sábado, 1 de junho de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXXII)

Capítulo LXXXII

Razões de Justiça - São Bernardino de Sena e a Viúva Infiel - Pecados Graves Devido às Reparações aos Mortos Não Cumpridas

Conta São Bernardino de Sena que um casal sem filhos fez um contrato segundo o qual, no caso de um morrer antes do outro, o sobrevivente deveria distribuir os bens deixados pelo outro, para o repouso da alma do defunto. O marido morreu primeiro e a sua viúva não cumpriu a promessa. A mãe da viúva ainda vivia e o defunto apareceu-lhe, pedindo-lhe que fosse ter com a filha e a exortasse, em nome de Deus, a cumprir o seu compromisso. 'Se ela demorar' - disse ele - 'a distribuir em esmolas a soma que destinei aos pobres, dizei-lhe da parte de Deus que dentro de trinta dias será atingida por uma morte súbita'. Quando a impiedosa viúva ouviu esta solene advertência, teve a audácia de a considerar como um sonho e persistiu na sua sacrílega infidelidade à sua promessa. Trinta dias se passaram e a infeliz mulher, tendo ido a um quarto superior da casa, caiu pela janela e morreu no local.

A injustiça para com os mortos, de que acabamos de falar, e as manobras fraudulentas para escapar à obrigação de executar os seus legados piedosos, são pecados graves, crimes que merecem o castigo eterno do Inferno. A menos que se faça uma confissão sincera e, ao mesmo tempo, a devida restituição, este pecado encontrará o seu castigo não no Purgatório, mas no Inferno.

Infelizmente, sim, é sobretudo na outra vida que a justiça divina castigará os culpados usurpadores dos bens dos mortos. Juízo sem misericórdia para aquele que não usou de misericórdia, diz o Espírito Santo. (Tg 2,13). Se estas palavras são verdadeiras, quão rigoroso julgamento aguarda aqueles cuja detestável avareza deixou a alma de um pai, de um benfeitor, durante meses, anos, talvez até séculos, nos espantosos tormentos do Purgatório. Este crime, como já dissemos, é tanto mais grave quanto, em muitos casos, os sufrágios que o defunto pede para a sua alma não passam de restituições disfarçadas. Este fato é, em certas famílias, demasiadas vezes ignorado. É muito cômodo falar de intriga e de avareza clerical. Usam-se os melhores pretextos para invalidar um testamento que, muitas vezes, talvez na maioria dos casos, envolve uma restituição necessária. O padre não é mais do que um intermediário neste ato indispensável, obrigado a um segredo absoluto em virtude do seu ministério sacramental.

Expliquemos melhor a questão. Um moribundo foi culpado de alguma injustiça durante a sua vida. Isso é mais frequente do que imaginamos, mesmo em relação aos homens mais corretos aos olhos do mundo. No momento em que está prestes a comparecer diante de Deus, esse pecador faz a sua confissão; ele deseja reparar integralmente, como lhe compete, todo o prejuízo que causou ao seu próximo, mas não lhe resta tempo para o fazer ele próprio, e não está disposto a revelar o triste segredo aos seus filhos. Que faz ele? Encobre a sua restituição sob o véu de um legado piedoso.

Ora, se esse legado não for pago e, consequentemente, a injustiça não for reparada, o que acontecerá com a alma do falecido? Ficará retida por tempo indefinido no Purgatório? Não conhecemos todas as leis da Justiça Divina, mas numerosas aparições servem para nos dar uma idéia delas, pois todas declaram que não podem ser admitidas na bem-aventurança eterna enquanto uma parte da dívida da Justiça estiver por ser cancelada. Além disso, não são essas almas culpadas por terem adiado até à sua morte o pagamento de uma dívida de justiça que tinham há tanto tempo? E se agora os seus herdeiros se esquecem de a pagar por elas, não é isso uma consequência deplorável do seu próprio pecado, do seu atraso culposo? É por culpa deles que esses bens mal adquiridos permanecem na família, e eles não deixarão de clamar contra eles enquanto a restituição não for feita. Res clamat domino - a propriedade clama pelo seu legítimo dono; clama contra o seu injusto possuidor.

Se, por malícia dos herdeiros, a restituição nunca for feita, é evidente que essa alma não pode permanecer para sempre no Purgatório; mas, nesse caso, um longo atraso na sua entrada no Céu parece ser um castigo adequado para um ato de injustiça, do qual a alma se retratou, é verdade, mas que ainda permanece na sua causa eficaz. Pensemos, pois, nessas graves consequências, quando deixamos passar dias, semanas, meses e talvez até anos, antes de saldar uma dívida tão sagrada.

