços. Persevera, pois, persevera na graça: com passos de homem, com o coração em Deus!

terça-feira, 23 de junho de 2015

DAS CONSOLAÇÕES E SECURAS DA VIDA ESPIRITUAL (II)


Do que temos dito se segue que é grande engano e grave tentação, quando alguém, por se ver deste modo atribulado, chega a deixar a oração ou a ser nela menos assíduo, parecendo-lhe que não faz ali nada, antes perde tempo. Com esta tentação tem o demônio feito abandonar o exercício da oração não só a muitos dos seculares, mas também a muitos religiosos; e, quando de todo lhes não tira a oração, faz que não se deem tanto a ela nem gastem nela tanto tempo como poderiam. 

Começam muitos a dar-se à oração: e enquanto bonança e devoção, continuam com muito fervor, porém, apenas chega o tempo da secura e das distrações, logo desanimam, parecendo-lhes que aquilo não é oração mas antes nova culpa, pois estão ali diante de Deus com tanta dissipação e com tão pouca reverência. E assim vão pouco a pouco deixando a oração, cuidando que hão de fazer maior serviço a Deus em outros exercícios e ocupações, que não em estar ali deste modo. E como o demônio sente neles esta fraqueza, vale-se da ocasião e se apressa de tal modo a lhes sugerir pensamentos e tentações na oração, que persuadidos já que é tempo mal gasto, pouco a pouco chegam a deixá-la de todo, e com ela a prática da virtude.

E muitas vezes não param aqui. Por este caminho principiou a perdição de muitos. Há amigos, que só o são para a mesa, e que faltam no tempo da tribulação e necessidade, diz o Sábio (Ecl 6,10). Gozar pela graça de Deus ninguém recusa, porém trabalhar e padecer por amor de Deus é o único sinal do verdadeiro amor. Quando na oração há devoção e consolação, não é muito que persevereis e que vos detenhais e gasteis nela muitas horas, porque isso podeis vós fazer só por vosso gosto e contentamento; e é prova de que assim o fazeis, se, quando isso vos falta, já não perseverais na oração. 

Quando Deus manda desconsolações, securas e distrações, então se provam os verdadeiros amigos, então se conhecem os servos fieis, que não buscam o seu interesse, senão puramente a vontade e o beneplácito de Deus. E por isso então havemos de perseverar com humildade e paciência, ficando ali todo o tempo marcado e ainda um pouco mais, como no-lo aconselha nosso Padre Inácio, para assim vencermos a tentação e para nos mostrarmos esforçados e fortes contra o demônio.

Conta Paládio que, exercitando-se ele nas coisas divinas e na consideração dos bens espirituais, encerrado em uma cela, padecia graves tentações de secura, e grande moléstia de pensamentos; e lhe vinha à imaginação que deixasse aquele exercício, porque era para ele sem proveito. Foi logo buscar àquele santíssimo varão Macário Alexandrino, e lhe contou esta tentação, pedindo-lhe conselho e remédio. Respondeu-lhe o santo: Quando estes pensamentos te disserem que te vás, e que não fazes ali nada, responde-lhes logo: 'Quero estar aqui por amor de Cristo, guardando as paredes desta cela'. E foi o mesmo que dizer-lhe que perseverasse na oração, contentando-se com fazer aquela santa obra por amor de Cristo Nosso Senhor, ainda que não tirasse mais fruto que este.

Esta é muito boa resposta para quando nos vier a tentação do desânimo na oração; porque o fim principal que havemos de pretender neste santo exercício, e a intenção com que devemos tomá-la e ocupar-nos nele, não há-de ser o nosso gosto e consolação, senão fazer uma obra boa e santa. Com ela, agrademos a Deus e lhe damos contentamento, e juntamente lhe pagamos alguma coisa do muito que lhe devemos, por ser Ele quem é, e pelos inumeráveis benefícios que da sua liberal mão temos recebido; e pois se Ele quer e lhe agrada de que eu esteja agora aqui em oração, ainda que me pareça que não faço nada, permanecerei contente no meu posto.

