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segunda-feira, 31 de março de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (X)

P. 21 - Como se demonstra que se um homem resistir ou negligenciar as graças de Deus, elas lhe serão tiradas? E ainda: se ele se perder, que a culpa é sua?

Isto também é manifesto em toda a Escritura, mas para que este ponto possa ser completamente compreendido, devemos considerar as diferentes consequências fatais que fluem de um abuso obstinado destas graças.

(i) Estas graças são retiradas deles; não, de fato, de uma só vez, pois Deus, em sua infinita misericórdia, espera pacientemente pelos pecadores, e repete os seus esforços para sua conversão; mas se eles ainda resistem ou abusam de suas graças, estas são diminuídas e dadas mais raramente. Assim diz o nosso Salvador do servo inútil: 'Tirai-lhe a moeda... porque ao que não tem, até o que tem lhe será tirado' (Lc 19,24.26). Como assim? Se ele não tem, como é que alguma coisa lhe pode ser tirada? O sentido é: aquele que não melhorou o que tem, até o que tem lhe será tirado. O mesmo é repetido em várias outras ocasiões.

(ii) Quanto mais as graças de Deus são enfraquecidas ou retiradas dos pecadores por seu repetido abuso delas, mais suas paixões são fortalecidas em seus corações, adquirindo maior domínio sobre eles, até que finalmente se tornam seus miseráveis escravos; 'Meu povo não ouviu minha voz' - diz o Deus Todo-Poderoso - 'Israel não me ouviu: então eu os deixei ir de acordo com os desejos de seu coração; eles andarão em suas próprias invenções (Sl 80,12). E São Paulo assegura-nos que, embora os sábios entre as nações pagãs, pela luz da própria razão, chegaram a um claro conhecimento da existência de Deus e do seu poder e divindade, mas 'porque, conhecendo a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo contrário, extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e se lhes obscureceu o coração insensato... Por isso, Deus os entregou aos desejos dos seus corações, à imun­dície' (Rm 1,21.24).

(iii) Se a obstinação deles ainda aumenta, e eles continuam a fechar os olhos para a luz da verdade que Deus lhes oferece, Ele então permite que eles sejam seduzidos pela falsidade, por 'dar ouvidos a espíritos de erro e doutrinas de demônios' (1Tm 4,1). Assim, 'Ele usará de todas as seduções do mal com aqueles que se perdem, por não terem cultivado o amor à verdade que os teria podido salvar. Por isso, Deus lhes enviará um poder que os enganará e os induzirá a acreditar no erro. Desse modo, serão julgados e condenados todos os que não deram crédito à verdade, mas consentiram no mal' (2T 2,10-12). 10. Este texto forte mostra claramente duas grandes verdades; primeiro, que Deus oferece a verdade a todos; e, segundo, que a fonte da condenação deles é inteiramente deles mesmos, ao se recusarem a recebê-la.

(iv) Se, portanto, eles ainda continuarem em sua perversidade, e morrerem em seus pecados, uma terrível condenação será sua porção para sempre; para eles 'Por isso, jurei na minha cólera: não hão de entrar no lugar do meu repouso (Sl 94,11). Sobre eles, Ele pronuncia aquela terrível sentença: 'Uma vez que recusastes o meu chamado e ninguém prestou atenção quando estendi a mão, uma vez que negligenciastes todos os meus conselhos e não destes ouvidos às minhas admoestações, também eu rirei do vosso infortúnio e zombarei, quando vos sobrevier um terror, quando vier sobre vós um pânico, como furacão; quando se abater sobre vós a calamidade, como a tempestade; e quando caírem sobre vós tribulação e angústia. Então me chamarão, mas não responderei; eles me procurarão, mas não atenderei. Porque detestam a ciência sem lhe antepor o temor do Senhor, porque repelem meus conselhos com desprezo às minhas exortações; comerão do fruto dos seus erros e se saciarão com seus planos, porque a apostasia dos tolos os mata e o desleixo dos insensatos os perde' (Pv 1, 24-32). 

A condenação deles é prefigurada na de Jerusalém, que havia sido rebelde a todos os apelos de Deus, e sobre cujo destino nosso Salvador lamenta com estas palavras tocantes: 'Jerusalém, Jerusalém! Que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados; quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste! Eis que a tua casa te será deixada deserta' (Mt 23,37-38). 'Eu quis, e tu não quiseste!' Este é o grande crime cometido por eles. 'Enviei-vos os meus profetas e servos, as minhas graças, luzes e intenções sagradas, mas vós os matastes e destruístes, e não lhes destes ouvidos!' O destino miserável de todos esses infelizes pecadores, prefigurado em Jerusalém, arrancou lágrimas dos olhos de Jesus, quando Ele chorou sobre aquela cidade e disse: 'Se também tu, ao menos neste dia que te é dado, conhecesses o que te pode trazer a paz! Mas não, isso está oculto aos teus olhos. Virão sobre ti dias em que os teus inimigos te cercarão de trincheiras, te sitiarão e te apertarão de todos os lados; eles destruirão a ti e a teus filhos que estiverem dentro de ti, e não deixarão em ti pedra sobre pedra, porque não conheceste o tempo em que foste visitada' (Lc 19,42-44). São aqueles que, tendo sido convidados para a ceia nupcial do grande Rei, rejeitaram o seu convite e mataram os seus servos; por isso 'Ele enviou os seus exércitos e destruiu aqueles assassinos, e queimou a sua cidade' (Mt 22,7), declarando depois que 'o banquete está pronto, mas os convidados não foram dignos' (Mt 22,8).

P. 22 - Qual é a consequência de todas essas verdades?

A consequência é muito clara, a saber: embora Deus Todo-Poderoso tenha se agradado em ordenar que ninguém será salvo uma vez que não tenha a verdadeira fé em Jesus Cristo, e não esteja em comunhão com a sua santa Igreja, ainda assim isso não é de forma alguma inconsistente com a infinita bondade de Deus, porque Ele dá a todos as graças suficientes, pelas quais eles podem, se corresponderem a elas, ser trazidos para a verdadeira fé e Igreja de Cristo; e que, se alguém se perde, não é devido a qualquer falta de bondade em Deus, mas ao seu próprio abuso das graças que lhes foram concedidas. A alguns, na verdade, Ele concede essas graças mais abundantemente, dando-lhes cinco talentos; a outros, Ele dá mais parcimoniosamente, dois talentos e a outros apenas um; mas Ele dá a todos o suficiente para suas necessidades atuais, e dará mais se estas forem melhoradas, até que finalmente Ele os leve ao conhecimento da verdade e à salvação.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

quinta-feira, 6 de março de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCVII)

Capítulo XCVII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Santa Madalena de Pazzi e Irmã Benedicta - O Pensamento do Purgatório: Exemplos do Padre Paulo Hoffee, Padre Claúdio de la Colombière e Padre Luís Corbinelli

Santa Madalena de Pazzi, em uma aparição de uma alma falecida, recebeu a mais salutar instrução sobre as virtudes religiosas. Havia no seu convento uma irmã chamada Maria Benedicta, que se distinguia pela sua piedade, pela sua obediência e por todas as outras virtudes que são o ornamento das almas santas. Era tão humilde, diz o Padre Cepari, e tinha tal desprezo por si mesma que, sem a orientação dos seus Superiores, teria ido a extremos, com o único objetivo de adquirir a reputação de ser uma pessoa sem prudência e sem juízo. Dizia, portanto, que não podia deixar de sentir inveja de Santo Aleixo, que encontrou um meio de viver uma vida oculta, desprezível aos olhos do mundo. Era tão dócil e pronta na obediência, que corria como uma criancinha ao menor sinal da vontade dos seus Superiores, e estes eram obrigados a usar de grande circunspeção nas ordens que lhe davam, para que ela não fosse além dos seus desejos. De fato, ela tinha adquirido tal domínio sobre as suas paixões e apetites, que seria difícil imaginar uma mortificação mais perfeita.

Esta boa irmã morreu subitamente, depois de algumas horas de doença. Na manhã seguinte, um sábado, durante a missa celebrada, enquano as religiosas cantavam o Sanctus, Madalena foi arrebatada em êxtase. Durante o arrebatamento, Deus mostrou-lhe esta alma sob a forma corporal na glória do Céu. Estava adornada com uma estrela de ouro, que recebera como recompensa pela sua ardente caridade. Todos os seus dedos estavam cobertos de anéis caros, por causa da sua fidelidade a todas as regras e do cuidado que tivera em santificar as suas ações mais ordinárias. Na cabeça, trazia uma coroa riquíssima, porque sempre amou a obediência e o sofrimento por Jesus Cristo. De fato, ultrapassava em glória uma grande multidão de virgens e contemplava o seu Esposo Jesus com singular familiaridade, porque tinha amado tanto a humilhação, segundo estas palavras do nosso Salvador: 'Aquele que se humilhar será exaltado'. Tal foi a sublime lição que a santa recebeu em recompensa da sua caridade para com os defuntos.

O pensamento do Purgatório incita-nos a trabalhar com zelo e a não cometer as menores faltas, a fim de evitar as terríveis expiações da outra vida. O Padre Paulo Hoffee, que morreu santamente em Ingolstadt no ano de 1608, fez uso deste pensamento em seu próprio benefício e no dos outros. Nunca perdeu de vista o Purgatório, nem deixou de aliviar as pobres almas que frequentemente lhe apareciam a pedir os seus sufrágios. Como Superior dos seus irmãos religiosos, exortava-os muitas vezes a santificarem-se a si próprios, para depois poderem santificar os outros, e a nunca negligenciarem a mais pequena prescrição das suas regras; depois acrescentava com grande simplicidade: 'Caso contrário, receio que venhais, como muitos outros o fizeram, pedir as minhas orações para que vos libertem do Purgatório'. Nos seus últimos momentos, ele estava totalmente ocupado em conversas amorosas com Nosso Senhor, sua Santíssima Mãe e os santos. Foi sensivelmente consolado pela visita de uma alma muito santa, que o tinha precedido no Céu apenas dois ou três dias antes e que agora o convidava a ir deleitar-se no amor eterno de Deus (Menologia da Companhia de Jesus, 17 de dezembro).

Quando dizemos que o pensamento do Purgatório nos faz usar todos os meios para o evitar, é evidente que temos razões para recear ir para lá. Mas em que se baseia esse temor? Se refletirmos um pouco sobre a santidade que é necessária para entrar no Céu e sobre a fragilidade da natureza humana, que é a fonte de tantas faltas, facilmente compreenderemos que este receio é demasiado fundamentado. Além disso, os exemplos que lemos acima não nos mostram claramente que, muitas vezes, mesmo as almas mais santas têm, por vezes, que sofrer expiação na outra vida?

O Venerável [depois Santo] Padre Cláudio de la Colombière morreu em odor de santidade, em Paray, a 15 de fevereiro de 1682, como havia sido predito pela Beata [depois Santa] Margariada Maria. Assim que ele expirou, deram notícia disso à Irmã Margarida. A santa religiosa, sem se mostrar perturbada e sem se desdobrar em vãs lamentações, disse simplesmente à pessoa que a avisara: 'Vai rezar a Deus por ele e faz com que se reze por toda a parte pelo repouso da sua alma'. O Padre tinha morrido às cinco horas da manhã. Nessa mesma noite, ela escreveu um bilhete à mesma pessoa, nestes termos: 'Deixa de te afligir; invoca-o. Não temais nada, ele é mais poderoso do que nunca para nos ajudar'. Estas palavras dão-nos a entender que ela tinha sido sobrenaturalmente esclarecida acerca da morte deste santo homem e do estado da sua alma na outra vida.

A paz e a tranquilidade da Irmã Margarida diante da morte de um diretor que lhe tinha sido útil foi outra espécie de milagre. A bem-aventurada irmã não amava senão em Deus e por Deus; Deus ocupava o lugar de tudo no seu coração e consumia pelo fogo do seu amor todos os outros apegos. A superiora ficou surpreendida com a sua perfeita tranquilidade por ocasião da morte do santo missionário e, mais ainda, por Margarida não ter pedido para fazer nenhuma penitência extraordinária para o repouso da sua alma, como era seu costume por ocasião da morte de qualquer pessoa conhecida por quem se interessasse particularmente. A Madre Superiora perguntou à serva de Deus a razão disso e ela respondeu-lhe muito simplesmente: 'Ele não tem necessidade disso; está em condições de rezar por nós, uma vez que foi exaltado no Céu pelo Sagrado Coração de Nosso Senhor Divino. Apenas para expiar uma ligeira negligência na prática do Amor Divino' - acrescentou - 'a sua alma foi privada da visão de Deus desde que deixou o corpo até ao momento em que os seus restos mortais foram entregues ao túmulo'.

