sexta-feira, 27 de setembro de 2024

GALERIA DE ARTE SACRA (XXXIX)

'O Retorno do Calvário' é uma obra do pintor inglês Herbert Gustave Schmalz (1856 - 1935). A pintura retrata um crepúsculo já dominado pelas sombras da noite. Eis o tempo dos homens: a Paixão de Cristo está consumada e seu corpo está confinado por uma pedra no sepulcro novo. Três cruzes solitárias (no alto à direita da pintura) modelam agora o cenário do Calvário. A 'volta para casa' ainda é parte integrante da Paixão, porque o triunfo da ressurreição é ainda uma perspectiva.

Todo o cenário contribui para um jogo contínuo de confrontos: luzes e sombras, a escadaria e a parte baixa da cidade, o distanciamento do Calvário diante a perspectiva ainda indefinida do triunfo da ressurreição. Cinco personagens - 1 homem e 4 mulheres - vivenciando uma elevação de graças e dores muito acima das mazelas do mundo lá embaixo, percorrem lentamente os degraus de uma escadaria.

Eis o homem: João, o discípulo amado que ampara e sustenta a Maria, Mãe do Crucificado. O seu olhar está fixado na visão do Calvário e é quase possível transcrever seu pensamento de agora, demarcado a ferro e a fogo pelas palavras finais de Jesus: 'Eis aí tua mãe'. Maria avança em desolação completa, cada passo agora é abandono e resignação completa: 'Vós todos que passais pelo caminho, olhai e vede: há dor como a minha dor? (Lm 1,12).

Há outras Marias neste grupo que amparam e acompanham a Virgem Maria. A mulher ruiva que a consola diretamente com João é Maria Madalena ou Maria de Magdala, que vai se tornar a primeira testemunha da ressurreição. Maria, mulher de Cleófas ou mãe de Tiago (Menor) é provavelmente a mulher que, mais atrás, tem o olhar dirigido às solitárias cruzes que encimam o Calvário. E a mulher atrás dela, com o rosto envolto pelas mãos, é provavelmente Salomé, 'a mãe de Tiago e João, filhos de Zebedeu'. As duas mulheres que, mais tarde, iriam juntas para comprar aromas para ungir o Corpo de Jesus. Ou, sob outro ponto de vista, podemos inverter a identificação de ambas na pintura.

Mas alguém vislumbrou uma outra interpretação criativa para esta pintura que me agrada muitíssimo mais. Aquelas duas figuras mais atrás - uma que obscurece a própria visão e outra que volve seu olhar ao drama da Paixão, ambas aturdidas, ambas profundamente abaladas - somos nós, eu e você, quaisquer um de nós. Reflexos de nós mesmos, personagens reais ou projetados de quem, no tempo dos homens e na eternidade de Deus, seremos igualmente um dia - todos - testemunhas da Paixão. 

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

INSENSATEZ E PRESUNÇÃO

 

1. Insensato é quem põe sua esperança nos homens ou nas criaturas. Não te envergonhes de servir a outros por Jesus Cristo, e ser tido como pobre neste mundo. Não confies em ti mesmo, mas põe em Deus tua esperança. Faze de tua parte o que puderes, e Deus ajudará tua boa vontade. Não confies em tua ciência, nem na sagacidade de qualquer vivente, mas antes na graça de Deus, que ajuda os humildes e abate os presunçosos.

2. Se tens riquezas, não te glories delas, nem dos amigos, por serem poderosos, senão em Deus, que dá tudo, além de tudo, deseja dar-se a si mesmo. Não te desvaneças com a airosidade ou formosura de teu corpo, que com pequena enfermidade se quebranta e desfigura. Não te orgulhes de tua habilidade ou de teu talento, para que não desagrades a Deus, de quem é todo bem natural que tiveres.

