domingo, 30 de abril de 2023

EVANGELHO DO DOMINGO

'O Senhor é o pastor que me conduz, 
para as águas repousantes me encaminha' (Sl 22)

Primeira Leitura (At 2,14a.36-41) - Segunda Leitura (1Pd 2,20b-25)  -  Evangelho (Jo 10,1-10)
 
 30/04/2023 - Quarto Domingo da Páscoa 

23. O BOM PASTOR


No Quarto Domingo da Páscoa, ressoa pela cristandade a imagem e a missão do Bom Pastor: 'Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. A esse o porteiro abre, e as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora. E, depois de fazer sair todas as que são suas, caminha à sua frente, e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz' (Jo 1, 2 - 4). Jesus, o Bom Pastor, conhece e ama, com profunda misericórdia, cada uma de suas ovelhas desde toda a eternidade. Criadas para o deleite eterno das bem-aventuranças, redimidas pelo sacrifício do calvário e alimentadas pela sagrada eucaristia, Jesus acolhe as suas ovelhas com doçura extrema e infinita misericórdia.

E Jesus, plasmado pelo amor divino, conhece cada uma das suas ovelhas pelo nome. Nada, nem coisa, nem homem, nem demônio algum, poderá nos apartar do amor de Deus. Porque este amor, sendo infinito, extrapola a nossa condição humana e assume dimensões imensuráveis. Ainda que todos os homens perecessem e a humanidade inteira ficasse reduzida a um único homem, Deus não poderia amá-lo mais do que já o ama agora, porque todos nós fomos criados, por um ato sublime e extraordinariamente particular da Sua Santa Vontade, como herdeiros dos céus e para a glória de Deus: 'Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas. A Ele a glória por toda a eternidade!' (Rm 11, 36).

Jesus toma sobre os ombros a ovelha de sua predileção, cada um de nós, a humanidade inteira, para a conduzir com segurança às fontes da água da vida (Ap 7, 17), onde Deus enxugará as lágrimas dos nossos olhos. E nos mostra o caminho: 'Eu sou a porta. Quem entrar por mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem' (Jo 1, 9). Somos chamados a uma vida de predileção na Casa do Pai, que homem algum jamais pôde sequer imaginar o que poderia ser viver a eternidade na glória de Deus: 'Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância' (Jo 1, 10).

Reconhecer-nos como ovelhas do rebanho do Bom Pastor é manifestar em plenitude a nossa fé e esperança em Jesus Cristo, Deus Único e Verdadeiro, cuja bondade perdura para sempre e cujo amor é fiel eternamente (Sl 99,5). Como ovelhas do Bom Pastor, não nos basta ouvir somente a voz da salvação; é preciso segui-Lo em meio às provações da nossa humanidade corrompida, confiantes e perseverantes na fé, até o dia dos tempos em que estaremos abrigados eternamente na tenda do Pai, lavados e alvejados no sangue do Cordeiro (Ap 7, 14b).

sábado, 29 de abril de 2023

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LV)

Capítulo LV

Auxílio às Santas Almas - A Santa Missa - Padre Gerard e as Três Conversões - As Trintas Missas de São Gregório

Vamos agora considerar os efeitos sobrenaturais da Missa de uma outra forma, mas que provam não menos claramente a eficácia do Santo Sacrifício quando oferecido pelos defuntos. Nós os encontramos nas Memórias do Padre Gerard, um jesuíta inglês e confessor da fé durante as perseguições religiosas na Inglaterra no século XVI. 

Depois de relatar como recebeu a abjuração de um cavalheiro protestante, casado com uma de suas primas, padre Gerard acrescenta: 'Esta conversão levou a outra nas circunstâncias mais extraordinárias. Meu novo convertido foi ver um de seus amigos que estava gravemente doente. Este era um homem justo, detido na heresia mais por ilusão do que por qualquer outro motivo. O visitante exortou-o com urgência a se converter e a pensar em sua alma; e obteve dele a promessa de que faria a sua confissão. Neste sentido, instruiu-o em tudo e o ensinou a se preparar na contrição dos seus pecados, enquanto foi procurar um padre. Mas ele teve grande dificuldade em encontrar um, e nesse ínterim o doente morreu. Quando estava prestes a expirar, o pobre moribundo perguntava frequentemente se o amigo ainda não havia voltado com o 'médico' que ele havia prometido trazer; era assim que ele chamava o padre católico.

O que se seguiu mostrou que Deus aceitou a boa fé do falecido. Nas noites seguintes à sua morte, sua esposa, protestante, viu uma luz movendo-se em seu quarto e até passando através das cortinas de sua cama. Com medo, ela chamou uma de suas criadas para dormir com ela no quarto, mas esta não via nada, embora a luz continuasse visível aos olhos de sua senhora. A pobre senhora mandou chamar então o amigo cujo regresso o marido tanto esperara, contou-lhe o sucedido e perguntou o que devia ser feito. Este amigo, antes de dar uma resposta, consultou um padre católico. O padre lhe disse que a luz era, para a esposa do falecido, um sinal sobrenatural pelo qual Deus a convidava a retornar à Verdadeira Fé. A senhora ficou profundamente impressionada com essas palavras e abriu então o seu coração à graça e, por sua vez, foi convertida.

Uma vez convertida, mandou celebrar a missa em seu quarto por algum tempo, mas a luz sempre voltava. O padre, considerando essas circunstâncias diante de Deus, refletiu que o falecido, embora salvo por seu arrependimento acompanhado pelo desejo de confissão, estava no purgatório e, portanto, precisava de orações. Aconselhou à sua senhora que mandasse rezar missa pela alma dele durante trinta dias, segundo um antigo costume dos católicos ingleses. A boa viúva seguiu este conselho e, no trigésimo dia, em vez de uma luz, viu três, sendo que duas delas pareciam apoiar a terceira. As três luzes pairaram sobre a sua cama, depois elevaram-se até o teto e desapareceram, para nunca mais voltar. Essas três luzes parecem ter significado as três conversões e a eficácia do Santo Sacrifício da Missa para abrir o Céu às almas que partiram'.

As trinta missas que eram rezadas por trinta dias consecutivos não é um costume apenas inglês, como é chamado pelo padre Gerard, mas também é amplamente difundido na Itália e em outros países cristãos. Essas missas são chamadas as Trinta Missas de São Gregório, porque o piedoso costume parece remontar a este grande papa. Assim é relatado em seus Diálogos (Livro 4, cap. 40): Um religioso, chamado Justus, havia recebido e guardado para si três moedas de ouro. Esta foi uma falta grave contra seu voto de pobreza. Ele foi descoberto e excomungado. Esta pena salutar o fez entrar em si mesmo e, algum tempo depois, morreu com verdadeiros sentimentos de arrependimento. No entanto, São Gregório, para inspirar aos irmãos um vivo horror ao pecado da avareza em um religioso, não retirou a sentença de excomunhão. Justus foi enterrado separado dos outros monges e as três moedas foram jogadas na sepultura, enquanto os religiosos repetiam todos juntos as palavras de São Pedro a Simão, o Mago: Pecunia tua tecum sit in perditionem – Pereça contigo o teu dinheiro! (At 8,20).

Algum tempo depois, o santo Abade, julgando que o escândalo estava suficientemente reparado e movido de compaixão pela alma de Justus, chamou o sacristão [monge responsável pelos serviços religiosos do mosteiro] e disse-lhe com tristeza: 'Desde o momento de sua morte, nosso irmão é torturado pelas chamas do Purgatório; devemos por meio da caridade fazer um esforço para libertá-lo. Vá, então, e cuide para que, de agora em diante, o Santo Sacrifício seja oferecido em sua intenção por trinta dias; não deixe passar uma manhã sem que a Vítima da Salvação seja oferecida para a sua libertação'. O sacristão obedeceu prontamente. As trinta missas foram celebradas ao longo de trinta dias consecutivos. Quando chegou o trigésimo dia e terminou a trigésima missa, o defunto apareceu a um irmão chamado Copiosus, dizendo: 'Bendito seja Deus, meu querido irmão, hoje fui libertado e admitido na sociedade dos santos'. Desde então estabeleceu-se este piedoso costume de celebrar trinta missas em intenção das almas dos defuntos.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

28 DE ABRIL - SÃO LUÍS DE MONTFORT

   

Missionário do Espírito Santo e da Virgem Santíssima, São Luís Maria Grignion de Montfort foi o portador da graça divina de uma mensagem de transcendência extraordinária: a necessidade de uma devoção ardente à Mãe de Deus e do conhecimento da missão ímpar de Nossa Senhora no Segundo Advento do seu Filho.

Nasceu em 31 de janeiro de 1637 em Montfort (França), sendo ordenado sacerdote em 1700. Em 1706, foi recebido pelo Papa Clemente XI que, confirmando a sua vocação missionária, outorgou-lhe o título de 'Missionário Apostólico'. Nesta missão, combateu duramente a doutrina jansenista na França, que, crendo na predestinação, apresentava um Deus tirânico e sem misericórdia.

