quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A CONFIANÇA NA NOSSA SALVAÇÃO

Certas almas angustiadas duvidam da própria salvação. Lembram-se de faltas passadas; pensam nas tentações tão violentas que, por vezes, nos assaltam a todos; esquecem a bondade misericordiosa de Deus. Essa angústia pode tornar-se uma verdadeira tentação de desespero.

Quando jovem, São Francisco de Sales conheceu uma provação dessas: temia não ser um predestinado ao Céu. Passou vários meses nesse martírio interior. Uma oração heroica libertou-o; o santo prostrou-se diante de um altar de Maria; suplicou à Virgem que o ensinasse a amar o seu Filho com uma caridade tanto mais ardente sobre a terra, quanto ele temia não poder amá-Lo na eternidade.

Nesse gênero de sofrimento, há uma verdade de fé que nos deve consolar imensamente. Só nos perdemos pelo pecado mortal. Ora, sempre o podemos evitar, e, quando tivermos tido a desgraça de cometê-lo, poderemos sempre reconciliar-nos com Deus. Um ato de contrição sincera, feito logo, sem demora, nos purificará, enquanto esperamos a confissão obrigatória, que convém se faça sem demora.

Certamente a pobre vontade humana deve sempre desconfiar da sua fraqueza. Mas o Salvador nunca nos recusará as graças de que carecemos. Fará também todo o possível para ajudar-nos na empresa, soberanamente importante, da nossa salvação. Eis a grande verdade que Jesus Cristo escreveu com o seu Sangue e que vamos agora reler juntos na história da sua Paixão.

Já tereis algum dia refletido como puderam os judeus apoderar-se de Nosso Senhor? Acreditareis, por acaso, que isso conseguiram pela astúcia ou pela força? Podeis imaginar que, na grande tormenta, Jesus foi vencido porque era o mais fraco? Seguramente não. Os inimigos nada podiam contra Ele. Mais de uma vez, nos três anos das suas pregações, haviam tentado matá-Lo. Em Nazaré, queriam atirá-lo de um precipício; por várias vezes tinham agarrado pedras para lapidá-Lo. Sempre, porém, a sabedoria divina desfez os planos dessa ímpia cólera; a força soberana de Deus reteve-lhes o braço; e Jesus afastou-se sempre tranquilamente, sem que ninguém tivesse conseguido fazer-Lhe o menor mal.

No Getsemani, ao dizer simplesmente o seu nome aos soldados do Templo vindos para assenhorearem-se da sua pessoa sagrada, toda a tropa caiu por terra tocada de estranho pavor. Os soldados só puderam levantar-se pela permissão que Ele lhes deu. Se Jesus foi preso, se foi crucificado, se foi imolado, é porque assim o quis, na plenitude da sua liberdade e do seu amor por nós: Oblatus est quia voluit (Is 53, 7).

Se o Mestre derramou, sem hesitar, o Sangue por nós, se morreu por nós, como poderia recusar-nos graças que nos são absolutamente necessárias e que Ele próprio nos mereceu pelas suas dores? Jesus ofereceu essas graças misericordiosamente às almas mais culpadas durante a Paixão dolorosa. Dois Apóstolos haviam cometido um crime enorme: a ambos ofereceu o perdão.

Judas atraiçoou-O e deu-Lhe um beijo hipócrita. Jesus falou-lhe com doçura tocante; chamou-lhe amigo; procurou à força de carinho tocar esse coração endurecido pela avareza. 'Amigo, a que vieste?'... 'Judas, com um beijo entregas o Filho do homem?' (Mt 26, 50 e Lc 22, 48). É esta a última graça do Mestre ao ingrato. Graça de tal força, que jamais lhe mediremos bem a intensidade, Judas, porém, repele-a: perde-se, porque assim formalmente o prefere.

