segunda-feira, 3 de outubro de 2022

SOBRE OS REGRAMENTOS DO BOM PASTOR

Que o pastor guarde um discreto silêncio e tenha uma palavra útil; não revele o que deve calar e não cale o que deve revelar. Uma palavra indevida leva ao erro, um silêncio excessivo mantém no erro aqueles que deveriam ser instruídos. Temendo perder a simpatia popular, acontece, frequentemente, que pastores imprudentes não dizem onde encontrar o bem e, então, segundo a palavra da Verdade, não cuidam do rebanho, a eles confiado, com a dedicação do pastor, mas agem como mercenários que fogem quando vem o lobo, escondendo-se no seu silêncio. 

Assim, o Senhor os admoesta, por meio do profeta, dizendo: canes muti non valentes latrare - 'cães mudos incapazes de latir' (Is 56,10). E se lamenta deles: non ascendistis ex adverso, neque opposuistis murum pro domo Israel, ut staretis in praelio in die Domini - 'não subistes por sobre as brechas para refazer uma muralha à casa de Israel, a fim de poder estar seguro no combate no dia do Senhor' (Ez 13,5). Subir contra o inimigo é enfrentar os poderes deste mundo, falando livremente em defesa do rebanho. Resistir no combate no dia do Senhor é resistir, por amor da justiça, aos ataques dos perversos. Para um pastor, ter medo de dizer o bem não significa, por este silêncio, voltar as costas? Mas, se enfrenta o perigo pelo seu rebanho, ele opõe ao inimigo uma muralha para a casa de Israel.

Por isso, se diz ainda ao povo que peca: prophetae tui viderunt tibi falsa et stulta; nec aperiebant iniquitatem tuam, ut te ad poenitentiam provocarent - 'os teus profetas anunciaram, a teu respeito, visões vãs e insensatas, e não te manifestaram a tua iniquidade para te evitar o cativeiro' (Lm 2,14). Na Sagrada Escritura, às vezes, os profetas são chamados de doutores porque, mostrando que o presente é fugaz, eles revelam o que haverá de suceder. Mas a Palavra divina denuncia as suas falsas visões, quando eles, pelo temor de corrigir os vícios, adulam os pecadores com uma vã promessa de segurança. Eles não abrem os olhos dos pecadores sobre a iniquidade quando calam a voz que os corrigiria. Chave que abre é a palavra que corrige: com a repreensão, desvela a culpa da qual, com frequência, não adverte a malícia, nem mesmo para quem a cometeu. 

Por isso, São Paulo diz: ut potens sit exhortari in doctrina sana, et eos qui contradicunt, arguere -  'para poder exortar segundo a sã doutrina e rebater os que a contradizem' (Tt 1,9). E assim também Malaquias afirma: labia enim sacerdotis custodient, scientiam, et legem requirent ex ore eius, quia angelus Domini exercituum est - 'porque os lábios do sacerdote guardam a ciência e é de sua boca que se espera a doutrina, pois ele é o mensageiro do Senhor dos exércitos' (Ml 2,7). Por meio de Isaías, o Senhor admoesta, dizendo: Clama, ne cesses, quasi tuba exalta vocem tua - 'clama em alta voz, sem cessar' (Is 58,1). Todo aquele que acede ao sacerdócio recebe o encargo de arauto: ele avança, gritando, antes da terrível vinda do Juiz. Portanto, se o sacerdote não sabe pregar, como poderá fazer ouvir a sua voz o arauto mudo?

Por isso, o Espírito Santo pousou sobre os primeiros pastores, em forma de línguas; aqueles que ele tocou tornaram-se prontamente, sob sua inspiração, homens capazes de falar. Também por isso se ordena a Moisés que o sacerdote, ao entrar na Tenda, levasse ao redor de si pequenos sinos, para dar anúncios de pregação e não ir, com seu silêncio, ao encontro do juiz que observa do alto. De fato está escrito: ut audiatur sonitus quando ingreditur ei egreditur sanctuarium in conspetctu Domini, et non moriatur - 'para que se ouça o som das campainhas quando entrar e sair do santuário, na presença do Senhor, para não morrer' (Ex 28,35).

