quinta-feira, 31 de março de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (140/142)


140. POR QUE DEVO SOFRER TANTO?

São Pedro Mártir (falecido em 1252), da Ordem Dominicana, teve de sofrer incríveis calúnias e perseguições, mesmo sendo inocente e santo. Ajoelhou-se um dia aos pés do Crucifixo e queixou-se a Nosso Senhor de seus sofrimentos:
➖ Senhor, que mal fiz eu para sofrer tanto?
Enquanto assim se lamentava ouviu o santo, como vindas da Cruz, estas palavras:
➖ E que mal fiz eu para sofrer tanto na cruz? Teus sofrimentos não se podem comparar com os meus. Suporta-os por isso com paciência.

Estas palavras deram ânimo ao santo. Daí em diante, quando tinha de sofrer, olhava para o Crucifixo, lembrando-se que o Filho de Deus teve de sofrer imensamente mais do que ele.

141. A CONFIANÇA RECOMPENSADA

O imperador Napoleão I entrou, certa vez, num restaurante de Paris, acompanhado de seu ajudante Duroc. Ali ninguém os conhecia. Depois de haverem tomado a refeição, e apresentada a conta de 14 francos, aconteceu que nenhum deles tinha dinheiro consigo.

O imperador estava incógnito e não queria dar-se a conhecer. Seu ajudante, dirigindo-se à dona do restaurante, pediu-lhe que tivesse paciência de esperar uma hora e o pagamento seria feito pontualmente. A dona, porém, uma velha muito segura, não concordou; pelo contrário, ameaçou-os com a polícia se não pagassem imediatamente.

A coisa ia ficando feia, quando chegou o garçom que, interessando-se pelos hóspedes, disse à patroa:
➖ Estes senhores fazem-me boa impressão; não devem ser gente má. Pagarei por eles os 14 francos. Se me enganar, perderei eu o dinheiro e não a senhora; mas peço-lhe que deixe os homens em paz. Em seguida pagou a conta. Os dois senhores agradeceram e logo se retiraram.

Passada uma hora, ou pouco mais, apareceu de novo o ajudante do imperador e, dirigindo-se à dona do restaurante perguntou:
➖ Senhora, quanto vale este seu restaurante?
➖ Em todo caso mais que 14 francos - respondeu ela um tanto agastada.
Mas o homem insistiu:
➖ Diga-me seriamente: quanto a senhora quer por este seu restaurante?
➖ Bem; 30.000 francos e nem um centavo a menos.

Puxando a sua carteira, pagou-lhe Duroc aquela soma e disse:
➖ Por ordem do meu senhor faço presente deste restaurante ao garçom em reconhecimento pela confiança que depositou em nós. Admirada, a senhora perguntou:
➖ E quem era aquele seu companheiro?
➖ É o imperador Napoleão...
Se assim recompensa um homem a confiança nele depositada, como não recompensará o bom Deus a quem nele confiar?

142. VOCÊ TEM RAZÃO

Havia um senhor rico à moderna, que não queria saber de religião, nem de igreja, nem de preceito pascal, nem de oração. Com ele servia, há muitos anos, um ótimo criado, piedoso, fiel e que lhe queria muito bem. Esse criado, valendo-se da confiança que lhe dava o patrão, dizia-lhe às vezes:
➖ Mas, senhor patrão, pense também um pouco em Deus e em sua alma.
➖ Fique tranquilo, respondia-lhe o patrão. Veja ou eu sou predestinado e então me salvarei da mesma forma sem ir à igreja receber os sacramentos e rezar; ou não sou predestinado, e então, faça eu o bem que fizer, me condenarei do mesmo modo.

Aconteceu que, um dia, aquele senhor caiu doente. Chamou logo o servo fiel e disse-lhe:
➖ Vá chamar o médico para mim.
O criado ouviu, mas não foi. Chegada a tarde sem que o médico aparecesse, perguntou o enfermo:
➖ Você não chamou o médico?
➖ Escute senhor patrão, eu pensei assim: ou Deus destinou que meu patrão sare, e então sarará também sem médico; ou destinou que morra, e então, mesmo com todos os médicos do mundo, morrerá igualmente; por isso é inútil chamar o médico.
➖ Você é um tolo, um imbecil! - gritou o patrão, furioso. Deus não quer fazer milagres sem motivo, quer que empreguemos os meios que estabeleceu. Em caso de doença quer que se chame o médico; e você vá correndo chamá-lo, ouviu?
➖Sim; sim, senhor; vou já; por que o senhor patrão não raciocina do mesmo modo quando se trata de sua alma?
A observação era acertada e o patrão teve de responder:
➖ Você tem razão!

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

quarta-feira, 30 de março de 2022

SOMBRAS DA PAIXÃO (II): PRISÃO


Ó alma perturbada pelo delírio da iniquidade,
autor da obra mais vil da condição humana,
forjada pelo beijo de tão monstruosa traição.


'Judas, com um beijo entregas o Filho do Homem?'


Os soldados romanos e os guardas do Templo
irrompem das sombras e avançam sobre os discípulos,
tomados de fúria insana para prender Jesus.


Sob uma torrente de imprecações e de insultos,
empurram e agarram Jesus com violência
e atam-lhe as mãos como a um mísero malfeitor.


O temor se apodera dos discípulos que, assustados,
fogem em debandada pela noite escura.
Sobre o Senhor dos senhores adensam-se as sombras da Paixão.

terça-feira, 29 de março de 2022

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XXII)

(Cristo com o braço direito desprendido - Igreja de San Xoán de Furelos/Espanha)

O CRISTO CRUCIFICADO DE FURELOS

Pe. Suarez estava particularmente cansado. Havia atendido quase uma centena de confissões naquela tarde escaldante; o ar parecia impregnado pelo calor de uma fornalha latente e nem mesmo uma leve brisa ousava empurrar os galhos do grande carvalho exposto pelas janelas totalmente abertas da igreja. Ainda no confessionário, reclinou-se um pouco e meditou vagamente sobre o tempo, enquanto esperava qualquer vivalma tardia para o sacramento. Restava apenas o silêncio, o calor, a tarde que se ia...

