quarta-feira, 10 de maio de 2017

DOCUMENTOS DE FÁTIMA (III)

INTERROGATÓRIO DOS VIDENTES (27 DE SETEMBRO DE 1917)*

No intuito de completar as impressões colhidas no dia treze do corrente mês de setembro e habilitar-me com os elementos indispensáveis para fundamentar, tanto quanto possível, um juízo seguro acerca dos acontecimentos que nos últimos cinco meses se têm desenrolado a três quilómetros ao sul da aldeia de Fátima, no local denominado Cova da Iria, fui pela segunda vez na quinta-feira última, vinte e sete, àquela pitoresca aldeia, graciosamente alcandorada num dos contrafortes da majestosa serra de Minde. 

Eram três horas da tarde quando me apeei do trem que de Torres Novas me conduzira por Vila Nova de Ourém à humilde povoação, cujo nome é hoje pronunciado como uma esperança fagueira de bênçãos e graças celestes por dezenas de milhares de lábios, de um extremo ao outro de Portugal. O reveendo pároco a quem logo procurei, não estava em casa: tinha saído para fora da freguesia e só à noite devia voltar. Pesaroso por não poder trocar algumas palavras com ele sobre o assunto que ali me levava, resolvi ir a casa das crianças que se dizem favorecidas com aparições da Virgem Santíssima e ouvir da boca delas a narrativa pormenorizada dos estranhos sucessos cuja notícia tem atraído dia a dia à Fátima um sem número de pessoas de todas as classes e condições sociais.

À distância de dois quilômetros da igreja paroquial e do presbitério, num insignificante lugarejo chamado Aljustrel, pertencente à freguesia, ficam situadas as modestas habitações das famílias dos pastorinhos. As duas crianças mais novas estavam ausentes. Dirigi-me à casa da mais velha, onde a mãe me convidou a entrar e sentar-me, convite a que acedi. A uma pergunta minha sobre o paradeiro da filha, que eu procurava, respondeu-me que ela andava a vindimar numa pequena propriedade que lhe pertencia e que ficava dois quilômetros distante. Alguém se prestou logo a ir chamá-la de ordem da mãe. 

Entretanto, as duas crianças mais novas, que tinham regressado do campo, sabendo pelas vizinhas que eu lhes desejava falar, vieram ter comigo. São dois irmãos, um menino e uma menina. Chegou primeiro a menina. Chama-se Jacinta de Jesus, tem sete anos de idade e é filha de Manuel Pedro Marto e de Olímpia de Jesus. Bastante alta para a sua idade, um pouco delgada sem se poder dizer magra, de rosto bem proporcionado, tez morena, modestamente vestida, descendo-lhe a saia até à altura dos artelhos, o seu aspecto é o de uma criança saudável, acusando perfeita normalidade no seu todo físico e moral. 

Surpreendida com a presença de pessoas estranhas, que me tinham acompanhado e que não esperava encontrar, a princípio mostra um grande embaraço, respondendo por monossílabos e num tom de voz quase impercetível, às perguntas que eu lhe dirijo. Momentos depois aparece o irmão, rapaz de nove anos de idade, que entra com um certo desembaraço no quarto, onde estávamos, conservando o barrete na cabeça, decerto por não se lembrar de que devia descobrir-se. Um sinal que a irmã lhe fez nesse sentido não foi percebido por ele. Convidei-o a sentar-se numa cadeira ao meu lado, obedecendo imediatamente sem nenhuma relutância. Principiei sem demora a interrogá-lo sobre o que tinha visto e ouvido desde maio último na Cova da Iria no dia treze de cada mês durante o tempo da aparição. Estabeleceu-se entre mim e ele o curto diálogo que segue:

– Que é que tens visto na Cova da Iria nos últimos meses? 
– Tenho visto Nossa Senhora. 
– Onde é que ela aparece? 
– Em cima duma carrasqueira.
– Aparece de repente ou tu vê-la vir de alguma parte? 
– Vejo-a vir do lado onde nasce o sol e colocar-se sobre a carrasqueira.
– Vem devagar ou depressa? 
– Vem sempre depressa. 
– Ouves o que ela diz à Lúcia?
– Não ouço. 
– Falaste alguma vez com a Senhora? Ela já ted irigiu a palavra?
– Não, nunca lhe perguntei nada; fala só com a Lúcia. 
– Para quem olha ela, também para ti e para a Jacinta, ou só para a Lúcia?
– Olha para todos três; mas olha durante mais tempo para a Lúcia. 
– Já alguma vez chorou ou se sorriu? 
– Nem uma coisa nem outra; está sempre séria. 
– Como está vestida? 
– Tem um vestido comprido e por cima um manto que lhe cobre a cabeça e desce até à extremidade do vestido.
– Qual a cor do vestido e do manto? 
– É branca, tendo o vestido riscos dourados. 
– Qual é a atitude da Senhora? 
– É a de quem está a rezar. Tem as mãos postas à altura do peito. 
– Traz alguma coisa nas mãos? 
–Traz entre a palma e as costas da mão direita umas contas que estão pendentes sobre o vestido. 
– E nas orelhas o que tem? 
– As orelhas não se veem, porque estão cobertas com o manto.
– De que cor são as contas? 
– São também brancas. 
– A Senhora é bonita?
– É, sim. 
– Mais bonita do que aquela menina que tu ali vês? 
– Mais. 
– Mas há senhoras muito mais bonitas que aquela menina... 
– É mais bonita que qualquer pessoa que eu visse. 