Pedro julgava-se muito forte. Tinha jurado acompanhar o Mestre até à morte, e abandonou-O, quando O viu nas mãos dos soldados. Só O seguiu então de longe. Entrou a tremer no pátio do palácio do Sumo Sacerdote. Por três vezes renegou o seu Senhor - porque receiou os motejos de uma criada. Sob juramento afirmou que não conhecia 'esse homem'. Cantou o galo. Jesus voltou-se e fixou sobre o Apóstolo os olhos cheios de misericordiosas e doces censuras. Cruzaram-se os olhares. Era a graça, uma graça fulminante que esse olhar levava a Pedro. O Apóstolo não a repeliu: saiu imediatamente e chorou com amargura a sua falta.

Assim como a Judas, como a Pedro, Jesus nos oferece sempre graças de arrependimento e conversão. Podemos aceitá-las ou recusá-las. Somos livres! A nós compete decidir entre o bem e o mal, entre o Céu e o inferno. A salvação está nas nossas mãos.

O Salvador não só nos oferece as suas graças, como faz mais: intercede por nós junto ao Pai do Céu. Lembra-lhe as dores sofridas pela nossa Redenção. Toma a nossa defesa diante dEle; desculpa-nos as faltas: 'Pai' — exclama nas angústias da agonia — 'Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem!' (Lc 23, 34). O Mestre, durante a Paixão, tinha tal desejo de salvar-nos, que não cessava um instante de pensar em nós.

No Calvário, deu aos pecadores o seu último olhar; pronunciou em favor do bom ladrão uma das suas últimas palavras. Estendeu largamente os braços na Cruz para marcar com que amor acolhe todos os arrependimentos no seu Coração amantíssimo.

(Excertos da obra 'O Livro da Confiança', do Pe Thomas de Saint Laurent)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

ORAÇÕES DE SANTO AGOSTINHO (I)


Senhor, se apresentarmos diante de Vós os nossos erros e as feridas que deles recebemos, é bem pouco o que sofremos pelo que bem mais merecemos. Sentimos dor por pecar, mas não rejeitamos a nossa obstinação pelo pecado.

A nossa natureza fragilizada é esmagada sob as Vossas chagas, mas nossos maus caminhos permanecem inalterados. O espírito se atormenta, mas a dura cerviz não se dobra. A vida palpita em dores e não se corrige. Se contemporizas conosco, não nos emendamos; se nos punis, não nos conformamos.

Quando acusados, admitimos que podemos ser culpados; uma vez sentenciados, esquecemos a culpa. Se Vós nos quiserdes impor penas, fazemos todas as promessas; se recolheis a espada, esquecemos todas elas. Se nos ameaçais com flagelos, clamamos por nos poupar; uma vez poupados, tendemos a provocar outra vez a Vossa ira.

Diante das dificuldades, suplicamos por um tempo para arrepender-nos; se a misericórdia vem em nosso auxílio, abusamos da vossa tolerância para conosco. Mesmo quando nossas feridas são mal curadas, nossa ingratidão tudo esquece. Se por acaso nos ouvis de pronto, tomamos posse de Vossa misericórdia; se é lento o Vosso consolo, nos transbordamos de impaciência. Queremos a Vós, Senhor, para manter o que temos feito, mas não tememos desconsiderar o que quereis que tivéssemos feito.

Por isso imploramos o Vosso auxílio, mesmo antes de colocar diante de Vós os males e as tristezas devidas aos nossos pecados. Com as nossas orações, invocamos a Vossa misericórdia, a mesma misericórdia que tem sido tão desprezada pelos nossos pecados. Levantai-nos do erro pela Vossa magnanimidade, ó Senhor, Nosso Deus, para que, na comunhão de salvação e na alegria da caridade, enquanto ainda temos tempo para sermos salvos, possamos regozijar-nos na fé e na paz junto com todas as nações. Por meio de Jesus Cristo, Nosso Senhor, que vive e reina na unidade com o Pai e o Espírito Santo num só Deus. Amém. 