Levantou-se e ajoelhou-se aos pés do altar, fixando os seus olhos na imagem de Cristo Crucificado: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me a graça de santificar-me todo dia, no cumprimento de Vossa Santa vontade. Dai-me...' Interrompeu a oração de súbito ao ouvir os passos pesados de alguém entrando na igreja. Virou-se e viu o homem tardio, das horas passadas. Certamente não era de Furelos porque nunca o tinha visto. Trajava-se com esmero, embora com roupas simples. O dono de alguma taberna talvez? Um comerciante de fora? Um marino?

- Padre, eu queria me confessar...

O Pe. Suarez concordou com um leve suspiro e o encaminhou ao confessionário. Ouviu do homem uma confissão segura, contrita, demorada. Havia muito tempo que não se confessava e, naquele lugar remoto para ele, sentira a necessidade da fazer a confissão não feita. Após ouvir a sua confissão, com sólida convicção, o padre lhe deu as penitências devidas e o perdoou:

- Eu absolvo os teus pecados... 

O homem agradeceu e se foi e o Pe. Suarez retomou a sua lida, com e sem tardes calorentas. Cerca de um mês depois, a cena se repetiu quase como se repetem as horas de cada dia: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me a graça de santificar-me...'. De novo, a tarde sufocante de calor, de novo o homem tardio.

No mesmo confessionário, o sacerdote ouviu com certa apreensão a confissão dos mesmos pecados, repetidos, porém, na escala de um tempo do mês anterior. As penitências dadas foram agora mais severas e dadas sem a mesma convicção da primeira vez, pela negligência do pecador em se corrigir de suas tantas faltas rotineiras.  

- Eu absolvo os teus pecados... vá e procure não recair mais e mais nos teus pecados. 

E o homem tardio se foi como se vão os dias. E, tão certo como o calor abafado das tardes de verão, retornou à igreja de Furelos e ao confessionário conhecido. Nova confissão, novas admoestações de correção de vida, novas penitências.

- Eu absolvo os teus pecados... vá e procure não recair mais e mais nos teus pecados. Tenha em mente como os teus pecados ofendem a Bondade infinita...  
- Eu sei, padre, mas o meu arrependimento é sincero.
- É preciso mais que o arrependimento, meu filho, é preciso a mudança de vida. Não podemos fazer pouco caso da misericórdia de Deus. Vá e não peque mais...

E, ainda outra vez, um mês depois, o homem da confissão tardia buscou uma nova confissão. Mas, neste dia, investido de certo temor, antecipou-se à saída do sacerdote do confessionário, permanecendo como o último da fila dos pecadores. Ao iniciar, porém, a mesma ladainha dos seus pecados de sempre, o velho sacerdote o repreendeu severamente:

- Não vou mais absolver os teus pecados. Seu arrependimento e contrição não são sinceros. Eu não vou fazer mais esse teatro por você. 
- Mas, padre, eu venho me confessar porque sei que continuo pecando...
- Não absolvo mais os teus pecados! Vá até o altar, reze a Deus com contrição e peça o perdão dos seus pecados e da sua falta de persistência diretamente para o Cristo Crucificado... 

E o pecador, pesaroso, dirigiu-se ao altar. O Pe. Suarez foi em seguida também ao altar, ajoelhando-se num banco lateral ao homem que não havia confessado: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me...' De repente, o braço direito do Crucificado desprendeu-se da cruz e a mão ensanguentada do Senhor foi estendida na direção do pecador, fazendo sobre a sua cabeça o sinal de absolvição de todos os seus pecados. E, volvendo o rosto ferido e ensanguentado na direção do Pe. Suarez, o Crucificado lhe falou ao coração:

- Não fostes tu que derramastes o Sangue por ele...

('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)

segunda-feira, 28 de março de 2022

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'A fé verdadeira consiste em que acreditemos e confessemos que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é Deus e homem. É Deus gerado da substância do Pai antes do início dos tempos; é homem nascido da substância de sua Mãe no tempo. Perfeito Deus e perfeito homem, que subsiste com alma racional e carne humana, igual ao Pai segundo a divindade, menor que o Pai segundo a humanidade. E embora seja Deus e homem, não há dois cristos, mas um único Cristo; um, não porque a divindade se tenha dissolvido na carne, mas porque a humanidade foi assumida por Deus. Absolutamente uno, não por confusão das substâncias, mas pela unidade da Pessoa. Pois assim como a alma racional e o corpo constituem um só homem, assim também Deus e homem constituem um só Cristo: que padeceu pela nossa salvação, desceu à mansão dos mortos e ao terceiro dia ressuscitou; subiu aos céus, onde está sentado à direita de Deus Pai omnipotente, e de onde há de vir a julgar os vivos e os mortos'.
(Santo Atanásio)

domingo, 27 de março de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Provai e vede quão suave é o Senhor!' (Sl 33)

 27/03/2022 - Quarto Domingo da Quaresma 

18. PAI DE MISERICÓRDIA 


Neste Quarto Domingo da Quaresma, São Lucas nos mostra uma das páginas mais belas dos Evangelhos, que é a parábola do filho pródigo. Que poderia muito bem ser a parábola da verdadeira conversão. Ou, com muito mais correção e sentido espiritual, a parábola do pai de misericórdia. Três personagens: o filho mais velho e o filho mais novo que, em meio às dolorosas experiências da vida humana, se reencontram no grande abraço da misericórdia do pai.