Ai de nós! Como é fraca a nossa fé! Se um animal doméstico, um cãozinho, cai no fogo, demorais a tirá-lo? Vede, vossos pais, vossos benfeitores, pessoas que vos são muito caras, contorcendo-se nas chamas do Purgatório, e não considerais vosso dever urgente aliviá-los; retardais, deixais passar longos dias de sofrimento para essas pobres almas, sem vos esforçardes por praticar as boas obras que as libertarão de suas dores?

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

LOCUÇÕES INTERIORES: DEPOIS DA COMUNHÃO

Locuções interiores entre Jesus e Gabrielle Bossis, durante e após a comunhão:

30 de julho de 1937 - Estava distraída durante a comunhão. Ele: 'Quando temos na sala de estar da nossa casa uma pessoa muito querida, não nos pomos à janela para ver os transeuntes'.

24 de julho de 1938 - Depois da comunhão, estava distraída. 'Dedicaste-me ao menos um olhar hoje?' Mais tarde, andava eu perdida em mil pequenos cuidados. Disse-me então: 'Não descansarias muito mais se pensasses em mim?'

27 de agosto de 1939 - Depois da comunhão: 'Essa pessoa sai da igreja sem dar graças, e vai passar o dia inteiro sem se lembrar do favor que lhe fiz de manhã. Pensa tu em mim, de hoje até amanhã. Fala comigo, agradece-me, ama-me. Oferece-me todas a tuas ações para salvar os pecadores – é para isso que estou na tua vida. Quando uma pessoa esta na tua casa, tu não a deixas só, não é verdade? Pois então, vive na minha presença'.

24 de fevereiro de 1938 - Em Notre-Dame, depois da comunhão: 'Não podes conviver comigo numa grande simplicidade, como conviverias com o teu melhor e mais poderoso amigo?'

Maio de 1937 - No campo, depois da comunhão. Eu: 'Senhor, supre as minhas insuficiências'. Ele: 'É para isso que estou aqui'.

06 de dezembro de 1938 - Em Ajaccio, depois da comunhão: 'Que não haja brumas entre ti e mim. Se cometeres uma falta, repara-a imediatamente com um 'Senhor, eu te amo' pronunciado de todo coração'.

19 de abril de 1940 - 'A Eucaristia é o presente do céu; nada tem valor neste mundo fora dela'.

02 de janeiro de 1938 - Depois da comunhão: 'A vida de Amor entre o Criador e a criatura poderia começar apenas no céu, mas eu vim acendê-la na terra para adiantar as coisas'.

30 de maio de 1937 - Dia de Corpus Christi; depois da comunhão: 'Não deixei nada de mim no céu. Dou-me a ti por inteiro. Dá-te tu a mim também por inteiro'.

10 de julho de 1937 - Após a comunhão: 'Se pudesses ver o meu esplendor neste momento!'.

26 de dezembro de 1938 - Eu: 'Senhor, gostaria tanto de que estas santas espécies permanecessem em mim até amanhã de manhã!' Ele: 'Faz como se Eu permanecesse'.

1938 - Eu dava graças por todas as hóstias que recebi desde a minha Primeira Comunhão. Disse-me Ele: 'Tu as tens todas contigo! Uma hóstia recebida foi dada eternamente. É isso o que faz o tesouro dos escolhidos'.

28 de outubro de 1939 - Depois da comunhão; 'Dar-me-ias uma grande alegria se em cada uma das tuas ações de graças pedisses à minha Mãe que te ajudasse'.

26 de dezembro de 1938 - Após a comunhão; pensando no Presépio, eu pedia à Santíssima Virgem o favor de me deixar cantar para ninar o Menino Jesus. Ele disse-me: 'Ainda que Eu adormecesse, o meu coração continuaria a velar por ti'.

1938 -  Depois da comunhão: 'Deixa de lado as tuas pequenas preocupações. Pensa nas minhas, que são as almas que se perdem'.

28 de maio de 1937 -  Eu pensava na festa de Corpus Christi quando Ele me disse: 'Terei a minha verdadeira festa de Corpus quando gozar de todas as preferências. Todas as preferências de todas as almas'.

21 de fevereiro de 1940 - Em Nantes, no momento em que o Santíssimo Sacramento foi retirado do sacrário para ser levado ao altar-mor, Ele me disse: 'Vês como sou dócil aos gestos do sacerdote? Entro e saio do sacrário segundo a sua vontade. No entanto, sou o Criador do céu e da terra. Vive submetida a mim, que sou submisso. Aceita tudo o que é minha vontade'.