domingo, 14 de dezembro de 2014

TESTEMUNHA DA LUZ

Páginas do Evangelho - Terceiro Domingo do Advento


Neste domingo, Terceiro Domingo do Advento, mais uma vez, a mensagem profética que ressoa pelos tempos vem da boca de João Batista. Em Betânia, além do Jordão, diante da expectativa da chegada do Messias e da interrogação dos sacerdotes e dos levitas sobre a sua identidade, João Batista foi sucinto e categórico em suas respostas: 'Eu não sou o Cristo'. 'Eu não sou Elias'. 'Eu não sou o Profeta' (Jo 1, 20 - 21). E sintetiza tudo: 'Eu batizo com água; mas no meio de vós está aquele que vós não conheceis, e que vem depois de mim. Eu não mereço desamarrar a correia de suas sandálias' (Jo 1, 26 - 27). Eis o primado de João: Jesus vem, a sua Vinda é iminente: alegrai-vos todos porque o céu vai tocar a terra e fazer novas todas as coisas.

Eis o Advento do Senhor: depois da vigilância e da conversão, vivenciados nos domingos anteriores, segue agora o ressoar das trombetas da legítima alegria cristã neste terceiro domingo. Sim, alegria cristã, alegria plena do amor de Cristo, proclamada nas palavras do Profeta Isaías: 'Exulto de alegria no Senhor e minh’alma regozija-se em meu Deus; ele me vestiu com as vestes da salvação, envolveu-me com o manto da justiça e adornou-me como um noivo com sua coroa ou uma noiva com suas joias' (Is 61, 10) e também na Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses: 'Estai sempre alegres! Rezai sem cessar. Dai graças em todas as circunstâncias, porque essa é a vosso respeito a vontade de Deus em Jesus Cristo'' (1 Ts 5, 16 - 18).

João Batista 'não era a luz, mas veio dar testemunho da luz' (Jo 1, 8). Ele é a voz passageira que anuncia a Palavra Eterna, como nos ensina Santo Agostinho: 'O som da voz te faz entender a palavra; e, quanto te fez entendê-la, o som desaparece, mas a palavra que foi transmitida permanece em teu coração' (Sermão 293, 3). Neste deleite da graça, esparge-se a luz do entendimento da fé e amolda-se suavemente a paz divina ao coração humano que palpita inquieto enquanto não repousar definitivamente em Deus.

O testemunho de João Batista é a nossa herança de fé, na alegria daqueles que acolhem o Messias, a Luz do mundo. Eis aí o verdadeiro caminho da felicidade, trilhado apenas por aqueles que vivem a alegria da espera do Senhor Que Vem, perseverantes na oração e na fé que move montanhas e que inquieta o coração humano até o encontro definitivo com Deus. Benditos sejam os homens e mulheres que se consumem de alegria nesta via de santidade, porque possuirão para sempre as moradas na Casa do Pai. Nascidos para a eternidade, e herdeiros da Visão Beatífica, no Céu todos se tornarão testemunhas da Luz ainda maiores que o João Batista deste mundo.

sábado, 13 de dezembro de 2014

LÂMPADAS DA ALMA


'O olho é a luz do corpo. Se teu olho é são, todo o teu corpo será iluminado. Se teu olho estiver em mau estado, todo o teu corpo estará nas trevas. Se a luz que está em ti são trevas, quão espessas deverão ser as trevas!' (Mt 6, 22 - 23).

'Se teu olho te leva ao pecado, arranca-o e lança-o longe de ti: é melhor para ti entrares na vida cego de um olho que seres jogado com teus dois olhos no fogo da geena' (Mt 18, 9).

'Quem vive casta e santamente é templo do Espírito Santo. Sem a minha vontade, a virtude nada sofrerá. Podes, à força, pôr incenso nas minhas mãos para que eu o ofereça aos ídolos? Isto de nada vale porque Deus, que conhece os corações, não me julgará pelo o que fiz coagida. A violência feita ao corpo não arranca a pureza da alma, se minha vontade não consente. Ao contrário, esta violência me proporcionará duas coroas: a da virgindade e a do martírio' (Santa Luzia).