Com a parte da herança que lhe cabe, o 'filho mais novo' opta pelo caminho fácil e tortuoso dos prazeres e vícios humanos, dos instintos insaciados, do vazio do mal. E esbanja, na via dolorosa do pecado, os bens que possuía: a alma pura, o coração sincero, os nobres sentimentos, a fortuna da graça. E, a cada passo, se afunda mais e mais no lodo das paixões humanas desregradas, da vida consumida no nada. Mas, eis que chega o tempo da reflexão madura, da conversão sincera, do caminho de volta ao Pai: 'Pequei contra ti; já não mereço ser chamado teu filho' (Lc 15, 18-19).

O pai nem ouve as palavras do filho pródigo; no abraço da volta, somente ecoa pelos tempos a misericórdia de Deus: 'Haverá maior alegria no Céu por um pecador que fizer penitência que por noventa e nove justos que não necessitem de arrependimento' (Lc 15, 7). Diante do filho que volta, um coração de misericórdia aniquila a justiça da razão: 'Trazei depressa a melhor túnica para vestir o meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés' (Lc, 15, 22). Como as talhas de água que se tornam vinho, a conversão verdadeira apaga e aniquila o mal desejado e consumido outrora: na reconciliação de agora desfaz-se em pó as misérias passadas de uma vida de pecado.

O 'filho mais velho' não se move por igual misericórdia e se atém aos limites difusos da justiça humana. Na impossibilidade absoluta de compreender o júbilo do pai com o filho que volta, faz-se vítima e refém da soberba e do orgulho humano: 'tu nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos' (Lc, 15,29). O filho mais novo, que estava tão longe, está lá dentro outra vez. E o filho mais velho, que sempre lá esteve, recusa-se agora a entrar na casa do pai. Tal como no caso do primeiro filho, o pai de misericórdia vem, mais uma vez, buscar a ovelha desgarrada no filho mais velho que está fora e não quer entrar. Porque Deus, pura misericórdia, quer salvar a todos os seus pobres filhos afastados de casa e espera, com paciência e amor infinitos, a volta dos filhos pródigos e a volta dos seus filhos que creem apenas na justiça dos homens.

sábado, 26 de março de 2022

SOMBRAS DA PAIXÃO (I): MORTIFICAÇÃO


Jesus está só e tomado por uma tristeza extremada
prostrado sobre a rocha dura, persevera em oração, 
esmagado pelo insuportável peso dos pecados dos homens.


Chora, sofre, geme, sua e verte gotas de sangue,
pelos teus pecados miseráveis,
pelos meus, pelos pecados de todos os homens.


Ó intimidade infinita de Deus com Deus,
ó oração bendita que crucificou todos os séculos
nos mistérios insondáveis do Calvário.


'Pai, que seja feita a vossa vontade...'


Quanta dor, quanto sofrimento, que angústia mortal!
Eis entreaberto o mistério do Calvário,
e desveladas as primeiras sombras da Paixão.

sexta-feira, 25 de março de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: CHAGA DE AMOR


A dor que padece e que consome a alma que é Vossa é um doce mistério. Mas Vós sabeis, ó meu Deus, que ela é obra Vossa...  No começo, era uma ferida tão pequena que somente a alma podia pressenti-la; depois, aos poucos, vai crescendo e envolvendo toda a alma até se transformar em uma chaga incurável que tudo sensibiliza e vivifica.  A dor que emana dessa chaga aberta, embora envolta em delícias, torna-se intolerável. A alma geme, protesta, esbraveja. Ela sabe muito bem que só existe um remédio para o seu mal: um amor maior capaz de libertá-la do seu corpo e que a faça morrer para, enfim, ser acolhida para sempre em Vossos braços. Ela quer ser tratada pelo único médico capaz de curá-la: Vós, ó meu Deus. Mas Vós não feristes essa alma amadíssima no mais íntimo senão para a possuir plenamente. Só Vós podeis alimentar nela a chama que foi acesa; alimentai-a então, pois ela já não pode mais viver sem a Vossa Presença.

Todas as almas, meu Deus, deveriam ser consumidas por essa dor misteriosa. Não sois Vós a Bondade perfeita e a Beleza infinita? O nosso coração, feito por Vós, não foi feito para Vós? Por que, então, existem tão poucas almas que Vos amam realmente?

Mas não há como nos volvermos contra Vós, ó meu Deus, mas contra nós mesmos. Porque Vós estais sempre à porta do nosso coração e clamas por ele de mil maneiras. Mas não ouvimos a Vossa voz, envolvido pelo barulho à nossa volta. E, se acaso a ouvimos, hesitamos em abrir o nosso coração e fazer Vossa por completo a nossa vontade. Na verdade, a nossa alma está doente e de um mal que a devora, que é o seu amor próprio, quando deveria estar consumida por uma dor que a faria viver em plenitude e para sempre: a dor do Vosso amor, ó meu Deus. Senhor, curai-nos dos males humanos! Fazei-nos enfermos das graças divinas e por elas morrer em Vosso amor! 

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte III - A União com Deus; tradução do autor do blog)

quinta-feira, 24 de março de 2022

SOBRE A DIGNIDADE SACERDOTAL


'Filha querida, ao manifestar-te a grande virtude daqueles pastores, quero colocar em evidência a dignidade dos meus ministros. Pelo pecado de Adão, as portas da eternidade fecharam-se, mas o meu Filho abriu-as com a chave do seu sangue. Ao sofrer a paixão e morte, ele destruiu vossa morte e vos lavou no sangue. Sim, foram seu sangue e sua morte que, em virtude da união da natureza divina com a humana, deram acesso ao céu. E a quem deixou Cristo tal chave? Ao apóstolo Pedro e aos seus sucessores, os que vieram e que virão depois dele até o dia do juízo final. Todos possuem a mesma autoridade de Pedro; nenhum pecado a diminui, do mesmo modo que não destrói a santidade do sangue de Cristo e dos Sacramentos. Já disse que o sol eucarístico não tem manchas e que o mal cometido por quem o administra ou recebe não apaga a sua luz. Não, o pecado não danifica os sacramentos da santa Igreja, não lhes diminui a força; prejudica a graça e aumenta a culpa somente em quem os ministra ou recebe indignamente.