3. Não te reputes melhor que os outros para não seres considerado pior por Deus, que conhece tudo que há no homem. Não te ensoberbeças pelas boas obras, porque os juízos dos homens são muito diferentes dos de Deus, a quem não raro desagrada o que aos homens apraz. Se em ti houver algum bem, pensa que ainda melhores são os outros, para assim te conservares na humildade. Nenhum mal te fará se te julgares inferior a todos; muito, porém, se a qualquer pessoa te preferires. De contínua paz goza o humilde; no coração do soberbo, porém, reinam inveja e iras sem conta.

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXXIX)

Capítulo LXXXIX

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - A Mulher Napolitana e o Bilhete Misterioso

Para provar que as almas do Purgatório demonstram a sua gratidão até por favores temporais, o Padre Rossignoli relata um fato ocorrido em Nápoles, que tem alguma semelhança com o que acabamos de ler. Se não é dado a todos oferecer a Deus as abundantes esmolas de Judas Machabeus, que enviou doze mil dracmas a Jerusalém para sacrifícios e orações em favor dos mortos, são muito poucos os que não podem ao menos fazer a oferta da pobre viúva do Evangelho, que foi elogiada pelo próprio Salvador. Ela havia dado apenas dois cêntimos, mas, disse Jesus: 'todos deitaram do que tinham em abundância; esta, porém, pôs, de sua indigência, tudo o que tinha para o seu sustento' (Mc 12, 44).  

Este exemplo comovente foi imitado por uma humilde mulher napolitana, que tinha a maior dificuldade em prover as necessidades da sua família. Os recursos da casa dependiam dos ganhos diários do marido, que todas as noites trazia para casa o fruto do seu trabalho. Infelizmente, um dia esse pobre pai foi preso por dívidas, de modo que a responsabilidade de sustentar a família recaiu sobre a infeliz mãe, que não possuía nada além de sua confiança em Deus. Com fé, ela implorou à Providência Divina que viesse em seu auxílio e, especialmente, para que livrasse o seu marido que definhava na prisão apenas por causa de sua pobreza.

Dirigiu-se então a um cavalheiro rico e benevolente e, contando-lhe a triste história dos seus infortúnios, suplicou-lhe com lágrimas que a ajudasse. Deus permitiu que ela recebesse dele apenas uma esmola insignificante, no valor de uma moeda equivalente a apenas dez cêntimos. Profundamente aflita, entrou numa igreja para implorar ao Deus dos indigentes que a socorresse na sua aflição, pois nada tinha a esperar na terra. Estava absorta em orações e lágrimas quando, por inspiração, sem dúvida, do seu bom anjo da guarda, lhe ocorreu interceder pelas almas santas em seu favor, pois tinha ouvido falar muito dos seus sofrimentos e da sua gratidão para com aqueles que as ajudam. Cheia de confiança, dirigiu-se à sacristia, ofereceu aquela simples moeda e perguntou a um sacerdote se seria possível celebrar uma missa pelos defuntos. O bom padre, que lá se encontrava, apressou-se a subir ao altar para rezar a missa nessa intenção, enquanto a pobre mulher, prostrada em recolhimento, assistia o Santo Sacrifício, oferecendo as suas orações pelos defuntos.

Regressou à casa muito consolada, como se tivesse recebido a certeza de que Deus tinha ouvido a sua oração. Quando percorria as ruas populosas de Nápoles, foi abordada por um ancião, que lhe perguntou de onde vinha e para onde ia. A infeliz mulher explicou-lhe a sua aflição e o uso que tinha feito da pequena esmola que recebera. O velho pareceu profundamente sensibilizado com a sua miséria, disse-lhe algumas palavras de encorajamento e deu-lhe um bilhete fechado num envelope, mandando que o entregasse a um certo senhor em particular, deixando-a em seguida.