Fundou três instituições religiosas: a Companhia de Maria (congregação de sacerdotes missionários), as Filhas da Sabedoria (freiras dedicadas à assistência aos doentes nos hospitais e à instrução de meninas pobres) e os Irmãos de São Gabriel (congregação de leigos voltados para o ensino). Escreveu várias obras, dentre elas o 'Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem', referência básica da mariologia cristã. Morreu em 28 de abril de 1716, aos 43 anos e apenas 16 anos como sacerdote, em Saint-Laurent-sur-Sèvre (França). Foi beatificado em 1888 e canonizado em 1947, pelo Papa Pio XII.

quinta-feira, 27 de abril de 2023

SERMÕES DO CURA D'ARS (IX)

 SOBRE O MALDITO RESPEITO HUMANO (II)

II – Mas agora comecemos de outra maneira. Diga-me amigo, porque zombas dos que fazem profissão de piedade ou, para que o entendas melhor, dos que gastam mais tempo do que tu na oração, dos que frequentam de maneira mais assídua do que tu os sacramentos, dos que fogem dos aplausos do mundo? Uma de três, meus filhos: ou considerais estas pessoas como hipócritas, ou zombais da piedade em si ou, enfim, que lhe causais nojo ver que eles valem mais do que vós.

(i) Para chamá-los de hipócritas, seria preciso que houvésseis lido o seu coração e estivésseis plenamente convencidos de que toda a sua devoção é falsa. Pois bem, meus filhos, não parece natural, quando vemos uma pessoa fazer alguma boa obra, pensar que o seu coração é bom e sincero? Sendo assim, vede quão ridículos resultam vossa linguagem e vossos juízos. Vês em vosso próximo um exterior bom e dizeis ou pensais que seu interior nada vale. Se lhe mostram um fruto bom; indubitavelmente pensais que a árvore de onde ele veio é de boa qualidade e formais dele um bom juízo. Por outro lado, tratando-se de julgar as pessoas de bem, dizeis o contrário: o fruto é bom, mas a árvore que o deu não vale nada. Não, meus filhos, não, não sois tão cegos nem tão insensatos para disparatar desta maneira.

(ii) Digo, em segundo lugar, que zombais da piedade em si, mas me engano; não zombais de tal pessoa porque as suas orações são longas, frequentes ou feitas com reverência. Não, não é isto, porque também vós orais (pelo menos, se não o fazeis, faltais a um de vossos primeiros deveres). É acaso porque ela frequenta os sacramentos? Mas tampouco vós haveis passado o tempo da vossa vista sem aproximar-vos dos santos sacramentos; se os tem visto no tribunal da penitência, se os tem visto aproximar-se à sagrada mesa. Não desprezais, pois, a tal pessoa porque cumpre melhor que vós os seus deveres de religião, estando perfeitamente convencidos do perigo em que estamos de nos perdermos e, por conseguinte, da necessidade que temos de recorrer constantemente à oração e aos sacramentos para perseverar na graça do Senhor, e sabendo que depois deste mundo nenhum recurso resta: bem ou mal, forçoso será permanecer na sorte que, ao sair dele, nos espera toda a eternidade.

(iii) Não, meus filhos, nada disto é o que nos enoja na pessoa de nosso próximo. É que, não tendo a coragem de imitá-lo, não queremos sofrer a vergonha de nossa frouxidão; antes queremos arrastar-nos a seguir nossas desordens e nossa vida indiferente. Quantas vezes nos permitimos dizer: para que servem tanta dissimulação, estar tanto tempo na igreja, madrugar tanto para ir até lá e outras coisas do tipo? Meus filhos! È que a vida das pessoas seriamente piedosas é a condenação de nossa vida frouxa e indiferente.

Bem fácil é compreender que sua humildade e o desprezo que elas têm de si mesmas condena nossas vidas orgulhosas, que nada sabem sofrer, pois quer a estima e o louvor de todos. Não há dúvida de que sua doçura e sua bondade para com todos, condena as nossas impetuosidades e nossa cólera; é coisa certa que sua modéstia, sua circunspecção em toda a sua conduta condena a nossa vida mundana e cheia de escândalos. Não é realmente só isso o que nos molesta na pessoa de nossos próximos? Não é isto o que nos enfada quando ouvimos falar bem dos demais e anunciar suas boas obras? Sim, não há dúvida de que sua devoção, seu respeito à Igreja nos condena e contrasta com nossa salvação.

Da mesma maneira que nos sentimos naturalmente inclinados a escusar nos demais os defeitos que há em nós mesmos, somos propensos a desaprovar neles as virtudes que não temos a coragem de praticar. Assim estamos vivendo todos os dias. Um libertino se alegra de achar outro libertino que lhe aplauda em suas desordens; longe de desaconselhá-lo, lhe alenta a prosseguir nelas. Um vingativo se compraz na companhia de outro vingativo, para que se aconselhem mutuamente, a fim de achar o meio de vingar-se dos seus inimigos.

Mas ponha uma pessoa regrada em companhia de um libertino, uma pessoa sempre disposta a perdoar com outra vingativa; vereis como em seguida os malvados se desenfreiam contra os bons e se lhes caem em cima. E porque isto, meus filhos, senão porque, não tendo a virtude de obrar como eles, queriam poder arrastá-los para o seu lado, a fim de que a vida santa que estes levam não seja uma contínua censura às suas próprias vidas? Mas, se quereis compreender a cegueira dos que zombam das pessoas que cumprem melhor do que eles seus deveres cristãos, escuta-me um momento.

Que pensarias de um pobre que tivesse inveja de um rico, se ele não fosse rico senão porque não quer sê-lo? Não lhe dirias: amigo, por que hás de dizer mal desta pessoa por causa da sua riqueza? De ti somente depende ser tão rico como ela, e ainda mais se quiseres, pois, de igual maneira, meus filhos, por que nos permitimos vituperar aos que levam uma vida mais regrada do que a nossa? Somente de nós depende ser como eles e ainda melhores. O fato de que os outros praticam a religião com mais fidelidade que nós, não nos impede de sermos tão honestos e perfeitos como eles, e mais, todavia, se quisermos sê-lo.

Digo, em terceiro lugar, que as pessoas sem religião tendem a desprezar a quem faz profissão dela; mas engano-me: não é que os desprezem, apenas aparentam, pois em seus corações os têm em grande estima. Quereis uma prova disso? A quem recorrerá uma pessoa, ainda que não tenha piedade, para achar algum consolo em suas penas, algum alívio em sua tristeza e dores? Crê que irá buscá-lo em outra pessoa como ela? Não, meus amigos, não. Conhece muito bem que uma pessoa sem religião não pode consolar-lhe e dar-lhe bons conselhos. Irá aos mesmos de quem antes zombava. Fartamente convencido está de que somente uma pessoa prudente, honesta e temerosa de Deus pode consolá-lo e dar-lhe algum alívio em suas penas.

Quantas vezes, de fato, filhos meus, achando-nos agoniados pela tristeza ou por qualquer outra miséria, temos acudido a alguma pessoa prudente e boa e, ao cabo de um quarto de hora de conversação, nos temos sentido totalmente mudados e nos retiramos dizendo: 'Que ditosos são os que amam a Deus e também os que vivem ao seu lado'. Eis que eu me entristecia, não fazia mais que chorar, me desesperava; e, com uns momentos na companhia desta pessoa, me tenho sentido totalmente consolado. Bem certo é quanto ela me tem dito: que o Senhor não tem permitido isto senão para o meu bem, e que todos os santos e santas haviam passado penas maiores, e que mais vale sofrer neste mundo que no outro. E assim acabam por dizer: 'quando se me apresentar outra pena, não demorarei em acudir-me a ele de novo me busca de consolação'. Ó santa e formosa religião! Quão felizes são os que te praticam sem reservas, e quão grandes e preciosos são os conselhos e doçuras que nos proporcionas!

Vês, pois, meus filhos, que zombais de quem não merecem. Que deveis, pelo contrário, estar infinitamente agradecidos a Deus por ter entre vós algumas almas boas que sabem aplacar a cólera do Senhor, sem o qual pronto seríamos esmagados por sua justiça. Se pensais bem, uma pessoa que faz bem as suas orações, que não busca senão agradar a Deus, que se compraz em servir ao próximo, que sabe desprender-se até mesmo do necessário para ajudar-lhe, que perdoa de bom grado aos que lhes fazem alguma injúria, não podes dizer, que se porte mal, antes ao contrário. Tal pessoa não é senão muito digna de ser louvada e estimada por toda a gente.

Sem dúvida, a esta pessoa é a quem criticais; mas, não é verdade que ao fazê-lo, não pensais no que dizes? É certo, os diz vossa consciência; ela é mais feliz que nós. Ouve amigo meu, escuta-me, e eu te direi o que deves fazer: bem longe de vituperar desta classe de pessoas e zombar-te delas, hás de fazer todos os esforços possíveis por imitá-las, unir-te todas as manhãs às suas orações e a todos os atos de piedade que elas façam durante o dia. Mas direis para fazer o que elas fazem é necessário violentar-se e sacrificar-se demasiadamente. Custa muito trabalho! Não tanto como quereis vós supor, meus filhos. Tanto custa fazer bem as orações da manhã e da noite? Tão difícil é escutar a palavra de Deus com respeito, pedindo ao Senhor a graça de aproveitá-la? Tanto se necessita para não sair da Igreja durante as instruções? Para abster-se de trabalhar aos domingos? Para não comer carne nos dias proibidos e desprezar aos mundanos empenhados em perder-se?