Santa Luzia foi perseguida durante a época do imperador Diocleciano e martirizada por decapitação. Diz a tradição que ela defendeu de tal forma sua pureza, que teria preferido arrancar os próprios olhos e entregá-los aos carrascos do que se submeter à infâmia de conspurcar a sua castidade a renegar a fé cristã. Neste sentido, ela é comumente representada com os dois olhos arrancados e colocados sobre uma bandeja. 

Na verdade, Santa Luzia não precisou arrancar seus olhos para vencer o pecado, ela os utilizou para ver, além das coisas físicas e materiais, de forma clara e transparente, a própria luz de Deus. É celebrada como a santa protetora da visão, mas muito além da visão física. Ela nos ensina que, como lâmpadas do corpo, os nossos olhos devem refletir em plenitude a luz de Cristo que habita as nossas almas!

Santa Luzia, rogai por nós!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

OS TRÊS ADVENTOS DO SENHOR


Conhecemos uma tríplice vinda do Senhor. Entre a primeira e a última há uma vinda intermediária. Aquelas são visíveis, mas esta, não. Na primeira vinda o Senhor apareceu na terra e conviveu com os homens. Foi então, como Ele próprio o declara, que viram-no e não o quiseram receber. Na última, todo homem verá a salvação de Deus (Lc 3,6) e olharão para aquele que transpassaram (Zc 12,10). A vinda intermediária é oculta e nela somente os eleitos o veem em si mesmos e recebem a salvação. Na primeira, o Senhor veio na fraqueza da carne; na intermediária, vem espiritualmente, manifestando o poder de sua graça; na última, virá com todo o esplendor da sua glória.

Esta vinda intermediária é, portanto, como um caminho que conduz da primeira à última; na primeira, Cristo foi nossa redenção; na última, aparecerá como nossa vida; na intermediária, é nosso repouso e consolação.

Mas, para que ninguém pense que é pura invenção o que dissemos sobre esta vinda intermediária, ouvi o próprio Senhor: 'Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos a ele' (cf. Jo 14,23). Lê-se também noutro lugar: 'Quem teme a Deus, faz o bem' (Eclo 15,1). Mas vejo que se diz algo mais sobre o que ama a Deus, porque guardará suas palavras. Onde devem ser guardadas? Sem dúvida alguma no coração, como diz o profeta: 'Conservei no coração vossas palavras, a fim de que eu não peque contra vós' (Sl 118, 11).

Guarda, pois, a palavra de Deus, porque são felizes os que a guardam; guarda-a de tal modo que ela entre no mais íntimo de tua alma e penetre em todos os teus sentimentos e costumes. Alimenta-te deste bem e tua alma se deleitará na fartura. Não esqueças de comer o teu pão para que teu coração não desfaleça, mas que tua alma se sacie com este alimento saboroso.

Se assim guardares a palavra de Deus, certamente ela te guardará. Virá a ti o Filho em companhia do Pai, virá o grande Profeta que renovará Jerusalém e fará novas todas as coisas. Graças a essa vinda, como já refletimos a imagem do homem terrestre, assim também refletiremos a imagem do homem celeste (1Cor 15,49). Assim como o primeiro Adão contagiou toda a humanidade e atingiu o homem todo, assim agora é preciso que Cristo seja o senhor do homem todo, porque ele o criou, redimiu e o glorificará.

