quinta-feira, 23 de abril de 2015

CARTAS A MEU PAI (V)

Pai:

Tive hoje um dia bem incomum neste mês de abril que passa voando. Logo, pela manhã, eu tive a visão das legiões de almas que acompanhavam Cristo Crucificado no caminho do Gólgota. Eu vi claramente os rostos das pessoas que me são tão familiares, tão conhecidas, e de milhares de milhões que me são absolutamente desconhecidas, mas que compõem a estupenda multidão dos vossos filhos. Todos eles só tinham olhares para o Cristo, todos eles olhavam tão somente para a cruz e os rostos brilhavam como feitos de luz. E eu estava ali, no meio deles, como parte do olhar humano transfigurado na busca e na posse eterna da Plena Visão!

Pode ter sido apenas um resquício ainda de sonho, ou algo além (é um bom motivo para incomodar mais uma vez meu diretor espiritual). Na legião de tantas almas, quantas milhares estavam crucificadas como Jesus! Eu passava correndo entre elas, e o sangue delas fluía como um rio abaixo de mim! E o sofrimento delas tornara-se um cântico único de glória, tão extraordinário que miríades de anjos tinham vindo escutar. D. era uma dessas almas crucificadas e, quando o seu olhar encontrou o meu, eu pressenti, num mísero segundo, o que seria a glória de se possuir a felicidade plena de se estar em Deus.

Outras legiões de almas carregavam as cruzes às costas, vergadas pelo lenho sagrado, semelhantes em desprezo e sofrimento, quase que semelhantes em tudo ao Senhor. T. estava bem na frente da minha visão e como me pareceu pesada e enorme a sua cruz, que esforço tremendo fazia vibrar os músculos das suas costas e o impacto dos pés descalços na pedra dura do chão... L. e M. caminhavam juntos, as cruzes quase que entrelaçadas... quantas almas, vergadas e oprimidas, por cruzes imensas... e um oceano delas marchava em êxtases de amor.

E a procissão sem fim de almas agora trazia legiões de legiões. Mas estas almas não estavam pregadas na cruz, não carregavam suas cruzes mas, ao contrário, as agarravam sem jeito, as puxavam insatisfeitas e as arrastavam entre lamúrias e lamentações, levantando nuvens de poeira, por entre as quais os vultos se amontoavam e se confundiam em massas disformes. Eram as almas tíbias e inseguras que se acostumaram ao hálito da fé, mas não se conformaram pela fé em novos Cristos. À medida que avançavam nos passos, maior claridade as ofuscava e a infinita misericórdia de Deus as abraçava e as cumulava de graças sobre graças. Não podia ver estas almas claramente, não me foi possível identificar e nem mesmo guardar memória de nenhuma, mas pressenti que muitas delas ou me eram conhecidas ou, pelo menos, não me eram totalmente estranhas. 

Ó meu Pai, e quantos não estarão lá no último dia? Quantos ficarão retidos nos contrafortes dos pecados, nas muralhas dos vícios, na masmorra das paixões mundanas? Quantos, quantos destes que hoje convivem comigo no barulho da vida, nas conversas profanas, no riso de todas as manhãs, no afã de mais um dia de trabalho, na ânsia de fazer mais planos, na incessante busca de ter mais, de ser mais, de viver em rios de prazer e alegria a vida que passa como um espasmo de vento, não levarão suas cruzes consigo, não estarão nas legiões dos herdeiros do Céu e se perderão para sempre nos caminhos do nada? Quantos? 

Rezei por I., ainda tão distante da verdade de Deus. Rezei por J., pelas suas muitas inquietações, juízos e questionamentos que submergem a beleza da sua fé em monturos de orgulho inútil de uma inteligência privilegiada. E rezei por N.M., rezei muito por ela, para que Vós, meu Pai, não desistais dela, nem quando ela parecer desistir de Vós. E, como sei quão belos são os vossos desígnios, rezei para que todos os vossos filhos se ergam do mundo e dele se libertem para se pregarem na cruz como Jesus Crucificado.

Das outras coisas que tive neste dia, busquei torná-las orações para Vós, na intenção principalmente daqueles que ainda não Vos conhecem. E isso é tudo por hoje, na vida de um filho vosso no meio do mundo. Boa noite, Pai. Com a vossa bênção, R.

('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).