Conta-se de Santa Catarina de Sena que, por muitos dias, esteve desamparada destas consolações espirituais, sem sentir o costumeiro fervor da devoção; além disso, era muito molestada por pensamentos maus, feios e desonestos, os quais não podia afastar de si; porém nem por isso deixava a sua oração, antes perseverava nela o melhor que podia com grande cuidado, e então falava consigo mesma deste modo: 'Tu, vilíssima pecadora, não mereces consolação alguma; não te contentarias tu com que não fosses condenada, ainda que toda a tua vida houvesses de padecer estas trevas e estes tormentos? Com certeza que não escolheste servir a Deus, para dele receberes consolações nesta vida, senão para gozares dele no céu por toda a eternidade. Ânimo pois, e prossegue nos teus exercícios espirituais, persevera na fidelidade ao teu Senhor'.

Imitemos nós estes bons exemplos, e fiquemos com as palavras de um santo bem gravadas no nosso coração: 'Tenha eu, Senhor, por minha consolação o querer de boa vontade estar privado de toda a consolação humana; e se também a Vossa consolação me faltar, tenha eu por supremo alívio a Vossa vontade e justa prova'. Se chegarmos a esta perfeição; se conseguirmos que a vontade de Deus seja todo o nosso contentamento e consolação, de tal modo que até o carecer de toda a consolação do céu seja o nosso gosto e contentamento, por ser essa a vontade de Deus: então será verdadeira a nossa alegria, e tão sólida e duradoura, que nenhuma coisa deste mundo no-la poderá roubar.

(Excertos da obra 'Exercícios de Perfeição e Virtudes Cristãs', do Pe. Afonso Rodrigues)

domingo, 21 de junho de 2015

EM MAR REVOLTO

Páginas do Evangelho - Décimo Segundo Domingo do Tempo Comum


O cenário do Evangelho deste Décimo Segundo Domingo do Tempo Comum é a imensidão do Lago de Tiberíades, tão vasto que era comumente referido como 'Mar' de Genesaré ou da Galileia. Jesus e os apóstolos tomaram a barca para a travessia do lago, até à cidade de Gerasa na outra margem, após um longo e exaustivo dia de pregações e exortações em Cafarnaum. Jesus estava profundamente cansado e buscou repouso naquelas poucas horas de duração da travessia do Mar da Galileia.

O mar estava em plena calmaria e Jesus, cansado pela lida e fatigas do dia, acomodou-se na parte de trás da embarcação, utilizando-se de algum apoio macio para reclinar a sua cabeça, à guisa de travesseiro. E, sob o fluxo sincronizado dos remos e das ondas, sob o silêncio respeitoso dos seus discípulos, Jesus adormeceu. A pequena embarcação seguia suavemente o seu curso levando consigo o Senhor de todos os caminhos e jornadas em sono profundo! Em poucos minutos, será Jesus quem irá tirar os seus discípulos do sono profundo da tibieza, da inquietação inútil, da incoerência da fé.  

O tempo da bonança tornou-se, então, prenúncio de tempestade: 'Começou a soprar uma ventania muito forte e as ondas se lançavam dentro da barca, de modo que a barca já começava a se encher' (Mc 4, 37). Aqueles homens do mar tentaram em vão dominar a barca frente à fúria dos elementos e, temerosos pela própria vida, esqueceram a condescendência pelo repouso do Mestre e o acordaram com grande preocupação: 'Mestre, estamos perecendo e tu não te importas?' (Mc 4, 38). Pondo-se de pé, Jesus estancou de pronto os ventos e o mar revolto: 'Silêncio! Cala-te!' (Mc 4, 39) e ainda acordou os seus companheiros de jornada das vicissitudes de uma fé morna: 'Por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?' (Mc 4, 40).

E, estupefatos pelo milagre extraordinário, os discípulos ainda se indagariam: 'Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?' (Mc 4 ,41). Em Jesus, todas as tormentas se acalmam, todas as tempestades são tolhidas, toda inquietude é dissipada. Como a travessia da barca, nossas vidas e a vida da Igreja são permeadas por dias de calmaria e noites de tormenta; mas temos a divina promessa de ter sempre Jesus ao nosso lado, aguardando que a petição sincera e amorosa do nosso livre arbítrio possa recolher, do seu 'sono' divino, as graças e as fartas consolações que refresquem e silenciem a secura e os gemidos dos nossos tempos de tribulação.