31 de julho de 1939 - Depois da comunhão: 'Vive apenas para mim. Quando falares, que se note bem que Eu sou a única coisa que te importa. Não temas mencionar o meu nome nas tuas conversas, pois todas, mesmo sem o saberem, têm necessidade de mim. E o nome de Deus pode suscitar o bem nas almas. Procura adquirir este hábito e Eu te ajudarei. Virão a ti para ouvir falar de mim. Semeia o meu nome. Eu darei o crescimento'.

1939 - Depois da comunhão: 'Procura evitar até as menores faltas. Este é o teu trabalho, pois foste chamada à santidade, e a santidade é a ausência de toda a mancha consentida. Trabalho de amor. Entendes-me? De amor!'.

05 de março de 1940 - Depois da comunhão: 'Quando sentires que a tua vontade vai manifestar-se com um movimento próprio, põe a tua mão na minha, olha-me para que Eu modifique a tua vontade segundo os interesses do meu serviço'.

28 de novembro de 1939 - Em Notre-Dame, depois de comungar: 'Hoje prestarás atenção especialmente à tua língua. Lembra-te de que a Escritura diz que aquele que não peca com a língua é um homem perfeito (Ti 3, 2). Busca essa perfeição com amor e com desejo de agradar-me. Como me agradaria ver perfeita uma filhinha tão querida! Ao chegar o meio-dia, examina como te saíste. Anima-te a vigiar-te em tudo'.

1937 - 'Admiraste muito os tapetes multicoloridos que me fizeram para a minha festa de Corpus Christi; pois bem, prepara-me outros ainda mais belos durante todo o decorrer do dia, feitos de sacrifícios e outros atos de virtude'.

20 de julho de 1940 - Depois da comunhão. 'Se fosse tão difícil chegar à santidade, Eu não vo-lo pediria. Que patrão inteligente exige dos seus empregados uma tarefa impossível? É, pois, algo que está ao vosso alcance, como fruto do vosso esforço. Torna a começar cada dia, como se se tratasse sempre do começo de uma obra; humildemente, com confiança no meu socorro de cada instante. E não percas de vista a meta, minha filha!'.

1937 - Na capela de Santa Ana: 'Por que não me reconheces no teu próximo?'

06 de fevereiro de 1938 - Depois da comunhão: 'Modifica a tua natureza. Comporta-te com uma caridade requintada. Fala bem do próximo, mesmo na sua ausência. Vigia as tuas maneiras, os matizes. Isto é o que faz o encanto da Caridade'.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

CORPUS CHRISTI 2024

Corpus Christi, expressão latina que significa Corpo de Cristo, é uma festa litúrgica da Igreja sempre celebrada na quinta–feira seguinte ao domingo da Santíssima Trindade, que acontece no domingo seguinte ao de Pentecostes, 50 dias depois da Páscoa. 

O pão é pão e o vinho é vinho
como frutos do homem em oração;
é o que trazemos, é tudo o que temos,
como oferendas da nossa devoção. 

Não é mais pão, nem é mais vinho
quando espécies na consagração;
alma e divindade que se reconciliam
a cada missa, em cada comunhão.

Aparente pão, aparente vinho,
é mais que vinho, muito mais que pão;
o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo
 é o alimento da nossa salvação.

(Arcos de Pilares)

INDULGÊNCIAS DO DIA DA SOLENIDADE DE CORPUS CHRISTI

   

Nesta quinta-feira, dia da solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, o católico pode ser contemplado com as seguintes indulgências:

(i) Indulgência parcial: rezar, com piedosa devoção, a oração 'Alma de Cristo':

Alma de Cristo, santificai-me.
Corpo de Cristo, salvai-me.
Sangue de Cristo, inebriai-me.
Água do lado de Cristo, lavai-me.
Paixão de Cristo, confortai-me.
Ó bom Jesus, ouvi-me.
Dentro de vossa chagas, escondei-me.
Não permitais que eu me separe de vós.
Do espírito maligno, defendei-me.
Na hora da morte chamai-me e
mandai-me ir para vós,
para que com vossos Santos vos louve
por todos os séculos dos séculos.
Amém. 

(ii) Indulgência plenária: rezar, com piedosa devoção, a oração 'Tantum Ergo' ou 'Tão sublime Sacramento':

Tão sublime sacramento
vamos todos adorar,
pois um Novo testamento
vem o antigo suplantar!
Seja a fé nosso argumento
se o sentido nos faltar.
Ao eterno Pai cantemos
e a Jesus, o Salvador,
igual honra tributemos,
ao Espírito de amor.
Nossos hinos cantaremos,
chegue aos céus nosso louvor.
Amém.

