quinta-feira, 19 de novembro de 2015

DA AGONIA DO GETSÊMANI


Espírito Divino, iluminai a minha inteligência, inflamai o meu coração, enquanto medito na Paixão de Jesus. Ajudai-me a penetrar nesse mistério de amor e sofrimento do meu Deus que, feito homem, sofre, agoniza, morre por mim. Ó Eterno, ó Imortal, descei até nós para sofrer um martírio inaudito, a morte infame sobre a cruz no meio dos insultos, de impropérios e ignomínias, a fim de salvar a criatura que o ultrajou e continua a atolar-se na lama do pecado.

O homem saboreia o pecado e, por causa do pecado, Deus está mortalmente triste; os tormentos de uma agonia cruel fazem-no suar sangue! Não, não posso penetrar neste oceano de amor e de dor sem a ajuda da Vossa graça, ó meu Deus. Abri-me o acesso à mais íntima profundidade do coração de Jesus, para que eu possa participar da amargura que o conduziu ao Jardim das Oliveiras, até às portas da morte — para que me seja dado consolá-lo no seu extremo abandono. Ah! Pudesse eu unir-me a Cristo, abandonado pelo Pai e por si próprio, a fim de expirar com Ele! Maria, Mãe das Dores, permiti que eu siga Jesus e participe intimamente da sua Paixão e do seu sofrimento! Meu Anjo da guarda, velai para que as minhas faculdades se concentrem todas na agonia de Jesus e nunca mais se desprendam. 

No termo da sua vida terrestre, depois de se nos ter inteiramente entregue no sacramento do seu amor, o Senhor dirige-se ao Jardim das Oliveiras, conhecido dos discípulos, mas de Judas também. Pelo caminho, ensina-os e prepara-os para a sua Paixão iminente e convida-os, por seu amor, a sofrer calúnias, perseguições até à morte, para os transfigurar à semelhança d'Ele, modelo divino. No momento de começar a sua Paixão amarguíssima, não é n'Ele que pensa; pensa em ti. Que abismos de amor não contém o seu Coração! A sua Santa Face é toda tristeza, toda ternura. As suas palavras jorram da profundidade mais íntima do seu coração, e são todas palpitação de amor.

Ó Jesus, o meu coração perturba-se quando penso no amor que Vos obriga a correr ao encontro da Vossa Paixão. Ensinastes-nos que não há amor maior que dar a vida por aqueles a quem se ama. Eis que estais prestes a selar estas palavras com o Vosso exemplo. No Jardim da Oliveiras, o Mestre afasta-se dos discípulos e só leva três testemunhas da sua Agonia: Pedro, Tiago e João. Eles, que o viram transfigurado sobre o Tabor, terão força para reconhecer o Homem-Deus neste ser, esmagado pela angústia da morte?

Ao entrar no Jardim disse-lhes: 'Ficai aqui! Velai e rezai para não cairdes em tentação. Acautelai-vos, porque o inimigo não dorme. Armai-vos antecipadamente com as armas da oração para não serdes surpreendidos e arrastados para o pecado. É a hora das trevas'. Tendo-os exortado, afastou-se à distância de uma pedrada e prostrou-se com a face em terra. A sua alma está mergulhada num mar de amargura e extrema aflição. É tarde. Na lividez da noite, agitam-se sombras sinistras. A Lua parece injetada de sangue. O vento agita as árvores e penetra até aos ossos. Toda a natureza como que estremece de secreto pavor! Ó noite, como nunca houve outra semelhante.

Eis o lugar onde Jesus vem orar. Ele despoja a sua santa Humanidade da força à qual tem direito pela sua união com a Divina Pessoa, e mergulha-a num abismo de tristeza, de angústia, de abjeção. O seu espírito parece submergir-se. Via antecipadamente toda a sua Paixão. Vê Judas, seu apóstolo tão amado, que o vende por alguns dinheiros. Ei-lo a caminho de Getsêmani, para o trair e entregar! Todavia, ainda há pouco não o alimentou com a sua carne, não lhe deu a beber o seu sangue? Prostrado diante dele, lavou-lhe os pés, apertou-os contra o coração, beijou-os com os seus lábios. Que não fez ele para o reter à beira do sacrilégio, ou pelo menos para o levar a arrepender-se! 

Não! Ei-lo que corre para a perdição. Jesus chora. Vê-se arrastado pelas ruas de Jerusalém onde ainda há alguns dias o aclamavam como Messias. Vê-se esbofeteado diante do sumo sacerdote. Ouve os gritos: 'À morte!' Ele, o autor da vida, é arrastado como um farrapo de um para outro tribunal. O povo, o seu povo tão amado, tão cumulado de bênçãos, vocifera contra Ele, insulta-o, reclama aos gritos a sua morte, e que morte, a morte sobre a cruz. Ouve as suas falsas acusações. Vê-se flagelado, coroado de espinhos, escarnecido, acusado como falso rei. Vê-se condenado à cruz, subindo ao Calvário, sucumbindo ao peso do madeiro, trêmulo e exausto... 

Ei-lo chegado ao Calvário, despojado das roupas, estendido sobre a cruz, impiedosamente trespassado pelos pregos, ofegante entre indizíveis torturas. Meu Deus! Que longa agonia de três horas, até sucumbir no meio dos apupos da gentalha, ébria de cólera! Ei-lo com a garganta e as entranhas devoradas por sede ardente. Para estancar essa sede, dão-lhe vinagre e fel. Vê o Pai que o abandona, e a Mãe, aniquilada pela dor. Para acabar, a morte ignominiosa no meio de dois ladrões. Um reconhece-o, e pôde salvar-se; o outro blasfema e morre réprobo. Vê Longinus, que se aproxima para lhe trespassar o coração. Ei-la, consumada, a extrema humilhação do corpo e da alma, que se separam...

Tudo isto, cena após cena, passa diante dos seus olhos, apavora-o, acabrunha-o. Recusará? Desde o primeiro instante tudo avaliou, tudo aceitou. Porque, pois, este terror extremo? É que expôs a sua santa humanidade como escudo, captando os ataques da Justiça, ultrajada pelo pecado. Sente vivamente no espírito, mergulhado na maior solidão, tudo o que vai sofrer. Para tal pecado, tal pena. Está aniquilado, porque se entregou, Ele próprio, ao pavor, à fraqueza, à angústia.