Concluído o interrogatório do Francisco, chamei de parte a Jacinta que andava a brincar na rua com outras crianças, fi-la sentar num banquinho ao pé de mim e submeti-a também a um interrogatório, logrando obter dela respostas completas e minuciosas, como as do irmão: 

– Tens visto Nossa Senhora no dia 13 de cada mês desde maio para cá?
– Tenho visto. 
– Donde é que ela vem? 
– Vem do Céu, do lado do sol. 
– Como está vestida?
– Tem um vestido branco, enfeitado a ouro, e na cabeça tem um manto, também branco.
– De que cor são os cabelos? 
– Não se lhe veem os cabelos, que estão cobertos com o manto.
– Traz brincos nas orelhas? 
– Não sei, porque também não se lhe veem as orelhas. 
– Qual é a posição das mãos? 
– As mãos estão postas à altura do peito, com os dedos voltados para cima. 
– As contas estão na mão direita ou na mão esquerda? 

A esta pergunta a criança responde primeiro que estavam na mão direita, mas em seguida, devido à insistência propositada e capciosa da minha parte, mostra-se perplexa e confusa, não sabendo precisar bem qual das suas mãos correspondiaà mão com que a Aparição segurava o Rosário. 

– O que é que a Senhora recomendou à Lúcia com mais empenho? 
– Mandou que rezássemos o terço todos os dias. 
– E tu reza-o? 
– Rezo-o todos os dias com o Francisco e a Lúcia. 

Meia hora depois de terminado o interrogatório de Jacinta de Jesus, aparece Lúcia de Jesus. Vinha, como já disse de uma pequena propriedade de sua família, situada a dois quilômetros de distância, onde tinha estado a vindimar. Mais alta e mais nutrida que as outras duas crianças, de tez mais clara, robusta e saudável, apresenta-se diante de mim com um desembaraço que contrasta singularmente com o acanhamento e a timidez excessiva da Jacinta. Singelamente vestida como esta, a sua atitude não denota e o seu rosto não traduz nenhum sentimento de vaidade nem de confusão. 

Sentando-se, a um aceno meu, numa cadeira, ao meu lado, presta-se da melhor vontade a ser interrogada sobre os acontecimentos de que ela é a principal protagonista, sem embargo de se sentir visivelmente fatigada e abatida, mercê das visitas incessantes que recebe e dos inquéritos repetidos e prolongados a que é submetida. Filha de Antônio dos Santos, de cinquenta anos de idade, e de Maria Rosa, de quarenta e oito anos, tem um irmão e quatro irmãs, todos mais velhos do que ela: Maria, de vinte e seis anos, já casada, Teresa, de vinte e quatro, Manuel, de vinte e dois, Glória, de vinte, e Carolina, de quinze. Completou dez anos de idade em vinte e dois de março do corrente ano. 

Tinha oito anos quando fez a sua primeira comunhão. A mãe, tipo da mulher cristã, e da boa dona de casa, entregue às lides domésticas, procurou sempre inspirar aos filhos o santo temor de Deus e levá-los ao cumprimento de todos os seus deveres morais e religiosos. Altamente preocupada com os sucessos que atraem a todo o momento as atenções de milhares de pessoas para a sua pobre habitação, até há pouco tempo ignorada do mundo, nota-se desde logo que o seu espírito hesita, numa ansiedade inquieta, entre a esperança de que sua filha seja realmente privilegiada com a aparição da Virgem e o receio de que ela seja vítima de uma alucinação que lhe traga desgostos e cubra de ridículo toda a sua família. 

A uma pergunta minha acerca da piedade da sua Lúcia, responde que não acha nela nada de extraordinário neste particular, vendo-a rezar da mesma forma e com o mesmo fervor que antes das aparições, exatamente como fazem as suas irmãs. Dou princípio ao interrogatório da vidente:

 – É verdade que Nossa Senhora te tem aparecido no local chamado Cova da Iria? 
– É verdade. 
– Quantas vezes já te apareceu?
– Cinco vezes, sendo uma cada mês.
– Em que dia do mês?
– Sempre no dia treze, exceto no mês de agosto, em que fui presa e levada para a vila (Vila Nova de Ourém) pelo senhor administrador. Nesse mês vi-a só alguns dias depois, a dezenove, no sítio dos Valinhos.
– Diz-se que a Senhora te apareceu também o ano passado. Que há de verdade a este respeito? 
– O ano passado nunca me apareceu, nem antes de maio deste ano; nem eu disse isso a pessoa alguma, porque não era exato. 
– Donde é que ela vem? Das bandas do nascente? 
– Não sei; não a vejo vir de parte alguma; aparece sobre a azinheira, e quando se retira é que toma a direção do ponto do céu em que nasce o sol. 
– Quanto tempo se demora? Muito ou pouco? 
– Pouco tempo. 
– O suficiente para se recitar um Padre Nosso e uma Avé Maria, ou mais? 
– Mais, bastante mais, mas nem sempre o mesmo tempo; talvez não chegasse para rezar o terço. 
– Da primeira vez que a viste não ficaste assustada? 
– Fiquei, e tanto assim que quis fugir com a Jacinta e o Francisco, mas Ela disse-nos que não tivéssemos medo, porque não nos faria mal. 
– Como é que está vestida?
– Tem um vestido branco, que desce quase até aos pés, e cobre-lhe a cabeça um manto, da mesma cor, e do mesmo comprimento que o vestido. 
– O vestido não tem enfeites? 
– Veem-se nele, na frente, dois cordões dourados, que descem do pescoço e se eunem por uma borla, também dourada, à altura do meio do corpo. 
– Tem algum cinto ou alguma fita? 
– Não tem. 
– Usa brincos nas orelhas? 
– Usa umas argolas pequenas. 
– Qual das mãos segura as contas? 
– A mão direita. 
– Eram um terço ou um rosário? 
– Não reparei bem. 
– Terminavam por uma cruz? 
– Terminavam por uma cruz branca, sendo as contas também brancas. A cadeia era igualmente branca. 
– Perguntaste-lhe alguma vez quem era? 
– Perguntei, mas declarou que só o diria a treze de outubro. 
– Não lhe perguntaste de onde vinha? 
– Perguntei de onde era, e ela respondeu-me que era do Céu. 
– E quando foi que lhe fizeste essa pergunta? 
– Da segunda vez, a treze de junho. 
– Sorriu alguma vez ou mostrou-se triste? 
– Nunca sorriu nem se mostrou triste, mas sempre séria. 
– Recomendou-te, e aos teus primos, que rezassem algumas orações? 
– Recomendou-nos que rezássemos o terço em honra de Nossa Senhora do Rosário, a fim de se alcançar a paz para o mundo.
– Mostrou desejos de que no dia treze de cada mês estivessem presentes muitas pessoas durante a aparição na Cova da Iria? 
– Não disse sobre esse assunto.
– É certo que te disse um segredo, proibindo que o revelasses a quem quer que fosse? 
– É certo. 
– Diz respeito só a ti ou também aos teus companheiros? 
– A todos três. 
– Não o podes manifestar ao menos ao teu confessor? A esta pergunta guardou silêncio, parecendo um tanto enleada e julguei não dever insistir, repetindo a pergunta. 
– Consta que, para te veres livre das importunações do senhor administrador, no dia em que foste presa, lhe contaste, como se fosse o segredo uma coisa que o não era, enganando-o assim e gabando-te depois de lhe teres feito essa partida: é verdade? 
– Não é; o senhor administrador quis realmente que eu lhe revelasse o segredo, mas como não o podia dizer a ninguém, não lho disse, apesar de ter insistido muito comio para que lhe fizesse a vontade. O que fiz foi contar tudo o que a Senhora me disse, exceto o segredo, e talvez por esse motivo o senhor administrador ficasse julgando que eu lhe tinha revelado também o segredo. 
– A Senhora mandou-te aprender a ler? 
– Mandou, sim, da segunda vez que apareceu. 
– Mas se Ela disse que te levaria para o Céu no mês de outubro próximo, para que te serviria aprenderes a ler? 
– Isso não é verdade: a Senhora nunca disse que me levaria para o Céu em outubro, e eu nunca afirmei que ela me tivesse dito tal coisa. 
– O que declarou a Senhora que se devia fazer ao dinheiro que o povo deposita ao pé da azinheira na Cova da Iria? 
– Disse que o devíamos colocar em dois andores, levando eu, a Jacinta e mais duas meninas um deles, e o Francisco, com mais três rapazes, o outro, para a igreja da freguesia. Parte desse dinheiro seria destinado ao culto e festa da Senhora do Rosário e a outra parte para ajuda de uma capela nova. – Onde quer ela que seja edificada a capela? Na Cova da Iria? 
– Não sei: ela não o disse. 
– Estás muito contente por Nossa Senhora te ter aparecido? 
– Estou. 
– No dia treze de outubro Nossa Senhora virá só? 
– Vem também São José com o Menino, e pouco tempo depois, será concedida a paz ao mundo. 
– Nossa Senhora fez mais alguma revelação? 
– Declarou que no dia treze fará um milagre para que todo a povo acredite que ela realmente aparece. – Por que razão não raro baixas os olhos deixando de fitar a Senhora? 
– É que ela às vezes cega. 
– Ensinou-te alguma oração? 
– Ensinou; e quer que a recitemos depois de cada mistério do rosário. 
– Sabes de cor essa oração? 
– Sei. 
– Diz lá... 
– Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno e aliviai as almas do Purgatório, principalmente as mais abandonadas. 

(* realizado pelo Visconde de Montello e transcrito na sua obra 'Os Episódios Maravilhosos de Fátima', Casa Editora, 1921)