Do céu lhes deste o pão,
Que contém todo o sabor.

Oremos: Senhor Jesus Cristo, neste admirável Sacramento, nos deixastes o memorial da vossa Paixão. Dai-nos venerar com tão grande amor o mistério do vosso corpo e do vosso sangue, que possamos colher continuamente os frutos da vossa redenção. Vós que viveis e reinais para sempre. Amém.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

O CAMINHO DA PERFEIÇÃO ESPIRITUAL


Um sacerdote havia pedido a Deus muitas vezes que encontrasse o verdadeiro caminho da vida espiritual. Certa vez, pressentiu uma voz que lhe dizia que se dirigisse até uma determinada igreja, onde encontraria a resposta tão desejada. Diante da igreja, encontrou à porta da mesma um mendigo descalço e trajando ropupas miseráveis, a quem saudou:
➖ Bom dia, irmão.
➖ Não me lembro de ter passado um só dia mau, senhor - respondeu o homem. 
➖ Deus vos dê uma vida fe­liz.
➖ Eu nunca fui infeliz.

Em seguida, o pobre homem acrescentou: 
➖ Padre, não foi o acaso que me fez responder-vos que nunca tive um dia mau: porque, se tenho fome, louvo a Deus; quando cai neve ou chove, eu o bendigo; se alguém me despreza, me despede ou me aflige, ou se encontro ou­tra qualquer tribulação, dou sempre graças a Deus. Disse-vos que nunca fui infeliz, falei a verdade, pois que me tenho acos­tumado a conformar-me com a vontade de Deus, sem reserva; assim, tudo quanto me acontece de bem ou de mal, eu o recebo de suas mãos com alegria, como se fosse a minha melhor sorte, e isto me torna feliz.

➖ E se Deus quisesse a vossa condenação, que havíeis de dizer? - perguntou-lhe o padre.
➖ Se tal fosse a vontade de Deus, com humildade e amor eu me abra­çaria com Nosso Senhor, e me lançaria de tal modo com Ele, que quando me quisesse precipitar no inferno, o obrigaria a ir ali comigo, e me acharia então mais feliz com Ele no abismo, do que gozando das delí­cias do Céu sem Ele. 
➖ Onde achastes a Deus?
➖ Achei-o onde deixei as criaturas.
➖ Quem sois vós?
➖ Sou um rei. 
➖ E onde é o vosso reino?
➖Na minha alma, onde conservo a ordem: as minhas paixões obedecem à razão, e a minha razão obedece a Deus.

Diante de tão sábias palavras, o padre lhe perguntou então o que tinha feito para se adiantar tanto assim na perfeição. 
➖ Guardei silêncio - respondeu o mendigo - ser silencioso com os homens para estar sempre pronto para falar com Deus; e, na união que tenho conservado com a vontade de meu Senhor, tenho achado e acho toda a minha paz.

Tal era, em uma palavra, este pobre homem em sua perfeita harmonia com a vontade divina: Ele, na sua pobreza, era seguramente mais rico de que todos os monarcas da terra e, mais feliz em seus padecimentos, que todos os mundanos no gozo de todos os prazeres. Quão grande é, pois, a estupidez daquele que resiste à vontade divina!

(Diálogo adaptado da obra 'Conformidade com a Vontade de Deus', de Santo Afonso de Ligório)

terça-feira, 28 de maio de 2024

O PENSAMENTO DA MORTE

Tempus resolutionis meae instat - Chegou o tempo de recolher as velas 
(2 Tm 4, 6)

Certus quod velox est depositio tabernaculi mei - Estou certo que daqui a pouco terei de sair desta minha tenda (2 Pd 1, 14)

Finis venit, venit finis -  O fim! Chega o fim! (Ez 2, 7)

Esta consideração óbvia, sobre a precariedade da vida temporal e sobre o aproximar-se inevitável e cada vez mais perto do seu fim, impõe-se. Não é prudente a cegueira diante de tal sorte inevitável, diante da desastrosa ruína que leva consigo, diante da misteriosa metamorfose que está para realizar-se no meu ser, diante do que se prepara.

Vejo a consideração dominante tornar-se extremamente pessoal — eu, quem sou? o que fica ainda de mim? para onde vou? — e por isso extremamente moral — que devo fazer? quais são as minhas responsabilidades? E vejo também que, a respeito da vida presente, é inútil ter esperanças; a respeito dela, têm-se deveres e expectativas funcionais e momentâneas; as esperanças são para o além.