Acrescentemos mais um exemplo, o do Padre Corbinelli. Esta santa pessoa não foi isenta do Purgatório. É verdade que não ficou retido lá, mas teve que passar pelas chamas antes de ser admitido na presença de Deus. Luís Corbinelli, da Companhia de Jesus, morreu em odor de santidade na casa professa de Roma, no ano de 1591, quase ao mesmo tempo que São Luís Gonzaga. A morte trágica de Henrique II, rei de França, provocou-lhe um desgosto pelo mundo e decidiu consagrar-se inteiramente ao serviço de Deus. No ano de 1559, o casamento da princesa Isabel foi celebrado com grande pompa na cidade de Paris. Entre outros divertimentos, foi organizado um torneio, no qual figurou a flor da nobreza e da cavalaria francesas. O próprio Rei apareceu no meio da sua brilhante corte. Entre os espectadores, reunidos até de terras estrangeiras, estava o jovem Luís Corbinelli, que tinha vindo da sua cidade natal - Florença - para assistir ao festival. Corbinelli contemplava com admiração a glória do monarca francês, agora no zênite da sua grandeza e prosperidade quando, de repente, o viu cair, atingido por um golpe fatal desferido por um oponente imprudente. A lança mal empunhada por Montgomery transpassou o Rei, que expirou ali mesmo banhado em sangue.

Num piscar de olhos, toda a sua glória desapareceu e a magnificência real foi coberta por uma mortalha. Este acontecimento causou uma impressão profunda em Corbinelli; vendo assim exposta a futilidade da grandeza humana, renunciou ao mundo e abraçou a vida religiosa na Companhia de Jesus. A sua vida foi a de um santo, e a sua morte encheu de alegria todos os que dela foram testemunhas. Aconteceu alguns dias antes da morte de São Luís, que estava doente no Colégio Romano. O jovem santo anunciou ao Cardeal Bellarmine que a alma do Padre Corbinelli tinha entrado na glória; e quando o Cardeal lhe perguntou se não tinha passado pelo Purgatório, respondeu: 'Passou, mas não ficou lá'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sábado, 8 de junho de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (IV)


30. Por vezes, somos demasiado escrupulosos em relação às obras de supererrogação [ação de se fazer mais que o necessário ou obrigatório] como, por exemplo, ter omitido em tal dia uma certa oração ou uma mortificação imposta por nós próprios; são escrúpulos de omissões que, no que respeita à nossa salvação eterna, têm pouca ou nenhuma importância; mas prestamos pouca atenção àquela humildade que, para nós, é a mais essencial e necessária e sem a qual ninguém se pode salvar. São Paulo adverte-nos: 'Não vos torneis crianças no sentido de julgar' [1Cor 14,20]. Não sejais como as crianças que choram e desesperam se lhes tiram uma maçã, mas pouco se importam de perder uma joia de grande valor. Coloquemos a humildade acima de todas as coisas. Ela é o tesouro escondido e enterrado no campo, para o qual devemos vender tudo o que possuímos [Mt 13,44]. É a pérola de grande valor, para a qual devemos vender tudo o que temos [Mt 13,45].

Não chamemos esses pecados contra a humildade de escrúpulos, mas consideremo-los como pecados reais, dignos de confissão e emenda. Que Deus nos guarde de uma consciência demasiado fácil no que respeita à verdadeira humildade que nos é ordenada no Evangelho. Deveríamos, na verdade, tomar o caminho largo mencionado pelo Espírito Santo, que, embora pareça ser o caminho certo e reto, leva diretamente à perdição: 'Há um caminho que ao homem parece direito, mas os seus fins conduzem à morte' [Pv 16, 25]. Há pessoas que pensam, como os fariseus, que a virtude e a santidade consistem em orações muito longas, na visita às igrejas e em alguma abstinência especial, em retiros, na modéstia do vestuário, em conferências espirituais ou em algum exercício de piedade exterior; mas em tudo isso quem pensa na humildade? Quem a estima e se esforça por adquiri-la? O que é então tudo isso senão uma vã ilusão?

31. Lemos sobre vários filósofos antigos que suportaram calúnias, insultos e desprezo com perfeita equanimidade e sem raiva ou perturbação, mas eles nem mesmo conheciam o nome de humildade. A sua corajosa fortaleza era apenas um efeito do orgulho refinado, pois como se consideravam muito acima dos reis e imperadores, pouco se importavam com os insultos e mantinham a sua equanimidade pelo desprezo com que olhavam para aqueles que os insultavam. Eles superavam o sentimento de ressentimento por uma paixão ainda mais dominadora, e o fato de serem modestos, pacíficos e gentis era um efeito desse orgulho que dominava despoticamente os sentimentos de seus corações.

Há uma diferença imensa entre a moral da filosofia humana e a moral evangélica ensinada por Jesus Cristo. Lede atentamente as obras de Sêneca - aquele que era tido como superior a todos os outros filósofos em moralidade - e vereis como, nas mesmas máximas com que ele ensina a magnanimidade e a fortaleza, instila também o orgulho. Lede as obras do mais célebre dos estóicos e direis como São Jerônimo que 'quando são estudadas com o maior cuidado e atenção, não se encontra nenhuma plenitude satisfatória da verdade, nenhuma correspondência com os verdadeiros princípios da justiça' [Epist. 146, ad Damas]. Tudo é vaidade que apenas inspira vaidade.

É somente no Evangelho de Jesus Cristo que se encontram as regras dessa humildade de coração que é a verdadeira virtude, que consiste no conhecimento da grandeza de Deus e do nosso próprio nada; e é atentando para o estudo dessa humildade sábia que cumprimos o preceito apostólico: 'Não ser mais sábio do que convém ser sábio, mas ser sábio até à sobriedade' [Rm 12,3]. Jesus Cristo, antes de ensinar qualquer coisa da sua nova lei, quis ensinar a humildade, como observa São João Crisóstomo: 'Quando começou a estabelecer as suas leis divinas, começou pela humildade' [Hom. 39 em Mt]. Pois, sem humildade, é impossível compreender esta doutrina celeste, mas com humildade somos capazes de compreender tudo o que é necessário ou útil para a nossa salvação.

32. Confessar a nossa indignidade e o nosso nada e proclamar que tudo o que é bom em nós vem de Deus é muitas vezes o exercício estéril de uma humildade muito desprezível, e pode até ser um grande orgulho - magna superbia - como observa Santo Agostinho e ensina Santo Tomás: 'A humildade, que é uma virtude, é sempre fecunda em boas obras' [22, qu. clxi, art. .5, ad 4]. Quereis ter uma ideia do que é essa humildade que é uma verdadeira virtude? A alma é verdadeiramente humilde quando reconhece que a sua verdadeira posição na ordem da natureza ou da graça depende inteiramente do poder, da providência e da misericórdia de Deus; de tal modo que, não encontrando em si mesma senão o que é de Deus, só se apropria do seu nada e, permanecendo no seu nada, coloca-se ao nível de todas as outras criaturas sem se elevar de modo algum acima delas. Aniquila-se diante de Deus, não para permanecer numa inatividade ociosa mas, procurando glorificá-lo continuamente, conformando-se com a obediência exata às suas leis e com a submissão perfeita à sua vontade.

A humildade tem dois olhos: com um reconhecemos a nossa própria miséria para não nos atribuirmos senão o nosso nada; com o outro reconhecemos o nosso dever de trabalhar e de atribuir tudo a Deus, remetendo-lhe todas as coisas: 'Louvai, ó servos do Senhor, louvai o nome do Senhor' [Sl 112,1]. O homem verdadeiramente humilde considera que tudo o que é bom para a sua natureza material ou espiritual é como os riachos que vieram originalmente do mar e que devem finalmente regressar ao mar; e por isso tem sempre o cuidado de render a Deus tudo o que recebeu de Deus, e não reza, nem ama, nem deseja nada, exceto que em todas as coisas o nome de Deus seja santificado: 'Santificado seja o vosso nome' [Mt 6, 9].

33. A humildade não é uma virtude doentia, tímida e débil, como alguns imaginam; pelo contrário, é forte, magnânima, generosa e constante, porque se fundamenta na verdade e na justiça. A verdade consiste em saber o que Deus é e o que nós somos. A justiça consiste em reconhecermos que Deus, como nosso Criador, tem o direito de nos ordenar, e que nós, como suas criaturas, somos obrigados a obedecer-lhe. Todos os mártires foram perfeitamente humildes, porque preferiram morrer sofrendo os mais terríveis tormentos a abandonar a verdade e a justiça. Como foi grande a sua resistência e coragem ao resistir àqueles que tentavam forçá-los a negar Jesus Cristo!

Contrariar os outros é um efeito do orgulho, sempre que os contrariamos para seguir a nossa vontade injusta e errada; mas quando a nossa oposição à criatura procede da determinação de cumprir a vontade do Criador, é ditada pela humildade, pois com isso confessamos a nossa obrigação indispensável de estarmos sujeitos e obedientes à vontade divina. É por isso que o homem orgulhoso é sempre tímido, porque o seu orgulho só se sustenta na fraqueza da natureza humana. E aquele que é humilde é sempre corajoso no exercício da sua submissão à Majestade Divina, porque recebe a sua força através da graça.

Os humildes obedecem aos homens, quando, ao fazê-lo, obedecem também a Deus; mas recusam a obediência aos homens, quando, ao obedecê-los, desobedeceriam ao seu Deus. Refleti na resposta, tão modesta quanto magnânima, dada diante dos anciãos de Jerusalém por São Pedro e São João: 'Se é justo aos olhos de Deus ouvir-vos antes a vós do que a Deus, julgai vós' [At 4,19]. O homem humilde está acima de qualquer respeito humano e não corre o risco de se tornar escravo das opiniões, das modas ou dos costumes do mundo; conhece as suas falhas e sabe que é capaz de todos os males, mesmo que não os cometa. Se vê os outros agirem mal, compadece-se deles, mas nunca se escandaliza nem é induzido a seguir os maus exemplos dos outros; porque todas as suas intenções são dirigidas para Deus, e não tem outro desejo senão o de agradar a Deus e de ser dirigido apenas por Deus, como nos ensina Santo Tomás, o doutor angélico: 'Ele se apega somente a Deus e, por isso, por mais que veja os outros agirem desordenadamente em palavras ou ações, ele próprio não se afasta da retidão da sua conduta [22, qu. 33, art. 5].

34. O coração do homem orgulhoso é como um mar tempestuoso, nunca em repouso: 'Como o mar furioso que não pode descansar' [Is 57,20] e o coração do humilde está plenamente satisfeito em sua humildade - rico em ser humilde [Tg 1,10] - e está sempre calmo e tranquilo e sem medo de que qualquer coisa neste mundo possa perturbá-lo, e 'descansará com confiança' [Is 14,30]. E de onde vem essa diferença? O homem humilde desfruta de paz e sossego porque vive de acordo com as regras da verdade e da justiça, submetendo sua própria vontade em todas as coisas à vontade Divina. O homem orgulhoso está sempre agitado e perturbado por causa da oposição que está continuamente oferecendo à vontade divina, a fim de cumprir a sua própria.

Quanto mais o coração estiver cheio de amor-próprio, tanto maior será a sua ansiedade e agitação. Esta máxima é, de fato, verdadeira, pois sempre que me sinto interiormente irritado, perturbado e encolerizado por alguma adversidade que me tenha acontecido, não preciso procurar a causa de tais sentimentos em outro lugar que não seja dentro de mim mesmo, e faria sempre bem em dizer: 'Se eu fosse verdadeiramente humilde, não me inquietaria. A minha grande agitação é uma prova evidente que devo convencer-me de que o meu amor-próprio é grande, dominante e poderoso dentro de mim, e é o tirano que me atormenta e não me dá paz. Se me sinto ofendido por alguma palavra dura que me foi dita, ou por alguma indelicadeza que me foi mostrada, de onde vem esse sentimento de dor? Do meu orgulho. Ó se eu fosse verdadeiramente humilde, que calma, que paz e que felicidade não gozaria a minha alma!' E esta promessa de Jesus Cristo é infalível: 'Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas' [Mt 11,29].

Quando nos sentimos angustiados por alguma adversidade, não é necessário procurar a consolação daqueles que nos lisonjeiam ou se compadecem de nós, e a quem podemos derramar os nossos problemas. Basta perguntar à nossa alma: “Por que estás abatida, ó minha alma? e por que me inquietas?' [Sl 41,12]. Alma minha, oque tens e o que buscas? Porventura desejas aquele repouso que perdeste? Ouve, pois, o remédio que te oferece o teu Salvador, exortando-te a aprender com Ele a ser humilde: 'Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração' e ouve ainda o que Ele acrescenta quando te assegura que, com a tua humildade restaurada, também recuperarás a tua paz: 'E encontrareis descanso para as vossas almas'.

35. Há duas espécies de humilhações: as que procuramos por nossa própria vontade, e as que provêm das vicissitudes naturais e temporais desta vida. Contra as primeiras, devemos estar atentos, não obstante o ardor com que as abraçamos, pois a vaidade sempre latente do nosso amor-próprio é tão sutil que procura até aumentar a sua própria vanglória, enquanto parece procurar o desprezo do homem. Mas se aceitamos as outras humilhações que nos sobrevêm, independentemente da nossa vontade, mortificando os nossos sentimentos, pensamentos e paixões com pronta resignação à vontade de Deus, é sinal de uma verdadeira e sincera humildade; porque tais humilhações tendem a mortificar o nosso amor-próprio e a aperfeiçoar a submissão que devemos a Deus.