Parece ter chegado ao auge da dor. Está de rastos, com a face em terra, diante da Majestade do Pai. Jaz no pó, irreconhecível, a santa Face do Homem-Deus, que goza da visão beatífica. Meu Jesus! Não sois Deus? Não sois o Senhor do Céu e da Terra, igual ao Pai? Para que haveis de abaixar-Vos até perder todo o aspecto humano? Ah, sim, compreendo! Quereis ensinar-me, a mim, orgulhoso que, para entender o Céu, devo abismar-me até ao fundo da Terra. É para expiar a minha arrogância que Vos deixais afundar no mar da agonia. É para reconciliar o Céu com a Terra que vos abaixais até à terra como se quisésseis dar-lhe o beijo da paz...

Jesus ergue-se, volve para o céu um olhar suplicante, ergue os braços, reza. Cobre-lhe o rosto uma mortal palidez! Implora ao Pai que se desviou d'Ele. Reza com confiança filial, mas sabe bem qual o lugar que lhe foi marcado. Sabe-se vítima a favor de toda a raça humana, exposta à cólera de Deus ultrajado. Sabe que só Ele pode satisfazer a Justiça infinita e conciliar o Criador com a criatura. Quer, reclama que seja assim. A sua natureza, porém, está literalmente esmagada. Insurge-se contra tal sacrifício. Todavia, o seu espírito está pronto à imolação e o duro combate continua. Jesus, como podemos pedir-Vos para sermos fortes, quando Vos vemos tão fraco e acabrunhado? Sim, compreendo! Tomastes sobre Vós a nossa fraqueza. Para nos dardes a Vossa força, Vos tornastes a vítima expiatória. Quereis ensinar-nos como só em Vós devemos depositar confiança, até quando o céu nos parece de bronze.

Na Sua Agonia, Jesus clama ao Pai: 'Se é possível, afasta de mim este cálice'. É o grito da natureza que, prostrada, recorre cheia de confiança ao Céu. Embora saiba que não será atendido, porque não deseja sê-lo, contudo ora. Meu Jesus, por que pedis o que não podeis obter? Que mistério vertiginoso! A mágoa que Vos dilacera Vos faz mendigar a ajuda e conforto, mas o Vosso amor por nós e o desejo de nos levar a Deus vos faz dizer: 'Não se faça a minha vontade, mas a tua'. O seu coração desolado tem sede de ser confortado, tem sede de consolação.

Docemente, Ele se levanta, dá alguns passos vacilantes; aproxima-se dos discípulos; eles, pelo menos, os amigos de confiança, hão de compreender e partilhar da sua mágoa. Encontra-os mergulhados no sono. De súbito sente-se só, abandonado! 'Simão, dormes?' pergunta docemente a Pedro. Tu, que há pouco me dizias que querias seguir-me até à morte! Vira-se para os outros. 'Não podeis velar uma hora comigo?'. Uma vez mais, esquece os sofrimentos, não pensa senão nos discípulos: 'Velai e orai para não cairdes em tentação!'. Parece dizer 'Se me esquecestes tão depressa, a mim, que luto e sofro, pelo menos no vosso próprio interesse, velai e orai!'.

Mas eles, tontos de sono, mal o ouvem. Ó meu Jesus, quantas almas generosas, tocadas pelos Vossos lamentos, Vos fazem companhia no Jardim da Oliveiras, compartilhando da Vossa amargura e da Vossa angústia mortal. Quantos corações têm respondido generosamente ao Vosso apelo através dos séculos! Possam eles Vos consolar e, comparticipando do Vosso sofrimento, possam eles cooperar na obra da salvação! Possa eu próprio ser desse número e Vos consolar um pouco, ó meu Jesus!

Jesus volta ao local da oração e apresenta-se-lhe diante dos olhos um outro quadro bem mais terrível. Desfilam diante dele todos os nossos pecados, nos seus mais ínfimos pormenores. Vê a extrema vulgaridade dos que os cometem. Sabe a que ponto ultrajam a divina Majestade. Vê todas as infâmias, todas as obscenidades, todas as blasfêmias que mancham os corações e os lábios, criados para cantar a glória de Deus. Vê os sacrilégios que desonram Pais e fiéis. Vê o abuso monstruoso dos sacramentos, instituídos por Ele para nossa salvação, e que facilmente podem ser causa de nos perdermos. Tem de se cobrir com toda a lama fétida da corrupção humana. Tem de expiar cada pecado à parte, e restituir ao Pai toda a glória roubada. Para salvar o pecador, tem de descer a esta cloaca. Mas, isto não o detém. Vaga monstruosa, essa lama rodeia-o, submerge-o, oprime-o.

Ei-lo em frente do Pai, Deus da Justiça, Ele, Santo dos Santos, vergado ao peso dos nossos pecados, tornando-se igual aos pecadores. Quem poderá sondar o seu horror e a sua extrema repugnância? Quem compreenderá a extensão da horrível náusea, do soluço de desgosto? Tendo tomado todo o peso sobre Ele, sem exceção alguma, sente-se esmagado por monstruoso fardo, e geme sob o peso da Justiça divina, em face do Pai, que permitiu ao seu filho se oferecer como vítima pelos pecados do mundo, e se transformar numa espécie de maldito.

A sua pureza estremece diante desta massa infame; mas, ao mesmo tempo, vê a Justiça ultrajada, o pecador condenado. No seu coração, defrontam-se duas forças, dois amores. Vence a Justiça ultrajada. Mas, que espetáculo infinitamente lamentável! Este homem, carregado com todos os nossos crimes. Ele, essencialmente santidade, confundido, embora exteriormente, com os criminosos. Treme como um folha. Para poder afrontar esta terrível agonia, abisma-se em oração. Prostrado diante da Majestade do Pai, diz: 'Pai, afasta de mim este cálice'. É como se dissesse: 'Pai, quero a tua glória! Quero o cumprimento da tua justiça. Quero a reconciliação do gênero humano. Mas não por este preço! Que Eu, santidade essencial, seja assim salpicado pelo pecado, ah! não, isso não! Ó Pai, a quem tudo é possível, afasta de mim este cálice e encontra outro meio de salvação nos tesouros insondáveis da tua sabedoria. Porém, se não quiseres, que a tua vontade, e não a minha, se faça!'