Se é que temeis que os chegue a faltar à coragem dirigi vossos olhos à Cruz donde morreu Jesus Cristo e vereis como não vos faltará alento. Olhai as multidões de mártires, que sofreram dores que vós não podeis compreender, por temor de perderem as suas almas. Concluamos meus filhos, dizendo: 'Quão poucas são as pessoas que verdadeiramente servem a Deus!' Uns ocupam-se de destruir a religião, se fosse possível, com a força das suas armas, como os reis e imperadores pagãos; outros com os seus escritos ímpios querem desonrá-la e destruí-la se pudessem; outros zombam dela nos que a praticam; outros, enfim, sentem desejo de praticá-la, mas têm medo de fazê-lo diante do mundo.

Ai! Meus filhos! Quão pequeno é o número dos que andam pelo caminho do céu, pois só contam nele os que, contínua e valorosamente, combatem ao demônio e as suas sugestões, e desprezam ao mundo com todos os seus enganos! Posto que esperamos nossa recompensa e nossa felicidade somente em Deus, por que, meus filhos, amar ao mundo, havendo prometido com juramento aborrecê-lo e desprezá-lo para não seguir a não ser Jesus Cristo, levando a nossa cruz todos os dias de nossa vida? Feliz, meus filhos, aquele que não busca senão a Deus e despreza todo o resto. Isto chama-se felicidade...

quarta-feira, 26 de abril de 2023

SERMÕES DO CURA D'ARS (VIII)

SOBRE O MALDITO RESPEITO HUMANO (I)

Nada mais glorioso e honroso para um cristão do que ostentar o nome sublime de filho de Deus, de irmão de Jesus Cristo. Mas, ao mesmo tempo, nada mais infame que envergonhar-se de ostentá-lo cada vez que se apresente ocasião para isso. Não, não vos maravilheis ao ver homens hipócritas, que fingem o quanto podem um exterior de piedade para atrair a estima e os aplausos dos demais, enquanto que seu pobre coração se acha devorado pelos mais infames pecados. Querem, estes cegos, gozar das honras inseparáveis da virtude, sem ter o incômodo de praticá-las.
Mas, maravilhemo-nos ainda menos ao ver a outros, bons cristãos, ocultarem, enquanto podem as suas boas obras aos olhos do mundo, temerosos de que a vanglória se insinue em seus corações e de que os vãos aplausos dos homens lhes façam perder o mérito e a recompensa delas. Mas, onde encontrar, meus irmãos, covardia mais criminosa e abominação mais detestável que a nossa, que, professando crer em Jesus Cristo, estando obrigados pelos mais sagrados juramentos a seguir as suas pisadas, a defender os seus interesses e a sua glória, ainda que à custa de nossa própria vida, somos tão vis, que, na primeira ocasião, violamos as promessas que lhe fizemos nas sagradas fontes batismais? Ah infelizes! Que fazemos? Quem é Aquele a quem renegamos?

Abandonamos o nosso Deus, o nosso Salvador, para nos tornamos escravos do demônio, que nos engana e não busca outra coisa senão a nossa ruína e nossa eterna infelicidade. Malditos respeitos humanos, que arrastam as almas ao inferno. Para melhor fazê-los ver a sua baixeza, mostrar-vos-ei: (i) o quanto ofende a Deus o respeito humano, ou seja, a vergonha de fazer o bem; (ii) quão débil e mesquinho de espírito, revela ser aquele que o comete.

I – Não nos ocupemos, meus irmãos, daquela primeira classe de ímpios que empregam o seu tempo, a sua ciência e a sua miserável vida em destruir, se pudessem, a nossa santa religião. Estes desgraçados parecem não viver senão para tornar insignificantes os sofrimentos e os méritos da morte e paixão de Jesus Cristo. Têm empregado uns a sua força, outros a sua ciência, para quebrar a pedra sobre a qual Jesus Cristo edificou a sua Igreja, que é a nossa santa religião, a qual subsistirá a despeito de todos os seus esforços.

Com efeito, meus irmãos, no que resultou toda a fúria dos perseguidores da Igreja, dos Neros, dos Maximinianos, dos Dioclecianos, de tantos outros que julgaram fazê-la desaparecer da terra com a força das suas armas? Sucedeu exatamente o contrário: o sangue de tantos mártires, como disse Tertuliano, apenas serviu para fazer florescer ainda mais a religião; aquele sangue era uma semente de cristãos, que produzia a cem por um. Desgraçados! O que vos fez esta santa e nobre religião para que assim a persigais, quando apenas ela pode fazer o homem feliz aqui na terra? Ai! Como choram e gemem agora nos infernos, onde conhecem claramente que esta religião, contra a qual se desenfrearam, poderia ter-lhes levado ao Paraíso! Mas, vãos e inúteis lamentos!

Olhai igualmente a esses outros ímpios que fizeram o quanto esteve nas suas mãos para destruir nossa santa religião com os seus escritos, um Voltaire, um Rousseau, um Diderot, um D’Alembert, um Volney e tantos outros que passaram a vida vomitando com os seus escritos quanto podia inspirar-lhes o demônio. Ai! Muito mal fizeram, é verdade; muitas almas perderam, arrastando-as consigo ao inferno; mas não puderam destruir a religião como pensavam. Longe de quebrar a pedra sobre a qual Jesus Cristo edificou a sua Igreja, que há de durar até o fim do mundo, chocaram contra ela. Onde estão agora estes desventurados ímpios? No inferno onde choram a sua desgraça e a de todos aqueles que consigo arrastaram. Nada digamos tampouco, irmãos, de outra classe de ímpios que, sem se manifestarem abertamente inimigos da religião, da qual conservam, todavia algumas práticas externas, se permitem, não obstante, certos gracejos, sobre a virtude ou piedade daqueles a quem não se sentem com ânimo de imitar. 

... Mas onde estão – me direis – os que se fazem culpáveis de respeitos humanos? Atentai-me um instante, meus filhos, e já saberão. Prontamente vos direi com São Bernardo que por qualquer ângulo que se olhe o respeito humano, que é a vergonha de cumprir os deveres da religião por causa do mundo, em tudo revela ele, menosprezo de Deus, das suas graças e cegueira da alma. Digo, em primeiro lugar, meus filhos, que a vergonha de praticar o bem, por medo do desprezo e dos escárnios de alguns ímpios miseráveis ou de alguns ignorantes, é um assombroso menosprezo que fazemos da presença de Deus, ante a qual, estamos sempre e que no mesmo instante poderia lançar-nos no inferno. E por que motivo, meus filhos, esses maus cristãos zombam de vós e ridicularizam a vossa devoção? Ah! Meus filhos! Eu vos direi a verdadeira causa: é que, não tendo virtude para fazer o que vós fazeis, lhes têm aversão, porque com a vossa conduta, despertais remorsos nas suas consciências; mas estais bem seguros de que os seus corações, longe de vos desprezar, vos têm em grande estima. Se eles têm necessidade de um bom conselho ou de alcançar de Deus alguma graça, não creiais que procuram os que se portam como eles, mas sim àqueles mesmos de quem zombaram, pelo menos com palavras.

Envergonhas-te, amigo, de servir a Deus, por temor de ver-te desprezado? Olha Àquele que morreu nesta cruz; pergunta-lhe se se envergonhou de ser desprezado, e de morrer da maneira mais humilhante naquele infame patíbulo. Que ingratos somos para com Deus, que parece achar sua glória em fazer publicar de século em século que nos têm escolhido por filhos seus! Ó Deus meu! Que cego e desprezível é o homem que teme um miserável 'que dirão?' e não teme ofender a um Deus tão bom! Digo, além disso, que o respeito humano nos faz desprezar todas as graças que o Senhor nos mereceu com sua paixão e morte. Sim, filhos meus, pelo respeito humano inutilizamos todas as graças que Deus tem destinado para salvar-nos. Maldito respeito humano, que às almas arrasta ao inferno!

Em segundo lugar, digo que o respeito humano encerra a cegueira mais deplorável. Não detemos a atenção no que perdemos. Filhos meus! Que desgraça para nós! Perdemos a Deus, ao qual nenhuma coisa poderá jamais substituir. Perdemos o Céu, com todos os seus bens e delícias. Mas há ainda outra desgraça, é que tomamos o demônio por pai e ao inferno com todos os seus tormentos por nossa herança e recompensa. Trocamos as nossas doçuras e gozos eternos em penas e lágrimas. Amigo, em que pensas? Como terás que arrepender-se por toda a eternidade! Meu Deus! Podemos pensar nisso e ainda assim vivermos escravos do mundo?

É verdade – me direis – que quem por temor ao mundo não cumpre os seus deveres de religião é bem desgraçado, posto que nos diz o Senhor que a quem se envergonhar de servi-lo diante dos homens, Ele envergonhar-se-á de reconhecê-lo diante do seu Pai no dia do juízo (cf Mt 10,33). Deus meu! Temer ao mundo; e por quê? Sabendo como sabemos que é absolutamente necessário ser desprezado pelo mundo para agradar a Deus. Se temias ao mundo, não devias haver-te feito cristão. Sabias bem que nas sagradas águas do batismo fazias juramento na presença do próprio Jesus Cristo; que renunciavas ao mundo e ao demônio; que te obrigavas a seguir a Jesus Cristo levando a sua cruz, coberto de opróbrios e desprezos. Temes ao mundo? Pois bem, renuncia ao teu batismo e entrega-te a esse mundo, ao qual temes tanto desagradar.