As humilhações voluntárias e procuradas por nós mesmos podem levar a alma a tornar-se hipócrita. Mas as humilhações involuntárias, que nos são enviadas pela vontade divina e que suportamos com paciência, santificam a alma; e por isso o Espírito Santo nos deu este importantíssimo mandato: 'Na tua humilhação guarda a paciência. Porque o ouro e a prata são provados no fogo, mas os homens agradáveis no cadinho da humilhação' [Eclo 2,4-5]. É impossível, exceto em casos raros, não descobrir a hipocrisia da humildade afetada: 'Tocai as amontanhas e elas hão de se abrasar' [Sl 143,5]. E, novamente, é impossível não conhecer a virtude da verdadeira humildade, porque seu espírito é 'gentil, amável, firme, estável, seguro, livre de inquietação'  [Sb 7, 23].

36. Há também dois tipos de tentações: as que nos chegam através da maldade do maligno e as que nós próprios procuramos na nossa própria fraqueza e malícia, mas não há melhor proteção contra nenhuma delas do que a humildade. A humildade faz com que o maligno fuja, porque ele não pode enfrentar os humildes devido ao seu grande orgulho, e ainda faz com que todas as tentações desapareçam subitamente, porque não pode haver tentação sem um toque de orgulho. As tentações surgem contra a pureza, contra a fé ou contra qualquer outra virtude, mas podemos vencê-las facilmente se nos humilharmos no nosso coração e dissermos: 'Senhor, eu mereço estas terríveis tentações como castigo do meu orgulho, e se não vieres em meu auxílio, certamente cairei. Sinto a minha fraqueza e que não posso fazer nada de bom por mim próprio. Ajuda-me!' 'Vinde em meu auxílio, ó Deus, ó Senhor, apressai-vos a me socorrer' [Sl 69,2].

Quanto mais uma alma se humilha perante Deus, mais Deus conforta essa alma com a sua graça e, uma vez que Deus está conosco, quem prevalecerá contra nós? 'O Senhor é o protetor da minha vida, de quem terei medo?' [Sl 26,1] disse o rei Davi; e São Paulo disse: 'Se Deus é por nós, quem será contra nós?' [Rm 8,31]. O subterfúgio mais forte que o demônio pode empregar para nos fazer cair em tentação é lisonjear a nossa humildade, impedindo-nos assim de sermos humildes, pois se o maligno conseguir persuadir-nos de que temos força suficiente para vencer a tentação, já sucumbimos, como sucumbiram aqueles de quem está escrito que o Senhor humilha 'os que se arrogam a si mesmos e se gloriam na sua própria força [Jt 6,15]. A caridade nunca arrefece, nem o fervor se torna tíbio, a não ser por falta de humildade. Mantenhamo-nos vigilantes, revestidos com a armadura da humildade, e isso será suficiente. Deus ajudar-nos-á na medida da nossa humildade e, com a sua ajuda, poderemos dizer: 'Posso todas as coisas naquele que me fortalece' [Fp 4,13].

37. Quanto a essas outras tentações, deve haver certamente presunção da nossa parte quando as procuramos por nossa própria vontade e nos colocamos em ocasiões perigosas de pecado. Aquele que é humilde conhece a sua própria fraqueza; e, conhecendo-a, teme colocar-se em perigo; e porque o teme, foge dele. Aquele que é humilde confia implicitamente na ajuda da graça divina, nas ocasiões involuntárias que possa encontrar, mas nunca presume da ajuda da graça divina nas ocasiões que ele próprio procurou.

Sejamos humildes e a humildade ensinar-nos-á a temer e a evitar todas as ocasiões perigosas. Na vida dos santos, lemos como eles eram cuidadosos em evitar relações familiares com as mulheres; e também na vida das mulheres santas, como elas eram igualmente cautelosas em evitar a familiaridade com os homens. Porque é que elas temiam tanto, se já tinham tantas penitências e orações para se defenderem da tentação? A razão é que eram humildes e desconfiavam da fraqueza da natureza humana sem presumir da graça; e assim a sua humildade foi o meio pelo qual mantiveram a sua pureza imaculada.

Podeis dizer: 'Posso colocar-me no caminho da tentação, mas não tenho medo, porque não vou pecar'. Esta é uma temeridade que provém do orgulho, como diz São Tomás: '“Esta é uma verdadeira temeridade e é causada pelo orgulho' [22 qu. liii, art 3, ad 2] e ficaríeis envergonhado por uma queda inesperada. 'Aquele que ama o perigo perecerá nele' Eclo 3,27]. Todos os que assim se atrevem cairão sem dúvida, e sua queda é o justo castigo de seu orgulho, como predisse o profeta: 'Isto lhes sucederá por causa da sua soberba' [Sf. 2,10].

38. Deus resiste aos orgulhosos, porque os orgulhosos se opõem a Ele; mas Ele dispensa as suas graças liberalmente aos humildes, porque eles vivem em sujeição à sua vontade. Ó se humildemente déssemos lugar aos dons divinos, quão grande seria a abundância dessa graça em nossas almas! Uma das piores consequências da nossa falta de humildade é que ela nos tornará tão terrível o dia do Juízo Final, porque nesse dia não só teremos de prestar contas das graças que recebemos e das quais fizemos mau uso, mas também das graças que Deus nos teria dado se fôssemos humildes, e que Ele nos negou por causa do nosso orgulho.

Será inútil, então, desculparmo-nos dizendo que caímos em tal ou tal pecado por falta de graça. 'A graça existia' - responderá o Senhor - 'mas deveríeis tê-la pedido com humildade e não a terdes perdido pelo vosso orgulho'. O orgulho é um obstáculo mais duro que o aço, que impede a infusão benéfica da graça na alma. E é doutrina de São Tomás que é precisamente pelo orgulho que a nossa alma é colocada num estado tal 'que fica privada de todo o bem espiritual interior' [22, qu. cxxxii, art. 3]. Desejas a graça neste mundo e a glória no outro? Humilhai-vos, diz São Tiago: 'Sede humildes diante do Senhor e Ele vos exaltará' [Tg 4,10]. Deus criou do nada tudo o que vemos no nosso mundo, quando 'a terra era vazia e sem nada' [Gn 1,2] e encheu de azeite todos os vasos vazios com que a viúva presenteou Eliseu: 'ânforas vazias em grande quantidade' [2Rs 4,3]. E enche também com a sua graça os corações vazios de si mesmos, isto é, que não têm autoestima nem auto-confiança e não confiam nas suas próprias forças.

39. É muito humilhante refletir sobre isso, que mesmo que estejamos isentos de pecados graves, ainda assim, por alguma desordem secreta dentro de nós, podemos ser tão culpados como se os tivéssemos cometido. Porque, se o orgulho surge em nossos corações e nos leva a nos considerarmos melhores do que aqueles que cometeram esses pecados, somos imediatamente culpados e piores do que eles aos olhos de Deus, porque, como o Espírito Santo diz: 'O orgulho é odioso diante de Deus' [Eclo 10,7]. São Lucas, em seu Evangelho [Lc 18,11] registra dois tipos diferentes de vaidade demonstrados pelo fariseu, um quando ele se louvou pelos pecados que não cometeu, o outro quando ele se louvou pelas virtudes que praticou: e ele foi igualmente condenado por cada uma dessas declarações vãs.

Aparentemente, ele manifestou toda a glória a Deus quando disse: 'Ó Deus, eu Te dou graças'. Mas isso não passava de uma ostentação de autoestima. É muito fácil para esses pensamentos de vanglória se insinuarem em nossos corações: e quem pode me garantir que não sou culpado de muitos deles? 'O que eu fiz abertamente eu vejo' - posso dizer com mais verdade do que São Gregório - 'mas o que eu senti interiormente eu não vejo' [Lib. 9, Mor., c. 17]. Ó meu Deus, meu Deus, 'que nenhuma iniquidade tenha domínio sobre mim' [Sl 118,133]. Não me deixeis ser dominado pelo orgulho, que é a soma de todas as maldades; limpai-me dos meus pecados secretos. Purificai-me dos pecados de orgulho de que sou ignorante e 'então serei imaculado' [Sl 18,14]. Este pensamento, diz São Tomás, faz com que todo o homem justo se considere pior do que um grande pecador: 'O justo, que é verdadeiramente humilde, considera-se pior, porque teme que, naquilo que parece fazer bem, venha a pecar gravemente por orgulho' [supl. 3 part. qu. 6, art. 4].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

terça-feira, 9 de abril de 2024

OITO MANEIRAS DE UM CATÓLICO PERDER A FÉ (II)

II - PELA NEGLIGÊNCIA DOS DEVERES RELIGIOSOS

Muitos se afastam da fé porque seus pais negligenciaram dar-lhes qualquer instrução na religião. Há uma certa classe de pais que instruem seus filhos em tudo, menos na religião. Há outros pais que permitem que seus filhos cresçam na ignorância de tudo, exceto na maneira pela qual podem ganhar algum dinheiro. Ora, quando se aproxima o momento dessas crianças fazerem a primeira comunhão, os pais levam-nas ao sacerdote para as preparar para esse ato sagrado, em um prazo tão curto quanto uma ou duas semanas. Ora, o que é que as crianças podem aprender num par de semanas? É certo que o que aprendem muito raramente lhes entra no coração. Os seus corações não estão preparados para a Palavra de Deus; são levianos e, em muitos casos, corrompidos, e o que aprendem é aprendido por constrangimento. Logo que se libertam do constrangimento, atiram a sua religião porta fora: tornam-se os piores inimigos da Igreja Católica. O jovem que incendiou a igreja de Santo Agostinho, em Filadélfia, Pensilvânia, era católico e glorificava-se de poder queimar o seu nome do registo de batismo. Por um justo castigo de Deus, essas crianças católicas negligenciadas tornar-se-ão nossos perseguidores. Assim se verifica nestas crianças o que Deus diz através do profeta Isaías: 'Por isso o meu povo foi levado cativo, porque não teve conhecimento' (Is 5,13).

Há outros que não querem ser instruídos nos seus deveres religiosos, a fim de se dispensarem mais facilmente da obrigação de cumprir esses deveres. Ora, é essa mesma classe de homens que facilmente dá ouvidos aos princípios da infidelidade, porque esses princípios agradam mais à sua natureza corrupta do que os da nossa santa religião. A classe desses homens é muito numerosa e seu número está aumentando a cada dia. Pois, não tendo eles próprios nenhuma religião, nem desejando tê-la, que admira que os seus filhos sigam o seu exemplo? Tal como é a árvore, tal será também o fruto. 

Há outros que se afastam gradualmente da fé e se tornam infiéis, porque negligenciam um dever cristão essencial, o da oração. 'Os ímpios' - diz Davi - 'corrompem-se e tornam-se abomináveis nos seus caminhos... Todos eles se desviaram, e juntamente se tornaram inúteis; não há quem faça o bem, nem um sequer... A destruição e a infelicidade estão nos seus caminhos'. ' A causa de toda esta maldade' -  continua Davi - 'é que não invocaram o Senhor'. Deus é a luz do nosso entendimento, a força da nossa vontade e a vida do nosso coração. Ora, quanto mais negligenciarmos a oração a Deus, mais experimentaremos trevas em nosso entendimento, fraqueza em nossa vontade e frieza mortal em nosso coração. Nossas paixões, as tentações do demônio e as seduções do mundo nos atrairão de cabeça para baixo de um abismo de maldade para outro, até cairmos no mais profundo de todos, na infidelidade e na indiferença a toda religião.

III - PELA LEITURA DE MAUS LIVROS

Há outra causa especial para a perda da fé: é a leitura de maus livros. Os maus livros são (i) livros fúteis que não fazem bem, mas distraem a mente do que é bom; (ii) novelas e romances que não parecem ser tão maus, mas são muito maus na verdade; (iii) livros que tratam declaradamente de assuntos maus; (iv) maus jornais, periódicos, miscelâneas, revistas sensacionalistas, semanários [atualmente, com desgraça ainda maior, internet, redes sociais e programas de televisão]; (v) livros sobre bruxarias e superstições, adivinhações; (vi) literatura protestante e de outras falsas religiões.

Há certos livros fúteis que, embora não sejam maus em si mesmos, são perniciosos, porque fazem o leitor perder o tempo que poderia e deveria empregar em ocupações mais benéficas para a sua alma. Aquele que gastou muito tempo na leitura de tais livros e depois vai à oração, à missa e à santa comunhão, em vez de pensar em Deus e de fazer atos de amor e confiança, será constantemente perturbado por distrações; porque as representações de todas as vaidades que leu estarão constantemente presentes na sua mente. O moinho mói o milho que recebe. Se o trigo é mau, como pode o moinho produzir boa farinha? Como é possível pensar em Deus com frequência e oferecer-lhe atos frequentes de amor, de oblação, de súplica e outros semelhantes, se a mente está constantemente cheia do lixo lido em livros ociosos e inúteis? 

