sábado, 20 de abril de 2013

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (VII)

Lívia pressentira. Isso, tinha sido um pressentimento. Uma brisa tênue, um sopro delicado que perpassou pela sua mente num instante fugidio. Uma sensação estranha num vislumbre de inquietude. Aquele lugar, aquelas pessoas, aquela agitação movida a muita bebida e música alta, passaram, num relance, a ser uma encenação medonha, um arremedo de alegria, o estertor de uma loucura. Sentiu no corpo como que uma corrente elétrica em redemoinhos, rápida e instintiva, no complemento do desasossego mental. Teve a convicção imediata de que havia algo errado, do risco iminente, da certeza do mal. E agiu de pronto.

Enveredou-se no meio da massa humana que se movia mecanicamente ao som da balada envolvente, avançando e contorcendo-se contra os corpos em desalinho. A penumbra e o espargir acelerado dos raios de luzes coloridas davam a sensação de que se movimentava em câmera lenta, meio sem direção, quase sem gravidade. E avançava aos empurrões de forma desordenada, impelida por um frêmito de medo e ansiedade de sair dali, o mais rápido possível, de qualquer jeito. Teve a clara certeza do empurrão que a lançou uns três metros à frente, em meio a espaços físicos inexistentes, através de corpos repentinamente abstratos, num voo cego e incompreensível. Sabia, sem saber como, que não podia parar, não devia olhar para trás, nem por um instante, nunca. 

A porta aberta pareceu imensa e luminosa como nas manhãs de sol e o vento frio que chegou de fora foi um oceano de bênçãos. Mergulhou na noite aconchegante como fugitiva de uma masmorra tenebrosa e respirou profundamente, como se o ar limpo tivesse os aromas integrados de todos os bálsamos humanos. E correu, correu, correu desabaladamente para longe dali, sem olhar pra trás, nunca. E teve a súbita percepção das estruturas estremecendo, dos estertores do concreto se partindo, dos gritos lancinantes da massa humana em fuga repentina, da espantosa explosão do mundo, dos vidros se despedaçando em todas as fachadas, da nuvem de destroços arrastando tudo num turbilhão enlouquecido, de gritos distantes e, depois de tudo, de um silêncio pesado como chumbo.

Lívia se levantou com desmedido esforço e cambaleou vacilante. Em câmera lenta, seus olhos foram se acostumando ao cenário de guerra agora projetado à sua frente e seus ouvidos foram se reabrindo aos sons de pessoas gritando desesperadas de algum lugar e a uma longínqua sirene de ambulância. Sabia, sem saber como, que estava viva e sem sequela alguma, embora coberta de pó e de uma máscara de fuligem. Sabia, como ninguém saberia nunca, por quem e porque tinha sido salva daquela enorme e brutal tragédia. Apertou a pequena imagem contra o peito e começou a chorar copiosamente. E, ainda cambaleante, começou a andar vagarosamente em direção às luzes mais próximas da cidade, sem sentir o ar gelado da noite, sem olhar para trás.