sábado, 7 de dezembro de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XIV)

 

63. Os mistérios da graça e da predestinação deixariam de ser mistérios se fôssemos capazes de os compreender com o nosso entendimento. Deter-nos a considerar se Deus perdoou ou não os nossos pecados, se vivemos em estado de graça, se estamos predestinados... é, em si mesmo, um ato de temeridade e de orgulho, na medida em que procuramos conhecer os juízos ocultos de Deus, que não quer que os conheçamos para que permaneçamos na humildade. 'Não sejais soberbos, mas temei', nos diz São Paulo [Rm 11,20].

Devo ser muito grato a quem me ajuda a manter a humildade, submetendo-me a humilhações de palavra e de ação, porque está a cooperar com a misericórdia divina para realizar a obra da minha salvação eterna. E, embora não pense na minha salvação quando me ofende é, no entanto, um instrumento dela, e todo o mal vem de mim, se eu não fizer bom uso dele. Santo Ambrósio diz de Davi, quando foi insultado por Semei com vitupérios e apedrejamentos, que ele 'se calou e se humilhou' [Lib. 1, Offic., cap. xviii], mantendo a mente fixa neste único pensamento: 'O Senhor mandou que ele me amaldiçoasse' [2Sm 16,10].  Estamos gratos ao cirurgião que nos faz sangrar, mesmo que ele não esteja a pensar na nossa saúde, mas no ofício particular da sua profissão. Portanto, se o entendêssemos, não como filósofos estóicos mas como bons cristãos, deveríamos ser gratos àqueles que nos humilham, pois, embora não tenham a intenção de nos tornar humildes, mas apenas a de nos humilhar, na realidade essa humilhação ajuda-nos a adquirir a humildade, se for esse o nosso desejo.

O benefício é um benefício real, embora aquele que o confere não tenha intenção de que assim seja. O insulto só é insulto na intenção de quem o profere, e a humilhação só pertence a quem a recebe; e é um meio muito seguro de adquirir e praticar a humildade, se soubermos recebê-la com espírito cristão. Para este fim, Deus permite que sejamos humilhados em certas ocasiões, para que possamos dar uma prova de nossa virtude 'no cadinho da humilhação' [Eclo 2,5], e o professor desta sábia regra continua a dizer: 'Humilha o teu coração e suporta' [Eclo2,2].

64. Tudo depende da maneira pela qual encaramos as coisas. A vida, se nos regermos pelas máximas do mundo, é certo que nos inspirará orgulho; e é igualmente certo que, se nos regermos pelas máximas do Evangelho, nos inspirará humildade. De acordo com o mundo, devemos repelir um insulto com raiva e ressentimento mas, de acordo com o Evangelho, devemos aceitá-lo com uma paciência humilde, prudente e mansa. 'Esta palavra é dura' [Jo 6,61]. Mas quanta paciência não exercitamos para agradar ao mundo! Paciência que muitas vezes é amarga e dura! E será, portanto, uma 'palavra dura' o fato de termos de ter paciência e humildade para agradar a Deus? Diremos então: 'Ah, minha alma miserável, ocupemo-nos das coisas deste mundo, dos pensamentos, das ideias e dos escrúpulos deste mundo, das suas obrigações e opiniões, das suas políticas, amores e caprichos?' Eu bem sei que a humildade só pode ser trabalhosa e fatigante numa atmosfera assim, tão cheia de mundanismo, pois como diz a Sagrada Escritura: 'A humildade é uma abominação para os orgulhosos' [Eclo 13,24]. 

Mas elevemo-nos acima do mundo e de suas opiniões e, à luz da verdade eterna da fé, descobriremos que essa virtude não é apenas fácil, mas doce e agradável, porque tudo o que o Cristo nos disse é verdade, e depois de nos ter exortado a aprender a humildade com Ele: 'Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração', Ele imediatamente acrescentou: 'Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve'. A verdade não pode mentir; nós é que nos recusamos a ouvi-la. Somos governados pelo mundo e, por isso, ouvimos falar da humildade como uma 'palavra difícil'. Mas lembremo-nos de um outro ditado verdadeiro que nos diz que, se não formos humildes, não podemos ser salvos. Grande é o reino a que aspiramos, diz Santo Agostinho; mas humilde é o caminho que conduz a ele - Excelsa est patria, humilis est via. De que serve o nosso anseio pelo Paraíso, se não percorrermos o caminho da humildade, que é o único que conduz a ele? 'Por que procura a sua terra natal aquele que se recusa a seguir o caminho que conduz a ela?'  [Tract. 78].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)