quinta-feira, 23 de outubro de 2014

POEMA SOBRE A NATUREZA HUMANA

   de São Gregório Nazianzeno

Ontem, abatido pela tristeza, sozinho e longe de todos, sentei-me à sombra de um bosque, meditando em meu coração. Gosto desse remédio nos sofrimentos, o de me entreter silenciosamente comigo mesmo. O murmúrio da brisa, junto ao chilrear dos pássaros e ao sussurro das ramagens, trazia prazer ao coração aflito. As cigarras, no alto das árvores, cantando sonoramente ao sol, acrescentavam um ruído que acabava de encher o bosque. Perto ainda, um córrego de água pura vinha banhar-me os pés e deslizava da mata como orvalho refrescante. Eu, porém, absorvido na dor, não cuidava de nada disso, pois o espírito em tais condições se recusa a qualquer prazer. Interiormente agitado, entregava-me a uma luta onde eram minhas palavras que se debatiam. Quem fui? Quem sou? Quem serei? Não sei responder claramente, como não o sabem tampouco os mais sábios que eu. Envolto por uma nuvem, ando errante sem nada possuir, mesmo em sonhos, de tudo aquilo que desejo. Sim, somos peregrinos na terra e sobre todos nós se erguem a nuvem azul da carne. Mais sábio do que eu é quem melhor sabe expulsar a mentira loquaz de seu coração.

Eu sou. Explique-se-me o que é isso. Uma parte de mim já se foi, sou outro neste instante, e outro serei ainda se continuo a existir. Nada é estável. Assemelho-me ao curso de um rio turbulento que sempre avança sem nada ter fixo. Dir-me-ás o que sou em tudo isso? Ensina-me ao menos o que sou para ti. Permaneço aqui um momento, mas cuida que eu não fuja de ti... Não atravessarás de novo o rio do mesmo modo como o atravessaste, não reverás o mortal que já viste uma vez.

Existi inicialmente na carne de meu pai, depois minha mãe me acolheu e provenho de ambos. Fui em seguida uma carne confusa, massa informe, antes que homem, sem palavras nem espírito, tendo na mãe meu túmulo. Sim, nós estamos duas vezes no túmulo, pois nossa vida também se termina na corrupção. Esta vida que percorro, vejo que se despende anos que me trazem o funesto envelhecimento. E se, partindo da terra, sou acolhido numa vida sem fim, como se diz, vê se a vida não contém a morte, e se a morte não é para ti a vida, contrariamente ao que pensas.

Nada tenho sido. Por que sou sem cessar avassalado pelos males, como se não mudasse jamais? Pois só os males, entre os mortais, são imutáveis, inatos, inseparáveis e não envelhecem. Apenas saído do seio de minha mãe, verti a primeira lágrima; e haveria de encontrar tantas e tão grandes calamidades! Derramava lágrimas antes de tocar a vida! Ouvimos falar de uma região, como outrora Creta, onde não havia animais ferozes, e de outra isenta da neve. Mas nunca se ouviu de um mortal que deixasse esta vida sem que tristes penas o atingissem. A doença, a pobreza, o parto, a morte, o ódio, os maus, as feras do mar e da terra, as dores: eis a vida! Conheci muitos males sem alegria, mas não conheci jamais a alegria completamente isenta de sofrimento, desde o fatídico fruto que degustei e o inimigo invejoso que me marcou com o signo da amargura.

Carne, eis o que devo dizer-te, a ti, tão difícil de se curar, inimiga suave, a quem a luta jamais abate, fera atroz que cruelmente acaricias, fogo que refresca - ó coisa espantosa! Mais espantoso porém seria se acabasses por te tornares minha amiga!

E tu, ó minha alma, ouvirás por tua vez a linguagem que te convém. Quem és? donde vens? qual o teu ser? quem te estabeleceu como sustentáculo de um morto? Quem te ligou aos tristes grilhões da vida, sempre inclinada para as coisas da terra? Como foste misturada ao grosseiro, tu que és sopro? À carne, tu que és espírito? Ao pesado, tu que és leve? São qualidades que se opõem mutuamente e se combatem. Se vieste à vida, engendrada ao mesmo tempo que a carne, quanto então essa união tem sido perniciosa para mim! Sou imagem de Deus e me tornei filho da torpeza. Temo que o desejo tenha sido a causa do nascer de algo tão digno de honra. Um ser fugidio me gerou e sofreu a corrupção. Eis-me, então, homem, mas cessarei de sê-lo e me tornarei cinzas: são estas minhas últimas esperanças?

Ao contrário, se és celeste, quem és tu e donde vens? Aspiro sabê-lo, instruí-me! Se tens o sopro de Deus por origem e Deus mesmo por destino - como julgas - rejeita o vício e acreditarei em ti! Porque não convém que o puro seja maculado, mesmo levemente; as trevas não pertencem ao sol, o filho da luz não vem do espírito mau. Como és atormentada a tal ponto por Belial, tu que intimamente estás unida ao Espírito divino? Se com tal ajuda ainda te inclinas para a terra, então é grande a violência de tua maldade!