(Dos Sermões de São Bernardo)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

CARTAS A MEU PAI (IV)

Pai:

Há muitos de nós que perderam o caminho; seguem suas vidas moldadas pelas dimensões do tempo e do mundo dos homens, sem estranhamento algum em relação às questões que realmente importam, da salvação e da eternidade. Numa discussão hoje cedo na universidade, um sustentou acaloradamente que Vós sois uma miragem e um espectro intangível da capacidade humana de encontrar culpados para todas as suas faltas e ações. Outro julgou 'pertinente' que o senhor possa existir, conquanto não tenha nenhuma influência sobre a vida de ninguém. Um terceiro admitiu que deus possa ser algo menos que uma obra de imaginação, mas que os 'deuses' de tantos podem passar perfeitamente bem alheios aos que não os evocam. No meio daquela gente, alguém ousou lembrar dos passos do Vosso Filho, da obra de redenção nascida do Calvário. Em vão. O argumento preferido nestas plagas é que todas as religiões são intrinsecamente ruins, e que Deus não passa de uma grande quimera.

Foi o momento em que vi, pela primeira vez na vida e de forma tão contundente, os chamados anjos recolhidos. Sim, os anjos da guarda deles estavam recolhidos, mantidos a uma relativa distância dos homens de ciência e de tão pouca fé, e não se moviam nem exalavam brilho especial, juntados em um pequeno círculo circunspecto, pesarosos do encontro, como que vergastados pelas palavras profanas, pela insensatez dos que diluem no próprio pecado os pecados de todos, sempre uma vez mais. Eu já havia visto muitos anjos da guarda de muitas pessoas, alguns mesmo prostrados pelo pecado de algum. Mas a imagem dos anjos recolhidos chocou-me, Pai, pois, ainda que eles não abandonem nunca aqueles que nasceram para o seu zelo e proteção, eles também, de alguma forma, padecem a dor da criação inteira por um só pecado e, muito mais profundamente, daqueles que negam o próprio Criador.

Ah quanta coisa não se saberá no outro mundo...quando, enfim, os olhos se abrirão para as verdades definitivas e incomensuráveis de Deus, de uma forma infinitamente mais clara e brilhante que a minha visão de agora, por especial privilégio de Vossa graça. Como ansiei me intrometer naquela conversa e abrir-lhes o coração diante de tanta rudeza e perda de fé. Mas o livre arbítrio é fruto da Vossa Santa Vontade e não da minha inquietude humana. E o grupo se dispersou em seguida para as suas tarefas diárias; se ao menos soubessem que as suas palavras foram escritas a fogo no livro dos mortos e ai deles se tiverem que prestar conta delas por toda a eternidade. A imagem dos anjos recolhidos se diluiu e cada qual tomou o rumo dos passos de cada um.

A imagem ficou e ainda continua comigo até o final desse dia, Pai, como que marcando e assinalando todos os meus passos. Que a Vossa infinita misericórdia possa tornar um dia estes homens dignos de Vossa Presença, sob a tutela de anjos zelosos e sempre de pé. E eu, Senhor, Vos prometo que, esteja em quaisquer grupos de pessoas, mais ou menos numerosos, minhas palavras estarão sempre atentas sob o jugo suave de Vossa Santa Lei e, nunca, nunca mesmo, permitirei que anjos recolhidos tenham que ficar debruçados diante de nós, vergados pelo lastro doloso de nossas palavras. Que Nossa Senhora da Imaculada Conceição me sustente e referende por toda a minha vida esse santo propósito de vida interior. Amém. 

E isso é tudo por hoje, na vida de um filho vosso no meio do mundo. Boa noite, Pai. Com a vossa bênção, R.

('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

CONSOLAÇÃO PELOS QUE PERDEMOS

Se perdemos os nossos parentes e amigos, não devemos entristecer-nos muito; porque nada há no mundo pelo que devemos desejar que aqueles que amamos aqui permaneçam muito tempo, e ele é tão miserável que devíamos antes louvar a Deus quando os leva e não nos afligirmos. Assim convém que uns após outros deles saiamos, segundo a ordem que Deus estabeleceu; os primeiros que saem são os que estão melhor, quando viveram com cuidado da sua salvação. E depois, na eternidade, tais perdas são reparadas, e a nossa sociedade, desfeita pela morte, será restaurada.

