terça-feira, 6 de março de 2018

OS GRANDES MÍSTICOS DA IGREJA (II)

HILDEGARDE VON BINGEN

Hildegarde Von Bingen, mística medieval famosa pelas suas profecias, nasceu em 1098 em Bermersheim, na Renânia (atual Alemanha) e morreu em 1179, aos 81 anos de idade, apesar de uma permanente fragilidade da saúde. A etimologia do seu nome significa 'aquela que é audaz na batalha', uma primeira profecia que se realizaria plenamente. Foi religiosa beneditina, fundadora de mosteiros femininos, pintora, compositora musical, teóloga, poetisa, dramaturga, naturalista e filósofa e esta impressionante versatilidade de atuação levou-a a ser nomeada Doutora da Igreja.


Hildegard pertencia a uma família nobre e numerosa e, desde muito cedo, recebeu uma devotada formação cristã, particularmente sob os cuidados da religiosa Jutta von Spanheim, que vivia em clausura no mosteiro beneditino de São Disibodo, de acordo com a Regra de São Bento. Nesta época, já experimentava visões místicas extraordinárias, que relatava ao seu conselheiro espiritual, o monge Volmar, e também a uma irmã da comunidade à qual nutria uma grande estima, chamada Richardis von Strade.

(ruínas do mosteiro de São Disibodo)

Em 1136, com a morte da Madre Jutta, tornou-se a sua sucessora como Superiora da comunidade. Com o crescente número de novas aspirantes, Hildegard fundou uma outra comunidade em Bingen, dedicada a São Ruperto, onde permaneceu pelo resto de sua vida. O seu espírito profético inspirou-lhe uma grande fé, um grande amor por Cristo e pela sua Igreja, que ela queria pura e irrepreensível. E, neste contexto, escreveu inúmeras obras e desenvolveu uma ativa e constante correspondência com homens e mulheres de poder do seu tempo, incluindo reis, imperadores, papas e outros membros da Igreja, uma condição raríssima e excepcional para a condição feminina na Idade Média.

Mais tarde, buscou conselho de suas visões místicas a São Bernardo de Claraval e, mais tarde, ao papa Eugênio III, que lhes confiaram a autenticidade das visões e lhe deram orientações para que as revelassem por escrito, que foram então incluídas (escritas em latim) nas suas três principais obras: Scivias, abreviação de Scito Vias Domini - Conhecei os Caminhos do Senhor, Liber Vitae Meritorum ou Livro dos Méritos da Vida e Liber Divinorum Operum ou Livro das Obras Divinas. Estas revelações receberam grande divulgação e causaram enorme impacto nos seus contemporâneos, que lhe atribuíam os títulos de 'profetisa teutônica' e de 'Sibila do Reno'. Eis um exemplo de suas visões proféticas:

'No ano de 1170 depois do nascimento de Cristo, estive durante longo tempo doente na cama. Então, física e mentalmente acordada, vi uma mulher de uma beleza tal que a mente humana não é capaz de compreender. A sua figura erguia-se da terra até ao céu. O seu rosto brilhava com um esplendor sublime. O seu olhar estava voltado para o céu. Trajava um vestido luminoso e fulgurante de seda branca e uma manto guarnecido de pedras preciosas. Nos pés, calçava sapatos de ônix. Mas o seu rosto estava salpicado de pó, o seu vestido estava rasgado do lado direito. Também o manto perdera a sua beleza singular e os seus sapatos estavam sujos por cima. Com voz alta e pesarosa, a mulher gritou para o céu: 

‘Escuta, ó céu: o meu rosto está manchado! Aflige-te, ó terra: o meu vestido está rasgado! Treme, ó abismo: os meus sapatos estão sujos! Estava escondida no coração do Pai, até que o Filho do Homem, concebido e dado à luz na virgindade, derramou o seu sangue. Com este sangue por seu dote, tomou-me como sua esposa. Os estigmas do meu esposo mantêm-se em chaga fresca e aberta, enquanto se abrirem as feridas dos pecados dos homens. 

'Este fato de permanecerem abertas as feridas de Cristo é precisamente por culpa dos sacerdotes. Estes rasgam o meu vestido, porque são transgressores da Lei, do Evangelho e do seu dever sacerdotal. Tiram o esplendor ao meu manto, porque descuidam totalmente os preceitos que lhes são impostos. Sujam os meus sapatos, porque não caminham por estradas direitas, isto é, pelas estradas duras e severas da justiça, nem dão bom exemplo aos seus súditos. Em alguns deles, porém, encontro o esplendor da verdade'.

'E ouvi uma voz do céu que dizia: 'Esta imagem representa a Igreja. Por isso, ó ser humano que vês tudo isto e ouves as palavras de lamentação, anuncia-o aos sacerdotes que estão destinados à guia e à instrução do povo de Deus, tendo-lhes sido dito, como aos apóstolos: ‘Ide por todo o mundo e proclamai o Evangelho a toda a criatura’ (Mc 16, 15).

Mas Hildergarde se aventurou em muitas outras atividades científicas, que não tiveram nenhum cunho profético. Ela escreveu, por exemplo, um texto sobre as ciências naturais chamado Physica, um extenso trabalho de nove volumes que trata principalmente do uso medicinal de plantas e também um tratado médico chamado Causae et Curae em cinco volumes, no qual descreve remédios naturais para diversas enfermidades ou para melhoria da saúde das pessoas. Nestes estudos, demonstra a sua visão do homem inserido no mundo e integrado com a natureza na busca de Deus,.


A monja alemã também é a padroeira dos estudiosos de esperanto, por ter sido a autora de uma das primeiras linguagens artificiais, a chamada 'língua ignota', um idioma secreto que ela utilizava para fins místicos e era composta por 23 letras. Foi ainda compositora de várias orações e hinos religiosos, incluindo 77 sinfonias em estilo similar ao gregoriano e com melodias muito elaboradas e que recebem crescente interesse de reprodução nos dias atuais.

(disponível em https://www.youtube.com/watch?time_continue=24&v=BS28jyW1bLY)

Logo após a sua morte, foram abertos os processos para elevá-la à honra dos altares e, apesar dos vários milagres que lhe foram atribuídos em vida e depois da sua morte, as tentativas de sua possível canonização foram sempre interrompidas, embora muitas dioceses alemãs tenham aprovado o seu culto desde o século XIII. Somente em 2012, Hildegarde Von Bingen foi finalmente canonizada pela Igreja, pelo papa Bento XVI, recebendo, neste mesmo ano, o título de Doutora da Igreja.