... Quanto aos romances, são, em geral, quadros, e normalmente quadros muito bem elaborados das paixões humanas. A paixão é representada como tendo sucesso no seu fim e atingindo os seus objetivos, mesmo com o sacrifício do dever. Esses livros, como uma classe, apresentam visões falsas da vida; e como é o erro dos jovens confundi-las com realidades, eles se tornam os enganos de suas próprias imaginações ardentes e entusiastas, que, em vez de tentar controlar, eles realmente nutrem com o alimento venenoso de fantasias e quimeras... Quanto mais fortemente as obras de ficção apelam à imaginação, e quanto mais amplo é o campo que proporcionam para o seu exercício, maiores são, em geral, as suas perigosas atrações; e é demasiado verdade que elas lançam, por fim, uma espécie de feitiço sobre a mente, fascinando tão completamente a atenção, que o dever é esquecido e a obrigação positiva posta de lado para gratificar o desejo de desvendar, até à sua última complexidade, a teia finamente tecida de alguma criação aérea da fantasia. Sentimentos fictícios são excitados, simpatias irreais são despertadas, sensibilidades sem sentido são evocadas. A mente está enfraquecida; perdeu aquela louvável sede de verdade que Deus imprimiu nela; cheia de um amor banal por ninharias, vaidades e tolices, não tem gosto por leituras sérias e ocupações proveitosas; todo o gosto pela oração, pela Palavra de Deus, pela receção dos sacramentos, está perdido; e, finalmente, a consciência e o bom senso dão lugar ao domínio da imaginação descontrolada. 

Tal leitura, em vez de formar o coração, degrada-o. Envenena a moral e excita o espírito. Envenena a moral e excita as paixões; muda todas as boas inclinações que uma pessoa recebeu da natureza e de uma educação virtuosa; arrefece, pouco a pouco, os desejos piedosos, e em pouco tempo expulsa da alma tudo o que havia de solidez e virtude. Por essa leitura, as jovens perdem de repente o hábito da reserva e da modéstia, tomam um ar de vaidade e frivolidade, e não demonstram outro ardor senão por aquelas coisas que o mundo estima, e que Deus abomina. Adotam as máximas, o espírito, a conduta e a linguagem das paixões, que estão ali sob vários disfarces artisticamente incutidos nas suas mentes e, o que é mais perigoso, cobrem toda esta irregularidade com as aparências de civilidade e um humor e disposição fáceis, complacentes e alegres.

Além de seus outros perigos, muitos desses livros infelizmente estão repletos de máximas subversivas da fé nas verdades da religião. A literatura popular atual, em nossos dias, está penetrada pelo espírito da licenciosidade, desde revistas periódicas até o arrogante e irreverente jornal diário; e as publicações semanais e mensais são, em sua maioria, pagãs ou anti-católicas. Expressam e inculcam, por um lado, o orgulho estoico, frio e polido do mero intelecto, ou, por outro, o sentimentalismo vazio e miserável. Alguns empregam a habilidade para caricaturar as instituições e ofícios da religião cristã, e outros, para exibir as formas mais grosseiras de vício e as cenas mais angustiantes de crime e sofrimento. A imprensa ilustrada tornou-se para nós o que o anfiteatro era para os romanos, quando homens eram mortos, mulheres eram ultrajadas e cristãos eram entregues aos leões, para agradar a uma população degenerada: 'O lodo da serpente está sobre tudo isso'.

... Consultar esses livros para obter um conhecimento do mundo é outra desculpa comum para a sua leitura. Bem, onde encontraremos um exemplo de alguém que se tornou um pensador mais profundo, um orador mais eloquente, um homem de negócios mais experiente, lendo maus romances e livros ruins? Eles apenas ensinam a pecar, como Satanás ensinou Adão e Eva a comerem da árvore proibida, sob o pretexto de obterem conhecimento real; e o resultado foi a perda da inocência, da paz e do paraíso, e o castigo da raça humana para sempre...Há uma classe de leitores que se lisonjeia com o fato de que os maus livros poderem magoar os outros, mas não a eles; não lhes causam qualquer impressão. Felizes e superiores mortais! São dotados de corações de pedra ou de carne e osso? Não têm paixões? Porque é que esses livros magoam os outros e não a eles? Será porque são mais virtuosos do que os outros? Não é verdade que as partes más e obscenas da história permanecem mais vivas e profundamente impressas nas suas mentes do que aquelas que são mais ou menos inofensivas? ...Ide aos hospitais e aos bordéis: perguntai ao jovem que está a morrer de uma doença vergonhosa; perguntai à jovem que perdeu a sua honra e a sua felicidade; ide ao túmulo escuro do suicida, perguntai-lhes qual foi o primeiro passo da sua carreira descendente, e eles responderão: a leitura de maus livros.

... Certamente, se somos obrigados por todos os princípios da nossa religião a evitar as más companhias, somos igualmente obrigados a evitar os maus livros; porque, de todas as más companhias corruptoras, a pior é um mau livro. Não há dúvida de que as influências mais perniciosas em ação no mundo, neste momento, provêm dos maus livros e dos maus jornais... Evita não só os livros e jornais notoriamente imorais, mas evita também todas essas miseráveis revistas sensacionalistas, romances e jornais ilustrados que estão profusamente espalhados por todo o lado. A procura que existe de tal lixo diz mal do sentido moral e da formação intelectual de quem os lê. Se quiserdes conservar a vossa mente pura e a vossa alma na graça de Deus, deveis fazer disso um princípio firme e constante de conduta para nunca mais abandonar. Estaríeis dispostos a pagar a um homem por envenenar a vossa comida? E por que deveríeis ser suficientemente tolos para pagar aos autores e editores de maus livros, panfletos e revistas, e aos editores de jornais irreligiosos, para envenenarem a vossa alma com os seus princípios ímpios e as suas histórias e imagens vergonhosas?

(Excertos da obra 'Apostles' Creed', do Pe. Muller, 1889, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (XXII)

 Carta Encíclica LIBERTAS PRAESTANTISSIMUM 

 [20 de junho de 1888]

Papa Leão XIII (1878 - 1903)

sobre a liberdade humana


Exórdio: Excelência e conceito da liberdade

1. A liberdade, excelente bem da natureza e exclusivo apanágio dos seres dotados de inteligência ou de razão, confere ao homem uma dignidade em virtude da qual ele é colocado entre as mãos do seu conselho e se torna senhor de seus atos. E o que, todavia, é principalmente importante nesta prerrogativa é a maneira como ela se exerce, porque do uso da liberdade nascem os maiores males, assim como os maiores bens. Sem dúvida, está no poder do homem obedecer à razão, praticar o bem, caminhar direito ao seu fim supremo. Mas pode também seguir outra direção diferente e, seguindo espectros de bens falazes, destruir a ordem legítima e correr para uma perdição voluntária.

O libertador do gênero humano, Jesus Cristo, tendo restaurado e aumentado a antiga dignidade da nossa natureza, fez sentir sua influência principalmente sobre a vontade mesma do homem; e, pela sua graça, que lhe prodigalizou os socorros, pela felicidade eterna, de que lhe abriu a perspectiva no Céu, elevou-o a um estado melhor. E, por um motivo semelhante a Igreja bem mereceu sempre deste dom excelente da nossa natureza e não cessará de bem merecer dele, pois que é a ela que pertence assegurar aos benefícios, que nós devemos a Jesus Cristo, a sua propagação em toda a consecução dos séculos. E, contudo, há um grande número de homens que creem que a Igreja é adversária da liberdade humana. A causa disto está na ideia defeituosa, e como ao avesso, que se faz da liberdade; porque, com esta mesma alteração da sua noção, ou com a exagerada extensão que se lhe dá, chega-se a aplicá-la a muitas coisas, nas quais o homem, a julgar segundo a reta razão, não pode ser livre.

Erros sobre a liberdade

2. Já falamos algures, e principalmente na Encíclica Immortale Dei (sobre a Constituição Cristã dos Estados), daquilo a que chamam as liberdades modernas; e, distinguindo nelas o bem daquilo que lhe é oposto, nós estabelecemos ao mesmo tempo que tudo o que essas liberdades contêm de bom é tão antigo como a verdade, como um elemento corrompido, produzido pela perturbação dos tempos e pelo desordenado amor à inovação. Mas, visto que muitos se obstinam em ver nestas liberdades, mesmo no que elas contêm de vicioso, a mais bela glória da nossa época e o necessário fundamento das constituições políticas, como se sem elas se não pusesse imaginar o governo perfeito, pareceu-nos necessário para o interesse público, em face do qual nós nos colocamos, tratar expressamente desta questão.

A - A LIBERDADE MORAL NO INDIVÍDUO

3. O que diretamente nós temos em vista é a liberdade moral, considerada quer nos indivíduos, quer na sociedade. É bom, entretanto, dizer em primeiro lugar algumas palavras sobre a liberdade natural, a qual, apesar de ser completamente distinta da liberdade moral, é contudo a fonte e o princípio de onde toda a espécie de liberdade dimana por si mesma e como espontaneamente.

A liberdade natural é própria dos seres racionais

4. Esta liberdade, que certamente é para nós a voz da natureza, o juízo e senso comum de todos os homens não a reconhecem senão aos seres que têm o uso da inteligência ou da razão, e é nela que consiste manifestamente a causa que nos faz considerar o homem responsável pelos seus atos. E não podia ser de outra maneira; porque, ao passo que os animais não obedecem senão aos sentidos e não são impelidos senão pelo instinto natural a procurar o que lhes é útil ou a evitar o que lhes seria prejudicial, o homem tem, em cada uma das ações de sua vida, a razão para o guiar. Ora, a razão, relativamente aos bens deste mundo, diz-nos de todos e de cada um que eles podem indiferentemente ser ou não ser; donde se conclui que, não lhes parecendo nenhum deles absolutamente necessário, ele dá à vontade o poder de opção para escolher o que lhe apraz. Mas se o homem pode julgar da contingência, como se diz, dos bens de que nós falamos, é porque ele tem uma alma simples de sua natureza, espiritual e capaz de pensar; uma alma que, sendo tal, não tira a sua origem das coisas corpóreas, visto que delas não depende na sua conservação; mas que, criada imediatamente por Deus e ultrapassando com uma imensa distância a condição comum dos corpos, tem o seu modo próprio e particular de vida e de ação: donde resulta que, compreendendo pelo seu pensamento as razões imutáveis e necessárias da verdade e do bem, vê que estes bens particulares não são de modo algum bens necessários. Assim provar que a alma humana está desligada de todo o elemento mortal e é dotada da faculdade de pensar, é estabelecer ao mesmo tempo a liberdade natural sobre o seu mais sólido fundamento.

A Igreja Defensora da Liberdade

5. Ora, esta doutrina da liberdade como a da simplicidade, espiritualidade e imortalidade da alma humana, ninguém a prega mais alto e a afirma com mais constância do que a Igreja Católica; ela a tem ensinado em todos os tempos e a defende como um dogma. Mais ainda: perante os ataques dos heréticos e dos fautores de novas opiniões, a Igreja tem tomado a liberdade sob a sua proteção e tem salvado da ruína este grande bem do homem. A este respeito, os monumentos da história testemunham a energia com repeliu os esforços insanos dos maniqueus e outros; e, em tempos mais recentes, ninguém ignora com que zelo e força, quer no Concílio de Trento, quer mais tarde contra os sectários de Jansênio, ela combateu pela liberdade do homem, não deixando, em nenhum tempo e lugar, tomar incremento ao fatalismo.

Noção de liberdade

6. A liberdade, portanto, é, como temos dito, herança daqueles que receberam a razão ou a inteligência em partilha; e esta liberdade, examinando-se a sua natureza, outra coisa não é senão a faculdade de escolher entre os meios que conduzem a um fim determinado. É neste sentido que aquele que tem a faculdade de escolher uma coisa entre alguma outra, é senhor dos seus atos. Ora, toda a coisa aceita com o fim de obter por ela uma outra, pertence ao gênero do bem que se chama útil; e tendo o bem como característica operar propriamente sobre o apetite, é mister concluir daí que o livre arbítrio é a característica da vontade, ou antes é vontade mesma, enquanto nos seus atos ela tem a faculdade de escolher. Mas é impossível à vontade mover-se, se o conhecimento da inteligência, como uma luz, não a esclarece primeiramente: isto é, que o bem desejado pela vontade é necessariamente o bem quanto conhecido pela razão. E isto tanto mais que, em toda a volição, a escolha é sempre precedida de um juízo sobre a verdade dos bens e sobre a preferência que devemos conceder a um deles sobre os outros. Ora, julgar é da razão, não da vontade; não se pode razoavelmente duvidar disto. Admitido, pois, que a liberdade reside na vontade, que por sua natureza é um apetite obediente à razão, segue-se que ela, como a vontade, tem por um bem conforme à razão.