Mas quando é – me direis – que agimos nós por respeito humano? Escuta bem, meu amigo. É um dia em que, estando na feira, ou em uma casa onde se come carne em dia proibido, se te convidam a comê-la também, e tu contentando-te em baixar os olhos e ruborizar-te em vez de dizer que és cristão e que tua religião te proíbe, a come com os demais, dizendo: 'Se não faço como eles, debocharão de mim' – Debocharão de ti amigo? Ah! Tens razão; e é uma verdadeira lástima! É que faria, ainda muito mais mal, sendo a causa de todos os disparates que diriam contra a religião, que o que faço comendo carne – como assim? – farias ainda mais mal? Parece-te bem que os mártires, por temor das blasfêmias e juramentos dos seus perseguidores, houvesse todos, renunciado à sua religião? Se outros agem mal, tanto pior para eles. Diga-se melhor, não é bastante que outros desgraçados crucifiquem a Jesus com sua má conduta, para que tu também te juntes a eles para fazer sofrer ainda mais a Jesus Cristo? Temes que zombem de ti? Infeliz! Olha a Jesus Cristo na cruz, e verás o quanto por ti Ele tem feito.

De modo que, não sabes tu quando negas a Jesus Cristo? É um dia em que, estando em companhia de duas ou três pessoas, parece que caíram as suas mãos, ou que não sabes fazer o sinal da cruz, e olhas se tem os olhos fixos em ti, e te contentas em dizer a sua bênção e ação de graças na mesa mentalmente, ou te retiras a um canto para dizê-las. É quando, ao passar diante de uma cruz, te fazes de distraído, ou dizes que não foi por nós que Deus morreu nela. Não sabes tu quando tens respeitos humanos? É um dia em que, achando-te em um lugar onde se dizem obscenidades contra a santa virtude da pureza ou contra a religião, não tens coragem para repreender aos que assim falam, antes ]ao contrário, por temor de suas gozações, tu sorris. É que não há – dizes – outro remédio, se não quero ser objeto de contínua zombaria. Temes que zombem de ti? Por este mesmo temor negou São Pedro ao divino Mestre; mas o temor não lhe livrou de cometer um grande pecado, que chorou em seguida toda a sua vida.

Não sabes tu quando tens respeito humano? É quando o Senhor te inspira o pensamento de ir confessar-te, e sentes que tens necessidade disso, mas pensas que zombariam de ti chamando-o de devoto. É quando te vem o pensamento de assistir a santa Missa durante a semana, e nada te impede de ir; mas dizes a ti mesmo que zombariam de ti e que diriam: 'Isto é bom para quem nada tem a fazer, para os que vivem de renda'. Quantas vezes este maldito respeito humano te tem impedido de assistir ao catecismo e à oração da tarde! Quanta vez, estando em tua casa, ocupado em algumas orações e leituras, tens te escondido por vergonha ao ver que alguém chegava! Quantas vezes, estes respeitos humanos te tem feito quebrar a lei do jejum ou da abstinência por não atrever-te a dizer que jejuavas ou comias de vigília! Quantas vezes deixas, de dizer o Angelus diante das pessoas ou te tens contentado em dizê-lo para ti, ou tens saído do local donde estavas com outros para dizê-lo fora!

... Ai! Meus filhos! A companhia dos perversos leva-nos a agir mal. Quantos pecados não evitaríamos se tivéssemos a felicidade de apartar-nos de pessoas sem religião! Refere Santo Agostinho que, muitas vezes, achando-se entre pessoas perversas, sentia vergonha de não igualá-las na maldade e, para não ser tido por menos, ainda se gloriava do mal que não havia cometido. Pobre cego! Quão digno és de lástima! Que triste vida! Maldito respeito humano! Quantas almas arrastas ao inferno! De quantos crimes és a causa! Quão culpável é o desprezo das graças que Deus nos quer conceder para salvar-nos. Quantos e quantos tem começado o caminho da sua reprovação pelo respeito humano, porque, à medida que iam desprezando as graças que Deus lhes concedia, a fé ia se amortecendo em suas almas; e pouco a pouco iam sentindo menos a gravidade do pecado, a perda do céu, as ofensas, que pecando faziam a Deus. Assim acabaram por cair em uma completa paralisia, ou seja, por não dar-se conta do infeliz estado da sua alma; dormiram no pecado e a maior parte morreu nele.

No Sagrado Evangelho lemos que Jesus Cristo nas suas missões cumulava de toda a sorte de graças os lugares por onde passava. Uma vez era um cego, a quem devolvia a vista; um surdo a quem devolvia a audição, um leproso a quem curava de sua lepra, mais além um defunto, a quem restituía a vida. Contudo, vemos que eram muito poucos os que anunciavam os benefícios que acabavam de receber. E por que isto meus filhos? É que temiam os judeus, por que não se podia ser amigo dos judeus e de Jesus.

E assim, quando se achavam com os judeus, pareciam aprová-los com o seu silêncio. Eis aqui precisamente o que nós fazemos: quando nos achamos a sós, ao refletirmos sobre todos os benefícios que temos recebido do Senhor não podemos senão ratificar a Deus o nosso reconhecimento por havermos nascidos cristãos, por havermos sido confirmados; mas quando estamos com os libertinos, parece que compartilhamos dos seus sentimentos, aplaudindo com nossos sorrisos ou nosso silêncio suas impiedades. Que indigna preferência, exclama São Máximo! Maldito respeito humano, que arrastas almas ao inferno! Que tormento não passará, meus filhos, uma pessoa que assim quer viver e agradar a dois contrários!

Temos disso um eloquente exemplo no Evangelho. Lemos ali que o rei Herodes se havia enredado em um amor criminoso com Herodíades. Tinha esta infame cortesã uma filha que dançou diante dele com tanta graça que lhe prometeu o rei quanto ela lhe pedisse, ainda que fosse a metade de seu reino. Absteve-se bem a infeliz de pedi-lo, porque não era bastante; foi-se a encontrar com a sua mãe para tomar conselho sobre o que devia pedir ao rei, e a mãe mais infame que sua filha, apresentando-lhe uma bandeja, lhe disse: 'Vá e pede que ponha neste prato a cabeça de João Batista, para trazê-la'. Fez isso para vingar-se, por haver-lhe João Baptista jogado na sua cara a sua má vida. Ficou o rei surpreendido de espanto ante este pedido; pois por um lado apreciava a São João Batista, e lhe pesava a morte de um homem tão digno de viver. Que iria fazer? Que partido iria tomar? Maldito respeito humano, o que decidirás? Herodes não quisera decretar a morte de João Batista; mas por outro lado, teme que zombem dele, porque, sendo rei, não manteve sua palavra. Vê, diz por fim o infeliz a um dos verdugos, vai e corta a cabeça de João Batista; prefiro deixar que grite minha consciência, a que zombem de mim. Mas que horror! Ao aparecer a cabeça na sala, os olhos e a boca, ainda que fechados, pareciam reprovar o seu crime e ameaçá-lo com os mais terríveis castigos. Diante a sua vista, Herodes empalidece e se estremece. Aquele que se deixa guiar pelo respeito humano é bem digno de lástima.

È verdade, que os respeitos humanos não nos impede de fazer algumas boas obras. Mas quantas vezes, nas mesmas boas obras, nos fazem perder os méritos, que não faríamos se não esperássemos ser por elas louvados e estimados pelo mundo! Quantos não vêm à igreja, senão por respeitos humanos, pensando que, desde o momento em que uma pessoa não pratica a religião, pelo menos exteriormente, não se tem confiança nela, pois como se costuma dizer: 'Onde não há religião, tampouco há consciência!'. Quantas mães que parecem ter muito cuidado com seus filhos, o fazem somente para serem estimadas aos olhos do mundo! Quantos que se reconciliam com os seus inimigos apenas para não perder a estima das pessoas! Quantos que não seriam tão corretos, se não soubessem que sem isso perderiam o louvor mundano! Quantos que são mais reservados na igreja por causa do mundo! Maldito respeito humano, que com as suas boas obras feitas em vão, ao invés de conduzir muitos cristãos ao céu, nada fazem senão empurrá-los ao inferno!

... Por outro lado, não nos tem dito Jesus Cristo: Bem aventurados os que são desprezados e perseguidos? E quem são os que os desprezam? São alguns pecadores infelizes, que, não tendo o valor de fazer o que vós fazeis, para dissimular sua vergonha queriam que obrásseis como eles; algum pobre cego que, bem longe de desprezá-los, deveria passar a vida chorando sua infelicidade. Suas zombarias demonstram o quão são dignos de lástima e de compaixão. São como uma pessoa que tem perdido o juízo, que corre pelos bosques, se arrasta pela terra ou se atira aos precipícios, gritando aos demais que façam o mesmo; grite o quanto quiser, deixai-o fazer, e compadecei-vos, porque não conhece a sua desgraça. Da mesma forma meus filhos, deixemos a esses pobres infelizes que gritem e zombem dos bons cristãos; deixemos a esses insensatos em sua demência; deixemos a esses cegos em suas trevas; escutemos os gritos e gemidos dos réprobos; mas nada temamos, sigamos nosso caminho; fazem mal a si mesmos e não a nós; tenhamos compaixão, e não nos separemos de nossa linha de conduta.