A mulher apressou-se a procurar o tal senhor e a entregar a ele o bilhete recebido. Este, ao abrir o envelope, foi tomado de espanto e intensa comoção, pois reconheceu imediatamnete a letra do seu pai, falecido há algum tempo. 'Onde arranjaste esta carta?' - exclamou ele, completamente atordoado. 'Senhor' - respondeu a boa mulher - 'foi um ancião que me abordou na rua. Falei-lhe da minha aflição e ele mandou-me entregar-lhe este bilhete em seu nome. O seu semblante assemelha-se muito ao retrato que o senhor tem sobre a porta'. Cada vez mais impressionado por estas circunstâncias, o cavalheiro pegou de novo o bilhete e o leu em voz alta: 'Meu filho, o teu pai acaba de sair do Purgatório, graças a uma missa que a portadora deste recado mandou celebrar esta manhã. Ela está em situação muito aflita e eu a recomendo aos seus cuidados'. 

Leu e releu aquelas linhas, traçadas por aquela mão que lhe era tão cara, por um pai que agora estava entre os eleitos. Lágrimas de alegria corriam-lhe pelas faces quando se voltou para a mulher. 'Pobre mulher' - disse ele - 'com a tua esmola insignificante, asseguraste a felicidade eterna daquele que me deu a vida. Por minha vez, assegurarei a tua felicidade temporal. Tomo a meu cargo suprir a partir de agora todas as tuas necessidades e as de toda a tua família'. Que alegria para aquele senhor! Que alegria para aquela pobre mulher! É difícil dizer de que lado encontrava-se a maior felicidade. O que é mais importante e mais fácil é ver a instrução que se pode tirar desse fato: ele nos ensina que o menor ato de caridade para com os membros da Igreja Sofredora é precioso aos olhos de Deus e atrai sobre nós milagres de misericórdia.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog

terça-feira, 24 de setembro de 2024

GLÓRIAS DE MARIA: NOSSA SENHORA DAS MERCÊS

 


Na coroa de glórias dadas à Nossa Senhora, a Virgem das Mercês é celebrada em 24 de setembro. Mercês significa 'graças', 'favores', 'bênçãos' mas, acima de tudo, 'misericórdia'. A devoção teve origem na Espanha, durante a dura perseguição e prisão imposta aos cristãos numa Europa então invadida pelos mouros.

Na noite de primeiro para 2 de agosto de 1218, Nossa Senhora se manifestou em sonho para São Pedro Nolasco, para São Raimundo de Peñaforte,  seu confessor, e para o rei Dom Jaime I de Aragão, dando-se a conhecer com o título de Mercês, e pedindo a fundação de uma ordem religiosa para o resgate dos cristãos cativos dos mouros. A ordem religiosa dos Mercedários foi, então, fundada em 10 de agosto de 1218, em Barcelona, na Espanha, tendo São Pedro Nolasco como primeiro diretor geral. A devoção logo se difundiu por toda a Europa e chegou ao Brasil, pelas mãos dos frades mercedários, dando origem a várias confrarias no país. Em 1696, o Papa Inocêncio XII estendeu a festa de Nossa Senhora das Mercês para toda a Igreja estabelecendo a data de 24 de setembro para a sua celebração.


Oração a Nossa Senhora das Mercês

Virgem Maria, Mãe das Mercês,
com humildade acorremos a Vós,
certos de que não nos abandonais
por causa de nossas limitações e faltas.
Animados pelo vosso amor de Mãe,
oferecemo-vos nosso corpo para que o purifiqueis,
nossa alma para que a santifiqueis,
o que somos e o que temos, consagrando tudo a Vós.
Amparai, protegei, bendizei e guardai
sob a vossa maternal bondade a todos
e a cada um dos membros desta família
que se consagra totalmente a Vós.
Ó Maria, Mãe e Senhora nossa das Mercês,
apresentai-nos ao vosso Filho Jesus,
para que, por vosso intermédio
alcancemos, na terra, a sua Graça
e depois a vida eterna.
Amém!

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

ÀS TRÊS HORAS DA TARDE...