E vejo que esta suprema consideração não pode realizar-se num monólogo subjetivo, no habitual drama humano que, ao crescer a luz, faz crescer a obscuridade do destino humano; deve realizar-se em diálogo com a Realidade divina, donde venho e para onde certamente vou; segundo a lamparina que nos põe Cristo na mão para a grande passagem. Creio, ó Senhor.

Vem a hora. Disso tenho o pressentimento há tempos. Mais ainda que o cansaço físico, pronto a ceder a qualquer momento, o drama das minhas responsabilidades parece sugerir como solução providencial o meu êxodo deste mundo, para a Providência poder manifestar-se e levar a Igreja a melhores venturas. A Providência tem, sim, muitos modos para intervir no jogo formidável das circunstâncias, que apertam o meu pouco valer; mas o da minha chamada para a outra vida parece óbvio, para outro comparecer mais válido e não detido pelas dificuldades presentes. Servus inutilis sum - Sou um servo inútil.

Ambulate dum lucem habetis - Andai enquanto tiverdes luz (Jo 12, 35). Gostaria, ao terminar, de estar na luz. Ordinariamente o fim da vida temporal, se não é obscurecido por enfermidades, tem uma sua claridade apenas fosca: a das memórias, tão belas, tão atraentes, tão saudosas, e tão claras agora para denunciarem o seu passado irrecuperável e para fazerem rir ao serem evocadas sem esperanças. Há a luz que desvela a desilusão de uma vida fundada sobre bens efêmeros e esperanças falazes.

Há a de obscuros e agora ineficazes remorsos. Há a da sabedoria que finalmente entrevê a vaidade das coisas e o valor das virtudes que deviam caracterizar o decurso da vida: Vanitas vanitatum - Vaidade das vaidades. Quanto a mim, gostaria finalmente de ter uma noção recapituladora e esclarecida sobre o mundo e sobre a vida: julgo que tal noção deveria exprimir-se em reconhecimento: tudo era dom, tudo era graça; e como era belo o panorama através do qual se passou; demasiado belo, tanto que nos deixamos atrair e deslumbrar, quando devia parecer sinal e convite. Mas, seja como for, parece que a despedida deve exprimir-se num grande e simples ato de reconhecimento, mesmo de gratidão: esta vida mortal é, apesar das suas tribulações, dos seus obscuros mistérios, dos seus sofrimentos e da sua fatal caducidade, um fato belíssimo, um prodígio sempre original e comovedor, um acontecimento digno de ser cantado em gozo e em glória: a vida, a vida do homem! 

Nem menos digno de exaltação e de feliz espanto é o quadro que circunda a vida do homem: este mundo imenso, misterioso e magnífico, este universo de mil forças, de mil leis, de mil belezas e de mil profundidades. É panorama encantador. Parece prodigalidade sem medida. Juntar-se, a este olhar quase retrospectivo, a amargura de não ter admirado suficientemente este quadro, de não ter observado, quanto o mereciam, as maravilhas da natureza, as riquezas surpreendentes do macrocosmos e do microcosmos. Porque não estudei suficientemente, não explorei e não admirei a sala em que decorre a vida? Que imperdoável distração, que reprovável superficialidade! Todavia, pelo menos in extremis, deve-se reconhecer que aquele mundo qui per Ipsum factus est - que foi feito por meio dEle, é magnífico. Saúdo-te e celebro-te no último instante, sim, com imensa admiração; e, como dizia, com gratidão: tudo é dom; atrás da vida, atrás da natureza e do universo, está a Sabedoria; e depois, di-lo-ei nesta despedida luminosa, Tu no-lo revelaste, ó Cristo Senhor, está o Amor! 

A cena do mundo é um desígnio, hoje ainda incompreensível na sua maior parte, de um Deus Criador, que se chama o nosso Pai que está nos céus! Obrigado, ó Deus obrigado; e glória a Ti, ó Pai! Neste último olhar dou-me conta desta cena, fascinadora e misteriosa, ser um revérbero, um reflexo da primeira e única Luz; é revelação natural de extraordinária riqueza e beleza, que devia ser iniciação, prelúdio, antecipação e convite para a visão do invisível Sol, quem nemo vidit unquam - que ninguém nunca viu (cf Jo 1, 18):  unigenitus Filius, qui est in sinu Patris, Ipse enarravit - o Filho unigênito, que está no seio do Pai, Ele o revelou. Assim seja, assim seja.