Sabeis por que zombam de vós? Porque veem que têm medo e que pela menor coisa se envergonham. Não é de vossa piedade que eles zombam, mas sim de vossa inconstância, e de vossa frouxidão em seguir ao vosso capitão. Tomai o exemplo dos mundanos; olhai com que audácia eles seguem aos seus. Não vês como se orgulham de serem libertinos, bebedores, astutos, vingativos? Olhai a um impuro; envergonha-se por acaso de vomitar suas obscenidades diante das pessoas? E por que isto, meus filhos? Porque os mundanos se veem constrangidos a seguir o que amam, que é o mundo; não pensam nem se ocupam mais do que em agradar-lhe; por mais sofrimentos que lhes custem, nada é capaz de detê-los. Vede aqui, meus filhos, o que faríeis também vós se quisesse imitá-los. Não temerias ao mundo nem ao demônio; não buscarias nem quererias mais que o que possa agradar ao vosso Senhor, que é o próprio Deus. Há de se convir, que os mundanos, são muito mais constantes em todos os sacrifícios que fazem para agradar ao seu amo, que é o mundo, que nós em fazer o que devemos para agradar a nosso Senhor, que é Deus.

terça-feira, 25 de abril de 2023

OS TRÊS ARCANJOS DE DEUS


Que há anjos, muitas páginas da Sagrada Escritura o atestam. Mas é preciso saber que a palavra 'anjo' designa uma função: ser mensageiro. E chamamos 'arcanjos' aos que anunciam os grandes acontecimentos. Foi assim que o arcanjo Gabriel foi enviado à Virgem Maria; para este ministério, para anunciar o maior de todos os acontecimentos, impunha-se enviar um anjo da mais alta estirpe.

De igual forma, quando se tratou de manifestar um poder extraordinário, foi Miguel que foi enviado. Na verdade, a sua ação, tal como o seu nome que quer dizer 'Quem como Deus?', fazem compreender aos homens que ninguém pode realizar o que compete apenas a Deus. O antigo inimigo, que desejou por orgulho fazer-se semelhante a Deus, dizia: 'Eu escalarei os céus; erigirei o meu trono acima das estrelas; serei semelhante ao Altíssimo' (Is 14,13).

Mas o Apocalipse diz-nos que, no fim dos tempos, quando for abandonado à sua própria força, antes de ser eliminado pelo suplício final, ele terá de combater contra o arcanjo Miguel: 'Houve um combate nos céus: Miguel e os seus anjos combateram contra o Dragão. E também o Dragão combatia com os seus anjos; mas não venceu e foi precipitado no abismo' (Ap 12,7).

À Virgem Maria, foi então Gabriel, cujo nome significa 'Força de Deus', que foi enviado; não é verdade que ele vinha anunciar aquele que quis manifestar-se numa condição humilde, para triunfar do orgulho do demônio? Foi, pois, pela 'Força de Deus' que foi anunciado aquele que vinha como 'o Senhor dos exércitos, poderoso nos combates' (Sl 23,8).

Quanto ao arcanjo Rafael, o seu nome significa 'Deus cura'. Na verdade, foi ele quem livrou das trevas os olhos de Tobias, tocando-os como toca um médico vindo do céu (Tb 11,17). Aquele que foi enviado para cuidar o justo na sua enfermidade merece bem ser chamado 'Deus cura'.

(Excertos da obra 'Homilias sobre o Evangelho, de São Gregório Magno)´

segunda-feira, 24 de abril de 2023

DOUTORES DA IGREJA (IX)

 9São Tomás de Aquino, Presbítero (†1274)

Doutor Angélico

Concessão do título: 1568 - Papa Pio V

Celebração: 28 de janeiro (Memória Obrigatória)

 Obras e Escritos  

  • Summa Theologica - Suma Teológica
  • Summa contra Gentiles - Suma Contra os Gentios
  • Scriptum super libros Sententiarum - Comentários sobre as Sentenças de Pedro Lombardo
  • Catena Aurea [Glossa Contínua sobre os Evangelhos]
  • Compendium theologiae - Compêndio de Teologia
  • De ente et essentia - Sobre o Ente e a Essência
  • De substantiis separatis - Sobre as Substâncias Separadas
  • De principiis naturae - Dos princípios da Realidade Natural
  • De aeternitate mundi - Sobre a Eternidade do Mundo
  • De articulis fidei et Ecclesiae sacramentis - Dobre os Artigos de Fé e os Sacramentos da Igreja
  • De rationabus fidei 
  • De perfectione vitae spiritualis - Sobre a Perfeição da Vida Espiritual
  • Contra impugnantes Dei cultum et religionem - Contra os impugnadores ao culto e à religião de Deus
  • De unitate intellectus - Sobre a Unidade do Intelecto [Contra os Averroístas]
  • Contra errores Graecorum - Contra os Erros dos Gregos [para o papa Urbano IV]
  • Ad Bernardum - Para Bernardo [abade de Monte Cassino]
  • De regimine Judaeorum, ad Ducissam Brabantiae
  • De sortibus ad Dominum Jacobum de Tonengo 
  • De regno ad regem Cypri - Sobre o Reino [ao rei de Chipre]
  • De Motu Cordis - Sobre o Movimento do Coração
  • De mixtione elementorum - Da mistura dos Elementos
  • De iudiciis astrorum
  • De emptione et venditione ad tempus
  • Expositio in evangelicum s. Mattaei - Comentários sobre o Evangelho de São Mateus
  • Expositio in evangelium Joannis - Comentários sobre o Evangelho de São João
  • Expositio in Threnos Jeremiae prophetae - Comentários sobre Lamentações [Profeta Jeremias]
  • Expositio in Canticum Canticorum - Comentários sobre o Cântico dos Cânticos
  • Expositio in s. Pauli Epistolas - Comentários sobre as Epístolas de São Paulo
  • In Psalmos Davidis expositio - Comentários sobre os Salmos de Davi
  • Expositio in Isaiam prophetam - Comentários sobre o Profeta Isaías
  • Expositio in Job ad litteram - Comentários Literais sobre Jó
  • Expositio in Jeremiam prophetam - Comentários sobre o Profeta Jeremias
  • Expositio salutationis angelicae
  • Expositio in orationem dominican - Comentários sobre a Oração do Senhor
  • Expositio in Symbolum Apostolorum
  • De Secreto
  • De Divinis Moribus - Os Caminhos de Deus
  • Collationes in decem praeceptis - Explanações sobre os Dez Mandamentos
  • Comentários sobre as Obras de Aristóteles [sobre a Metafísica de Aristóteles, sobre 'A memória e a reminiscência'; sobre 'Da Sensação e do Sensível', sobre a 'Interpretação'; sobre as 'Éticas', sobre 'O céu e o Mundo'; sobre 'Da Geração e da Corrupção'...]
  • Comentários sobre Obras de Boécio ('Sobre a Trindade'; 'Sobre os Hebdômadas']
  • Expositio in Dionysium De divinis nominibus - Comentários sobre 'Sobre os Nomes Divinos', de Dionísio
  • Super librum De causis expositio - Comentários sobre 'O livro das Causas'
  • Quaestiones disputatae de immortalitate animae - Questões Disputadas sobre a Imortalidade da Alma
  • Quaestiones disputatae de unione Verbi incarnati - Questões Disputadas sobre a União do Verbo Encarnado
  • Quaestiones disputatae de spiritualibus creaturis - Questões Disputadas sobre as Criaturas Espirituais
  • Quaestiones disputatae de malo - Questões Disputadas sobre o Mal
  • Quaestiones disputatae de virtutibus - Questões Disputadas sobre as Virtudes
  • Quaestiones disputatae de Veritate - Questões Disputadas sobre a Verdade
  • Quaestiones disputatae de Anima - Questões Disputadas sobre a Alma
  • Quaestiones disputatae de potentia Dei - Questões Disputadas sobre o Poder de Deus)
  • Quaestiones de quodlibet I-XII
  • Hino: 'Adoro te'
  • Cartas e Comentários Diversos
  • Orações e Sermões
  • Outros Escritos [muitos ainda de comprovação dúbia ou de autenticidade não validada]

domingo, 23 de abril de 2023

EVANGELHO DO DOMINGO

   

'Vós me ensinais vosso caminho para a vida;
junto de Vós felicidade sem limites!(Sl 15)

Primeira Leitura (At 2,14.22-33) - Segunda Leitura (1Pd 1,17-21)  -  Evangelho (Lc 24,13-35)

 23/04/2023 - Terceiro Domingo da Páscoa 

22. NO CAMINHO PARA EMAÚS


No caminho para Emaús, cidadezinha distante pouco mais de 10km de Jerusalém, Jesus vai manifestar, mais uma vez, a glória da Ressurreição aos seus discípulos. Como que por acaso, Jesus os toma para si na longa caminhada, numa contemplação aparente de um mero convívio humano, nascido das circunstâncias de três peregrinos na mesma direção: 'quando eles iam conversando e discorrendo entre si, aproximou-se deles o próprio Jesus e caminhou com eles' (Lc 24,15). Não há nada de circunstancial ou de mera rotina neste encontro sobrenatural: tal grande manifestação da graça de Deus faz dele um evento singular e extraordinário.