Perfeição e imperfeição da liberdade

7. Todavia, não possuindo cada uma destas faculdades a perfeição absoluta, pode suceder, e sucede frequentemente, que a inteligência proponha à vontade um objeto que, em lugar de uma bondade real, não tem senão a aparência, uma sombra de bem, e que a vontade contudo se aplique. Mas assim como o poder enganar-se, e enganar-se realmente, é uma falta que acusa a ausência da perfeição integral na inteligência, assim também aderir a um bem falso e enganador, ainda que seja um indício de livre arbítrio, constitui contudo um defeito da liberdade, como a doença o é da vida. Igualmente a vontade, só pelo fato de que depende da razão, cai num vício radical que não é senão a corrupção e o abuso da liberdade. Eis por que Deus, a perfeição infinita que, sendo soberanamente inteligente e a bondade por essência, é também soberanamente livre, não pode de nenhuma forma querer o mal moral. E o mesmo sucede com os bem aventurados do céu, graças à intuição que têm do soberano bem. É esta a justíssima observação que Santo Agostinho e outros faziam contra os pelagianos: 'Se a possibilidade de enganar-se no bem fosse da essência e da perfeição da liberdade, então Deus, Jesus Cristo, os anjos, os bem aventurados, entre os quais este poder não existe, ou não seriam livres, ou, pelo menos, o não seriam tão perfeitamente como o homem em seu estado de prova e imperfeição'.

O Doutor Angélico ocupou-se frequente e longamente desta questão; e da sua doutrina resulta que a faculdade de pecar não é uma liberdade, mas uma escravidão. Muito sutil é a sua argumentação sobre as palavras do Senhor Jesus: 'Aquele que comete o pecado é escravo do pecado' (Jo 8, 34). Todo ser é o que lhe convém segundo a natureza. Logo, quando se move por um agente exterior, não age por si mesmo, mas pelo impulso de outrem, o que é próprio de escravo. Ora, segundo a natureza, o homem é racional. Por isso quando se move segundo a razão, é por um movimento próprio que ele se move, e opera por si mesmo, o que é essência da liberdade; mas, quando peca, procede contra a razão, e então é como se fosse posto em movimento por um outro e sujeito a uma dominação estranha. É por isto que 'aquele que comete o pecado é escravo do pecado'. Era isto o que havia visto claramente a filosofia antiga, aquela principalmente cuja doutrina era que ninguém é livre como o sábio, e que reservava, como é sabido, o nome de sábio àquele que se tivesse acostumado a viver constantemente segundo a natureza, isto é, na honestidade e na virtude.

Proteção e auxílios da liberdade ; a lei

8. Sendo tal a condição da liberdade humana, era necessário ministrar-lhe auxílios e socorros capazes de dirigir todos os seus movimentos para o bem e de desviá-los do mal. Sem isto, a liberdade teria sido para o homem uma coisa muito prejudicial. E primeiramente era-lhe necessária uma lei, isto é, uma norma do que era preciso fazer e omitir. Falando com propriedade, não pode dar-se isto entre os animais que operam por necessidade, porque todos os seus atos os realizam sob o impulso da natureza, sendo-lhes impossível adotar por si mesmos outro modo de ação. Mas os seres que gozam de liberdade têm por si mesmos o poder de operar ou não, proceder de tal ou qual forma, visto que o objeto da sua vontade não o escolhem senão quando intervenha o juízo da razão, de que nós falamos. Este juízo diz-nos não somente o que é bem em si ou o que é o mal, mas também o que é bom e por conseguinte se deve realizar, ou o que é mau e por conseguinte se deve evitar. É, com efeito, a razão que prescreve à vontade o que ela deve procurar ou de que deve fugir para que o homem possa um dia atingir esse fim supremo, para o qual deve dirigir todos os seus atos. Ora, esta ordenação da razão é o que se chama lei. Se, pois, a lei é necessária ao homem, é no seu mesmo livre arbítrio, isto é, na necessidade que tem de não se por em desacordo com a reta razão, que é preciso procurar, como na sua raiz, a causa primeira. E nada se pode dizer ou imaginar de mais absurdo e mais contrário ao bom senso do que esta asserção: o homem sendo livre por natureza, deve estar isento de toda lei. Se assim fosse, resultaria que é necessário, para a liberdade, não estar de acordo com a razão, quando a verdade é inteiramente o contrário, isto é, o homem deve estar sujeito à lei precisamente por que é livre por natureza. Assim, pois, é a lei que guia o homem nas suas ações e é ela também que, pela sanção das recompensas e das penas, o leva a praticar o bem e o afasta do pecado.

Tal é, acima de todas, a lei natural que está escrito e gravada no coração de cada homem, porque é a razão mesma do homem que lhe ordena a prática do bem e lhe interdiz o pecado. Mas esta prescrição da razão humana não poderia ter força de lei, se ela não fosse órgão e intérprete de uma razão mais alta à qual o nosso espírito e a nossa liberdade devem obediência. Sendo, na verdade, a missão da lei impor deveres e atribuir direitos, a lei assenta completamente sobre a autoridade, isto é, sobre um poder verdadeiramente capaz de estabelecer esses deveres e definir esses direitos, capaz também de sancionar as suas ordens por castigos e recompensas; coisas todas que não poderiam evidentemente existir no homem, se ele desse a si próprio, como legislador supremo, a regra dos seus próprios atos. Disto se conclui, pois, que a lei natural outra coisa não é senão a lei eterna gravada nos seres dotados de razão, inclinando-os para o ato e o fim que lhes convenha; e este não é senão a razão eterna de Deus, Criador e Governador do mundo.

A graça de Deus

9. A esta regra de nossos atos, a estes freios ao pecado, a bondade de Deus quis ajuntar certos auxílios, singularmente próprios para defender e guiar a vontade do homem. Sobressai, no primeiro lugar destes auxílios, o poder da graça divina, a qual esclarecendo a inteligência e inclinando incessantemente para o bem moral a vontade salutarmente reforçada e fortificada, torna ao mesmo tempo mais fácil e mais seguro o exercício da nossa liberdade natural. E seria afastar-se completamente da verdade imaginar que, por meio desta intervenção de Deus, os movimentos da vontade perdem a sua liberdade; porque a influência da graça divina alcança o íntimo do homem e se harmoniza com a sua propensão natural, pois que tem sua fonte nAquele que é o autor da nossa alma e da nossa vontade e move todos os seres de uma maneira conforme à natureza deles. Pode mesmo dizer-se que a graça divina, como observa o Doutor Angélico, por isso mesmo que dimana do autor da natureza é maravilhosa e naturalmente apta para proteger todas as naturezas individuais e para conservar a cada uma o seu caráter, a sua ação, a sua energia.

B - A LIBERDADE MORAL NA SOCIEDADE

A lei humana

10. O que acaba de ser dito da liberdade dos indivíduos, é fácil aplicá-los aos homens que a sociedade civil une entre si; porque o que a razão e a lei natural fazem para os indivíduos, a lei humana, promulgada para o bem comum dos cidadãos, o realiza para os homens que vivem em sociedade. Mas, entre as leis humanas, há as que têm por objeto o que é bem ou mal naturalmente, acrescentando à prescrição de praticar um e evitar o outro uma sanção conveniente. Tais leis não têm de modo algum sua origem na sociedade dos homens; porque, assim como não foi a sociedade que criou a natureza humana, também não foi ela que fez com que o bem esteja em harmonia e o mal em desacordo com essa natureza; mas tudo isto é anterior à própria sociedade humana, e deve absolutamente estar ligado à lei natural e portanto à lei eterna. Como se vê, os preceitos de direito natural compreendidos nas leis dos homens não têm somente o valor da lei humana, mas supõem primeiro que tudo essa autoridade muito mais elevada e muito mais augusta que brota da lei natural e da lei eterna. Neste gênero de leis, a missão de legislador civil reduz-se a obter, por meio de uma disciplina comum, a obediência dos cidadãos, punindo os maus e os viciosos, com o fim de os afastar do mal e de os chamar ao bem, ou ao menos de os impedir de ferir a sociedade e de lhe ser prejudicial.

11. Quanto às outras prescrições do poder civil, não procedem imediata ou diretamente do direito natural; são dele consequências mais afastadas e indiretas, e têm por fim precisar os pontos diversos sobre os quais a natureza não se tinha pronunciado senão de uma maneira vaga e geral. Assim, a natureza ordena aos cidadãos que contribuam com o seu trabalho para a tranquilidade e prosperidade pública: em que medida, em que condições, sobre que objetos, estabelece-o a sabedoria dos homens e não a natureza. Ora estas regras particulares de proceder, criadas por uma razão prudente e intimadas por um poder legítimo, constituem o que propriamente se chama lei humana. Visando o fim próprio da comunidade, esta lei ordena a todos os cidadãos que concorram para ele, e proíbe-lhes que dele se afastem; e enquanto segue a natureza e se harmoniza com as suas prescrições, ela conduz-nos ao que é bem e afasta-nos do oposto. Por onde se vê que é absolutamente na lei eterna de Deus que é mister buscar a regra e a lei da liberdade, não somente para os indivíduos, mas também para as sociedades humanas.

A lei eterna, norma e regra da liberdade

12. Numa sociedade de homens, portanto, a liberdade digna deste nome não consiste em fazer tudo o que nos apraz: isso seria uma confusão extrema no Estado, uma perturbação que conduziria à opressão. A liberdade consiste em que, com o auxílio das leis civis, possamos mais facilmente viver segundo as prescrições da lei eterna. E para aqueles que governam, a liberdade não é o poder de mandarem ao acaso e segundo seu bel-prazer: isso seria uma desordem não menos grave e extremamente perigosa para o Estado; mas a força das leis humanas consiste em que elas sejam olhadas como uma derivação da lei eterna e que não há nenhuma das suas prescrições que não seja contida nela como no princípio de todo direito. Santo Agostinho disse com muita sabedoria (De lib. Arb., lib. I, c. 4, n. 15): 'Eu penso, e vós bem vedes também, que, nesta lei temporal, nada há de justo e de legítimo que os homens não tenham ido haurir na lei eterna'. Suponhamos, pois, uma prescrição de um poder qualquer que esteja em desacordo com os princípios da reta razão e com os interesses do bem público: não teria força alguma de lei, porque não seria uma regra de justiça e afastaria os homens do bem, para o qual a sociedade foi formada.

13. Por sua natureza, pois, e sob qualquer aspecto que seja considerada, quer nos indivíduos, quer nas sociedades, e entre os superiores não menos que entre os subordinados, a liberdade humana supõe a necessidade de obedecer a uma regra suprema e eterna; e esta regra não é outra senão a autoridade de Deus impondo-nos as suas ordenações ou as suas proibições, autoridade soberanamente justa que, longe de destruir ou de diminuir, de qualquer modo, a liberdade dos homens, a protege e a leva à sua perfeição; porque a verdadeira perfeição de todo o ser é tender e atingir o seu fim: ora, o fim supremo, para o qual deve tender a liberdade humana, é Deus.

A ação da Igreja

14. São estas máximas de doutrina, muito verdadeira e muito elevada, conhecidas mesmo pela luz da razão, que a Igreja, instruída pelos exemplos e pela doutrina do seu Divino Autor, tem propagado e afirmado por toda a parte, e segundo os quais ela jamais tem cessado de regrar a sua missão e de informar as nações cristãs. Pelo que toca aos costumes, as leis evangélicas não somente se avantajam muito a toda a sabedoria pagã, mas elas chamam o homem e o formam verdadeiramente numa santidade desconhecida dos antigos; e, aproximando-o de Deus, levam-no à posse duma liberdade mais perfeita.

É assim que sempre se tem evidenciado o maravilhoso poder da Igreja para a proteção da liberdade civil e política dos povos. Não há necessidade de enumerar os seus benefícios deste gênero. Basta lembrar a escravidão, essa velha vergonha das nações pagãs, que os seus esforços e principalmente a sua feliz intervenção fizeram desaparecer. O equilíbrio dos direitos, como a verdadeira fraternidade entre os homens, foi Jesus Cristo quem primeiro a proclamou; e à sua voz respondeu a dos seus Apóstolos, declarando que não há nem judeu, nem grego, nem bárbaro, nem escravo, mas que todos são irmãos em Cristo. Sobre este ponto o ascendente da Igreja é tão grande e tão reconhecido que, aonde quer que chega a sua influência — tem-se a experiência disso — a grosseria dos costumes não pode subsistir por muito tempo. À brutalidade sucede em breve a doçura, às trevas da barbárie a luz da verdade. E a Igreja não tem cessado jamais de fazer sentir mesmo aos povos, educados pela civilização, seus benefícios, resistindo aos caprichos da iniquidade, afastando a injustiça da cabeça dos inocentes ou dos fracos, e empregando-se, enfim, em estabelecer as coisas públicas uma organização que possa, pela sua equidade, tornar-se amada dos cidadãos ou fazer-se temer dos estrangeiros pelo seu poder.