E se não vens de Deus, qual a tua natureza? Ah! temo ser presa de vão orgulho: Deus me plasmou, depois houve o Paraíso, o Éden, a glória, a esperança, o preceito, o dilúvio destruidor do mundo, a chuva de fogo, e a seguir a Lei, esse remédio escrito, e finalmente o Cristo, que uniu sua natureza à nossa para trazer socorro a meus sofrimentos através de seus divinos sofrimentos, para divinizar-me, graças a sua condição humana; e apesar de tudo isso mantenho um espírito indômito, sou como o javali furioso que se mata precipitando-se sobre o ferro!

Que bem se acha na vida? A luz de Deus? Mas as trevas invejosas e odiosas dela me afastam! Não me beneficio dela. Os maus não me dominam sob todos os aspectos? Por que, apesar de todos os meus sofrimentos, não lhes sou ao menos igual? Estou abatido até a terra, até ao cabo de minhas forças; o temor divino me fez vergar; dia e noite me abatem preocupações; o orgulho derrubou-me ao seduzir-me traiçoeiramente, calcou-me aos pés. Cita-me tudo o que há de terrível: o negro Tártaro, o Flégeton*, os tormentos, os demônios que são os carrascos de nossa alma. Tudo isso os maus têm como fábulas, só considerando o que está diante de si e é bom. O temor do castigo não corrige sua maldade. Mas preferiria ver os maus não punidos, mesmo no futuro, antes que me afligir agora por castigos devidos à sua maldade! 

Mas, por que então cantar assim as dores dos homens? A dor se estende sobre toda a nossa estirpe. Aliás, nem a terra é sem abalos, os ventos agitam o mar, as horas se sucedem em delírio, a noite põe fim ao dia, a tempestade obscurece o ar, o sol tira a beleza às estrelas, as nuvens tiram-nas ao sol, a lua se renova, o próprio céu não é senão parcialmente brilhante por seus astros. E tu, Lúcifer, tu estavas outrora entre os coros angélicos e, agora, invejoso, tombaste vergonhosamente dos céus!

Mas, ó Trindade, reino venerável, sê-me propícia! Nem vós escapastes à língua dos efêmeros insensatos! O Pai, primeiro, depois o Filho em sua majestade, e enfim o Espírito do grande Deus foram objetos de injúrias. Aonde, porém, infeliz aflição, tu me arrastas? Cala-te! Acaso, tudo não é pequeno em relação a Deus? Cala-te diante do Verbo!

Não, não foi em vão que Deus me criou! (Eis que estou indo contra o que eu mesmo cantei: são as fraquezas de nosso espírito). Agora és trevas, um dia serás razão e compreenderás tudo, seja vendo a Deus, seja devorando-te pelo fogo. Quando meu espírito me fez ouvir estes cantos, minha dor serenou. E, assim, tarde deixei o bosque sombrio e voltei à vida, ora alegrando-me com um pensamento, ora consumindo o coração no sofrimento, o espírito sempre em luta!

* rio do inferno, na literatura antiga

(Excertos da obra ' Antologia dos Santos Padres', de C. Folch Gomes, Ed. Paulinas, 1985)

BREVIÁRIO DIGITAL - ORAÇÕES E MEDITAÇÕES (III)

(Do original 'Vade Mecum do Católico Fiel'; p. 20 - 21)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

LOCUÇÕES INTERIORES: 'ELE E EU'


Gabrielle Bossis (1874-1950) nasceu em Nantes (França) e foi educada num ambiente culto e refinado, tornando-se autora de peças teatrais e formando-se em enfermagem, tendo servido na Cruz Vermelha durante a I Guerra Mundial. Com o firme propósito de servir a Deus, dedicou-se a uma vida de devoção e piedade cristãs, sendo contemplada por locuções interiores com Jesus, que se tornaram bastante correntes desde 1936 até a sua morte em 1950. Estas locuções foram sistematizadas por ela na obra 'Lui et moi' - Ele e eu, depois traduzida em vários idiomas, que se converteu em fonte de referência como exemplo das grandes manifestações místicas da Igreja no século XX.

1º de março de 1937 (Estação ferroviária, às margens do Ródano): 'Olhas fixamente na direção de onde o trem virá. Da mesma maneira, Eu tenho os meus olhos fixos em ti, esperando que venhas a mim'.

6 de julho de 1937 (estação de Vannes): Ele me fazia compreender que devemos viver em família com todos os santos do céu, com os anjos, nossos irmãos mais velhos. Dizia-me: 'Não se deve sair do Amor'.

24 de novembro de 1937: 'Ama a tua cela: o teu quarto, se estás em casa; o teu próprio coração, se estás no meio da multidão. Aí estou Eu'.

1937. 'A tua alma tem uma porta que abre para a contemplação de Deus. Mas é indispensável que a abras.'

1937 (em Seine-et-Oise): Eu lhe dizia: 'Realmente eu não consigo entender como podes amar tanto umas criaturas tão miseráveis'. Ele me respondeu: 'Como poderias tu entender o Coração de um Deus?'

