sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XV)

 

65. Quando considero as palavras que Jesus Cristo dirigiu ao seu Pai celestial em oração, dizendo que não orava pelo mundo: 'Não rogo pelo mundo' [Jo 18,9] e ainda que, ao rogar por seus discípulos para que sua oração fosse mais eficaz, enfatizou o fato de que eles não eram seguidores do mundo: 'Eles estão no mundo, mas não são do mundo' - confesso que nenhuma palavra de nosso Salvador em todo o Evangelho me aterroriza mais do que essas. Pois percebo que é necessário que eu me separe do mundo, para que Jesus Cristo possa interceder por mim. E se eu for um amante do mundo, serei excomungado por Jesus Cristo e não terei parte nas suas graças e orações. Estas são as palavras do próprio Cristo: 'Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que não são do mundo'.

Vamos entender a realidade destas palavras: Jesus Cristo nos exclui do seu reino se pertencermos ao mundo, isto é, se quisermos seguir as máximas do mundo que não passam de vaidade e engano e enchem o homem de orgulho; as máximas do mundo que o profeta diz que 'desviam o caminho dos humildes' [Am 2,7]. Entretanto, Jesus Cristo é o nosso advogado junto do Pai, na medida em que, renovando o nosso voto batismal, renunciamos ao mundo e aceitamos as máximas do Evangelho que são verdadeiras e tendem a tornar o homem humilde. Servir a Deus e ao mundo é impossível, porque não se pode agradar a ambos: 'ou há de se apegar a um e desprezará o outro' [Lc 16,13]. Pretender servir a Deus e ao mundo é o mesmo que imaginar que podemos ser humildes e orgulhosos ao mesmo tempo. Sonho vão!

66. A meditação mais familiar que o seráfico São Francisco tinha o hábito de fazer era esta: primeiro elevava o pensamento a Deus e depois o voltava para si mesmo: 'Meu Deus, exclamava ele, quem sois Vós e quem sou eu?' E, elevando o pensamento primeiro à grandeza e à bondade infinita de Deus, descia depois para considerar a sua própria miséria e vileza. E assim, subindo e descendo essa escala de pensamento da grandeza de Deus até o seu próprio nada, o santo seráfico passava noites inteiras em meditação, praticando nesse exercício uma humildade real, verdadeira, sublime e profunda, como os anjos vistos por Jacó em seu sono naquela escada de perfeição mística 'subindo e descendo por ela' [Gn 28,12].

Este deve ser o nosso modelo para não errarmos no exercício da humildade. Fixar o pensamento apenas na nossa miséria pode fazer-nos cair na desconfiança e no desespero e, do mesmo modo, fixar o pensamento apenas na contemplação da bondade divina pode levar-nos a ser presunçosos e precipitados. A verdadeira humildade situa-se entre as duas: 'A humildade' - diz São Tomás - 'controla a presunção e fortalece a alma contra o desespero' [2a 2æ, qu. clxi, art. 1 ad 3]. Desconfiai de vós mesmos e confiai em Deus, e assim, desconfiando e assim confiando, entre o temor e a esperança, realizareis a vossa salvação no espírito do Evangelho.

Devemos primeiro refletir sobre a infinita misericórdia de Deus, para suscitar a nossa esperança, como fez o rei Davi: 'A vossa misericórdia está diante dos meus olhos' e depois refletir sobre a sua justiça, para nos mantermos no seu temor: 'Senhor, só da vossa justiça hei de proclamar' [Sl 70,16]. E também, voltando os nossos pensamentos para nós mesmos, devemos primeiro refletir sobre o homem como sendo a obra de Deus criada à sua imagem e semelhança, de modo a dar a Deus a glória; depois devemos refletir sobre o pecador no homem que é a nossa obra e que nos deve deixar profundamente abatidos. 'O homem e o pecado' -  diz Santo Agostinho - 'são como que duas coisas distintas. O que tem o sabor do homem foi feito por Deus, o que tem o sabor do pecador foi feito pelo próprio homem. Impõe-se destruir o que o homem fez para que Deus possa salvar o que Ele fez' [Tract xii, in 10]
 