E, de algum modo absolutamente sobrenatural, os discípulos não reconhecem Jesus, a exemplo daqueles que o encontraram às margens do mar de Tiberíades e também não o reconheceram a princípio (Jo 21,4). Movidos pelas emoções humanas, retratam a Paixão e Morte do Senhor àquele 'único peregrino em Jerusalém que não sabe o que lá aconteceu nestes últimos dias' (Lc 24,18). Eles se referiram ao Senhor como um profeta poderoso, muito provavelmente ciente dos riscos de serem denunciados e presos por proclamarem a um desconhecido a condição de serem discípulos dAquele que deveria libertar Israel, de acordo com as suas próprias motivações e perspectivas.

No caminho para Emaús, os dois discípulos expressam, num turbilhão de emoções, os sentimentos de angústia, tristeza, decepção, perturbação e esperança. E é esta esperança que vai torná-los testemunhas do amor. Jesus os repreende pela perturbação que se levanta como o pó da estrada; Jesus os orienta, por meio dos textos bíblicos, no caminho da santificação plena e no entendimento de toda Verdade de Deus. Jesus ilumina para sempre os seus corações, na tarde ensolarada que declina.

E, ficando com eles, o Senhor se vai, manifestando, mais uma vez, o mistério concreto da Santa Eucaristia como a permanência de Deus Vivo entre os homens: 'Quando se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles' (Lc 24, 30-31). Como os dois discípulos de Emaús, na Santa Eucaristia, nós reconhecemos e, mais do que reconhecer, nós ficamos com Jesus, na poeira das estradas do mundo, na certeza da caminhada rumo à eternidade com Deus.

sábado, 22 de abril de 2023

TESOURO DE EXEMPLOS (217/219)

 

217. ESCOLHEI!

Depois que Moisés explicou ao povo a Lei de Deus, concluiu assim: 'Filhos de Israel, eis que eu ponho hoje diante dos vossos olhos a benção e a maldição; a benção, se observardes os mandamentos de Deus; a maldição, se não obedeceres aos mandamentos do Senhor vosso Deus'. Escolhei! (Dt 11, 26-).

218. A MALDIÇÃO DE UMA MÃE

Antes da aurora foi Agostinho, o santo bispo de Hipona, despertado por uns gemidos e profundos soluços que vinham da rua. Dois homens seminus, de barba e cabelos compridos, sujos, fracos e famintos, tremiam convulsivamente diante da residência do bispo.
➖ Como vos chamais? - perguntou Agostinho.
➖ Paulo e Paládio, responderam sem cessar de chorar.
➖ Tranquilizai-vos, nós vamos ajudá-los.
➖ É impossível tranquilizar-nos. 

Vimos de Cesareia da Capadócia; em nossa família éramos sete irmãos e três irmãs. Ofendemos a nossa mãe viúva e ela nos amaldiçoou e a maldição penetrou em nossa carne, em nosso sangue, em nossos ossos. Livrai-nos, Santo de Deus, da maldição de nossa mãe. E se não o podeis, fazei-nos ao menos morrer.

Santo Agostinho rogou a Deus por eles e os curou. Se tanto pôde, naqueles filhos, a maldição de uma mãe terrena, qual não será terrível, irrevogável e final a maldição de Deus Pai ofendido por nossos pecados: Ite, maledicti, in ignem aeternum?

219. OS MORTOS ESTAVAM DE PÉ...

Quando, na grande guerra europeia, os bolcheviques entraram em Sebastopol, mataram muitas pessoas sem processo prévio algum. Levavam aos escolhos os condenados, atavam-lhes aos pés grandes pedras e os precipitavam ao mar.

Assim foi executado também um almirante; mas quando o atiraram ao mar, desconfiaram que levara consigo documentos importantes. Ordenaram a um escafandrista que fôsse buscar o cadáver. Desceu o homem, mas antes de tocar o fundo do mar, fez sinal para que o erguessem à superfície.

Voltou louco de terror e pronunciava palavras sem sentido. Curado após alguns dias, contou que, ao aproximar-se do fundo do mar, encontrou-se no meio de uma espantosa assembleia: todos os mortos estavam ali de pé e pareciam ir ao seu encontro ameaçando-o com vinganças terríveis. Era um fenômeno natural que, naquele momento, o escafandrista não soube explicar. Os cadáveres que há alguns dias estavam nas águas, que mitigavam a decomposição, tendiam a subir à superfície; mas não podiam pelo peso das pedras que tinham atadas aos pés.

Se a vista de alguns cadáveres, cambaleantes pelo impulso das correntes, fez desmaiar e enlouquecer de susto um homem habituado ao perigo, pensai o que será, então, quando os maus se encontrarem diante do Filho de Deus vivo, agitado pela ira terrível de sua inexorável justiça. Pois então não será mais o Cordeiro que tira os pecados, mas o Leão prestes a destroçar todos os seus inimigos.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

sexta-feira, 21 de abril de 2023

PALAVRAS DA SALVAÇÃO

'Mais tarde, quando se me tornou evidente o que era perfeição, compreendi que para se tornar santa era preciso sofrer muito, ir sempre atrás do mais perfeito e esquecer-se a si mesmo. Compreendi que na perfeição havia muitos graus e que cada alma era livre ao responder às solicitações de Nosso Senhor, no fazer muito ou pouco por Ele; numa palavra, em escolher entre os sacrifícios que Ele exige. Então, como nos dias de minha primeira infância, exclamei: 'Meu Deus, escolho tudo'. Não quero ser santa pela metade. Não me faz ter medo sofrer por vós, a única coisa que me dá receio é a de ficar com a minha vontade. Tomai-a vós, pois 'escolho tudo' o que vós quiserdes'.

(Santa Teresa de Lisieux)

quinta-feira, 20 de abril de 2023

BREVIÁRIO DIGITAL - LEGENDA ÁUREA (V)

Aproximando-se a feliz hora da morte do bem-aventurado Bernardo [São Bernardo de Claraval], ele disse aos seus irmãos: 'Deixo-lhes três observâncias que procurei seguir com dignidade ao longo da presente vida. Nunca quis escandalizar alguém, e se isso aconteceu algumas vezes, procurei ocultá-lo. Sempre dei mais crédito ao sentimento dos outros que aos meus. Nunca busquem vingança de nada. Eis o que lhes deixo, caridade, humildade e paciência'.

Assim, depois de realizar muitos milagres, fundar 160 mosteiros e compilar muitos livros e tratados, terminou a sua vida e dormiu nas mãos do Senhor, rodeado por seus filhos, no ano do Senhor de 1153, com cerca de 63 anos. Depois de sua morte sua glória foi manifestada a muitos. 

Numa ocasião, apareceu ao abade de um mosteiro e disse-lhe que o seguisse: 'Vamos até o monte Líbano. Eu subirei e você permanecerá embaixo'. Perguntado porque queria subir, respondeu: 'Quero aprender'. Admirado, o abade perguntou: 'Pai, o que você pode aprender, se supera a todos em conhecimento?' Ao que o santo respondeu: 'Aqui não há ciência e nem verdadeiro conhecimento, lá em cima está a plenitude da sabedoria e de toda a verdade'. Dizendo isso, desapareceu. O abade anotou o dia e a hora que esse fato aconteceu e, não muito depois, soube que aquele tinha sido o exato momento em que o santo terminara os seus dias nesta vida.

(Excertos da obra 'Legenda Áurea - Vidas de Santos, de Jacopo de Varazze)

Legenda Áurea constitui meramente um livro de devoção católica, acessível às pessoas comuns de todas as épocas, sem nenhum propósito de abordagem biográfica da vida dos santos sob o escopo da veracidade ou da confiabilidade histórica. Trata-se, portanto, de uma coletânea de fatos ficcionais e inverídicos (lendários) que, uma vez associados às virtudes heroicas específicas dos diferentes santos da Igreja, tinha por objetivo incrementar a devoção católica do leitor pelos santos para a sua própria santificação pessoal. Alguns deles serão publicados no blog. A excelência dos objetivos e resultados alcançados pela obra pode ser aferida pelo enorme sucesso das muitas e diversas versões e traduções realizadas desde a sua publicação original no século XIII.  

quarta-feira, 19 de abril de 2023

O VALOR DAS ADVERSIDADES

1. É bom passarmos algumas vezes por aflições e contrariedades, porque frequentemente fazem o homem refletir, lembrando-lhe que vive no desterro e, portanto, não deve pôr sua esperança em coisa alguma do mundo. Bom é encontrarmos às vezes contradições, e que de nós façam conceito mau ou pouco favorável, ainda quando nossas obras e intenções sejam boas. Isto ordinariamente nos conduz à humildade e nos preserva da vanglória. Porque, então, mais depressa recorremos ao testemunho interior de Deus, quando de fora somos vilipendiados e desacreditados pelos homens.

2. Por isso, devia o homem firmar-se de tal modo em Deus, que lhe não fosse mais necessário mendigar consolações às criaturas. Assim que o homem de boa vontade está atribulado ou tentado, ou molestado por maus pensamentos, sente logo melhor a necessidade que tem de Deus, sem o qual não pode fazer bem algum. Então se entristece, geme e chora pelas misérias que padece. Então causa-lhe tédio viver mais tempo, e deseja que venha a morte livrá-lo do corpo e uni-lo a Cristo. Então compreende também que neste mundo não pode haver perfeita segurança e nem paz completa.