Do diário de Santa Faustina:

1320. Às três horas da tarde, implora a minha misericórdia especialmente pelos pecadores e, ao menos por um breve momento, reflete sobre a minha Paixão, especialmente sobre o abandono em que me encontrei no momento da agonia. Essa é a Hora da grande misericórdia para o mundo inteiro. Permitirei que penetres na minha tristeza mortal. Nessa hora nada negarei à alma que me pedir pela Minha Paixão...

1572. Lembro-te, minha filha, que todas as vezes que ouvires o relógio bater três horas da tarde, deves mergulhar toda na minha misericórdia, adorando-a e glorificando-a. Implora a onipotência dela em favor do mundo inteiro e especialmente dos pobres pecadores, porque nesse momento foi largamente aberta para toda alma. Nessa hora conseguirás tudo para ti e para os outros. Nessa hora realizou-se a graça para o mundo inteiro: a misericórdia venceu a justiça. Minha filha, procura rezar, nessa hora, a via-sacra, na medida em que te permitirem os teus deveres, e, se não puderes fazer a via-sacra, entra, ao menos por um momento, na capela e adora o meu Coração, que está cheio de misericórdia no Santíssimo Sacramento. Se não puderes ir à capela, recolhe-te em oração onde estiveres, ainda que seja por um breve momento. Exijo honra à minha misericórdia de toda criatura, mas de ti em primeiro lugar, porque te dei a conhecer mais profundamente esse mistério.


Faça isso. Tenha tal devoção como hábito diário. Em qualquer lugar, em qualquer dia, em quaisquer circunstâncias. Pela memória, pela repetição cotidiana do ato, por um alarme do celular. Todos os dias, às três horas da tarde. Por instantes de meditação sobre a Paixão de Cristo que valem uma eternidade. Por aquele Sangue, por aquela Cruz, por aquele Calvário, por Jesus Crucificado. Na oração apenas muda, apenas no pensamento, implora a misericórdia infinita daquele Coração. Por você, pela sua família, pelos seus entes queridos vivos ou mortos, pela humanidade, pela Igreja, pela salvação das almas. Nem um milagre poderá fazer mais pela sua alma.

domingo, 22 de setembro de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

   

'É o Senhor quem sustenta minha vida!' (Sl 53)

Primeira Leitura (Sb 2,12.17-20) - Segunda Leitura (Tg 3,16-4,3) -  Evangelho (Mc 9,30-37)

  22/09/2024 - VIGÉSIMO QUINTO DOMINGO DO TEMPO COMUM

43. O MAIOR DE TODOS É O QUE SERVE A TODOS


'Onde há inveja e rivalidade, aí estão as desordens e toda espécie de obras más' (Tg 3, 16). Com efeito, toda sorte de males advém da inveja e das paixões desregradas do homem, que se pauta em ter cada vez mais e invejar no outro tudo aquilo que ainda não se tem. Não é esse o caminho da graça, nem a via da santidade. Jesus, no evangelho deste domingo, vai mostrar aos seus discípulos que a primazia da alma é forjada no cadinho da humildade.

Após a extraordinária experiência no Monte Tabor, Jesus seguia agora, rodeado apenas pelos seus discípulos e, mais uma vez, lhes anunciara o mistério de sua Paixão e Ressurreição: 'O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará' (Mc 9, 31). Mas os apóstolos ainda estavam demasiado presos à ideia de um reino terreno, pautado por poderes mundanos. E era a ambição de um poder maior em relação aos demais o que minava os sentimentos daqueles homens nos caminhos da Galileia.

Jesus vai interpelá-los sobre as murmurações de uns e outros pelo caminho; e o silêncio da resposta é o testemunho de que haviam estado até então submissos aos grilhões da inveja e das rivalidades. Estremecidos os corações diante da Verdade, são todos acolhidos na misericórdia do Bom Pastor que lhes revela: 'Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!' (Mc 9, 35). A primazia da graça é o serviço do bem desprovido de honras e vaidades humanas: o maior de todos é o que serve a todos; a humildade é a virtude que eleva o homem às vias mais plenas da santidade!