Desta vez ainda, fica sem efeito a prece do Salvador. Sente a angústia mortal, ergue-se a custo em busca de consolação. Sente como as forças o abandonam. Arrasta-se penosamente até junto dos discípulos. Uma vez mais, encontra-os a dormir. A Sua tristeza torna-se mais profunda. E contenta-se simplesmente em os acordar. Sentiram-se confusos? Sobre isto nada sabemos. Só vemos Jesus indizivelmente triste. Guarda para Ele toda a amargura deste abandono.

Mas Jesus, como é grande a dor que leio no Vosso coração, transbordante de tristeza. Vos vejo afastando-Vos dos Vossos discípulos, ferido, todo magoado! Pudesse eu dar-Vos algum reconforto, consolar-Vos um pouco; mas, incapaz de mais nada, choro aos Vossos pés. Unem-se às Vossas as lágrimas do meu amor e da minha compunção. E elevam-se até ao trono do Pai, suplicando que tenha piedade de nós, que tenha piedade de tantas almas, mergulhadas no sono do pecado e da morte.

Jesus volta ao lugar onde rezara, extenuado e em extrema aflição. Cai, sim, mas não se prostra. Cai sobre a terra. Sente-se despedaçado por angústia mortal e a sua prece torna-se mais intensa. O Pai desvia o olhar, como se Ele fosse o mais abjeto dos homens. Parece-me ouvir os lamentos do Salvador: 'Se, ao menos as criaturas por causa de quem eu tanto sofro quisessem aproveitar-se das graças obtidas através de tantas dores! Se, ao menos reconhecessem pelo seu justo valor, o preço pago por mim para resgatar e dar-lhes a vida de filhos de Deus! Ah! este desamor despedaça-me o coração, bem mais cruelmente do que os carrascos que irão, em breve, despedaçar-me a carne. 

Vê o homem que não sabe, porque não quer saber; e blasfema do Sangue Divino e, o que é bem mais irreparável, serve-se desse Sangue para sua condenação. Quão poucos o hão de aproveitar, quantos outros correrão ao encontro do próprio extermínio! Na grande amargura do seu coração, continua a repetir: 'Quæ utilitas im sanguine meo?' - Quão poucos aproveitaram o Meu Sangue! O pensamento, porém, deste pequeno número basta para afrontar a Paixão e morte. Nada existe, não há ninguém que possa dar-lhe sombra de consolação. O Céu fechou-se para Ele. O homem, embora esmagado ao peso dos pecados, é ingrato e ignora o seu amor. Sente-se submerso num mar de dor e grita no estertor da agonia: 'A minha alma está triste até a morte'.

Sangue Divino, que jorras, irresistivelmente do Coração de Jesus, corres por todos os seus poros para lavar a pobre terra ingrata. Permita-me que eu te recolha, sangue tão precioso, sobretudo estas primeiras gotas. Quero guardar-te no cálice do meu coração. És prova irrefutável deste Amor, única causa de teres sido vertido. Quero purificar-me através de ti, Sangue preciosíssimo! Quero com ele purificar todas as almas, manchadas pelo pecado. Quero oferecer-te ao Pai. É o sangue do Seu Filho Bem-Amado que caiu sobre a Terra para a purificar. É o Sangue do Seu Filho que ascende ao seu trono para reconciliar a Justiça ultrajada. A alegria é na verdade muito mais veemente do que a dor.

Jesus chegou então ao fim do caminho doloroso? Não. Ele não quer limitar a torrente do seu amor! É preciso que o homem saiba quanto ama o Homem-Deus. É preciso que o homem saiba até que abismos de abjeção pode levar amor tão completo. Embora a Justiça do Pai esteja satisfeita com o suor do Sangue preciosíssimo, o homem carece de provas palpáveis deste amor. Jesus seguirá pois até ao fim: até à morte ignominiosa sobre a cruz. O contemplativo conseguirá talvez intuir um reflexo desse amor que o reduz aos tormentos da santa agonia no Jardim das Oliveiras. Aquele, porém, que vive, entorpecido pelos negócios materiais, procurando muito mais o mundo do que o Céu, deve vê-lo também pelo aspecto externo, pregado à cruz, para que, ao menos, o comova a visão do seu sangue e a sua cruel agonia.

Não. O seu coração, transbordante de amor, não está ainda contente! Domina-o a aflição, e ora de novo: 'Pai, se este cálice não pode ser afastado, sem que eu o beba, faça-se a tua vontade'. A partir deste instante, Jesus responde do fundo do seu coração abrasado de amor, ao grito da humanidade que reclama a sua morte como preço da Redenção. À sentença de morte que seu Pai pronuncia no Céu, responde a Terra reclamando a sua morte. Jesus inclina a sua adorável cabeça: 'Pai, se este cálice não pode ser afastado, sem que eu o beba, faça-se a Tua vontade'. E eis que o Pai lhe envia um anjo de consolação. Que alívio pode um anjo oferecer ao Deus da força, ao Deus invencível, ao Deus Todo-Poderoso? Mas este Deus quis tornar-se inerme. Tomou sobre os ombros toda a nossa fraqueza. É o Homem das Dores, em luta com a agonia.

Ora ao Pai por si e por nós. O Pai recusa atendê-lo, pois deve morrer por nós. Penso que o anjo se prostra profundamente diante da Beleza eterna, manchada de pó e sangue, e com indizível respeito suplica a Jesus que beba o cálice, pela glória do Pai e pelo resgate dos pecadores. Rezou assim, para nos ensinar a recorrer ao Céu, unicamente quando as nossas almas estão desoladas como a sua. Ele, a nossa força, virá ajudar-nos, pois que consentiu em tomar sobre os ombros todas as nossas angústias.

Sim, meu Jesus, é preciso que bebais o cálice até ao fundo! Estais votado à morte mais cruel. Jesus, que nada possa separar-me de Vós, nem a vida nem a morte! Se, ao longo da vida, só desejo unir-me ao Vosso sofrimento, com infinito amor, ser-me-á dado morrer convosco no Calvário e convosco subir à Glória. Se Vos sigo nos tormentos e nas perseguições tornar-me-eis digno de Vos amar um dia, no Céu, face a face, convosco, cantando eternamente o Vosso louvor em ação de graças pela cruel Paixão.