Uma consolação bem suficiente aos filhos de Deus, é quando seus parentes e amigos têm recebido os remédios eficazes dos santos sacramentos antes de morrer, o que lhes devem procurar sem demora. Repousemos os nossos corações sem amargura; mas tenhamos a coragem, tão necessária neste estado, de fechar os olhos ao nosso querido moribundo, dando-lhes o ósculo da paz. Depois disto, façamos-lhe as honras que o costume cristão exige, segundo o estado e condição de cada um. Porém, mais do que tudo, ordenemos que o mais cedo possível se façam com exatidão por intenção do falecido as orações, e outros exercícios piedosos, com medo que ele tenha precisão de alguma expiação, segundo a severidade do juízo divino; e que ainda esteja privado do gozo da plena e gloriosa liberdade, e que tenha a alma ainda condenada à estada por algum tempo no fogo do purgatório, por um segredo inescrutável de Deus, antes de ser recebida no céu entre os braços da divina bondade. Nesta sociedade, as amizades e sociedades começada neste mundo continuar-se-ão para não haver mais separação.

No entanto tenhamos paciência e esperemos com coragem que soe a hora da nossa partida, para irmos para onde já estão os nossos amigos; e já que cordialmente os amamos, continuemos a amá-los; façamos por amor deles o que eles desejariam que fizéssemos e o que agora por nós almejam. Entretanto não vos direi: 'Não choreis', não, porque é justo que choreis um pouco em testemunho do afeto sincero que tendes aos vossos queridos defuntos. Isto será imitar a Jesus Cristo, que chorou por um pouco a Lázaro, seu bom amigo; mas com condição de serem moderadas estas demonstrações exteriores, e que esses suspiros e gemidos não sejam tantas lágrimas de pesar como sinais de compaixão e ternura.

Não choremos como os que pertencendo completamente a esta miserável vida, não se lembram de que caminhamos para a Eternidade, onde, se vivemos bem neste mundo, nos reuniremos às pessoas queridas para nunca mais a deixarmos. Não poderíamos impedir que o nosso pobre coração sentisse a perda dos que aqui eram os nossos amáveis companheiros; mas convém que não desmintamos a solene resolução que fizemos de ter a nossa virtude inseparavelmente unida a de Deus, e que não cessemos de dizer à Divina Providência: 'Sim, vós sois bendita, porque tudo o que vos agrada é bom'.

Eu choro em tais ocasiões; e o meu coração, que é de pedra nas coisas do céu, funda-se em lágrimas por tais acontecimentos. Esta insensibilidade imaginária dos que não querem que estejamos homens, pareceu-me sempre que era uma quimera; mas também, depois de ter pago o tributo à parte inferior da nossa alma, é preciso prestar as honras à superior, onde brilha, como em um trono, o espírito da fé, que nos deve consolar em nossas aflições e por elas próprias.

Bem aventurados os que se alegram por estarem aflitos e convertem o absinto em mel! Deus seja louvado! É sempre com tranquilidade que eu choro, sobretudo com um grande sentimento de amor para com a Providência de Deus; porque depois, que Nosso Senhor amou a morte e a deu por objeto ao nosso amor, não posso querer mal a morte por me levar minhas irmãs ou qualquer outra pessoa, contanto que morra no amor da santa morte do Salvador. Tenho em tão pouca conta esta vida frágil, que nunca me volto para Deus com mais sentimento de amor do que quando me fere, ou permite que eu seja ferido.

Estimo que tenhais tanta caridade e temor de Deus, que, vendo o seu agrado e a sua santa vontade, a ele vos acomodeis e odieis o vosso desprezo pela consideração do mal deste mundo. Não podemos evitar ter muita pena com a separação dos nossos amigos, e este desgosto não nos é proibido contanto que o moderemos pela esperança que temos de não nos separarmos deles senão no pouco tempo que medeia até os seguirmos ao céu, lugar do nosso repouso, se Deus nos fizer essa graça.

