quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (V)

Era uma velha aldeia, perdida nos contrafortes mais ermos dos Urais, na porção mais remota do Ártico. Naquela região perdida do mundo dos homens, viviam pouco mais de duas centenas de homens, mulheres e crianças bem pouco comuns, forjados, desde os primeiros anos da juventude, para o duro trabalho de uma lida diária que consistia basicamente em sobreviver. Sob as duras condições climáticas, frio polar, ventos enregelantes, nevascas e rochedos congelados, o instinto humano preservava ainda aqueles remanescentes de gerações de desbravadores, que dominavam tenazmente a natureza bruta, a vida insana.  

Na velha aldeia, a fé movia montanhas e cordilheiras sem fim. Na gruta de Komovo, aquela gente se reunia e rezava para a Santa Virgem de Kazan, e agradecia mais um dia que se ia, mergulhando na noite que passava como uma sombra passageira, ainda assim vestida dos reflexos translúcidos das neves eternas dos Urais. Aqueles corpos duros, enrijecidos de frio e pela natureza bruta, batiam os joelhos no chão congelado, e as vozes, em unidade harmônica, ecoavam pelos desvãos da pedra nua. Era assim e tinha sido assim, desde que o mundo era mundo, e isso significava que o mundo tinha o tempo e as dimensões da velha aldeia.

Zanev desafiou o mundo dos homens e as tradições milenares da velha aldeia. Ele não acreditava, ele não tinha simplesmente fé alguma em Deus e nem na intercessão da Virgem de Kazan. Era muito mais fácil acreditar que era possível a cada homem definir seus próprios limites, forjar horizontes, escalar montanhas, redefinir as dimensões do mundo. Zanev decidiu partir e, como nunca tinha a melhor hora, decidiu que o melhor era agora. Na aldeia de Zanev, a singularidade da vida humana era preservada como desígnio divino. Mesmo analisada como mera insensatez ou desvairada loucura, era dado a Zanev cumprir a sua parte no grande plano de Deus na história humana. Partir era um destino então, e não houve impedimentos, recomendações, ansiedades, lamentos, condenação alguma. A mãe, apenas a mãe, lhe dissera algo além das despedidas austeras:

'Volte, meu filho, se essa for a vontade de Deus e da Virgem de Kazan'

A resposta de Zanev nada teve além da rigidez dos homens duros:

'Voltarei, minha mãe, voltarei se encontrar, em algum lugar dos Urais embrutecidos, uma rosa vermelha para louvar a Virgem de Kazan'.

E Zanev partiu, atravessando montanhas e vales congelados por semanas, sucumbido diante de nevascas e ventanias muito mais brutais do que na velha aldeia, dormindo em cavernas, alimentando-se de carne congelada, bebendo água do degelo das neves generosas. E compreendeu o desvario de sua jornada, a inutilidade de suas decisões, a pequenez de sua alma, a morte certa. Sabia naturalmente o trajeto feito, seguindo as cumeadas e vales das montanhas mais baixas, e sabia ser possível um retorno ainda. Mas voltar e encarar toda uma aldeia, e ser um eterno aprendiz da insensatez humana? A insensatez de Zanev era a de um mestre de ofício e ele decidiu ir em frente: a mãe estava errada, não haveria a volta do filho pródigo à velha aldeia porque esta era a vontade de Zanev e não a vontade de Deus.

E assim fez. E a cordilheira se aprumou de forma repentina e a neve tornou-se ainda mais espessa e brutal nos píncaros gelados. Cada passo era uma conquista árdua e tenebrosa. Zanev buscou em vão uma caverna, um entalhe negro na alvura descomunal, um arremedo de abrigo. Nada, ele estava isolado no vazio do seu próprio mundo. Algo dentro dele, no mais remoto do seu íntimo, sussurou para não dar o passo seguinte. Algo o moveu a recuar e modificar o último trajeto, a descer com cuidado o talude íngreme, perigosamente escorregadio, e buscar um atalho lateral. Algo o fez mudar o curso, a refazer a trilha original. Algo o fez quebrar a rigidez da insensatez humana em vez de esmagar sem tédio neves indormidas.

Zanev tropeçou e caiu, deslizando pelo flanco de pequena encosta, espargindo neve, braços e pernas em tumulto. Sentiu o baque das costas em alguma coisa amortecendo o impacto. Levantou-se arquejante, limpando a neve do rosto e das grossas vestimentas. Viu o rastro sinuoso da sua patinação forçada no gelo fofo da encosta e virou-se para ver onde batera as costas.

Havia um pequeno corte vertical na rocha, delimitando uma placa de gelo, de forma estranhamente geométrica. Limpou o gelo de cobertura e descobriu, com inegável espanto, uma placa metálica quadrada, de cerca de 40cm de lado, encravada verticalmente em contato com o corte rochoso. Puxou-a com facilidade da neve e notou a superfície esmerilhada do metal. Virou a placa e se deixou cair de joelhos, em mudo espanto. Diante dele, na outra face da placa, agora em metal polido, viu o desenho de singular beleza de uma rosa em vermelho. No mais perdido dos Urais, a Virgem de Kazan o encontrara. Zanev compreendeu que voltar seria a mais bela de todas as primaveras assim que começou a longa caminhada à sua velha aldeia.