Mas agora, neste pôr do sol revelador, outro pensamento — além do da última luz da tarde, presságio da eterna aurora — ocupa o meu espírito: é a ânsia de aproveitar a undécima hora, a pressa de fazer alguma coisa de importante antes que seja tarde demais. Como reparar as ações mal feitas, como recuperar o tempo perdido, como agarrar, nesta última possibilidade de escolha, o unum necessarium - a única coisa necessária? À gratidão sucede o arrependimento. Ao grito de glória, para Deus Criador e Pai, sucede o grito que invoca misericórdia e perdão. Isto pelo menos saiba eu fazer: invocar a Tua bondade, e confessar com a minha culpa a Tua infinita capacidade de salvar. Kyrie eleison; Christe eleison; Kyrie eleison - Senhor piedade; Cristo piedade; Senhor piedade.

Vem aqui à memória a pobre história da minha vida, entrançada, por um lado, pela urdidura de singulares e inumeráveis benefícios, derivados de uma inefável bondade (é esta que espero poder um dia ver e cantar eternamente); e, por outro, atravessada por uma trama de ações míseras, que seria preferível não recordar, tanto são faltosas, imperfeitas, erradas, insipientes e ridículas. Tu seis insipientiam meam - Deus, Tu conheces a minha insipiência. Pobre vida trabalhosa, ávara e mesquinha, tão necessitada de paciência, de reparação e de infinita misericórdia. Sempre me parece sem igual a síntese de Santo Agostinho: miseria et misericordia - miséria minha, misericórdia de Deus. Consiga eu, ao menos agora, honrar Quem Tu és, ó Deus de infinita bondade, invocando, aceitando e celebrando a Tua dulcíssima misericórdia.

E depois um ato, finalmente, de boa vontade: já não olhar para trás, mas cumprir de boa vontade, simplesmente, humildemente e fortemente, o dever, que resulta das circunstâncias em que me encontro, como Tua vontade. Cumprir depressa. Cumprir tudo. Cumprir bem. Cumprir com alegria o que agora Tu queres de mim, mesmo que supere imensamente as minhas forças e, se me pedes, a vida. Finalmente, nesta hora última. Curvo a cabeça e levanto o espírito. Humilho-me a mim mesmo e exalto-Te a Ti, Deus, 'cuja natureza é bondade' (São Leão). Permite que, nesta última vigília, eu preste homenagem a Ti, Deus vivo e verdadeiro, que amanhã serás o meu juiz, e que Te dê o louvor que mais ambicionas, o nome que preferes: és Pai.

Depois eu penso, aqui diante da morte, mestra da filosofia da vida, que o acontecimento maior entre todos foi para mim, como o é para quantos têm igual fortuna, o encontro com Cristo, a Vida. Tudo precisaria de ser meditado de novo com a clareza reveladora, que a lâmpada da morte dá a tal encontro. Nihil enim nobis nasci profuit, nisi redimi , profuisset - De nada, de fato, nos teria valido nascer se não nos tivesse servido para sermos remidos. Esta é a descoberta do precônio pascal e este é o critério de valorização de todas as coisas respeitantes à existência humana em seu verdadeiro e único destino, que se determina apenas em ordem a Cristo: o mira circa nos tuae pietatis dignatio! - ó maravilhosa piedade do teu amor para conosco! Maravilha das maravilhas, o mistério da nossa vida em Cristo. Aqui a fé, aqui a esperança, aqui o amor cantam o nascimento e celebram as exéquias do homem. Eu creio, eu espero, eu amo, no Teu nome, ó Senhor.

E depois pergunto-me ainda: porque me chamaste, porque me escolheste? Tão inepto, tão renitente, tão pobre de espírito e de coração? Bem sei quae stulta sunt mundi elegit Deus... ut non glorietur omnis caro in conspectu eius - Deus escolheu o que no mundo é fraco... para nenhuma pessoa poder gloriar-se diante de Deus (1 Cor 1, 27-28). A minha eleição indica duas coisas: o meu pouco valor; a Tua liberdade, misericordiosa e potente. Esta não se deteve nem sequer diante das minhas infidelidades, da minha miséria, da minha capacidade de vos atraiçoar: Deus meus, Deus meus, audebo dicere... in quodam aestatis tripudio de Te praesumendo dicam: nisi quia Deus es, iniustus essem, quia peccavimus graviter... et Tu placatus es. Nos Te provocamus ad iram, Tu autem conduces nos ad misericordiam! - Meu Deus, meu Deus, atrever-me-ei a dizer... num extático tripúdio direi de Ti com presunção: se não fosses Deus, serias injusto, porque pecamos gravemente... e Tu te aplacas. Nós provocamos tua ira, e Tu em troca conduze-nos à misericórdia! (PL 40, 1150).