Na terra, quem possui a chave do sangue é o Cristo-na-terra. Certa vez eu te manifestei essa verdade numa visão, para indicar o grande respeito que os leigos devem ter pelos ministros, bons ou maus que eles sejam, e quanto me desagrada que alguém os ofenda. Pus diante de ti a hierarquia da Igreja sob a figura de uma dispensa contendo o sangue de meu Filho. No sangue estava a virtude de todos os sacramentos e a vida dos fiéis. À porta daquela despensa, vias o Cristo-na-terra, encarregado de distribuir o sangue e fazer-se ajudar por outros no serviço de toda a santa Igreja. Quem ele escolhia e ungia, logo se tornava ministro. Dele procedia toda a ordem clerical; ele dava a cada um sua função no ministério do glorioso sangue. E como dispunha dos seus auxiliares, possuía a força de corrigi-los nos seus defeitos.

De fato, é assim que eu quero que aconteça. Pela dignidade e autoridade confiada aos meus ministros, retirei-os de qualquer sujeição aos poderes civis. A lei civil não tem poder legal para puni-los; somente o possui aquele que foi posto como senhor e ministro da lei divina.

Os ministros são ungidos meus. A respeito deles diz a Escritura: 'Não toqueis nos meus cristos' (Sl 105, 15). Quem os punir cairá na maior infelicidade. Se me perguntares por que a culpa dos perseguidores da Santa Igreja é a maior de todas e, ainda, por que não se deve ter menor respeito pelos meus ministros por causa de seus defeitos, respondo-te: porque, em virtude do sangue por eles ministrado, toda reverência feita a eles, na realidade não atinge a eles, mas a mim. Não fosse assim, poderíeis ter para com eles o mesmo comportamento de praxe para com os demais homens. 

Quem vos obriga a respeitá-los é o ministério do sangue. Quando desejais receber os sacramentos, procurais meus ministros; não por eles mesmos, mas pelo poder que lhes dei. Se recusais fazê-lo, em caso de possibilidade, estais em perigo de condenação. A reverência é dada a mim e ao meu Filho encarnado, que somos uma só coisa pela união da natureza divina com a humana. Mas também o desrespeito. Afirmo-te que devem ser respeitados pela autoridade que lhes dei, e por isso mesmo não podem ser ofendidos. Quem os ofende, a mim ofende. Disto a proibição: 'Não quero que mãos humanas toquem nos meus cristos'!

Nem poderá alguém escusar-se, dizendo: 'Eu não ofendo a santa Igreja, nem me revolto contra ela; apenas sou contra os defeitos dos maus pastores! Tal pessoa mente sobre a própria cabeça. O egoísmo a cegou e não vê. Aliás, vê; mas finge não enxergar, para abafar a voz da consciência. Ela compreende muito bem que está perseguindo o sangue do meu Filho e não os pastores. Nestas coisas, injúria ou ato de reverência dirigem-se a mim. Qualquer injúria: caçoadas, traições, afrontas. Já disse e repito: não quero que meus cristos sejam ofendidos. Somente eu devo puni-los, não outros. 

No entanto, homens ímpios continuam a revelar a irreverência que têm pelo sangue de Cristo, o pouco apreço que possuem pelo amado tesouro que deixei para a vida e santificação de suas almas. Não poderíeis ter recebido maior presente que o todo-Deus e todo-Homem como alimento. Cada vez que o conceito relativo aos meus ministros não coloca em mim sua principal justificativa, torna-se inconsistente e a pessoa neles vê somente muitos defeitos e pecados. De tais defeitos falarei em outro lugar. Mas quando o respeito se fundamenta em mim, jamais desaparece, mesmo diante de defeitos nos ministros; como disse, a grandeza da eucaristia não é diminuída por causa dos pecados. A veneração pelos sacerdotes não pode cessar; se tal coisa acontecer, sinto-me ofendido.

(Excertos da obra 'O Diálogo', de Santa Catarina de Sena)

quarta-feira, 23 de março de 2022

IMAGEM DA SEMANA

'Estreita é a porta e apertado o caminho da vida e raros são os que o encontram' (Mt 7,14)

terça-feira, 22 de março de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXVIII)

Capítulo XXVIII

As Longas Penas de Expiação no Purgatório - Lord Stourton - Santa Lidwina e a Alma Tomada pelos Pecados da Luxúria

Dissemos que o valor total da dívida dos sofrimentos do Purgatório provém de todas as faltas não expiadas na terra, mas principalmente dos pecados mortais não remidos à sua culpa. Assim, aqueles homens que passam a vida inteira em estado habitual de pecado mortal e que atrasam a sua conversão até quase à morte, supondo que Deus lhes conceda essa graça excepcional, terão que sofrer os mais terríveis castigos. 

O exemplo de Lord Stourton dá-nos bons motivos para reflexão. Lord Stourton, um nobre inglês, era católico de coração mas, para manter a sua posição na corte, frequentava regularmente os ritos protestantes. Ele até acolheu um sacerdote católico em sua própria casa, ao preço dos maiores perigos, com o propósito de fazer uso do seu ministério para se reconciliar com Deus na hora de sua morte. Entretanto, ele sofreu um acidente repentino e, como muitas vezes acontece em tais casos, por um justo decreto de Deus, não teve tempo de realizar o seu desejo de conversão tardia. No entanto, a Divina Misericórdia, levando em consideração o que ele havia feito em favor da Igreja Católica tão perseguida na Inglaterra, concedeu-lhe a graça da contrição perfeita e, consequentemente, garantiu a sua salvação. Mas teve que pagar muito caro por sua negligência culposa. Anos se passaram. Sua viúva casou novamente e teve filhos. E é uma de suas filhas, Lady Arundel, que relata este fato como testemunha ocular:

'Um dia minha mãe pediu a F. Cornelius, um jesuíta de grande prestígio e que mais tarde morreu mártir (foi traído por um servo da família Arundel e executado em Dorchester em 1594), que rezasse uma missa em intenção da alma de Lord Stourton, seu primeiro marido. Ele assim o fez e, enquanto estava no altar, entre a Consagração e a Memento pelos mortos, parou por um longo tempo como se estivesse absorto em oração. Depois da missa, numa exortação que dirigiu aos presentes, contou-lhes uma visão que acabara de ter durante o Santo Sacrifício. Ele tinha visto uma imensa floresta que se estendia à sua frente, mas inteiramente em chamas, formando uma fornalha imensa. No meio dela, estava o nobre falecido, soltando gritos terríveis, lamentando a vida culpada que levara no mundo e na corte. Após ter feito uma confissão completa de suas faltas, o infeliz a terminou com estas palavras, que a Sagrada Escritura coloca na boca de Jó: 'Tem piedade de mim! Tenham piedade de mim, pelo menos vocês meus amigos, pois a mão do Senhor me tocou'. E então desapareceu. Enquanto relatava isso, F. Cornelius derramou muitas lágrimas, e todos nós, membros da família, ao número de vinte e quatro pessoas, choramos também. De repente, enquanto o padre ainda falava, percebemos na parede contra a qual o altar estava o que parecia ser o reflexo de brasas acesas'. Tal é o relato de Dorothy, Lady Arundel, como pode ser lido na 'História da Inglaterra', por Daniel.

Santa Lidwina também viu no Purgatório uma alma que sofreu longas penas por pecados mortais não suficientemente expiados na terra. O incidente é assim relatado na vida da santa. Um homem que, por muito tempo foi escravo do demônio da impureza, finalmente teve a felicidade de se converter. Confessou os seus pecados com grande contrição, mas, impedido pela morte, não teve tempo de expiar com justa penitência seus numerosos pecados. Lidwina, que o conhecia bem, rezou muito pela sua alma. Doze anos depois de sua morte ela ainda continuava a rezar na sua intenção, quando, em um de seus êxtases, foi levada ao Purgatório por seu anjo guardião e então ouviu uma voz triste saindo de um poço profundo. 'É a alma daquele homem' - disse o anjo - 'por quem você tem rezado com tanto fervor e constância'. 

Ela ficou surpresa ao encontrá-lo nas profundezas do Purgatório doze anos após a sua morte. O anjo, vendo-a tão afetada, perguntou se ela estava disposta a sofrer algo em favor de sua libertação. 'De todo o meu coração' - respondeu a donzela caridosa. A partir desse momento, passou a sofrer novas dores e tormentos assustadores, que pareciam superar a força da resistência humana. No entanto, ela os suportou com tanta coragem, sustentada por uma caridade mais forte que a morte, que agradou a Deus enviar-lhe finalmente alívio. Ela então respirou como quem tivesse sido trazida novamente à vida e, ao mesmo tempo, viu aquela alma, pela qual tanto sofrera, sair do abismo, branca como a neve, e voar para o Céu. 

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

segunda-feira, 21 de março de 2022

SOBRE O CONHECIMENTO DE DEUS

A visão imediata de Deus ultrapassa as forças naturais de toda e qualquer inteligência criada, angélica ou humana. Uma inteligência criada pode, em sua atividade natural, conhecer a Deus pelo reflexo de suas perfeições na ordem criada, mas não pode vê-lo diretamente em si mesmo como Ele se vê.

O anjo e a alma humana só se tornam capazes de um conhecimento sobrenatural de Deus e de um amor sobrenatural por Ele se tiverem recebido este enxerto divino que é a graça habitual ou santificante, participação da natureza divina ou da vida íntima de Deus. Só essa graça, recebida na essência de nossa alma como um dom gratuito, pode torná-la radicalmente capaz de operações propriamente divinas, isto é, de ver a Deus diretamente como Ele se vê e de o amar como Ele se ama.

Em outros termos, a deificação da inteligência, e a da vontade, supõe uma deificação da própria alma (em sua essência), donde derivam essas faculdades. Essa graça, quando está consumada e inamissível, se chama a glória, e dela procedem, na inteligência dos bem-aventurados do céu, a luz sobrenatural que lhes dá a força de ver a Deus, e, na vontade, a caridade infusa que lhes fez amá-lo, sem que possam daí em diante desviar-se dEle.

Em muitas ocasiões, já o notamos, Jesus repete: 'Aquele que crê em mim tem a vida eterna'. Não somente ele vai tê-la mais tarde mas, num certo sentido, já a tem, porque a vida da graça é a vida eterna começada. É, com efeito, a mesma vida em seu fundo, como o germe que está num fruto de carvalho tem a mesma vida que o carvalho desenvolvido; como a alma espiritual da criança pequena é a mesma que, um dia, desabrochará no homem feito.

No fundo, é a mesma vida divina, que está em germe no cristão aqui em baixo, e que está plenamente desabrochada nos santos do céu, que são verdadeiros viventes da vida da eternidade. É a mesma vida sobrenatural, a mesma graça santificante, que está no justo aqui em baixo e nos santos do céu; é também a mesma caridade infusa, com duas diferenças: aqui em baixo nós conhecemos a Deus não na claridade da visão, mas na obscuridade da fé infusa e, além disso, ainda que esperemos possuí-lo de modo inamissível, aqui embaixo podemos perdê-lo por nossa própria culpa. Mas, apesar dessas duas diferenças, relativas à fé e à esperança, é a mesma vida, porque é a mesma graça santificante e a mesma caridade; as quais devem durar eternamente.