Vede! Forte, invencível, Jesus ergue-se do pó! Não desejou Ele o banquete de sangue com o mais forte desejo? Sacode a perturbação que o invadira, enxuga o suor sangrento da face, e, em passo firme dirige-se para a entrada do Jardim. Onde ides, Jesus? Ainda há instantes, não estavas empolgado pela angústia e pela dor? Não Vos vi eu, trêmulo, e como que esmagado sob o peso cruel das provações que vão tombar sobre Vós? Aonde ides nesse passo intrépido e ousado? A quem vais entregar-vos?

'Escuta, Meu filho. As armas da oração ajudaram-me a vencer; o espírito dominou a fraqueza da carne. A força me foi transmitida, enquanto orava, e agora eis-me pronto a tudo desafiar. Segue o meu exemplo e arranja-te com o Céu, como Eu fiz'. Jesus aproxima-se dos apóstolos. Continuam a dormir! A emoção, a hora tardia, o pressentimento de alguma coisa horrível e irreparável, a fadiga — e ei-los mergulhados em sono de chumbo. Jesus tem piedade de tanta fraqueza: 'O espírito está pronto, mas a carne é fraca'. Jesus exclama: 'Dormi agora e repousai'. Detém-se por instante. Ouvem que Jesus se vai aproximando, e entreabrem os olhos...

Jesus continua a falar: 'Basta. É chegada a hora; eis que o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores. Levantai-vos, vamos; eis que se aproxima o que me há de entregar'. Jesus vê todas as coisas com os seus olhos divinos. Parece dizer: 'Meus amigos e discípulos, vós dormis, enquanto que os meus inimigos velam e se aproximam para virem prender-Me! Tu, Pedro, que há pouco te julgavas bastante forte para me seguir até na morte, também tu dormes agora! Desde o princípio tens-me dado provas da tua fraqueza! Estás, porém, tranquilo. 

Aceitei sobre Mim a tua fraqueza e rezei por ti. Depois de confessares a tua falta, serei a tua força e apascentará os meus rebanhos! E tu, João, também tu dormes? Tu, que acabavas de sentir as pulsações do meu coração, não pudeste velar uma hora comigo'... Levantai-vos, vamos partir, já não há tempo para dormir. O inimigo está à porta! É a hora do poder das trevas! Partamos. De livre vontade, vou ao encontro da morte. Judas acorre para trair-me, e Eu vou ao seu encontro. Não impedirei que se cumpram à risca as profecias. Chegou a Minha hora: a hora da misericórdia infinita. Ressoam os passos; archotes acesos enchem o jardim de sombras e púrpura. Intrépido e calmo, Jesus avança seguido pelos discípulos.

'Ó meu Jesus, dai-me a Vossa força quando a minha pobre natureza se revolta diante dos males que a ameaçam, para que possa aceitar com amor as penas e aflições desta vida de exílio. Uno-me com toda a veemência aos Vossos méritos, às Vossas dores, à Vossa expiação, às Vossas lágrimas, para poder trabalhar convosco na obra da salvação. Possa eu ter a força de fugir ao pecado, causa única da Vossa agonia, do Vosso suor de sangue, e da Vossa morte. Afasteis de mim o que Vos desagrada, e imprimi no meu coração com o fogo do Vosso santo amor todos os Vossos sofrimentos. Abraçai-me tão intimamente, em abraço tão forte e tão doce, que nunca eu possa deixar-Vos sozinho no meio dos Vossos cruéis sofrimentos. Só desejo um único alívio: repousar sobre o Vosso coração. Só desejo uma única coisa: partilhar da Vossa Santa Agonia. Possa a minha alma inebriar-se com o Vosso Sangue e alimentar-se com o pão da Vossa dor! Amém'.

(Santo Padre Pio de Pietrelcina)

terça-feira, 17 de novembro de 2015

MARIA: MEDIANEIRA DA DIVINA MISERICÓRDIA


'Consentis, Senhor, que façamos descer fogo do céu e os consuma?' — assim perguntaram ao Mestre João e Tiago, quando os samaritanos se recusaram a receber Jesus Cristo e sua doutrina. Respondeu-lhes então o Salvador: 'Não sabeis de que espírito sois?' (Lc 9, 55). Queria dizer: 'Sou de um espírito todo de clemência e doçura; para salvar e não para castigar os pecadores, vim do céu e vós quereis vê-los perdidos? Falais em fogo e castigo? Calai-vos e nisso não me faleis mais, porque não é esse meu espírito!' Ora, sendo o espírito de Maria completamente semelhante ao de seu Filho, não podemos por em dúvida o seu natural compassivo. De fato, é chamada Mãe de Misericórdia e foi a própria misericórdia de Deus que tão compassiva e clemente a fez para todos. Assim o revelou a própria Virgem a Santa Brígida. Por isso representa-a São João revestida do sol: 'Apareceu um grande sinal no céu; uma mulher vestida do sol' (Ap 12, 1). Comentando o trecho, diz São Bernardo à Virgem: 'Senhora, revestistes o Sol (Verbo Divino) da carne humana, mas ele vos revestiu também de seu poder e de sua misericórdia'.

Nossa Rainha — continua o Santo — é sumamente compassiva e benigna; quando algum pecador se encomenda à sua misericórdia, ela não se põe a examinar-lhe os méritos, para ver se é digno de ser ouvido ou não, mas a todos atende e socorre. Eis a razão, conforme observa Hildeberto, porque de Maria se diz que é bela como a lua (Ct 6, 9). Assim como a lua ilumina e beneficia os objetos mais inferiores sobre a terra, também ilumina Maria e socorre os pecadores mais indignos. Embora a lua receba do sol toda a sua luz, leva menos tempo que ele para descrever seu curso. É-lhe suficiente um mês, ao passo que o sol gasta um ano a perfazer o seu giro. Isso motiva então as palavras de Eádmero ao afirmar que nossa salvação será mais rápida, se chamarmos por Maria, do que se chamarmos por Jesus. Pelo que Hugo de São Vítor nos adverte que se os nossos pecados nos fazem ter medo de nos chegarmos para Deus, cuja Majestade infinita ultrajamos, não devemos recear de recorrer a Maria; pois nada nela existe que inspire terror. É verdade que é santa, imaculada, rainha do mundo e Mãe de Deus. Mas é uma criatura e filha de Adão, como nós.