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)

terça-feira, 18 de abril de 2023

SOBRE OS LIMITES INSONDÁVEIS DA GRAÇA DIVINA


Na França do século 19, havia um pianista judeu muitíssimo virtuoso. Seu nome era Hermann Cohen. O seu talento especial não apenas o transformou em uma estrela de eventos nos salões de Paris, como lhe valeu a honra de ser reconhecido como alguém de renome ao nível do húngaro Franz Liszt (1811-86), um dos maiores pianistas de todos os tempos. Então, de repente, no auge de uma carreira brilhante, Hermann Cohen, inexplicável e silenciosamente, afastou-se desta vida de estrelato para uma condição de absoluto anonimato.

Muitos anos depois, reapareceu em público revestido com os trajes de um monge carmelita, fruto de uma extraordinária conversão espiritual à fé católica. Uma vez convertido, inscreveu-se para admissão na Ordem do Monte Carmelo, sendo imediatamente aceito. Com o hábito da ordem religiosa, recebeu o nome de Agostinho e, no devido tempo, pronunciou os votos solenes de pobreza, castidade e obediência, completou os estudos teológicos e foi ordenado sacerdote. O zelo inspirador do Padre Agostinho e os seus incansáveis trabalhos missionários logo se tornaram ainda mais celebrados entre os parisienses do que suas magistrais performances musicais de antigamente. Como outrora, com paixão incomparável, ele se dedicou a oferecer às pessoas, em lugar de acordes profanos, uma música que tocava as almas com as belezas da Verdade eterna. 

Neste propósito, orava incessantemente pela conversão de sua amada mãe, então uma judia não batizada e excluída da Santa Igreja. Nesta infeliz condição, entretanto, a mãe do padre carmelita faleceu em 13 de dezembro de 1855. O padre Agostinho foi tomado então de uma profunda tristeza. Naqueles dias, enquanto pregava os sermões do Advento em Lyon, expressou a sua angústia  a um amigo em Cuers nos seguintes termos: 'Deus acaba de infligir um golpe terrível em meu coração. Minha pobre mãe está morta... e eu cheio de incertezas. No entanto, tantas orações foram oferecidos por ela que tenho a confiança de que algo muito especial tenha ocorrido entre a sua alma e Deus, do qual nada sabemos. Preciso ir a Paris para consolar a minha família'.

A sua tristeza e suas incertezas eram muitas, mas sua esperança na infinita bondade de Deus o sustentava. Ele deveria fazer a pregação naquela noite e muitos outros, no seu lugar, não teriam condições de o fazer. Mas, depois de muito chorar e de orar ainda mais, subiu ao púlpito como de costume. Ele pregou sobre a morte e, de acordo com o testemunho de todos os que o ouviram, falou com palavras que penetraram nas profundezas dos corações dos ouvintes, excitando as reflexões mais salutares e duradouras. E quando, ao final de seu discurso, evocou a sua própria realidade diante da morte, encontrou um coro de viva consternação e conforto.

E eis que, não muito tempo depois, ele encontrou-se com o Santo Cura d'Ars, a quem confidenciou  então a sua ansiedade pela morte da mãe, não convertida e passada desta vida sem a graça do batismo. 'Tenha esperança - disse-lhe o santo - 'Esperança! Você vai receber um dia, na Festa da Imaculada Conceição, uma carta que será muito consoladora para você'.

Estas palavras foram quase esquecidas quando, em 8 de dezembro de 1861, quase seis anos após a morte de sua mãe, padre Agostinho efetivamente recebeu de um sacerdote da Companhia de Jesus uma carta que tinha sido escrita por uma mulher que havia morrido recentemente em odor de santidade. A carta continha o seguinte texto:

'No dia 18 de outubro, depois da Santa Comunhão, encontrei-me enlevada num daqueles momentos de íntima união com Nosso Senhor em que Ele me faz sentir tão docemente a sua presença no Sacramento do Amor, que me parece que a fé não é mais necessária para crer. Depois de alguns momentos, Ele fez tornar a sua voz audível para mim de modo que eu pudesse compreender algumas explicações sobre uma conversa que eu havia tido na noite anterior. Lembrei-me então que, nessa conversa, uma amiga havia manifestado um certo estranhamento diante do fato de Nosso Senhor, que tudo prometia à oração, tivesse permanecido inerte às orações do padre Hermann, tantas vezes oferecidas pela conversão de sua mãe; e mais: a sua estranheza chegava quase a um descontentamento, e tive dificuldade em fazê-la entender que devemos adorar a justiça de Deus e não procurar penetrar em seus segredos. 

Diante da ousadia de se querer saber por que Nosso Senhor, sendo Ele o sumo Bem, havia resistido às orações do padre Hermann e não concedera a ele a conversão da sua mãe, Nosso Senhor respondeu: 'Por que ela sempre busca sondar os segredos de minha justiça e penetrar mistérios que não pode compreender? Diga-lhe que não devo a minha graça a ninguém, que a dou a quem eu quiser e que, agindo assim, não deixo de ser justo e a própria Justiça; mas que ela saiba também que, antes de falhar nas promessas que fiz à oração derrubaria os céus e a terra e que toda oração que tem a minha glória e a intenção pela salvação das almas por objeto sempre é ouvida, quando tem as qualidades necessárias. E para provar esta verdade, vou deixar você saber o que aconteceu no momento da morte da mãe do padre Agostinho...'

No momento em que a mãe do padre Hermann estava a ponto de dar o seu último suspiro, desmaiada e quase sem vida, Maria, nossa boa Mãe, apresentou-se diante de seu Divino Filho, e prostrando-se aos seus pés, disse: 'Graças e misericórdia, ó meu Filho, por esta alma que está prestes a perecer. Mais um momento e estará perdida, perdida por toda a eternidade! A salvação da alma da sua mãe é o que é mais querido a esse meu filho; mil vezes ele me consagrou e confiou isso à ternura, à solicitude do meu coração. Posso permitir que pereça? Esta alma é minha; Eu a quero, reivindico-a como herança, como preço do teu Sangue, e de minhas dores aos pés de tua Cruz.' 

Mal a Santíssima Virgem cessou de falar, quando uma graça, forte e poderosa, jorrou da fonte de todas as graças, o adorável Coração de Jesus, e espraiou-se sobre a alma daquela pobre judia moribunda, que a fez triunfar instantaneamente sobre toda a sua obstinação. A alma voltou-se imediatamente com amorosa confiança para Aquele cuja misericórdia a perseguiu até nos braços da morte, e disse: 'Ó Jesus, Deus dos Cristãos, Deus que meu filho adora, eu creio, espero em Vós, tende piedade em mim!'. Neste grito, ouvido só por Deus e que brotava do mais profundo do coração daquela mulher, estavam incluídos os sinceros arrependimentos pela sua obstinação e pelos seus pecados, o desejo do Batismo, o desejo explícito de o receber, e viver de acordo com as regras e preceitos de nossa sagrada religião se possível fosse a ela retornar à vida. Essa explosão de fé e esperança em Jesus foi o último sentimento dessa alma; ao pronunciá-lo diante do trono da Divina Misericórdia, romperam-se os débeis fios que ainda a prendiam em sua morada terrena, e ela se lançou aos pés dAquele que fôra o seu Salvador antes de ser o seu Juiz. 

Depois de ter mostrado a mim todas estas coisas, Nosso Senhor acrescentou: 'Faze saber isto ao Padre Agostinho; é uma consolação que desejo conceder aos seus longos sofrimentos, a fim de que em toda a parte abençoe e faça abençoar a bondade do coração de minha mãe e o seu poder sobre o meu'. Uma completa estranha para o reverendo padre Hermann, a pobre enferma que acaba de escrever estas linhas sente-se feliz por pensar que elas trarão consolo e bálsamo à ferida sempre sangrenta do seu coração - o coração de um filho e de um sacerdote. Ela se atreve a pedir-lhe a esmola de suas orações fervorosas e espera que ele não as recuse a quem, embora desconhecida para ele, está unida a ele pelos laços sagrados da mesma fé e das mesmas esperanças'. 

(Excertos da obra 'Glimpses of the Supernatural', 1884; texto publicado originalmente no blog 'Carmelite Spirituality', tradução do autor do blog).

domingo, 16 de abril de 2023

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Dai graças ao Senhor porque Ele é bom; eterna é a sua misericórdia!(Sl 117)

Primeira Leitura (At 2,42-47) - Segunda Leitura (1Pd 1,3-9)  -  Evangelho (Jo 20,19-31)

 16/04/2023 - Segundo Domingo da Páscoa 

21. 'MEU SENHOR E MEU DEUS!'


O segundo domingo do tempo pascal é consagrado como sendo o 'Domingo da Divina Misericórdia', com base no decreto promulgado pelo Papa João Paulo II na Páscoa do ano 2000. No Domingo da Divina Misericórdia daquele ano, o Santo Padre canonizou Santa Maria Faustina Kowalska , instrumento pelo qual Nosso Senhor Jesus Cristo fez conhecer aos homens Seu amor misericordioso: 'Causam-me prazer as almas que recorrem à Minha misericórdia. A estas almas concedo graças que excedem os seus pedidos. Não posso castigar, mesmo o maior dos pecadores, se ele recorre à Minha compaixão, mas justifico-o na Minha insondável e inescrutável misericórdia'.