A Igreja, defensora da autoridade

15. É, além disso, um dever real respeitar o poder e submeter-se a leis justas; donde deriva que a autoridade vigilante das leis preserva os cidadãos das empresas criminosas dos maus. O poder legítimo vem de Deus e aquele que resiste ao poder, resiste à ordem estabelecida por Deus; assim é que a obediência adquire uma nobreza maravilhosa, pois que se não inclina senão da mais justa e mais alta das autoridades. Mas, desde que falta o direito de mandar, ou o mandato é contrário à razão, à autoridade de Deus, então é legítimo desobedecer aos homens a fim de obedecer a Deus. Deste modo, achando-se as vias da tirania fechadas, o poder não chamará tudo a si; estão salvaguardados os direitos de cada cidadão, os da sociedade doméstica, os de todos os membros da nação; e todos enfim participam da verdadeira liberdade, aquela que consiste, como demonstramos, em que cada um possa viver segundo as leis e segundo a reta razão.

A falsa liberdade

16. Se, nas discussões que travam sobre a liberdade, se entendesse esta liberdade legítima e honesta, tal como a razão e a nossa palavra a acabam de descrever, ninguém ousaria lançar à Igreja a censura que se lhe lança com uma soberana injustiça, a saber: que ela é inimiga da liberdade dos indivíduos ou da liberdade dos Estados. Mas há um grande número de homens que, a exemplo de Lúcifer, de quem são estas palavras criminosas: 'Não obedecerei' — entendem pelo nome de liberdade o que não é senão pura e absurda licença. Tais são aqueles que pertencem à escola tão espalhada e tão poderosa desses homens que foram tirar o seu nome à palavra liberdade, querendo ser chamados liberais.

O Liberalismo radical

17. E, com efeito, o que são os partidários do Naturalismo e do Racionalismo em filosofia, os fautores do Liberalismo o são na ordem moral e civil, pois que introduzem nos costumes e na prática da vida os princípios postos pelos partidários do Naturalismo. Ora, o princípio de todo o racionalismo é a supremacia da razão humana, que, recusando a obediência devida à razão divina e eterna e pretendendo não depender senão de si mesma, se arvora em princípio supremo, fonte e juiz da verdade. Tal é a pretensão dos sectários do Liberalismo, de que nós falamos: não há, na vida prática, nenhum poder divino ao qual se tenha de obedecer, mas cada um é para si sua própria lei. Daí procede essa moral que se chama independente, e que, sob a aparência da liberdade, afastando a vontade da observância dos preceitos divinos, conduz o homem a uma licença ilimitada.

É o que, finalmente, resulta disto, principalmente nas sociedades humanas, é fácil de ver; porque uma vez fixada essa convicção no espírito de que ninguém tem autoridade sobre o homem, a consequência é que a causa eficiente da comunidade civil e da sociedade deve ser procurada, não num princípio exterior ou superior ao homem, mas na livre vontade de cada um, e que o poder público dimana da multidão como sendo a sua primeira fonte; além disso, tal como a razão individual é para o indivíduo a única lei que regula a vida particular, a razão coletiva deve sê-lo para a coletividade na ordem dos negócios públicos; daí o poder pertence ao número, e as maiorias criam o direito e o dever.

18. Mas a oposição de tudo isto com a razão resulta suficientemente do que dissemos. Efetivamente, pretender que não há nenhum laço entre o homem ou a sociedade civil e Deus criador e, por conseguinte, supremo legislador de todas as coisas, repugna absolutamente à natureza, e não somente à natureza do homem, mas a de todo o ser criado; pois todo o efeito está necessariamente unido por algum laço à causa de que procede; e convém a toda a natureza e pertence à perfeição de cada uma que permaneça no lugar e no plano que lhe é marcado pela ordem natural, isto é, que o ser inferior se submeta e obedeça àquele que lhe é superior.

19. Mas, ainda, tal doutrina traz o maior dano, tanto ao indivíduo como à sociedade. Realmente, se o homem faz depender só e unicamente do juízo da razão humana o bem e o mal, suprime a diferença essencial entre o bem e o mal; o honesto e o desonesto já não diferem na realidade, mas somente na opinião e no juízo de cada um: o que agrada será permitido. Desde que se admita semelhante doutrina moral, que não basta para reprimir ou pacificar os movimentos desordenados da alma, dá-se acesso a todas as corrupções da vida. Nos negócios públicos, o poder de governar separa-se do princípio verdadeiro e natural que lhe dá toda a sua força para procurar o bem comum; a lei que determina o que se deve fazer e o que é necessário evitar é abandonada aos caprichos da maioria, que é o mesmo que preparar o caminho à dominação tirânica. Quando se repudia o poder de Deus sobre o homem e sobre a sociedade humana, é natural que a sociedade deixe de ter religião, e tudo o que toca à religião torna-se desde então objeto da mais completa indiferença. Armada, pois, da ideia da soberania, a multidão facilmente entrará no caminho da sedição e das desordens, e, não existindo já o freio do dever e da consciência, nada mais resta do que a força, que é bem fraca, por si só, para conter as paixões populares. Temos a prova disto nessas lutas quase diárias empenhadas contra os socialistas e outras seitas sediciosas que trabalham há tanto tempo para arrasar o Estado até aos seus alicerces. Julguem, pois, e digam os que possuem a justa inteligência das coisas, se tais indivíduos servem à liberdade e à dignidade do homem, ou se não fazem dela a destruição completa.

O Liberalismo mitigado

20. Sem dúvida, tais opiniões, espantosas pela sua mesma enormidade e sua oposição manifesta com a verdade, bem como a imensidade dos males, de que vimos elas serem causa, impedem os partidários do Liberalismo de aderirem todos a elas. Constrangidos mesmo pela força da verdade, muitos deles não hesitam em reconhecer, confessam-no até espontaneamente, que, entregando-se a tais excessos, com desprezo da verdade e da justiça, a liberdade se vicia e degenera abertamente em licença, sendo necessário, portanto, que ela seja dirigida e governada pela reta razão, e, por consequência, que se submeta ao direito natural e à lei divina e eterna. Mas julgam dever parar aqui e não admitem que o homem livre deva submeter-se às leis que a Deus apraz impor-nos por uma outra via que não a razão natural.

21. Mas nisto estão absolutamente em desacordo consigo mesmos. Pois se é necessário, como eles próprios convêm (e quem poderá razoavelmente deixar de convir nisto?), se é necessário obedecer à vontade de Deus legislador, pois o homem todo inteiro depende de Deus e deve tender para Deus, daqui se segue que ninguém pode por limites ou condições à sua autoridade legislativa sem, com isso mesmo, se colocar em oposição com a obediência devida a Deus. Ainda mais: se a razão humana se arroga a pretensão de querer determinar quais os direitos de Deus e os seus deveres para com Ele, o respeito pelas leis divinas terá nela mais aparência que realidade; e o seu juízo valerá mais que a autoridade e a providência divinas.

É, pois, necessário que a regra da nossa vida seja por nós constante e religiosamente pedida não somente à lei eterna, mas também a todas e a cada uma das leis que Deus, na sua infinita sabedoria, no seu infinito poder e pelos meios que lhe aprouveram, quis transmitir-nos e que nós podemos conhecer com segurança por sinais evidentes e não deixam nenhum lugar à dúvida. E isto tanto melhor que essas espécies de leis, tendo o mesmo princípio, o mesmo autor que a lei eterna, harmonizam-se perfeitamente com a razão e aperfeiçoam o direito natural: além de que, aí encontramos incluído o magistério do próprio Deus que, para impedir que a nossa inteligência e a nossa vontade caiam no erro, as conduz e guia a ambas com a mais benévola direção. Deixemos, pois, santa e inviolavelmente reunido aquilo que não pode nem deve ser separado, e que Deus nos encontre, em todas as coisas, segundo o ordena a própria razão natural, submissos e obedientes às suas leis.

Liberalismo do Estado

22. Outros são um pouco mais moderados, mas sem serem mais consequentes consigo mesmos. Segundo estes, as leis divinas devem regular a vida e o modo de proceder dos particulares, mas não o dos Estados; é permitido, nas coisas públicas, desviar-se das ordens de Deus e legislador sem as ter em conta alguma. Donde nasce esta perniciosa consequência da separação da Igreja e do Estado. Mas o absurdo destas opiniões facilmente se compreende. É necessário - a própria natureza o proclama - é necessário que a sociedade dê aos cidadãos os meios e as facilidades de passarem a sua vida segundo a honestidade, isto é, segundo as leis de Deus, pois que Deus é o princípio de toda a honestidade e de toda a justiça. Repugnaria, pois, absolutamente que o Estado pudesse desinteressar-se destas mesmas leis ou ir mesmo contra elas, fosse no que fosse.

23. Além disso, aqueles que governam os povos devem certamente agregar à causa pública, pela sabedoria das suas leis, não somente as vantagens e os bens exteriores, mas também e principalmente os bens da alma. Ora, para conseguir estes bens, nada mais eficaz pode imaginar-se do que essas leis de que Deus é o autor; e, por isso, aqueles que não querem, no governo dos Estados, ter em conta alguma as leis divinas, desviam realmente o poder político da sua instituição, e da ordem prescrita pela natureza.

Mas há uma observação ainda mais importante e que nós mesmos temos recordado mais de uma vez em outras ocasiões: e é que o poder civil e o poder sagrado, conquanto não tenham o mesmo fim e não marchem pelos mesmos caminhos, devem contudo encontrar-se algumas vezes, no desempenho das suas funções. Ambos, com efeito, exercem a sua autoridade sobre os mesmos súditos e, mais de uma vez, sobre as mesmas matérias, embora sob pontos de vista diferentes. O conflito, nesta ocorrência, seria absurdo e repugnaria inteiramente à infinita sabedoria dos conselhos divinos. Deve, portanto, necessariamente haver um meio, um processo para fazer desaparecer as causas de conflitos e lutas e estabelecer o acordo na prática. E este acordo não é sem razão que foi comparado à união que existe entre a alma e o corpo, e isto para maior vantagem de ambos, pois a separação é particularmente funesta ao corpo, porque o priva da vida.

C - CONSEQUÊNCIAS DO LIBERALISMO

Liberdade de culto nos particulares

24. Mas, para evidenciar melhor estas verdades, é mister consideremos separadamente as diversas espécies de liberdades que se dão como conquistas da nossa época. E primeiramente, a propósito dos indivíduos, examinemos esta liberdade tão contrária à virtude da religião, a liberdade de culto, como lhe chamam, liberdade que se baseia no princípio de que é lícito a cada qual professar a religião que mais lhe agrade, ou mesmo não professar nenhuma. Mas, precisamente ao contrário, sem dúvida alguma, entre todos os deveres do homem, o maior e o mais santo é aquele que ordena ao homem que renda a Deus um culto de piedade e de religião. E este dever não é senão uma consequência do fato de nós termos sido criados pela vontade e providência de Deus, e de que, saídos dEle, devemos voltar a Ele.

25. Deve-se acrescentar que nenhuma virtude digna deste nome pode existir sem a religião, pois a virtude moral é aquela cujos atos têm por objeto tudo o que conduz a Deus considerado como supremo e soberano bem do homem; e por isso é que a religião, que 'pratica os atos tendo por fim direto e imediato a honra divina' (S. Th. 2-2, q. 81, a 6) é a rainha e, ao mesmo tempo, a regra de todas as virtudes. E se se pergunta qual, entre todas essas religiões opostas que têm curso, se deve seguir com exclusão das outras, a razão e a natureza unem-se para nos responder: a que Deus prescreveu e que é fácil de distinguir, graças a certos sinais exteriores pelos quais a divina Providência a quis tornar reconhecível, pois que em coisa de tanta importância o erro acarretaria consequências muito desastrosas. É por isso que oferecer ao homem a liberdade de que falamos, é dar-lhe o poder de desvirtuar ou abandonar impunemente o mais santo dos deveres, afastando-se do bem imutável, a fim de se voltar para o mal. Isto, já o dissemos, não é liberdade, mas uma depravação da liberdade, e uma escravidão da alma na abjeção do pecado.

Liberdade de culto no Estado

26. Encarada sob o ponto de vista social, esta mesma liberdade quer que o Estado não renda culto algum a Deus ou que não autorize nenhum culto público; que nenhuma religião seja preferida a outra, que todas sejam consideradas como tendo as mesmos direitos, sem mesmo ter atenção para com o povo, até quando esse mesmo povo faz profissão do catolicismo. Mas, para que assim fosse justo, seria necessário que realmente a comunidade civil não tivesse nenhum dever para com Deus ou que, tendo-o, pudesse impunemente afastar-se dele: duas coisas manifestamente falsas. Com efeito, não se pode por em dúvida que a reunião dos homens em sociedade seja obra da vontade de Deus; e isto quer se considere em seus membros, na sua forma que é autoridade, na sua causa, ou em número e importância das vantagens que ela procura ao homem. Foi Deus quem fez o homem para a sociedade e o uniu aos seus semelhantes, a fim de que as necessidades da sua natureza, às quais os seus esforços isolados não poderiam dar satisfação, a possam encontrar na comunidade. Eis aí por que a sociedade civil como sociedade deve necessariamente reconhecer Deus como seu princípio e seu autor, e, por conseguinte, render ao seu poder e à sua autoridade a homenagem do seu culto. Veda-o a justiça, e veda-o a razão que o Estado seja ateu ou, o que viria a dar no ateísmo, esteja animado a respeito de todas as religiões, como se diz, das mesmas disposições e conceder-lhes indistintamente os mesmos direitos.