Em suma, conclui São Bernardo, tudo o que pertence a Maria é cheio de graça e de piedade, porque, como Mãe de misericórdia, se fez tudo para todos; por sua imensa caridade tornou-se devedora dos justos e dos pecadores; para todos está aberto o seu coração, para que possam receber de sua misericórdia. Se por um lado está o demônio sempre procurando a quem dar a morte, como no-lo atesta São Pedro (l Pd 5, 8), de outro lado está buscando Maria almas a quem possa dar a vida e salvar, segundo afirma Bernardino de Busti.

Devemos, pois, saber que a eficácia e a expansão do patrocínio de Maria vão além das nossas noções, diz São Germano. Por que, outrora, tão grande era o rigor de Deus para com os pecadores, quando agora, na Lei Nova, usa de tanta misericórdia com eles? Fá-lo por amor de Maria e em vista de seus merecimentos. Assim pergunta e assim responde Pelbarto. Há muito tempo teria já cessado de existir o mundo, assevera Fabio Fulgêncio, se não o tivesse Maria sustentado com suas preces. Podemos, entretanto, ir seguramente a Deus e dele esperar todos os bens, diz Arnoldo de Chartres, agora que temos o Filho como nosso medianeiro, junto ao Pai, e a Mãe como nossa medianeira junto ao Filho. Como poderia o Pai deixar desatendido ao Filho, quando este lhe mostra as chagas recebidas por amor aos pecadores? E como poderia o Filho desatender à Mãe, mostrando-lhe esta os seios que o sustentaram? Enérgicas e belas são as palavras de São Pedro Crisólogo: 'A excelsa Virgem hospedou a Deus em seu ventre; em paga de tal hospitalidade dele exige a paz para o mundo, a salvação para os perdidos, a vida para os mortos'.

Oh! exclama o Abade de Ceies, quantos que, dignos do inferno segundo a justiça divina, são salvos pela compaixão de Maria! Sim, porque ela é o tesouro de Deus, e a tesoureira de todas as graças; em suas mãos está por isso a nossa salvação. Por conseguinte recorramos sempre a essa grande Mãe de Misericórdia, firmes na esperança de nos salvarmos por sua intercessão. Pois não lhe chama Bernardino de Busti nossa salvação, nossa vida, nossa esperança, nosso conselho, nosso refúgio e nosso auxílio? Realmente, diz São Antonino, é Maria aquele trono de graça ao qual nos cumpre confiadamente recorrer para obter a divina misericórdia e todos os auxílios que nos são necessários, conforme a exortação de São Paulo: 'Marchemos, pois, cheios de confiança para o trono de graça, a fim de obtermos misericórdia e alcançarmos a graça no socorro oportuno' (Hb 4, 16). Pelo que Santa Catarina de Sena chamava a Maria de distribuidora da divina misericórdia.

Concluamos por conseguinte com a elegante e terna exclamação de São Boaventura: 'Ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Maria!' Ó Maria, sois clemente para com os miseráveis, compassiva para com os que vos invocam, doce para com os que vos amam; sois clemente para com os penitentes, compassiva para com os justos, doce para com os perfeitos. Mostrai vossa clemência, em nos livrando dos castigos; vossa piedade, em nos dispensando as graças; vossa doçura, em nos dando a quem vos procura.

('Glórias de Maria', de Santo Afonso Maria de Ligório)

domingo, 15 de novembro de 2015

'AS MINHAS PALAVRAS NÃO PASSARÃO'

Páginas do Evangelho - Trigésimo Terceiro Domingo do Tempo Comum


Neste 33º Domingo do Tempo Comum, período final do Ano Litúrgico de 2015, os Evangelhos enfatizam de forma especial os últimos acontecimentos que consolidam a obra redentora de Cristo - os novíssimos dos homens, morte, juízo particular e juízo universal: 'Lembra-te dos teus Novíssimos, e jamais pecarás' (Ecl 7, 40). A obra salvífica de Cristo, ornada pelos mistérios insondáveis de tantas graças e misericórdias, imprime-se também o selo da justiça divina.

Em continuação às profecias da derrocada completa do Templo de Jerusalém tão próxima, Jesus vai associar profecias muitíssimo mais terríveis relativas à consumação dos séculos, em tempos bem mais remotos: 'Naqueles dias, depois da grande tribulação, o sol vai se escurecer, e a lua não brilhará mais, as estrelas começarão a cair do céu e as forças do céu serão abaladas' (Mc 13, 24 - 25). A glória dos eleitos e a condenação dos ímpios será precedida por eventos espantosos, capazes de alterar o próprio equilíbrio da terra e que também antecedem a segunda vinda do Senhor: 'Então vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória' (Mc 13, 26).

Em meio às convulsões da terra em fúria, todos os poderes da natureza serão abalados, inclusive a atmosfera e o céu material: 'O céu e a terra passarão' (Mc 13, 31). Este dia terrível que 'será um tempo de angústia, como nunca houve até então, desde que começaram a existir nações' (Dn 12,1) somente é conhecido pelo Pai: 'nem o Filho' não significa que, sendo Deus, este dia é desconhecido por Jesus, mas que, na condição humana, Jesus não poderia revelar esta verdade aos homens. Entretanto, todos os homens precavidos e vigilantes poderão compreender os seus sinais iminentes, tal como a floração da figueira indica a proximidade do verão. 

Quando da sua vinda gloriosa, Jesus julgará todas as nações, povos e homens, de acordo com as suas santas prescrições: 'as minhas palavras não passarão' (Mc 13, 31). E, então, nestes tempos tremendos do fim, os anjos reunirão os eleitos dos 'quatro cantos da terra' e eles, alvejados pela graça e pela fé, renascerão triunfantes para todo o sempre como filhos de Deus Altíssimo porque 'os que tiverem ensinado a muitos homens os caminhos da virtude brilharão como as estrelas, por toda a eternidade' (Dn 12, 3).