67. O conhecimento de si mesmo é uma grande ajuda para adquirir a humildade; mas, no meio de tantas paixões, faltas e vícios de que temos consciência, reconhecer o nosso próprio orgulho é o mais útil de todos. Porque este vício é o mais vergonhoso de todos, e mesmo nas nossas confissões é-nos mais difícil dizer com verdade: 'Acuso-me de ser orgulhoso e de não me esforçar seriamente por corrigir esta falta' do que acusarmo-nos de muitos outros pecados. Esse conhecimento de nosso orgulho é muito humilhante; pois, enquanto certos outros vícios podem ser lamentados e desculpados por uma razão ou outra, o orgulho nunca pode ser lamentado ou desculpado, sendo um pecado diabólico e odioso não apenas para Deus, mas para os homens - como diz a palavra inspirada: 'O orgulho é abominável diante de Deus e dos homens' [Eclo, 10,7].

Examinemo-nos, pois, diariamente sobre este ponto; acusemo-nos dele nas nossas confissões e, reconhecer assim o nosso orgulho, será um excelente incentivo para nos tornarmos humildes. Oremos a Jesus Cristo para que Ele faça por nós o mesmo que fez pelo cego que curou, e peçamos-lhe que ponha a lama do orgulho nos nossos olhos, para que possamos ver. Digamos a Deus: 'Vós sois o meu Deus, aquele Deus que 'levanta o necessitado da terra e ergue o pobre da imundície' [Sl 112,7], fazei com que este orgulho, que é o meu grande pecado, sirva para Vós de instrumento para que eu alcance uma humildade virtuosa!'

68. Consideremos as coisas deste mundo em que somos capazes de nos deleitarmos em vão. Um pode orgulhar-se da sua saúde robusta e da sua força corporal, outro da ciência, do saber, da eloquência e de outros dons que adquiriu pelo estudo e pela arte. Outro orgulha-se da sua riqueza e dos seus bens; outro da sua nobreza e da sua posição; outro das suas virtudes morais, ou de outras virtudes que lhe trazem a graça e a perfeição espirituais: mas não devem todos estes dons ser considerados como outros tantos benefícios vindos de Deus, dos quais temos de prestar contas se não os usarmos para resistir à tentação e nos conformarmos com a ordenação de Deus? Somos devedores a Deus por cada benefício que recebemos, e somos obrigados a empregar esses dons e a negociar com eles para a glória de Deus, como mercadores a quem é confiado um capital. Quando consideramos quantos benefícios, tanto do corpo como da alma, recebemos de Deus, somos obrigados a admitir que há muitas dívidas que contraímos para com Ele, e por que razão nos havemos de gloriar nas nossas dívidas?

Nenhum comerciante prudente, se tivesse grandes dívidas, iria proclamar o fato no mercado pois assim perderia o seu crédito; e como podemos esperar ganhar crédito gabando-nos das muitas dívidas que temos para com Deus? Dívidas tão pesadas que corremos o risco de ficar falidos no dia em que nosso Senhor e Mestre dirá: 'Paga o que me deves!' [Mt 18,28]. Dos benefícios que recebemos de Deus devemos tirar lições de humildade e não de orgulho, seguindo o ensinamento de São Gregório: 'Quanto mais rigorosa for a conta que um homem vê que deve dar dos seus deveres, tanto mais humilde deve ter no cumprimento deles' [Hom. ix in Evang]. O nosso desejo de nos vangloriarmos dos favores que recebemos de Deus só demonstra a nossa ingratidão, e temos mais motivos para nos humilharmos por sermos ingratos do que para nos gloriarmos dos benefícios que nos foram concedidos.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)