27. Visto, pois, que é necessário professar uma religião na sociedade, deve-se professar a única que é verdadeira e que se reconhece, sem dificuldade, pelo menos nos países católicos, pelos sinais de verdade que com tão vivo fulgor ostenta em si mesma. Esta religião, os chefes de Estado a devem pois conservar e proteger, se querem, como é obrigação sua, prover prudente e utilmente aos interesses da comunidade. Pois o poder público foi estabelecido para utilidade daqueles que são governados, e conquanto ele não tenha por fim próximo senão conduzir os cidadãos à prosperidade desta vida terrestre é, contudo, para ele um dever não diminuir, mas pelo contrário aumentar, para o homem, a faculdade de atingir esse bem supremo e soberano, no qual consiste a eterna felicidade dos homens: o que se torna impossível sem a religião.

28. Mas tudo isso já o dissemos detalhadamente em outra parte. A única observação, que agora queremos fazer, é que uma liberdade deste gênero é muito prejudicial à liberdade verdadeira, quer dos governantes quer dos governados. A religião, pelo contrário, é-lhe maravilhosamente útil, porque faz remontar ao próprio Deus a origem primária do poder; porque impõe com gravíssima autoridade aos príncipes a obrigação de não esquecerem os seus deveres, e de conduzirem os povos com bondade e quase com um amor paternal.

Por outro lado, ela recomenda aos cidadãos a submissão do poder legítimo como aos representantes de Deus; une-os ao Chefe do Estado pelos laços, não somente de obediência, mas do respeito e do amor, proibindo-lhes a revolta e todas as empresas que possam perturbar a ordem e a tranquilidade do Estado, e que, em resumo, dão ocasião de reprimir com restrições mais fortes a liberdade dos cidadãos. Nada dizemos dos serviços prestados pela religião aos bons costumes, e pelos bons costumes à própria liberdade. Pois a razão o prova e a história o confirma: a liberdade, a prosperidade e o poder de uma nação aumentam em proporção à sua moralidade.

Liberdade da palavra e da imprensa

29. E agora continuemos estas considerações a respeito da liberdade de exprimir pela palavra ou pela imprensa tudo o que se quiser. Se esta liberdade não for justamente temperada, se ultrapassar os devidos limites e medidas, desnecessário é dizer que tal liberdade não é seguramente um direito. Pois o direito é uma faculdade moral, e, como dissemos e como se não pode deixar de repetir, seria absurdo crer que esta faculdade cabe naturalmente, e sem distinção nem discernimento à verdade e à mentira, ao bem e ao mal. A verdade e o bem há o direito de os propagar no Estado com liberdade prudente, a fim de que possam aproveitar o maior número; mas as doutrinas mentirosas, que são para o espírito a peste mais fatal, assim como os vícios que corrompem o coração e os costumes, é justo que a autoridade pública empregue toda a sua solicitude para os reprimir, a fim de impedir que o mal alastre para ruína da sociedade.

30. Os extravios de um espírito licencioso que, para a multidão ignorante, se convertem facilmente em verdadeira opressão, devem justamente ser punidos pela autoridade das leis, não menos que os atentados da violência cometidos contra os fracos. E esta repressão é tanto mais necessária, quanto é impossível ou dificílimo à parte, sem dúvida, mais numerosa da população precaver-se contra os artifícios de estilo e as sutilezas de dialética, principalmente quando tudo isso lisonjeia as paixões. Concedei a todos a liberdade de falar e escrever, e nada será poupado, nem mesmo as verdades primárias, esses grandes princípios naturais que se devem considerar como um nobre patrimônio comum a toda a humanidade. Assim, a verdade é, pouco e pouco, invadida pelas trevas e, o que muitas vezes sucede, estabelece-se com facilidade a dominação dos erros mais perniciosos e mais diversos. Tudo o que a licença então ganha perde a liberdade; pois ver-se-á sempre a liberdade crescer e consolidar-se à medida que a licença seja mais refreada.

31. Mas se se trata de matérias livres, que Deus deixou entregues às discussões dos homens, a todos é permitido emitir sobre elas a sua opinião e exprimi-la livremente. A natureza não se opõe a isto, porque com esta liberdade os homens não são levados a oprimir a verdade, antes é ela muitas vezes ocasião de a procurar e fazê-la conhecer.

Falsa liberdade de ensino

32. Quanto ao que chamam liberdade de ensino, também não é preciso julgá-la por modo diverso. Só a verdade deve penetrar nas almas, pois que é só nela que as naturezas inteligentes encontram o seu bem, o seu fim, a sua perfeição. Por isso, o ensino só deve ter por objeto coisas verdadeiras, e isto quer se dirija aos ignorantes quer aos sábios, a fim de que leve a uns o conhecimento da verdade, e aos outros a fortaleça. Por este motivo, o dever de todo aquele que se dedica ao ensino é, sem contradição, extirpar o erro dos espíritos e opor fortes barreiras à invasão das falsas opiniões. É, pois, evidente que a liberdade de que estamos tratando, arrogando-se o direito de tudo ensinar a seu modo, está em contradição flagrante com a razão e nasceu para produzir um transtorno completo nos espíritos. O poder público não pode consentir tal licença na sociedade senão com desprezo do seu dever. Tanto mais verdade é isto, que todos sabem de quanto peso é para os ouvintes a autoridade do professor e quão raro é que um discípulo possa julgar pó si mesmo da verdade do ensino do mestre.

Conceito da verdadeira liberdade de ensino

33. Eis aí, por que também esta liberdade, para que seja honesta, tem necessidade de ser restringida em determinados limites. É, pois, necessário que a arte do ensino não possa impunemente converter-se num instrumento de corrupção. Ora, a verdade, que deve ser o único objeto de ensino, é de duas espécies: a verdade natural e a sobrenatural. As verdades naturais, às quais pertencem os princípios da natureza e as conclusões próximas que deles deduz a razão, constituem como que o patrimônio comum do gênero humano; são como que o sólido fundamento sobre que assentam os costumes, a justiça, a religião e a própria existência da sociedade humana; e seria desde logo a maior das impiedades, a mais desumana das loucuras, deixá-las violar e destruir impunemente. Mas é necessário por não menos escrúpulo em conservar o magno e sagrado tesouro das verdades que o próprio Deus nos fez conhecer. Por um grande número de argumentos luminosos, muitas vezes repetidos pelos apologistas, foram estabelecidos certos pontos principais de doutrina, por exemplo: há uma revelação divina; o Filho único de Deus fez-se homem para dar testemunho da verdade; por Ele foi fundada uma sociedade perfeita, isto é, a Igreja, de que Ele mesmo é o Chefe e com a qual prometeu estar até a consumação dos séculos.

34. A esta sociedade quis Ele confiar todas as verdades que ensinara, com a missão de as guardar, de as desenvolver com autoridade legítima; e, ao mesmo temo, ordenou a todas as nações que obedecessem aos ensinamentos da sua Igreja como a Ele mesmo, sob pena de perda eterna para aqueles que isto transgredissem. Daqui ressalta claramente que o melhor e mais seguro mestre, para o homem, é Deus, fonte e principio de toda a verdade; é o Filho único que vive no seio do Pai, caminho, verdade, vida e luz verdadeira que esclarece todos os homens; e cujos ensinamentos devem ter por discípulos todos os homens: 'e eles serão todos ensinados por Deus' (Jo 6, 45). Mas para a fé e regra dos costumes, Deus fez a Igreja partícipe do seu divino privilégio de infalibilidade. Eis aí por que ela é grande e segura mestra dos homens e tem em si um direito inviolável à liberdade de ensinar. E, de fato, a Igreja, que nos ensinamentos recebidos do Céu encontra o seu próprio sustentáculo, nada tem tido tanto a peito como desempenhar, religiosamente a missão que Deus lhe confiou, e, sem se deixar intimidar pelas dificuldades que, por toda parte, a cercam, não tem cessado em tempo algum de combater pela liberdade do seu magistério. Foi por este meio que todo o mundo, liberto da miséria das suas superstições, encontrou na sabedoria cristã a sua regeneração.

35. Mas como a própria razão o ensina claramente: entre as verdades divinamente reveladas e as verdades naturais não pode haver real oposição, de sorte que toda a doutrina que contradiga àquelas será necessariamente falsa, segue-se que o divino magistério da Igreja, longe de por obstáculos ao amor do saber e ao desenvolvimento das ciências ou de retardar por qualquer modo o progresso da civilização é, pelo contrário, para estas coisas, uma vivíssima luz e uma segura proteção. E, por esta mesma razão, o próprio aperfeiçoamento da liberdade humana aproveita não pouco com a sua influência, segundo a máxima de Jesus Cristo Salvador, que o homem se torna livre pela verdade: 'Conhecereis a verdade, e a verdade vos fará livres' (Jo 8, 32).

Não há, pois, motivo para que a genuína liberdade se indigne e a ciência verdadeira se irrite contra as leis justas e necessárias, que devem regular os ensinamentos humanos, como o reclamam acordes a Igreja e a razão. Há mais: e é, que a Igreja, dirigindo principal e especialmente a sua atividade para a defesa da fé cristã, aplica-se também em favorecer o gosto de bons estudos em si mesmos têm alguma coisa de bom, de louvável, de desejável; e, além disso, toda a ciência, que é fruto da reta razão e corresponde à realidade das coisas, é de uma utilidade não medíocre até para esclarecer as verdades reveladas por Deus. E de fato, que imensos serviços a Igreja não prestou com o admirável cuidado com que conservou os monumentos da ciência antiga, com os institutos que abriu, por toda parte, às ciências, com o estímulo que sempre deu a todos os progressos, favorecendo dum modo particular as próprias artes que são a glória da civilização da nossa época.

36. Enfim, é necessário não esquecer que ainda há imenso campo aberto em que a atividade humana pode dilatar-se e exercer-se livremente a razão: referimo-nos às matérias que não têm uma conexão necessária com a doutrina da fé e dos costumes cristãos, ou sobre as quais a Igreja, não usando da sua autoridade, deixa aos sábios toda a liberdade de suas opiniões. Por estas considerações se vê de que espécie e de que qualidade e, neste particular, a verdade que os partidários do liberalismo reclamam e proclamam com igual ardor. Por um lado, atribuem a si mesmos, assim como ao Estado, uma licença tal que não há opinião, por mais perversa que seja, à qual não abram a porta e não deem livre passagem; por outro, suscitam à Igreja obstáculos sobre obstáculos, encerrando a liberdade dela nos limites mais estreitos que podem, quando aliás nenhum inconveniente há a recear dos ensinamentos da Igreja e antes se devem esperar deles as maiores vantagens.

Liberdade de consciência

37. Uma outra liberdade que também muito alto se proclama, é aquela a que dão o nome de liberdade de consciência. Se por isso se entende que cada qual pode indiferentemente, a seu bel-prazer, prestar ou deixar de prestar culto a Deus, os argumentos acima apresentados bastam para a sua refutação. Mas pode-se tomar no sentido de que o homem, no Estado tem o direito de seguir, segundo a consciência do seu dever, a vontade de Deus, e de cumprir os seus preceitos, sem que ninguém possa impedi-lo. Esta liberdade verdadeira, esta liberdade digna dos filhos de Deus, que protege tão gloriosamente a dignidade da pessoa humana, está acima de toda a opressão e de toda a violência, e foi sempre o objeto dos votos da Igreja e do seu particular afeto. Foi esta liberdade que os apóstolos reivindicaram com tanta constância, que os apologistas têm defendido nos seus escritos, que uma multidão inumerável de mártires consagrou com o seu sangue. E eles tiveram razão: o grande e justíssimo poder de Deus sobre os homens e, por outro lado, o grande e supremo dever dos homens para com Deus encontram ambos nesta liberdade cristã um brilhante testemunho.

38. Ela nada tem de comum com disposições facciosas e rebeldes, e de nenhum modo se poderá apresentá-la como refratária à obediência devida ao poder público; pois ordenar e exigir obediência às leis é um direito do poder humano somente enquanto este não está em desacordo com o poder divino, e se contém dentro dos limites que Deus lhe demarcou. Ora, quando se dá uma ordem que está em aberta contradição com a vontade divina, então se afasta muito desses limites, e põe-se em conflito com a autoridade divina: portanto, é então justo não obedecer.

39. Mas os partidários do Liberalismo, que atribuem ao Estado um poder despótico e sem limites e proclamam que não é preciso ter Deus em conta alguma no modo de nos conduzirmos na vida, desconhecem absolutamente esta liberdade de que falamos tão intimamente unida à honestidade e à religião; e tudo quanto se faz para a conservar, eles o consideram como feito em detrimento e contra o Estado. Se o que dizem fosse verdade, não haveria dominação, por tirânica que fosse, que se não devesse aceitar e sofrer.