E, para ilustrar a dimensão da verdadeira humildade, Jesus a insere no contexto sublime da inocência pura de uma criança: 'Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele que me enviou' (Mc 9, 37). Possuir uma inocência infantil é possuir a própria sabedoria de Deus, pois nela não prospera as ambições, nem a inveja, nem as rivalidades, nem as desordens ou qualquer espécie de obras más e porque 'a sabedoria que vem do alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, modesta, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade e sem fingimento' (Tg 3, 17).

sábado, 21 de setembro de 2024

O VERDADEIRO LIVRO DA VIDA ETERNA


O SERVO: Senhor, creio que ninguém sabe realmente quantos benefícios podem ser emanados da Vossa Paixão, e quão imensos são os frutos que nela se podem encontrar, desde que alguém estiver disposto a dedicar-lhe espaço e tempo.

Que caminho seguro é o da vossa paixão, que conduz o homem pelo caminho da verdade até ao cume mais alto de toda a perfeição!

Como tinhas razão, bendito Paulo, luz exaltada entre todas as estrelas do céu, quando falaste! Tu, embora arrebatado às alturas e mergulhado nos mistérios ocultos da divindade nua, a ponto de ouvires palavras misteriosas, que nenhum homem pode pronunciar (2 Cor 12,4), abraçaste acima de tudo a paixão amantíssima de Cristo com tal amor e doçura de coração que não hesitaste em dizer: 'Julguei não dever saber coisa alguma entre vós, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado' (1 Cor 2, 2).

Bendito és tu também entre todos os doutores, doce Bernardo, cuja alma foi admiravelmente iluminada pelos raios do Verbo Eterno, pois com a doce eloquência que brotava da exuberância do teu coração, pregaste e exaltaste a paixão da humanidade de Cristo, dizendo entre outras coisas: ' Irmãos, desde o início da minha conversão e como acervo dos méritos que sabia faltar-me, procurei juntar e colocar no meu peito este pequeno feixe feito de todas as angústias e amarguras do meu Senhor. Chamei sabedoria à meditação destas coisas; nelas descobri a perfeição da justiça, a plenitude da ciência, as riquezas da salvação e o tesouro dos méritos. Delas me vem a bebida salutar da amargura e o doce bálsamo da consolação. Sustentam-me na adversidade, e na prosperidade, refreiam-me; oferecem àquele que percorre a estrada real entre a alegria e a tristeza da vida presente, um guia seguro, afastando os males que o ameaçam...'

Sabedoria Eterna, de tudo o que foi dito deduzo facilmente que quem deseja grandes recompensas, a salvação eterna, uma ciência excelente e uma sabedoria superior, e quer gozar de uma alma equilibrada na adversidade e na prosperidade e estar completamente seguro contra todo o mal, deve trazer-Vos, ó meu Senhor Crucificado, diante dos olhos da sua alma onde quer que vá.

SABEDORIA ETERNA: Não penses que compreendeste a utilidade e as recompensas que isto traz. Acredita em mim, a lembrança contínua da minha amabilíssima paixão transforma um ignorante em um médico muito sábio. E não é de admirar, porque a minha Paixão é, em si mesma, um livro de vida onde tudo se encontra. Três vezes e quatro vezes bem-aventurado aquele que a tem sempre diante dos olhos e se dedica a ela! Que sabedoria e graça, que consolação e doçura, que superação de todos os vícios e que sentido da minha presença contínua ele pode obter! Escutai um exemplo disso:

Há muitos anos, um irmão pregador, no início de sua conversão, sofria horrivelmente de uma melancolia desordenada, que às vezes o incomodava tanto que só quem a tivesse experimentado poderia compreendê-la. Uma vez, sentado na sua cela depois do jantar, estava tão oprimido por esta tentação que não tinha vontade de estudar, de rezar, de fazer nada de bom, e permanecia triste na sua cela, com as mãos cruzadas no regaço, como se quisesse ao menos manter a sua cela em louvor do seu Senhor, pois sentia-se completamente incapaz de fazer qualquer outro exercício espiritual. Neste estado, privado de qualquer consolação, parecia-lhe ouvir uma voz que lhe dizia: 'Por que estás aqui sentado? Levanta-te e lembra-te de tudo o que sofri: então esquecerás toda a tua aflição'. Levantou-se imediatamente (porque compreendeu que a voz vinha do Céu) e começou a meditar na Paixão do Senhor Jesus, e sentiu-se tão liberto do seu sofrimento que nunca mais experimentou nada de semelhante.