E eis-me aqui ao teu serviço, eis-me aqui no teu amor. Eis-me num estado de sublimação, que já não me consente recair na minha psicologia instintiva de pobre homem, senão para recordar-me da realidade do meu ser, e para reagir na mais ilimitada confiança com a resposta que é devida por mim: amen; fiat; Tu scis quia amo Te - assim seja, assim seja. Tu sabes que Te amo. Sucede um estado de tensão e fixa num ato permanente de absoluta fidelidade a minha vontade de serviço por amor: in finem dilexit - amou até ao fim. Ne permittas me separari a Te - Não permitas que eu me separe de Ti. O pôr do sol da vida presente, que desejaria fosse sossegado e sereno, deve ser pelo contrário esforço crescente de vigília, de dedicação e de expectativa. É difícil; mas é assim que a morte assinala a meta da peregrinação terrena, e constitui a ponte para o grande encontro com Cristo na vida eterna. Recolho as últimas forças, e não volto atrás do dom total realizado pensando no teu consummatum est- tudo está terminado.

Recordo o anúncio antecipado do Senhor a Pedro, sobre a morte do apóstolo: amen, amen dico tibi... cum... senueris, extendes manus tuas, et alius te cinget, et ducet quo tu non vis". Hoc autem (Jesus) dixit significans qua morte (Petrus) clarificaturus esset Deum. Et, cum hoc dixisset, dicit ei: 'sequere me' - Em verdade, em verdade te digo... quando fores velho, estenderás as tuas mãos e outro te cingirá e te levará aonde tu não queres. Disse-lhe isto para indicar com que morte Ele glorificaria a Deus. E, dito isto, acrescentou: 'Segue-me' (Jo 21, 18-19).

Sigo-te; e noto que não posso sair ocultamente da cena deste mundo; ligam-me mil fios à família humana, e à comunidade que é a Igreja. Estes fios quebrarão por si; mas não posso esquecer que eles requerem de mim um último dever. Discessus pius - morte piedosa, terei diante do espírito a memória de como Jesus se despediu da cena temporal deste mundo. É de recordar como Ele teve contínua previsão e frequentemente anunciou a sua paixão, como mediu o tempo que faltava para a 'sua hora', como a consciência dos destinos escatológicos encheu o seu espírito e o seu ensinamento, e como da sua morte iminente falou aos discípulos nos discursos da última ceia; e finalmente como quis que a sua morte fosse perenemente comemorada mediante a instituição do sacrifício eucarístico: mortem Domini annuntiabitis donec veniat - Anunciareis a morte do Senhor até que Ele venha.

Um aspecto principal acima dos outros: tradidit semetipsum - entregou-se a si mesmo por mim; a sua morte foi sacrifício; morreu pelos outros; morreu por nós. A solidão da sua morte foi cheia da nossa presença, foi penetrada de amor: dilexit Ecclesiam -amou a Igreja. A sua morte foi por si revelação do seu amor pelos seus: in finem dilexit - amou-os até ao fim. E do amor humilde e ilimitado, deu no termo da vida temporal exemplo impressionante (o lava-pés) e, do seu amor, fez termo de comparação e preceito final. A sua morte foi testamento de amor e é necessário recordá-lo.

Peço portanto ao Senhor que me dê a graça de fazer da minha próxima morte dom de amor à Igreja. Poderia dizer que sempre a amei; foi o seu amor que me fez sair do meu mesquinho e selvagem egoísmo e me encaminhou para o meu serviço; e que por ela, não por qualquer outro, me parece ter vivido. Mas desejaria que a Igreja o soubesse e que eu tivesse a força de vo-lo dizer, como confidência do coração, que só no último momento da vida a gente tem a coragem de fazer. Desejaria finalmente compreendê-la toda na sua história, no seu desígnio divino, no seu destino final, na sua complexa, total e unitária composição, na sua humana e imperfeita consistência, nos seus infortúnios e nos seus sofrimentos, nas fraquezas e nas misérias de tantos filhos seus, nos seus aspectos menos simpáticos, e no seu esforço perene de fidelidade, de amor, de perfeição e de caridade. Corpo místico de Cristo. Desejaria abraçá-la, saudá-la, amá-la, em todo o ser que a compõe, em todo bispo e sacerdote que a assiste e a guia, em toda a alma que a vive e a ilustra; abençoá-la. Também porque não a deixo, não saio dela, mas mais e melhor, me uno com ela e me confundo: a morte é um progresso na comunhão dos santos.