D -  A TOLERÂNCIA DA IGREJA

40. O mais vivo desejo da Igreja seria, sem dúvida, ver penetrarem, de fato e em prática, em todas as ordens do Estado estes princípios cristãos que acabamos de expor sumariamente. Pois eles possuem uma eficácia maravilhosa para curar os males do tempo presente, esses males cujo número e gravidade se não podem dissimular, nascidos em grande parte dessas liberdades tão decantadas, e nas quais se havia querido ver encerrar os germes da salvação e da glória. Esta esperança foi desmentida pelos fatos. Em lugar de frutos doces e salutares, vieram frutos amargos e envenenados. Se se procura o remédio, busque-se restabelecimento de sãs doutrinas, únicas de que se pode esperar confiadamente a conservação da ordem e, por isso mesmo, a garantia da verdadeira liberdade.

41. Todavia, em sua apreciação maternal, a Igreja tem em conta o peso acabrunhador da fraqueza humana e não ignora o movimento que, na nossa época, arrasta os espíritos e as coisas. Por estes motivos, não concedendo direitos senão àquilo que se é verdadeiro e honesto, a Igreja ainda assim não se opõe à tolerância do que os poderes públicos creem poder usar a respeito de certas coisas contrárias à verdade e à justiça, em face de um mal maior a evitar, ou de um maior bem a obter ou conservar. O próprio Deus em sua providência, conquanto infinitamente bom e onipotente, permite não obstante a existência de certos males no mundo, ou seja para não impedir bens maiores ou seja para evitar maiores males. Convém, quanto ao governo dos Estados, imitar Aquele que governa o mundo. Mais ainda: reconhecendo-se impotente para impedir todos os males particulares, a autoridade dos homens deve permitir e deixar impunes muitas coisas que, não obstante, atraem com justo motivo o julgamento da providência divina (S. Agost. De lib. arb., lib. I, c. 6, n. 14).

42. Todavia, se nestas conjunturas, com o foco no bem comum e só por este motivo, a lei dos homens pode e mesmo deve tolerar o mal; contudo nunca ela pode nem deve aprová-lo nem desejá-lo em si mesmo, pois que o mal, sendo de si mesmo a privação do bem, é oposto ao bem comum que o legislador deve querer e defender do melhor modo que possa. E, ainda nisto, a lei humana deve propor-se imitar a Deus que, deixando existir o mal no mundo, não quer nem que o mal suceda, nem que o mal não suceda, mas quer permitir que o mal suceda. E isto é bom (S. Th. p. I, q. 19, ª 9, ad 3). Esta sentença do Doutor Angélico contém, numa fórmula breve, toda a doutrina sobre a tolerância do mal. Mas é necessário reconhecer, para que o nosso juízo seja exato, que quanto mais preciso for tolerar o mal em um Estado, mais longe estão da perfeição as condições desse Estado; e, além disto, que a tolerância do mal, pertencendo aos princípios da prudência política, deve ser rigorosamente circunscrita aos limites exigidos pela sua razão de ser, isto é, pela salvação pública. 

E, por isso, se ela é nociva à salvação pública ou se é para o Estado causa de um mal maior, a consequência é que deixa de ser lícita, porque nestas condições falta a razão do bem. Mas se, em vista de uma condição particular do Estado, a Igreja condescende com certas liberdades modernas, não é porque as prefira em si mesmas, mas porque julga conveniente permiti-las; melhorada a situação, usará evidentemente da sua liberdade, empregando todos os meios, persuasões, exortações e rogos, para desempenhar, como é seu dever, a missão que recebeu de Deus: proporcionar aos homens a salvação eterna. Em todo o caso fica sempre de pé uma verdade: é que essa liberdade concedida indiferentemente a todos e para tudo, não é desejável por si mesma, como muitas vezes se tem repetido, pois repugna a razão que o falso e o verdadeiro tenham os mesmos direitos.

Intolerância do Liberalismo

43. E no que toca à tolerância, é estranho ver quanto se distanciam da equidade e da prudência da Igreja aqueles que professam o Liberalismo. Com efeito, concedendo aos cidadãos, em todos os pontos de que acabamos de falar, uma liberdade sem limites, ultrapassam de um salto a medida, e chegam ao ponto em que parece não haver mais atenções com a virtude e a verdade do que com o erro e o vício. E quando a Igreja, coluna e sustentáculo da verdade, mestra incorruptível dos costumes, que crê contra uma tolerância tão cheia de desordens e de excessos e busca impedir o criminoso uso dela, acusam-na de faltar à paciência e à delicadeza. Procedendo assim, nem sequer advertem que fazem um crime daquilo precisamente que é mérito. De resto muitas vezes sucede que estes grandes defensores da tolerância são duros e intransigentes na prática, quando se trata do Catolicismo: pródigos de liberdades para todos, recusam a cada passo deixar à Igreja a sua liberdade.

E - RECAPITULANDO

Origens do Liberalismo e suas formas

44. Mas para recapitular com brevidade, e para maior clareza, todo este discurso com suas consequências, nós dizemos, em resumo, que o homem deve necessariamente permanecer todo inteiro em uma dependência real e incessante a respeito de Deus, e que, por consequência, é absolutamente impossível compreender a liberdade do homem sem a submissão a Deus e a sujeição à sua vontade. Negar esta soberania de Deus ou recusar a submissão a ela, não é modo de agir de homem livre, mas de quem abusa da liberdade com a revolta; e é precisamente de uma tal disposição da alma que se constitui e nasce o vício do Liberalismo. De resto podem-se distinguir muitas espécies de liberalismo, porque existem para a vontade mais de uma forma e mais de um grau na recusa da obediência devida a Deus ou àqueles que participam da sua autoridade divina.

45. A insurreição completa contra o império supremo de Deus e recusar-lhe absolutamente toda a obediência, quer seja na vida pública, quer na vida particular e doméstica, é a um tempo, sem dúvida alguma, a maior depravação da liberdade e a pior espécie de liberalismo. É sobre ela que devem cair, sem restrição, todas as censuras que até aqui temos formulado.

46. Imediatamente depois vem o sistema daqueles que, concedendo que se deve depender de Deus, autor e senhor do universo, pois que toda a natureza é regida pela sua Providência, ousam repudiar as regras da fé e da moral que, ultrapassando a ordem da natureza, nos vêm da própria autoridade de Deus; ou pretendem, pelo menos, que não é preciso tê-las em conta, principalmente nos negócios públicos do Estado. Qual a gravidade do seu erro e quão pouco de acordo estão consigo mesmos, também o vimos acima. É esta doutrina que deriva, como da sua fonte e princípio, o pernicioso erro da separação da Igreja e do Estado; quando, pelo contrário, é manifesto que estes dois poderes, embora diferentes na sua missão e na sua dignidade, devem todavia entender-se na concórdia da sua ação e na reciprocidade dos seus bons ofícios.

47. A este erro, como a um gênero, se liga uma dupla opinião. Muitos, com efeito, querem uma separação radical e total entre a Igreja e o Estado; consideram estes que, em tudo o que diz respeito ao governo da sociedade humana, nas instituições, nos costumes, nas leis, nas funções públicas, na instrução da juventude, se não deve fazer caso da Igreja como se ela não existisse; apenas deixam aos membros individuais da sociedade a faculdade de cumprirem particularmente, se quiserem, os deveres da religião. Contra estes conservam toda a sua força os argumentos pelos quais refutamos a opinião da separação da Igreja e do Estado, com a agravante de que é completamente absurdo que a Igreja seja, ao mesmo tempo, respeitada pelo cidadão e desprezada pelo Estado.

48. Os outros não põem em dúvida a existência da Igreja, o que lhes seria impossível, mas tiram-lhe o caráter e os direitos próprios de uma sociedade perfeita, e querem que o seu poder, privado de toda a autoridade legislativa, judicial e coercitiva, se limite a dirigir pela exortação e pela persuasão aqueles que de bom grado e por sua própria vontade se submetem a ela. E assim, nesta teoria, o caráter desta divina sociedade é completamente desvirtuado, a sua autoridade, o seu magistério, toda a sua ação é diminuída e restringida, ao mesmo temo que a ação e a autoridade do poder civil é por eles exagerada até ao ponto de quererem que a Igreja de Deus, como qualquer outra associação voluntária, seja colocada sob a dependência e dominação do Estado. Para os convencer de erro, os apologistas têm empregado poderosos argumentos que nós mesmo não deixamos no olvido, deles se conclui que, pela vontade de Deus, a Igreja possui todas as qualidades e todos os direitos que caracterizam uma sociedade legítima, soberana e, em todos os pontos, perfeita.

49. Muitos, finalmente, não aprovam esta separação da Igreja e do Estado, mas julgam que é necessário induzir a Igreja a ceder às circunstâncias, fazer com que ela se acomode e se preste ao que reclama a prudência destes tempos no governo das sociedades. Esta opinião é boa quando entendida de um certo modo equitativo de proceder, conforme com a verdade e com a justiça, a saber: que a Igreja, na expectativa certa de um grande bem, se mostre indulgente e conceda às circunstâncias do tempo o que pode conceder sem violar a santidade da sua missão. Mas sucede o contrário com as práticas e doutrinas que a relaxação dos costumes e os erros correntes introduziram contra o direito. Não pode haver época alguma sem religião, verdade e justiça; e como estas grandes e santas coisas Deus as colocou sob a guarda da Igreja, nada há tão estranho como pretender que deixe passar sem reparo o que é falso ou injusto, ou que se torne conivente com o que prejudicar a religião.

Conclusões da doutrina católica

50. Destas considerações segue-se, portanto, que de nenhum modo é permitido pedir, defender ou conceder sem discernimento a liberdade de pensamento, de imprensa, de ensino, de religião, como se fossem outros tantos direitos que a natureza conferisse ao homem. Se em verdade a natureza os houvesse conferido, haveria o direito de nos subtrairmos à soberania de Deus, e nenhuma lei poderia moderar a liberdade humana. Segue-se também que estas diversas espécies de liberdade podem, por justas causas, ser toleradas, contanto que uma justa moderação as impeça de degenerarem até à licença e à desordem. Finalmente, nos países em que os usos puseram estas liberdades em vigor, os cidadãos devem servir-se delas para fazer o bem e ter a respeito delas os mesmos sentimentos que a Igreja tem; porque uma liberdade não se deve reputar legítima senão quando aumenta a nossa faculdade de fazer o bem. Fora disto, nunca.

51. Quando se está sob o domínio ou a ameaça de um governo que tem a sociedade debaixo da pressão de uma violência injusta ou que priva a Igreja da liberdade legítima, é permitido buscar outra organização política, sob a qual se possa proceder com liberdade. Com efeito, neste caso o que se reivindica não é essa liberdade sem medida e sem regra, mas sim um certo alívio para bem de todos; e o que se procura unicamente é chegar a que, onde toda a licença é dada ao mal, não se ponham obstáculos à prática do bem.

52. Além disto, preferir para o Estado uma constituição temperada pelo elemento democrático não é em si contrária ao dever, com a condição todavia de que se respeite a doutrina católica sobre a origem e o exercício do poder público. Das diversas formas de governo, contanto que sejam em si mesmas aptas para proporcionar o bem aos cidadãos, a Igreja não rejeita nenhuma, mas quer, e a natureza põe-se de acordo com ela para o exigir, que seja constituída de tal modo que não viole o direito de ninguém e respeite particularmente os direitos da Igreja.

53. É louvável tomar parte na administração dos negócios públicos, a menos que em certos lugares, por circunstâncias particulares de coisas e de tempo, se não imponha outro modo de proceder. A Igreja mesma aprova que todos unam os seus esforços para o bem comum, e que cada um, segundo a sua possibilidade, trabalhe para a defesa, conservação e aumento da coisa pública.

54. A Igreja também não condena que se queira libertar o país do poder estrangeiro ou de um déspota, contanto que isto se possa fazer sem violar a justiça. Finalmente, muito menos ela censura aqueles que trabalham para dar aos municípios o beneficio de se regerem pelas suas próprias leis, e aos cidadãos todas as facilidades para o aumento do seu bem-estar. Para todas as liberdades civis isentas de excesso, a Igreja teve sempre o costume de ser uma fidelíssima protetora, o que é atestado principalmente pelas cidades italianas, que encontraram sob o regime municipal a prosperidade, o poder e a glória, quando a influência salutar da Igreja, sem encontrar oposição alguma, penetrava todas as partes do corpo social.

Exortação final

55. Estes ensinamentos que, inspirados pela fé e pela razão, o dever do nosso cargo apostólico nos levou a transmitir-vos, Veneráveis Irmãos, serão úteis a um grande número, temos nisto confiança, graças principalmente à união dos vossos esforços com os nossos. Pela nossa parte, na humildade do nosso coração, elevamos para Deus os nossos olhares suplicantes, rogando-lhe instantemente que se digne espalhar entre os homens a luz da sua sabedoria e do seu conselho, a fim de que, pela virtude destas graças, eles possam ver a verdade em pontos de uma tal importância, e, consequentes, com uma inquebrantável constância saibam conformar, em todos os tempos, a sua vida particular e pública com a mesma verdade.

Como penhor dos favores celestiais e em prova da nossa benevolência, nós vos concedemos, com um terno afeto, a vós, Veneráveis Irmãos, assim como ao clero e ao povo de que cada um de vós tem a direção, a bênção apostólica no Senhor.