Alongai muitas vezes a vossa vista até ao céu e vede que esta vida não é senão uma passagem para a eternidade. Quatro ou cinco meses de ausência passarão depressa. Se o nosso costume e os nossos sentidos, entretidos em estimarem este mundo e esta vida, nos fazem sentir o que nos é contrário, corrijamos muitas vezes este defeito pela claridade da fé que nos deve fazer julgar por muito felizes os que em poucos dias terminarem a sua viagem.

Oh! como é desejável a eternidade comparada com as vicissitudes deste mundo! Todos os dias a minha alma se abrasa em amor e estima das coisas eternas. Deixemos correr o tempo, com o qual corremos a pouco e pouco para nos transformarmos na glória dos filhos de Deus. Quanto incomparavelmente mais amável não é a eternidade, cuja duração não tem fim, com os dias sem noite e os contentamentos invariáveis! Oh! se de uma vez compenetrássemos bem os nossos corações nesta santa e bem aventurada eternidade! 'Ide', diríamos nós a todos os nossos amigos, 'ide para este Rei da eternidade: nós nos reuniremos a vós', e já que o tempo só para isso nos foi concedido e que o mundo só se povoa para povoar o céu, façamos tudo o que pudermos para disso nos tornarmos dignos.

Sim, com certeza, a passagem de nossos amigos para uma vida melhor é estimável, pois que se faz para povoar o céu e engrandecer a glória do nosso Rei; um dia juntar-nos-emos a eles e, entretanto, aprendamos o cântico do santo amor, para o cantarmos com mais perfeição na eternidade. Bem aventurados os que não confiam na vida presente e que só a julgam como uma tábua para passarem à vista celeste, na qual unicamente devemos colocar as nossas esperanças!

Deixemos chorar Davi a morte do seu Absalão enforcado e perdido; mas na morte do que tomou por vontade, que recebeu os remédios eficazes da Igreja antes de morrer, há mais ocasião para nos consolarmos do que para nos entristecermos; porque, tendo vivido bem, não morreu, mas salvou-se da morte; porque os homens virtuosos não morrem, vivendo no céu pela magnifica recompensa de seus méritos, e na terra pela gloriosa memória de seus benefícios.

Oh! se ouvíssemos as doces e amáveis palavras de algum falecido já bem aventurado, ele nos diria: 'Meus amados, peço-vos que noteis que estou no lugar que desejo, e que me consolo dos meus passados trabalhos que me conquistaram esta gloriosa imortalidade! Por que não consolais comigo? Quando eu estava convosco nesse mundo, era vosso empenho vos regozijardes comigo em todas as minhas consolações, até mesmo caducas e ilusórias. Ah! não sou eu mesmo? Por que vos afligis para com minha morte visto ter-me Deus dado tanta glória? Não, eu desejo de vós coisas bem diferentes desses vossos pesares! Se tendes lágrimas, guardai-as para chorar as desgraças do vosso século e conjuntamente os vossos pecados. Não sabeis que os males desta vida miserável em que viveis são tais, que devereis antes louvar a Deus por delas vos livrar, do que afligir-vos? Os primeiros que dela saem são os mais felizes, contanto que tenham vivido bem. Um só pesar sinto agora; é que desprezeis, estando em vossos corpos, as coisas de que não necessitais não as possuindo; e que vivais por tal forma, entre as prosperidades da vida, que não temais as adversidades, confiando que em breve vos unireis aos vossos caros defuntos para os não deixardes por toda a eternidade'.

Prouvera a Deus que todos os filhos de Adão pensassem bem nestas verdades! Decerto não estariam tão ardentes e ásperos para os prazeres e vaidades, porque conheceriam perfeitamente que tudo o que agora amaram não era senão um nada, despojo da morte, o fruto de satanás e o engodo do inferno; e por este conhecimento claro, junto a uma resolução firme e sólida, tirariam da morte temporal auxílio e socorro para evitar a eterna.

(Excertos da obra 'Pensamentos Consoladores de São Francisco de Sales')