23 de fevereiro de 1938 (em uma avenida de Nantes, às cinco e meia da manhã): Eu disse: 'Jesus, estamos sós'. Ele me corrigiu: 'Diz 'meu' Jesus. Não te agrada que Eu te chame 'minha' Gabrielle?'

10 de março de 1938 (no campo): Eu estava com o pensamento envolto na Sagrada Família, com São José, a Mãe Santíssima e o Filho Único. Disse-me Ele com imensa ternura: 'Sê tu a irmãzinha'.

abril de 1939: 'Recolhimento; quando se inclina um vaso bem cheio para a esquerda ou para a direita, o conteúdo derrama; mas se o vaso é mantido reto, na direção do céu, permanece cheio'.

20 de junho de 1939: 'O teu temor de ofender-me é para mim como uma flecha que me fere de amor. Filha: que as feridas de amor que me causam os meus fieis curem as feridas que me causam a indiferença, o ódio e os desprezos.'

22 de junho de 1939 (no campo): 'Sê simples comigo. O que é que se faz de manhã ou no fim do dia, no seio de uma família? As pessoas beijam-se afetuosamente umas às outras, e tudo isso é natural. Às vezes, durante o dia, por ocasião de uma palavra ou um presente, trocam olhares. Olhares afetuosos. Há ímpetos de carinho. Como tudo isso é doce e reconfortante! Se me permitissem ser como um membro da família!...'

1939 (num restaurante repleto, em Lyon): 'Oferece-me aqui um Pai-Nosso; será o primeiro que me oferecem neste lugar em muito tempo!'

1939 : 'Não percas o teu tempo com pensamentos sobre ti. Não estou Eu aqui para preocupar-me das tuas coisas? Que em todos os teus instantes haja um afeto, como cânticos em que Eu beba o teu amor e o amor pelos pecadores; lucrarás graças para eles e para as almas do Purgatório. O que te resta de todos esses pensamentos da terra que acariciaste? Quanto não terias ganho se todos eles tivessem sido convertidos em impulsos para mim! Reflete sobre isso.'

1º de abril de 1940 (em Le Fresne): No jardim, sentada sobre a borda de um poço, orava eu pela conversão de um pecador e dizia: 'Senhor, lembra-te de que converteste a samaritana sentado à borda de um poço'. Ele me disse: 'Sim, mas tive de esperar por ela'. Fez-me compreender com isso que há ocasiões em que é preciso orar por longo tempo.

DA VIDA ESPIRITUAL (75)




Pai! Que eu deplore a cada minuto a insensatez dos homens diante de Vós, mas que meu coração nunca ouse julgar, em Vosso nome, nenhum dos vossos filhos...

domingo, 19 de outubro de 2014

'DAI A DEUS O QUE É DE DEUS'

Páginas do Evangelho - Vigésimo Nono Domingo do Tempo Comum


Os fariseus encontravam-se plasmados em fúria; Jesus lhes dera a conhecer a dureza dos seus corações por meio de diversas parábolas. Tramavam a morte do Senhor, mas não a ousavam praticar de pronto temendo a perda de controle da situação e a insubmissão do povo. Era preciso criar subterfúgios, angariar apoio com encenações hipócritas, mentir e difamar, submeter Jesus a ciladas constrangedoras. Era preciso fazer a perfídia humana assumir a dimensão diabólica de um deicídio.

As velhas serpentes mandam alguns dos seus próprios discípulos e outros tantos coligados a Herodes para, com uma questão aparentemente proposta na forma de um dilema de consequências desastrosas, imporem a Jesus uma prova definitiva de condenação pública e explícita. Depois das adulações fraudulentas - ' Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus... (Mt 22, 16), questionam Jesus se seria lícito ou não pagar o tributo imposto pelo governo romano. Em caso de uma resposta afirmativa, seria um declarado manifesto de submissão ao domínio de Roma; em caso negativo, Jesus seria o potencial mentor de uma sublevação.

Percebendo a malícia diabólica daqueles homens, Jesus os revela publicamente como hipócritas e, tomando nas mãos uma moeda cunhada com a efígie do imperador romano e, em resposta à declaração pública de que a figura e a inscrição presentes na mesma referem-se a César, responde: 'Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus' (Mt 22, 21). Em outros termos, Jesus declara à turba ensandecida dos fariseus: as obras humanas são necessárias, boas em si e devem ser feitas de acordo e ajustadas às circunstâncias e valores do mundo; as obras humanas inseridas na vida plena com Deus, entretanto, tornam-se instrumentos de graças e de salvação eterna.

Na moeda romana, convergem a figura de um homem e o valor de uma dada atividade humana. No espelho da alma, reflete-se em nós a própria imagem de Deus. Possuir e conviver com as coisas do mundo e delas se ocupar no cotidiano de nossas vidas, é vida que segue, é o suor do trabalho de nossa herança adâmica. Buscar as coisas do Alto, e projetar todas as nossas ações e pensamentos para a suprema glória divina, é o triunfo de nossa herança como filhos de Deus. No mundo ou passando pelo mundo, o livre arbítrio nos conduz a vivermos para César ou para Deus.