(Excertos da obra 'As Três Idades da Vida Interior', de R. Garrigou-Lagrange)

domingo, 20 de março de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

'O Senhor é bondoso e compassivo' (Sl 102)

 20/03/2022 - Terceiro Domingo da Quaresma 

17. A FIGUEIRA ESTÉRIL 


Neste Terceiro Domingo da Quaresma, o Evangelho nos exorta a viver contínua e decididamente o caminho da plena conversão. E a busca da conversão exige de nós o afastamento incondicional do pecado e a via da santificação plena, como receptáculos abertos a toda a graça de Deus. Entre a retidão de nossos propósitos e a misericórdia do Pai, encontra-se o nosso lugar no portal da eternidade.

E Jesus nos fala primeiro que a grande tragédia humana é o pecado: 'Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa?' (Lc 13,2). Jesus falava dos galileus que tinham sido assassinados no templo por ocasião da Páscoa, a mando de Pilatos. Ele mesmo responderia que não, da mesma forma que não eram mais pecadores as 18 pobres vítimas da queda da torre de Siloé. A justiça divina não é amalgamada pelo castigo em si, mas pela resistência persistente e obstinada aos tesouros da graça. Não são desgraçados os que morrem em tragédias humanas, são miseráveis os que perdem a alma e a vida eterna consumidos na tragédia pessoal de apenas querer ganhar o mundo. 'Se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo' (Lc 13, 5).

Jesus ratifica estes ensinamentos com a parábola da figueira estéril, que não produz bons frutos, ano após ano, símbolo da alma fechada a todas as graças recebidas. Mas o Senhor busca incessantemente a volta da ovelha desgarrada e a espera e a consome de favores e bênçãos, porque o 'Senhor é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e compassivo' (Sl 102). É como o vinhateiro que nunca descuida da planta bruta, cultiva o solo, dispõe o adubo, rega a terra, acompanha ciosa e pacientemente os seus primeiros frutos. No nosso caminho de vida espiritual, o vinhateiro é o próprio Cristo, é Nossa Senhora, é a Santa Igreja, são os santos intercessores, é o nosso próprio Anjo da Guarda. Um derramamento abundante de graças à espera de nosso arrependimento sincero, de nossa dor ao pecado, de nossa conversão definitiva.

Mas o Evangelho termina também com uma determinação explícita: 'Se (a figueira) não der (fruto), então tu a cortarás’ (Lc 13,9). Assim, uma vez desprezados todos os limites da graça e tornados vãos todos os esforços do vinhateiro, a figueira torna-se inútil e a tragédia humana se consome na perda eterna das almas criadas para a glória de Deus.

sábado, 19 de março de 2022

19 DE MARÇO - SÃO JOSÉ

  

São José, esposo puríssimo de Maria Santíssima e pai adotivo de Jesus Cristo, era de origem nobre e sua genealogia remonta a Davi e de Davi aos Patriarcas do Antigo Testa­mento. Pouquíssimo sabemos da vida de José, além de suas atividades de carpinteiro em Nazaré. Mesmo o seu local de nascimento é ignorado: poderia ser Nazaré ou mesmo Belém, por ter sido a cidade de Davi. Ignora-se igualmente a data e as condições da morte de São José, mas existem fortes razões para afirmar que isso deve ter ocorrido an­tes da vida pública de Jesus. Com certeza, José já teria falecido quando da morte de Jesus, uma vez que não se explicaria, então, a recomendação feita aos cuidados mútuos à mãe e ao filho, dados, da cruz, por Jesus a Maria e a São João Evangelista.

Não existem quaisquer relíquias de São José e se desconhece o local do seu sepultamento. Muitos pais da Igreja defendiam que, devido à sua missão e santidade, São José, a exemplo de São João Batista, teria sido consagrado antes do nasci­mento e já gozava de corpo e alma da glória de Deus no céu, em companhia de Jesus e sua santíssima Esposa. As virtudes e as graças concedidas a São José foram extraordinárias, pela enorme missão a ele confiada pelo Altíssimo. A dig­nidade, humildade, modéstia e pobreza, a amizade íntima com Je­sus e Maria e o papel proeminente no plano da Redenção, são atributos e méritos extraordinários que lhe garantem a influência e o poder junto ao tro­no de Deus. Pedir, portanto, a intercessão de São José, é garantia de ser ouvido no mais alto dos céus. Santa Tereza, ardorosa devota de São José, dizia: 'Não me lembro de ter-me dirigido a São José sem que tivesse obtido tudo que pedira'.

A devoção a São José na Igreja Ca­tólica é antiquíssima. A Igreja do Oriente celebra esta festa, desde o século nono, no domingo depois do Natal. Foram os carmelitas que in­troduziram esta solenidade na Igreja Ocidental; os franciscanos, já em 1399, festejavam a comemoração do Santo Pa­triarca. Xisto IV inseriu-a no bre­viário e no missal; Gregório XV ge­neralizou-a em toda a Igreja. Cle­mente XI compôs o ofício, com os hinos, para a celebração da Festa de São José em 19 de março e colocou as missões na China sob a proteção do Santo. Pio IX introdu­ziu, em 1847, a festa do Patrocínio de São José e, em 1871, declarou-o Pa­droeiro da Igreja; muitos pontífices promoveram solenemente a devoção a São José, por meio de orações, homilias, encíclicas e devoções diversas.

sexta-feira, 18 de março de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (137/139)


137. DOM BOSCO CONFESSA UM DEFUNTO

Havia um jovem, chamado Carlos, que só pensava em viver e divertir-se. Mas eis que cai doente, tão doente que o médico lhe dá apenas algumas horas de vida. Quis confessar-se a Dom Bosco, que lhe era muito afeiçoado, mas Dom Bosco não pôde ir. Confessou-se com outro sacerdote, mas a confissão não foi sincera, pois ocultou faltas graves.