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O SACRAMENTO DO MATRIMÔNIO

Assustadoras são as estatísticas dos últimos decênios sobre o matrimônio. Quantos entrelaçam as mãos sem a bênção da Igreja! Como é grande e aterrador o número de divórcios! Quem pode medir a multidão das uniões infelizes e pecaminosas! O matrimônio é a raiz do gênero humano, do Estado e da Igreja. Não admira, pois, que o espírito maligno principie a sua obra de aniquilação exatamente pela raiz. Assim a humanidade ficará abalada, Estado e Igreja haverão de arcar com os vestígios dessa obra de aniquilação. Muitos casamentos são infelizes porque são contratados e feitos sem a assistência do divino Espírito Santo.

Mas o que tem o Espírito Santo a ver com o matrimônio? Antes de tudo, é o Matrimônio um dos sete sacramentos, um canal de graças, e o Espírito Santo é o dispensador das graças merecidas por Cristo. Quando os noivos estão diante do altar, não se encontram somente no círculo de Jesus Sacramentado, mas também sob os raios da graça do divino Espírito Santo que pelo sacramento do Matrimônio, dá um brilho ainda maior às graças recebidas nos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. É Ele quem lhes comunica as graças sacramentais próprias, em virtude das quais podem os esposos cumprir os deveres espinhosos do estado conjugal.

Não quer isto dizer que o Espírito Santo deva derramar a abundância das suas graças sobre todos os que se encaminham para o altar das núpcias. Não! Ele deve ser convidado, deve-se invocar instantemente a sua assistência. Sim, já deve ser invocado na escolha dos nubentes. Como pode o Espírito Santo descer com as suas graças repentinamente sobre duas pessoas que o espírito maligno ajuntou, e que foram vinculadas unicamente pela sensualidade? Não é de admirar que esse vínculo se parta em breve.

O Espírito Santo é o Espírito do Conselho e do Entendimento, que aclara a inteligência dos jovens obscurecida pela sensualidade. Como Espírito do Conselho, pode mostrar-lhes se a união deles vem de Deus ou do demônio. E se for consultado seriamente como Espírito da Fortaleza, dispensará também força para se refrear a indomabilidade da carne e impedir uma união baseada unicamente sobre ela. Se o divino Espírito Santo for invocado fervorosamente pelos noivos, convencê-los-á de que o conhecimento da doutrina de Deus e de seus Mandamentos constitui a maior sabedoria. O Espírito da Piedade deve ainda compenetrar as duas pessoas da mesma fé, em que se fundem para a finalidade comum da virtude. Só assim seguirão seu rumo final e eterno.

Se todos os homens devem ser devotos do divino Espírito Santo, com muito mais razão aqueles que querem contrair união matrimonial. O homem pode confiar pouco sobre o seu simples juízo natural, pois o laço matrimonial deve durar e perpetuar-se até a morte, conforme a vontade de Deus, mas nenhum vínculo meramente natural prende os corações por tanto tempo. Então a força e a graça do divino Espírito Santo devem corroborar o laço matrimonial.

Qual é o nome desse laço? Um nome curto e aparentemente simples, entretanto tão significativo como o próprio Deus: amor. É a palavra com que o Apóstolo denominou a essência de Deus: 'Deus é amor'. Para os teólogos, é quase impossível dizer o que Deus é. Mas a palavra que mais se aproxima da natureza de Deus é a palavra amor. E esta palavra, que nos dá melhor o conhecimento de Deus, é o nome para o vínculo que no matrimônio funde dois corações em um só.

No entanto, é justamente na união matrimonial que essa palavra é muitas vezes desvirtuada, despojada de seu conteúdo de ouro. O amor que une os dois cônjuges pode ser tríplice: sensual, natural e sobrenatural.Também o amor sensual é incutido por Deus e o Espírito Santo nos homens, com a constituição das qualidades físicas e naturais, a fim de conduzi-los ao matrimônio. Sem esse amor sensual, os homens todos já teriam desaparecido da face da Terra, por motivos de comodidade.

O Criador pôs nos homens o instinto sexual, que podemos chamar amor sensual. Mas este só merece o título de amor se for dirigido, como o amor de Deus, para a doação da vida a serviço do Criador. Por meio desse instinto o homem tornar-se-á um instrumento do 'Espírito Criador', do qual vem toda a vida. Então os cônjuges, por esse amor, entrarão em íntima relação com o divino Espírito Santo. Entretanto, se tal amor sensual não cooperar na obra criadora do Espírito Santo, se o homem tão somente desejar gozar os prazeres sensuais, não merece ele o nome de amor: é egoísmo sensual, que contradiz diretamente a essência do divino Espírito Santo. 

A segunda espécie de amor é o amor natural, que faz com que os cônjuges se comprazam mutuamente em virtude de seus dotes naturais. Assim, por exemplo, o marido ama a esposa por causa de sua graça, mansidão, modéstia, espírito ativo e econômico e outras virtudes naturais. Todos estes predicados bons são também dádivas do divino Espírito Santo, com as quais condecorou o homem, estimulou e fortaleceu a sua vontade, para aperfeiçoá-las. Entretanto, o amor próprio desempenha um papel muito grande. Um cônjuge ama o outro, digamos, por causa de seus bons predicados, porque deles tira grandes vantagens para si mesmo.

Portanto a dádiva preciosíssima e por excelência do Espírito Santo é o amor sobrenatural. Ele existe quando os esposos se amam reciprocamente como criaturas de Deus, como portadores de uma alma imortal, como templos vivos do divino Espírito Santo, para cujo adorno se esforçam mutuamente. Este amor é de igual modo amor de sacrifício, que sempre quer beneficiar o outro, sempre cultivá-lo, mesmo com prejuízo dos próprios interesses.

Se uma moça dá sua mão a um rapaz só para tirar daí bom proveito, o que os une é o amor próprio, o egoísmo, e portanto é lançado desde já o germe de um casamento infeliz, privado de todo amor sobrenatural. E quando um rapaz contrai núpcias só para tornar mais fácil e agradável a existência terrena, esse motivo para o casamento não pode proceder do Espírito Santo.