Quando entra ou sai sem que se ouça a sua voz, o sacerdote morre, porque atrai sobre si a ira do juiz invisível; ele caminha sem que ressoe a sua pregação. Com razão, é prescrito que os pequenos sinos sejam pendurados nas suas vestes. O que devemos ver nas vestes do sacerdote, senão boas obras? O profeta atesta: sacerdotes tui induentur iustitiam, et sancti tui exsultent - 'teus sacerdotes revistam-se de justiça e teus fieis exultem de alegria' (Sl 131,9). As sinetas são penduradas nas vestes para as obras do sacerdote, unidas ao som de seus lábios, da palavra, proclamem onde se encontra o caminho da vida. Mas, quando o sacerdote se prepara para falar, coloque toda atenção e reflexão, e o faça com grande cautela; se ele deixar arrastar por um desejo desordenado de falar, o coração daqueles que ouvem poderá ser atingido pela ferida do erro, e querendo passar por sábio, romperia, de modo insensato, os laços da unidade. Por isso, diz a Verdade: habete in vobis sal, et pacem habete inter vos - 'tende sal em vós mesmos, e guardai a paz entre vós' (Mc 9,49).

Quando se esforça por falar sabiamente, tenha grande temor de turbar pelo seu discurso a unidade dos ouvintes. Tome-se o que diz São Paulo: non plus sapere quam oportet sapere, sed sapere ad sobrietatem - 'não façam de si próprios uma opinião maior do que convém, mas com sobriedade' (Rm 12,3). Por isso, na veste do sacerdote, segundo a palavra divina, as campainhas de ouro se juntam as romãs (Ex 28,34). O que significam essas romãs senão a unidade da fé? De fato, na romã, os numerosos grãos em seu interior são protegidos por fora por uma só casca exterior; do mesmo modo, a unidade da fé protege os inumeráveis povos da santa Igreja, contendo dentro de si uma diversidade de méritos. Para que o pastor imprudente não se meta apressadamente a falar, como já dissemos, a Verdade mesma grita aos seus discípulos: habete in vobis sal, et pacem habete inter vos - 'tende sal em vós mesmos, e guardai a paz entre vós'. Como se, através da figura da veste do sacerdote, dissesse: 'acrescentai romãs às sinetas para que, em tudo o que dizeis, possais conservar, com vigilante atenção, a unidade da fé'.

Além disso, os pastores devem tomar cuidado de não somente não fazer discursos errôneos, mas devem também evitar dizer a verdade de modo prolixo e desordenado. Porque, muitas vezes, as palavras perdem a sua força sobre o coração dos ouvintes, por causa de uma loquacidade desconsiderada e inoportuna. Essa loquacidade, incapaz de servir, com proveito, aos seus ouvintes, contamina também aquele que a exercita. Por isso se diz oportunamente por meio de Moisés: vir, qui, patitur fluxum seminis, immundus erit - 'aquele que padece de fluxo seminal, será imundo' (Lv 15,2). 

Na verdade, na alma ouvinte, a boa qualidade do discurso proferido faz das palavras ditas o sêmen do pensamento que formará; o ouvido acolhe uma palavra, e na mente é gerado um pensamento. 'Semeador de palavras', tal qual foi justamente o apelido dado ao pregador por excelência pelos sábios deste mundo. O homem que sofre de um fluxo seminal é, portanto, declarado impuro; escravo de sua loquacidade, ele se contamina com o que, expresso de modo ordenado, poderia gerar no coração dos ouvintes um pensamento justo; mas, com seu fluxo de palavras imprudentes, derrama o sêmen para contaminar e não para o bem de uma descendência. Assim, São Paulo, exortando o seu discípulo da urgência da pregação, lhe diz: testificor coram Deo, et Iesu Christo, qui iudicaturus est vivos et mortuos, per adventum ipsius, et regnum eius: praedica verbum, insta opportune, importune: argue, obsecra, increpa in omni patientia, et doctrina - 'Eu te conjuro em presença de Deus e de Jesus Cristo, que há de julgar os vivos e os mortos, por sua aparição e por seu Reino: prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, repreende, amea­ça, exorta com toda paciência e empenho de instruir' (2Tm 4,1-2). Antes de dizer importune, antepôs opportune, porque a palavra 'importuno', se não considera o que é oportuno, perde toda eficácia na mente de quem a ouve.
(São Gregório Magno - excerto: Regula Pastoralis)