E o jovem morreu... Comunicaram logo a Dom Bosco que o seu querido Carlito falecera. Nesse momento uma voz misteriosa parecia segredar a Dom Bosco que o infeliz não se confessara bem. Saltou do leito, correu à casa do defunto. Ali estava Carlito imóvel, amarelo, endurecido: ia ser colocado no caixão. Dom Bosco ordenou que todos deixassem o aposento; ali só ficaram o santo e o cadáver.

Dom Bosco, falando ao ouvido do defunto, disse:
➖ Carlito!
O rapaz abriu os olhos e fitou-os em seu santo diretor.
➖ Onde estiveste? - perguntou-lhe o servo de Deus.
➖ Padre, numa região misteriosa e desconhecida. Vi muitos demônios e todos me queriam arrastar ao inferno. Diziam que tinham direito sobre mim.
➖ Filho, é porque não te confessaste bem. Ocultaste um pecado por vergonha, não é verdade?
➖ Sim, padre; mas agora quero declará-lo.

E o rapaz confessou com grande humildade seus pecados e sacrilégios.
➖ Padre, se não fôra esta grande misericórdia de Deus, eu estaria perdido para sempre.
Dom Bosco, erguendo a destra, deu-lhe a absolvição. Recebeu-a o jovem com grande recolhimento e na atitude da mais profunda gratidão. O santo abriu a porta e disse aos que esperavam do lado de fora:
➖ Podem entrar.

Entraram e lançaram um grito de surpresa e de terror. O morto estava sentado na cama. Parentes e amigos caíram de joelhos, mudos de assombro.
Dom Bosco inclinou-se e disse ao ouvido do jovem:
➖ Carlito, agora que estás na graça de Deus, que é que desejas: viver ou morrer?
➖ Padre - respondeu o rapaz - quero morrer.
Enquanto o santo lhe dava a bênção, Carlito deixava cair a cabeça sobre o travesseiro, juntava as mãos sobre o peito, fechava os olhos e... morria.

138. O FILÓSOFO E O BARQUEIRO

Um barqueiro transportava um filósofo em sua barca. Durante a travessia, disse o filósofo ao barqueiro:
➖ Então, meu velho, você sabe alguma coisa?
➖ Eu? Sei remar e nadar.
➖ Não sabe filosofia?
➖ Nunca ouvi falar disso.
➖ Não sabe astronomia?
➖ Não, senhor.
➖ Não conhece a gramática?
➖ Também não, senhor.

E assim foi o filósofo perguntando muitas coisas e o barqueiro respondendo:
➖ Não sei nada disso.
➖ Pois, assim, você perdeu a metade da vida, acrescentou o filósofo.

Nisso, distraídos pela conversa, deram contra um rochedo, partiu-se a barca e os dois naufragaram. O barqueiro, nadando, alcançou a margem; ao passo que o filósofo se afogava. O barqueiro, malicioso, gritou-lhe:
➖ Senhor filósofo, não sabe nadar?
➖ Não.
➖ Ah! não sabe? Então o senhor é um infeliz; perdeu a vida inteira. Suas astronomias e filosofias não lhe servem para nada.

Isto mesmo se pode dizer dos que sabem tudo deste mundo, menos a doutrina cristã, pois a ciência mais apreciada é que o homem bem acabe: porque, no fim da jornada, aquele que se salva, sabe e o que não se salva, não sabe nada.

139. O SOLDADO E O OVO

A pessoa que sabe sofrer com paciência é semelhante a um anjo. Conta Santiago que, num hospital servido por Irmãs de Caridade, achava-se um soldado em tratamento. Certo dia pediu-lhe trouxessem um ovo cozido. Poucos instantes após uma das Irmãs servia o enfermo o ovo cozido; mas aquele indivíduo, querendo, ao que parece, provar a paciência da religiosa, rejeitou o ovo bruscamente, dizendo:
➖ Está duro demais.

Retirou-se a Irmã em silêncio e, depois de alguns minutos, trouxe outro ovo; mas o doente rejeitou-o de novo, alegando:
➖ Está mole demais.

Sem mostrar o menor indício de impaciência, foi a Irmã, pela terceira vez, à copa e trouxe ao soldado um vaso com água fervente e um ovo fresco e disse-lhe com toda calma:
➖ Aqui tem o senhor tudo que é necessário; prepare o ovo do modo que lhe agradar.

Essa paciência inalterável da boa religiosa causou ao soldado tal impressão, que não pôde deixar de exclamar:
➖ Agora compreendo que há um Deus no céu, uma vez que há tais anjos na terra.
Por aí se vê que, pela paciência, pode-se fazer um grande bem ao próximo.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

quinta-feira, 17 de março de 2022

ORAÇÃO DE VISITA AO SANTÍSSIMO SACRAMENTO

 

Meu Senhor Jesus Cristo, que pelo amor que tendes aos homens, permaneceis noite e dia nesse Sacramento, todo cheio de bondade e de misericórdia, chamando, esperando e acolhendo a todos os que vêm visitar-vos: eu creio que estais realmente presente no Sacramento do Altar; adoro-vos do abismo do meu nada e vos agradeço todas as graças que me tendes dispensado até hoje, especialmente a de vos terdes dado a mim neste Sacramento, de me terdes concedido por advogada vossa Mãe Maria Santíssima e de me haverdes chamado para visitar-vos nesta igreja. 

Adoro e saúdo o vosso Coração amantíssimo e o faço por três fins: primeiro para vos agradecer tão grande dom; segundo, para reparar as injúrias que recebeis de vossos inimigos neste Sacramento de Amor; terceiro, para adorar-vos em todos os lugares da terra, onde permaneceis menos honrado e mais abandonado. Meu Jesus, amo-vos de todo o meu coração. Arrependo-me de ter ofendido tantas vezes a vossa bondade infinita. Proponho, com o auxilio da vossa divina graça, nunca mais vos ofender. 