O amor sobrenatural não indaga 'o que tenho eu a receber da outra parte?'; mas sim 'o que sou eu para a outra parte?'. Não procura o que é seu. Seu fito é fazer felizes os outros, e não tornar-se feliz à custa dos outros. Esse amor desinteressado, abnegado, que só por último pensa em si, é que vem do Espírito Santo, cuja natureza toda é comunicação, doação, bênção e enriquecimento. O amor sobrenatural é, outrossim, o regulador do amor sensual, que facilmente ultrapassa os limites postos por Deus. O amor sensual será dominado, refreado, contribuindo assim para o amor à virtude.

Embora o amor sensual entre os cônjuges seja consentido por Deus, embora o amor natural possa ser bom, são entretanto ambos inconstantes e sujeitos à languidez, e por isso não podem formar o vínculo seguro e indestrutível que prende dois corações até a morte. Além disso, ambas as espécies de amor extinguem-se, seja pelo desaparecimento da mocidade ou por uma enfermidade grande. Também as boas qualidades naturais são obscurecidas pelos defeitos que cada homem possui. Portanto, é mal colocado um casamento que se baseia unicamente sobre estas espécies de amor. Inquebrantável é tão somente o vínculo do amor sobrenatural, que procede do coração do divino Espírito Santo. Por meio dele os dois cônjuges tornam-se não somente 'uma só carne', mas 'um só coração e uma só alma'.

(Excertos da obra 'Ao Deus Desconhecido', do Pe. Agostinho Kinscher, 1943)

terça-feira, 10 de novembro de 2015

COMO REZAR

1. Os preceitos evangélicos não são outra coisa, irmãos caríssimos, senão os ensinamentos divinos, fundamentos para edificar a esperança, provações para robustecer a fé, alimento para nutrir a alma, leme para dirigir a navegação, presídio para a salvação. Ao mesmo tempo que iluminam os crentes dóceis sobre a terra, guiam-nos até aos reinos celestes. 

Deus quis que muitos ensinamentos nos fossem dados por meio dos profetas, seus servos. Mas quão superiores são as palavras do seu Filho, aquelas palavras que o Verbo de Deus, já ressonante nos profetas, atesta com a sua viva voz. Já não é alguém que vem aplanar os caminhos d'Aquele que há de vir, mas Aquele que veio e nos abre e mostra o caminho. Deste modo os que, antes, incautos e cegos cambaleavam nas trevas da morte, iluminados agora pela luz da graça, podem seguir na vida sob a guia e o governo de Cristo. 

2. Entre outros conselhos salutares e ensinamentos divinos com os quais provê à salvação do seu povo, Cristo deu-nos também a norma da oração, e Ele mesmo nos mostrou e ensinou como devemos rezar. Aquele que nos deu a vida, ensinou-nos a pedir, com a mesma benevolência com que se dignou dar-nos os outros bens. Assim rezando ao Pai com a oração do Filho, somos mais facilmente ouvidos. 

Já antes tinha anunciado o dia em que os verdadeiros adoradores aprenderiam a adorar o Pai em espírito e em verdade (Jo 4, 23), mas agora cumpre a promessa e faz de nós, santificados pelo espírito de verdade, verdadeiros e espirituais adoradores, conformes ao seu ensinamento. Que oração haverá mais espiritual do que aquela que nos ensinou Cristo, o qual enviou sobre nós o Espírito de Verdade? Que oração será mais verdadeira do que aquela que saiu dos lábios de quem é a verdade? Portanto, rezar de outra maneira diferente da que Cristo nos ensinou, não só é um ato de ignorância, mas uma culpa, pois Ele mesmo disse: 'Vós rejeitastes o mandamento de Deus para acreditar na vossa doutrina' (Mc 7,8). 

3. Seja a nossa oração aquela que o nosso Mestre nos ensinou. É cara e familiar a Deus a oração composta pelo s próprio Filho. Assim, quando rezamos, o Pai reconhece as palavras do Filho. Aquele que é hóspede do nosso coração esteja também nos nossos lábios. Se Cristo está junto do Pai como advogado para os nossos pecados, nós pecadores devemos rogar o perdão dos pecados com as mesmas palavras do Advogado. De fato, se Ele nos prometeu obter tudo o que pedirmos ao Pai em seu nome (Jo 16, 23), quanto mais eficazmente obteremos o que pedimos em nome de Cristo se o pedimos com a sua mesma oração? 

4. Os que rezam, tenham devoção à doçura das palavras. Pensemos estar na presença de Deus e por isso devemos ser aceites aos seus olhos pela atitude do corpo e pela maneira como rezamos. Como é imprudente quem pede sem piedade, assim a oração convém que seja em tom respeitoso e submisso. O Senhor ensinou-nos a rezar no silêncio e nos lugares escondidos das nossas casas. Esta atitude é mais adequada à nossa fé para que saibamos e jamais olvidemos que Deus está em toda a parte, vê tudo e atende a todos, enche com a plenitude da Sua majestade os lugares mais recônditos. 

Está escrito: 'Não sou Eu o Deus do alto e o Deus que está a teu lado? Se o homem se esconde, deixo acaso de o ver? Não sou Eu que encho o céu e a terra?' (Jr 23, 23-24). 'Em todo o lugar os olhos de Deus observam os bons e os maus' (Prov 15,3). E quando nos juntamos aos outros irmãos para celebrar com o sacerdote o sacrifício divino, devemos recordar-nos de ser devotos e disciplinados na oração e não espalhá-la ao vento numa sequência de palavras, nem dirigi-la a Deus precipitadamente, mas sim com propósitos. Deus não escuta a voz, mas o coração. Deus, que perscruta os pensamentos humanos, não quer ser rogado com gritos. Diz assim o Mestre: 'Que andais vós a ruminar nos vossos corações' (Lc 5, 22) e ainda: 'Todas as igrejas saibam que Eu perscruto os rins e os corações' (Ap 2, 23). 

5. Já nos mostra isto o primeiro Livro dos Reis com o exemplo de Ana, figura da igreja. Ana rezava ao Senhor não com palavras clamorosas mas na humildade e no silêncio com o seu coração. A sua oração era oculta, mas era manifesta a sua fé. Falava com o coração e não com a boca, porque só assim era ouvida por Deus. Por isso obteve o que pediu, porque rezou com fé, como atesta a Sagrada Escritura: 'Falava no seu coração. Os seus lábios moviam-se, mas não se percebia a sua voz. E Deus escutou-a' (1 Re 1, 13). 