O SERVO: Eterna Sabedoria, Vós que conheceis todos os corações, sabeis, sem dúvida, que não há nada mais desejável para mim do que sentir a Vossa mais amarga paixão com mais veemência do que os outros homens, e de tal modo que dos meus olhos corra noite e dia uma fonte de lágrimas. E por isso me queixo amargamente a Vós, porque a Vossa Paixão não pode penetrar a cada momento profundamente na minha alma e não posso meditá-la com tanta devoção como Vós mereceis, amadíssimo Senhor. Ensinai-me como me devo comportar.

ETERNA SABEDORIA: A meditação da minha Paixão não deve ser supérflua, mas deve ser feita com amor íntimo do coração e com reflexão sincera. Caso contrário, o coração não sentirá mais devoção do que o paladar sente por um alimento doce, mas não mastigado. E se, apesar de recordares a angústia e a dor inefáveis que ela me causou, não conseguires recordar a minha paixão com os olhos umedecidos, fá-lo ao menos com um espírito alegre pelos imensos bens que dela recebes. Se também não o podes fazer, se não podes meditá-la nem com alegria nem com lágrimas, então medita-a com o coração seco em louvor de Mim, porque assim me fazes um dom mais agradável do que se te derretesses todo por causa das lágrimas e da doçura, pois assim ages por amor à virtude e não em busca de ti mesmo.

E para que a minha Paixão penetre cada vez mais profundamente no teu coração, ouve o que te vou dizer. Se um grande pecador tiver de cumprir na fornalha ardente do terrível Purgatório as penas que aqui não pagou, tudo o que tiver de pagar pode ser expiado e apagado pela memória da minha Paixão. E, na verdade, essa pobre alma poderá refugiar-se e agarrar-se de tal modo ao ilustre tesouro da minha Paixão que, mesmo que tenha de sofrer mil anos os tormentos do Purgatório, num instante ficará livre de todas as culpas e penas e, saindo do Purgatório, voará livre para o Céu.

O SERVO: Senhor, mostrai-me como isto pode ser; como eu gostaria de conquistar assim o tesouro da vossa Paixão!

SABEDORIA ETERNA: Isso deve ser feito da seguinte forma:

1. com o coração contrito, que o homem examine e pese com seriedade e frequência a gravidade e a quantidade de seus grandes pecados, pois com eles ofendeu tão irreverentemente os olhos de seu Pai celeste.

2. Em seguida, que ele considere suas obras de penitência como nada, pois elas são apenas uma gota no oceano em comparação com os seus pecados.

3. Que considere a admirável imensidão da minha Expiação, pois uma pequena gota do precioso sangue que corre abundantemente pelo meu corpo bastaria para apagar os pecados de mil mundos; embora se beneficie tanto da minha Expiação quanto se conforme a mim por compaixão.

4. Finalmente, ele deve humilde e sinceramente submergir e fixar a pequenez de sua expiação na infinitude da minha.

Em suma, nem os matemáticos, nem os sábios, nem todos os mestres juntos são capazes de enumerar a imensidão dos bens que ficam escondidos na meditação assídua da minha Paixão.

O SERVO: Assim sendo, Senhor, peço-Vos que ponhais fim a tudo o que me tem afastado de Vós e me introduzais profundamente nas riquezas ocultas da Vossa amadíssima Paixão.

(Excertos da obra 'O Livro da Sabedoria Eterna', do Beato Henrique Suso)