E agora, miserável como sou, consagro-me inteiramente a Vós e vos ofereço o meu coração, a minha vontade e tudo o que possuo. De agora em diante fazei de mim o que for do vosso agrado. Eu não vos peço e não quero senão o vosso amor, a perseverança final e o cumprimento perfeito da vossa vontade. 

Recomendo-vos as almas do purgatório, particularmente as que foram mais devotas do Santíssimo Sacramento e de Maria Santíssima. Recomendo-vos também todos os pobres pecadores. Finalmente, ó meu amado Salvador, uno todos os meus afetos aos de vosso Coração amantíssimo, e assim, unidos ofereço-os ao vosso Eterno Pai e lhe peço em vosso nome que, por vosso amor, queira aceitá-los e atendê-los. Amém. 

(300 dias de indulgência)

terça-feira, 15 de março de 2022

A FÉ EXPLICADA: PODEMOS FICAR ENTEDIADOS NA ETERNIDADE DO CÉU?


Não, uma alma eleita não pode, nem na mais remota circunstância, ficar 'entediada' das glórias celestes ou da Visão Beatífica. Isso é algo tão absurdo, mais absurdo do que pretender colocar as águas de todos os oceanos da terra em um único e simples copo. Porque Deus de Deus, Luz da Luz - a onipotência divina - não é passível de mensuração pelo tempo, pela percepção de sentidos exteriores, pela miserabilidade da natureza humana.

Deus não pode entediar as almas dos eleitos - porque é Deus. E, em Deus, não existe amplitude, existe plenitude. E, à falta dessa percepção e esmagados pelo furor da deusa razão, os homens mensuram Deus e as coisas de Deus, incluindo o conhecimento, o amor ou a onipotência, sob a ótica humana de um deus de finitude provável. Sob a tutela desse diapasão, constroem então uma ideia falsificada e infantil da eternidade como sendo um tempo sem fim. Eternidade não é um tempo sem fim.

A eternidade não é uma medida de tempo que passa. Se fosse isso, não seria eternidade e Deus não seria Deus. Eternidade é um atributo de Deus e, tal como Deus, não teve início e nunca terá fim. Este conceito, aplicado aos homens, assume um atributo humano adicional - de circunstância. A minha eternidade - ou a eternidade de qualquer homem - teve um início definido (o momento da incorporação de uma alma ao meu corpo nascituro) e jamais terá fim. 

Quando, pois, nos tornamos inseridos na eternidade de Deus, somos eternos de um Deus eterno, infinitamente imutável. Não há um tempo que passa, mas um atributo que não passa. A eternidade com Deus é o momento sublimado da graça - 'coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que o amam' (I Cor 2,9) e infinitamente imutável - o perpétuo momento.

Não há no Céu 'momentos'; não há no Céu dias e noites, manhãs de inverno ou noites de verão. Não há nas moradas eternas um dia que a alma possa estar 'assim' e um outro dia em que ela possa estar 'não bem assim'. A plenitude divina não pressupõe 'mais' ou 'menos', nem 'pouco' ou muito': é tudo, sempre, sempre, sempre. A santidade plena aniquila por completo a necessidade ou a possibilidade de quaisquer estímulos exteriores ou de quaisquer manifestações do que seriam 'vontade' ou 'pensamento'. 

No perpétuo momento, a alma está saciada infinitamente de Deus e em Deus, em todas as suas aspirações, em todas as suas vontades, em todos os seus pensamentos, em todos os seus atributos, em todas as suas necessidades. No momento perpétuo, Deus está presente em plenitude na alma, preenchendo todas as suas dimensões, espaços, tempos e aspirações, em Verdade, Conhecimento, Justiça e Caridade. E também e principalmente em Amor, Amor de eternidade.

segunda-feira, 14 de março de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: PUREZA, FORÇA E RIQUEZA DESTE AMOR


Como é puro o vosso amor, ó meu Deus! É o amor de um espírito por outro espírito, que ignora o que São Paulo chamou de carne, e que esta também ignora. Pois este amor não pertence ao mundo dela; está infinitamente acima dela. Mais do que isso, este amor declara guerra à carne, e uma guerra implacável. Para viver, para que possa desenvolver livremente em nós, requer que a carne desfaleça, resseque e morra. Nessa batalha misteriosa, nossa alma é, ao mesmo tempo, palco de teatro e de recompensas. Mil vezes feliz a alma que, para se unir a Vós, não teve que sofrer aquelas excruciantes, mas tão necessárias purificações de amor!

Como é poderoso o vosso amor, ó meu Deus! Podemos confiar nele com certeza absoluta, porque ele nunca nos falta. A alma que se une ao vosso amor torna-se tão firme e imutável como ele e, assim, até pode sentir em suas faculdades sensíveis o inevitável fluxo e refluxo das emoções, mas não tem o íntimo perturbado por elas. Descansa no terreno firme deste amor. Se a tentação ousar perturbar a sua paz, a alma interior só precisa se refugiar mais firmemente a este amor divino, reduzindo a sua ameaça à impotência, até que desapareça por completo. O vosso amor é refúgio e fortaleza; nele a alma está segura e nada poderá perturbá-la. Está protegida por todos os lados; está resguardada em todos os lugares. É como uma nuvem, brilhante e sombria ao mesmo tempo, que a guia e a mantém protegida. A alma sente-se verdadeiramente envolvida por uma presença misteriosa que a fortalece, que lhe dá conforto e segurança, que a vivifica plenamente.

Como é abundante o vosso amor, ó meu Deus! É um tesouro que contém todos os bens e que é inesgotável. Tudo dele procede; é o primeiro dom totalmente gratuito e eivado das graças de Deus. Por que Vós me amais tanto, ó meu Deus? Só porque o quereis e porque sois bom. Ao me dar o vosso Coração, destes tudo a mim: não sois vós o poder infinito? E esse poder infinito não está a serviço do vosso Amor?

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte III - A União com Deus; tradução do autor do blog)