O mesmo se lê nos Salmos (5, 5): 'Pensai no silêncio dos vossos quartos'. Jeremias põe na boca de Deus estas palavras: 'Encontrar-Me-eis se Me procurardes com todo o coração' (Jr 24, 13). 6. Quando rezarmos não esqueçamos o publicano no templo, que não ousava levantar os olhos ao céu nem se atrevia a elevar as mãos, mas batia no peito em sinal de detestação dos seus pecados, e assim pedia a ajuda da misericórdia divina. Enquanto o fariseu se comprazia a si mesmo, o publicano, com a sua oração, mereceu ser santificado mais, visto que colocou a esperança da sua salvação não na sua inocência - pois ninguém é inocente - mas na humilde confissão dos seus pecados.

E, Aquele que do Céu perdoa os humildes, ouviu a sua oração, como se lê na parábola evangélica que se segue: 'Dois homens subiram ao templo para rezar; um era fariseu, o outro era publicano. O fariseu, de pé, rezava assim: 'Eu Te dou graças, ó Deus, porque não sou como os outros homens, ladrões, injustos, adúlteros; nem tão pouco sou como aquele publicano. Eu jejuo duas vezes na semana e pago o dízimo de todos os meus bens'. O publicano, ao contrário, lá longe, nem se atrevia a erguer os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: 'Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador'. Pois Eu vos digo que este voltou justificado para sua casa. Não aconteceu o mesmo com o outro, pois quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado' (Lc 18, 10-14). 

Também os Apóstolos, com todos os discípulos, rezavam assim depois da Ascensão do Senhor: 'Perseveravam todos unanimemente na oração, com as mulheres e com Maria, Mãe de Jesus, e com os seus irmãos' (At 1, 14). Perseveravam concordemente na oração e assim demonstravam, com a assiduidade e unanimidade da sua oração, que Deus 'faz habitar sob o mesmo teto todos os que estão de acordo' (Sl 57, 7) e não admite à sua divina e eterna habitação senão aqueles cuja oração é comum e unânime.

(São Cipriano de Cartago)

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'O homem criado por amor não pode viver sem amor: ou ama a Deus ou ama o mundo. Aquele que não ama a Deus apega o seu coração a coisas que passam como a fumaça. Quanto mais conhecemos os homens, tanto menos os amamos. É o contrário relativamente a Deus: quanto mais o conhecemos, tanto mais o amamos. Esse conhecimento abrasa a alma de tão grande amor, que ela não pode mais amar nem desejar senão a Deus.

O amor de Deus é um antegozo do céu: se soubéssemos frui-lo, ó como seríamos felizes! O que faz que sejamos infelizes é não amarmos a Deus. Há pessoas que não amam o bom Deus, que não lhe rezam e que prosperam; é mau sinal! Têm feito um pouco de bem através de muito mal. O bom Deus recompensa-os nesta vida. Cumpre fazer com os pastores nos campos durante o inverno: acendem fogo: mas de quando em quando correm a apanhar lenha de todos os lados para alimentá-lo. Se soubéssemos, como os pastores, alimentar sempre o fogo do amor de Deus no nosso coração mediante orações e boas obras, ele não se apagaria nunca'.


(São João Maria Vianney, o Cura D'Ars)

domingo, 8 de novembro de 2015

A VIDA ETERNA POR DUAS PEQUENAS MOEDAS

Páginas do Evangelho - Trigésimo Segundo Domingo do Tempo Comum


A grandeza da alma se consome em virtudes e, dentre elas, a humildade e o despojamento constituem as gemas mais preciosas. Entregar tudo o que se tem - e o tudo em nós é nada - no amor à Verdade que é Cristo é o caminho de ouro para a eternidade com Deus. Jesus nos ensina a buscar este caminho de despojamento interior: livrar-nos dos apegos materiais e das amarras humanas para galgamos e possuirmos valores e bens que têm o selo das heranças eternas.

'Jesus estava sentado no Templo, diante do cofre das esmolas, e observava como a multidão depositava suas moedas no cofre' (Mc 12, 41). Numa rara passagem dos Evangelhos, encontramos Jesus em silêncio, na quietude do templo, livre das multidões e dos assédios mundanos, observando o entre-sai dos visitadores para o cumprimento formal das ofertas da lei mosaica. No templo em silêncio, o eco das moedas vibrando nos recipientes metálicos da coleta reverberava em profusão, dando ciência a todos da magnitude da oferta. A multidão espreitava e se regozijava na percepção das ofertas mais ricas, no propagar do eco mais longo e mais retumbante.

Jesus ouvia, entretanto, os ecos da alma. Quando a pobre viúva fez a sua oferta, 'duas pequenas moedas, que não valiam quase nada' (Mc 12, 42), ela entregou tudo o que possuía. O mísero tilintar das pequenas moedas não chegou nem aos ouvidos de muitos, mas tocou profundamente o coração de Jesus, como ele revelou, então, aos seus discípulos: 'Em verdade vos digo, esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que ofereceram esmolas.Todos deram do que tinham de sobra, enquanto ela, na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía para viver' (Mc 12, 43 - 44). Dar tudo o que possuía para viver significa entregar, no nada que somos, todo o amor humano que podemos colocar no coração de Deus.

Em contraste aos valores do orgulho e da hipocrisia dos ricos e dos doutores da lei, mais preocupados com o jogo frívolo das aparências e dos privilégios da ostentação, a oferta da pobre viúva era a sua própria sobrevivência, não era uma esmola. As suas pequenas moedas eram como o punhado de farinha numa vasilha e um pouco de azeite na jarra da viúva de Sarepta (1 Rs 17, 12). No anonimato do seu pequeno gesto, mereceu do próprio Deus a mensuração de tão grande graça, predestinação de sua herança eterna. E, no escondimento da sua oferta, nos ensinou que a verdadeira dádiva é aquela que nasce da entrega total do coração, no exemplo do próprio Jesus, filho Unigênito de Deus feito homem, que se doou e se entregou por inteiro para a salvação de todos nós.