No Evangelho deste domingo, Jesus já havia se revelado às santas mulheres, a Pedro e aos discípulos de Emaús. Agora, apresenta-Se diante os Apóstolos reunidos em local fechado e, uma vez 'estando fechadas as portas' (Jo 20, 19), manifesta, assim, a glória de Sua ressurreição aos discípulos amados. 'A paz esteja convosco' (Jo 20, 19) foi a saudação inicial do Mestre aos apóstolos mergulhados em tristeza e desamparo profundos. 'A paz esteja convosco' (Jo 20, 21) vai dizer ainda uma segunda vez e, em seguida, infunde sobre eles o dom do Espírito Santo para o perdão dos pecados: 'Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos' (Jo 20, 22-23), manifestação preceptora da infusão dos demais dons do Espírito Santo por ocasião de Pentecostes. A paz de Cristo e o Sacramento da Reconciliação são reflexos incomensuráveis do amor e da misericórdia de Deus. 

E eis que se manifesta, então, o apóstolo da incredulidade, Tomé, tomado pela obstinação à graça: 'Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei' (Jo 20, 25). E o Deus de Infinita Misericórdia se submete à presunção do apóstolo incrédulo ao lhe oferecer as chagas e o lado, numa segunda aparição oito dias depois, quando estão todos novamente reunidos, agora com a presença de Tomé, chamado Dídimo. 'Meu Senhor e meu Deus!' (Jo 20, 28) é a confissão extremada de fé do apóstolo arrependido, expressando, nesta curta expressão, todo o tesouro teológico das duas naturezas - humana e divina - imanentes na pessoa do Cristo.

'Bem-aventurados os que creram sem terem visto!' (Jo 20, 29) é a exclamação final de Jesus Ressuscitado pronunciada neste Evangelho. Benditos somos nós, que cremos sem termos vistos, que colocamos toda a nossa vida nas mãos do Pai, que nos consolamos no tesouro de graças da Santa Igreja. E bem aventurados somos nós que podemos chegar ao Cristo Ressuscitado com Maria, espelho da eternidade de Deus na consumação infinita da Misericórdia do Pai. 

sábado, 15 de abril de 2023

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LIV)

Capítulo LIV

Auxílio às Santas Almas - A Santa Missa - Santa Isabel e a Rainha Constança - São Nicolau de Tolentino e o pedido do amigo Pellegrino 

Lemos na Vida de Santa Isabel de Portugal [8 de julho] que, após a morte de sua filha Constança, ela ficou sabendo do lamentável estado da falecida no Purgatório e do preço que Deus exigiu pelo seu resgate. A jovem rainha, recém-casada com o rei de Castela, havia sido arrebatada por uma morte súbita do afeto da sua família e dos seus súditos. Isabel, assim que recebera a triste notícia, havia partido com o rei, seu esposo, para a cidade de Santarém, quando um eremita, saindo do seu isolamento, correu atrás do cortejo real, gritando que queria falar com a rainha. Os guardas o repeliram, mas a santa, vendo a persistência de suas intenções, deu ordem para que aquele servo de Deus fosse trazido à sua presença.

O homem relatou então que, enquanto estava rezando em seu convento, apareceu-lhe a Rainha Constança implorando que ele desse a conhecer urgentemente à sua mãe que ela estava padecendo nas profundezas do Purgatório, onde havia sido condenada a longos e terríveis sofrimentos, mas que seria libertada se, durante o período de um ano, o Santo Sacrifício da Missa fosse celebrado por ela todos os dias. Os cortesãos presentes ridicularizaram o eremita, tratando-o como um visionário, um impostor e um tolo. Isabel, dirigindo-se ao rei, perguntou o que ele achava de tudo: 'Eu acredito e seria sábio fazer o que lhe foi revelado de uma maneira tão extraordinária. E, afinal, mandar celebrar missas pelos nossos parentes falecidos nada mais é do que um dever paterno e cristão'. Um santo padre chamado Ferdinand Mendez foi nomeado para rezar as missas.

Ao final de um ano, Constança apareceu a Santa Isabel, vestida com um manto branco brilhante. 'Hoje, querida mãe' - disse ela - 'fui libertada das dores do Purgatório e estou prestes a entrar no Céu'. Cheia de consolo e alegria, a santa dirigiu-se à igreja para agradecer a Deus. Lá  encontrou o padre Mendez que assegurou a ela que, que no dia anterior, havia terminado a celebração das trezentas e sessenta e cinco missas que lhe haviam sido confiadas. A Rainha então entendeu que Deus havia cumprido a promessa que Ele havia feito ao piedoso eremita  e testemunhou a sua gratidão distribuindo abundantes esmolas aos pobres.

'Vós nos livrastes dos que nos afligem, e e envergonhastes os que nos odeiam' (Salmo 43). Tais foram as palavras dirigidas ao ilustre São Nicolau de Tolentino pelas almas pelas quais ofereceu o Santo Sacrifício da Missa. Uma das maiores virtudes desse admirável servo de Deus, diz o Padre Rossignoli, foi a sua caridade e sua devoção à Igreja Padecente (Merv., 21; Vie de Saint Nic. de Tolentino, 10 set.). Por ela, jejuava frequentemente a pão e água, infligia disciplinas cruéis a si mesmo e usava em torno da cintura uma pesada corrente de ferro. Quando estava para receber a dignidade do sacerdócio, hesitou muito antes de receber as ordens sagradas, mas assim o fez, com o pensamento de que, celebrando diariamente o Santo Sacrifício, poderia ajudar com muito mais eficácia as almas sofredoras do Purgatório. Por outro lado, as almas que ele socorreu com tantos sufrágios apareceram-lhe várias vezes para lhe agradecer ou para se recomendar à sua caridade.

Ele vivia perto de Pisa, inteiramente ocupado com os seus exercícios espirituais, quando em um sábado à noite viu em sonho uma alma em sofrimento, que lhe rogava que celebrasse a Santa Missa na manhã seguinte por ela e por várias outras almas que sofriam terrivelmente em Purgatório. O santo reconheceu a voz, mas não conseguia lembrar-se claramente da pessoa que falava com ele. 'Eu sou' - disse a aparição - 'o seu amigo falecido Pellegrino d'Osimo. Pela Divina Misericórdia, escapei do castigo eterno pelo meu arrependimento, mas não do castigo temporal devido aos meus pecados. Venho em nome de muitas almas infelizes como eu para pedir-vos que amanhã celebreis a Santa Missa por nós e, por meio dela, esperamos a nossa libertação ou pelo menos receber um grande alívio'. O santo respondeu, com a sua habitual amabilidade: 'Que Nosso Senhor se digne aliviar-te pelos méritos do seu precioso Sangue! Mas esta missa pelos mortos não posso rezar amanhã, pois devo cantar a Missa conventual em coro'. 'Ah! pelo menos venha comigo' - respondeu a aparição, entre gemidos e lágrimas - 'Eu te imploro, pelo amor de Deus, que venha e veja nossos sofrimentos e se é possível recusar as nossas súplicas e nos deixar sofrer tão severas agonias.

Pareceu ao santo então ter sido transportado ao Purgatório. Ele viu como que uma vasta planície, onde uma imensa multidão de almas, de todas as idades e condições, padeciam de torturas de todo tipo e terríveis de se ver. Por gestos e palavras, as almas imploravam por auxílio: 'Eis' - disse Pellegrino- 'o estado de sofrimento daqueles que me enviaram a você. Visto que sois agradável ​​aos olhos de Deus, temos confiança de que Ele nada recusará à oblação do Sacrifício por vós oferecido e que a sua Divina Misericórdia nos livrará'. Diante dessa terrível visão, o santo não pôde conter as lágrimas. Imediatamente pôs-se em oração para consolá-los dos tormentos e, na manhã seguinte, dirigiu-se ao prior, relatando-lhe a visão que tivera e o pedido de Pellegrino sobre a missa daquele dia. O Padre Prior, partilhando a sua emoção, dispensou-o de pronto de rezar a missa conventual,  no dia e no resto da semana, para poder assim oferecer o Santo Sacrifício pelos falecidos e dedicar-se inteiramente ao alívio das almas sofredoras. Agradecido por tal permissão, Nicolau dirigiu-se à igreja e celebrou a Santa Missa com extraordinário fervor. Durante toda a semana continuou a celebrar o Santo Sacrifício pela mesma intenção, além de oferecer orações diurnas e noturnas pelas almas, além de outras penitências e todo tipo de boas obras.

No final da semana, Pellegrino apareceu novamente diante dele, mas agora não mais em estado de sofrimento, mas revestido com uma roupa branca e o esplendor de uma luz celestial, que envolvia também um grande número de outras almas. Todos o agradeceram, chamando-o de libertador; então subindo em direção ao Céu, eles entoaram estas palavras do salmista: Salvasti nos de affligentibus nos, et odientes nos confudisti - 'Vós nos livrastes dos que nos afligem, e e envergonhastes os que nos odeiam' (Salmo 43), sendo que os inimigos aqui mencionados constituem os pecados e os demônios, os seus instigadores.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.