Vale a pena recordar aqui a oração final de Jesus (Jo 17). Os filhos do Pai e os meus; estes são todos um; no confronto com o mal que existe sobre a terra e na possibilidade da salvação deles; na consciência suprema: era missão minha chamá-los, revelar-lhes a verdade, fazê-los filhos de Deus e irmãos entre si: amá-los com o Amor, que está em Deus, e que de Deus, mediante Cristo, veio à humanidade e do ministério da Igreja, a mim confiado, comunicado a ela. Homens, compreendei-me; a todos vos amo na efusão do Espírito Santo, em que eu, ministro, era obrigado a fazer-vos participar. Assim olho para vós, assim vos saúdo, assim vos abençoo. A todos. E a vós, que estais mais perto de mim, mais cordialmente. A paz esteja convosco. E à Igreja, a quem tudo devo e que foi minha, que direi? As bênçãos de Deus estejam sobre ti; tem consciência da tua natureza e da tua missão; tem o sentido das necessidades verdadeiras e profundas da humanidade; e caminha pobre, isto é, livre, forte e com amor, para Cristo. Amém. O Senhor vem. Amém.

(Papa Paulo VI)

segunda-feira, 27 de maio de 2024

A SANTIDADE SEGUNDO CARLO ACUTIS

Com a confirmação recente de um segundo milagre* atribuído por intercessão direta de Carlo Acutis pelo papa Francisco, a Igreja estabelece um firme patamar para elevar, em breve, esse adolescente italiano, falecido aos 15 anos de idade, à honra dos altares. A postagem abaixo sobre ele foi publicada originalmente nesse blog em 20/05/2021.

* cura de uma jovem de Costa Rica após acidente; o primeiro milagre reconhecido foi de um menino dotado de rara doença congênita, em Campo Grande /MS no Brasil

Carlo Acutis (1991 - 2006)

Há algo extraordinário na santidade de pessoas absolutamente comuns. Carlo Acutis, Chiara Badano e Anne-Gabrielle Caron são referências e modelos de santidade extraordinária para uma juventude que não se espelha nos falsos valores de um mundo atual cada vez menos cristão.

Carlo Acutis viveu apenas 15 anos nessa terra e nunca realizou feitos portentosos. Mas a sua vida simples, cotidiana e comum foi absolutamente extraordinária, não apenas como fruto de uma doação singular às graças divinas, mas pelo empenho de viver a santidade à perfeição. Tal propósito incluía amar como Jesus amava, praticar a caridade como regra cotidiana de vida, colocar-se à disposição do próximo com enorme generosidade e sem se preocupar com retribuição alguma. Praticava a oração e a eucaristia quase diária e transformava uma fé viva e autêntica em obras constantes de caridade: 'a tristeza é o olhar voltado para si; a felicidade é o olhar voltado para Deus'. 


Carlo nasceu em Londres, filho de pais italianos em viagem de trabalho - Andrea Acutis e Antonia Salzano – em 3 de maio de 1991, sendo batizado em seguida. Pouco depois - em setembro de 1991 - a família retornou à Itália e Carlo passou a viver em Milão, onde fez seus estudos e onde, em contato como um estudante de engenharia de computação, desenvolveu enorme habilidade nessa área, particularmente na elaboração de sites e desenvolvimento de programas utilizando linguagens computacionais como C++ e HTML. Neste contexto, desenvolveu um projeto de apresentação, por meio de um site especialmente desenvolvido por ele, de uma resenha, com uma rica exposição de imagens, dos principais milagres eucarísticos conhecidos no mundo. 

A síntese de sua via espiritual era a amizade com Deus: a alegria de viver na presença de Deus, o cuidado em não ofender a Divina Vontade, o empenho extremado em estar disponível a todas as graças, particularmente na posse da eucaristia diária e, caso não possível, na prática da comunhão espiritual frequente. Tudo emanado da prática da caridade constante, da cordialidade extrema ao próximo e do bom dia aos porteiros dos prédios vizinhos, aos cuidados em servir e alimentar, no anonimato e no despojamento, os moradores de rua. Tudo por Jesus e para Jesus, ou como ele próprio dizia: 'a conversão é simplesmente um olhar para o Alto'.

Em outubro de 2006, foi internado por causa de uma suposta gripe, posteriormente diagnosticada como uma leucemia particularmente agressiva. Aceitou serenamente a provação, afirmando: 'Ofereço ao Senhor os sofrimentos que terei que sofrer, pelo papa e pela Igreja, para não ter que passar pelo Purgatório e poder ir diretamente para o Céu'. Faleceu em 12 de outubro de 2006 no hospital de San Gerardo, em Monza, após ter recebido a eucaristia e a unção dos enfermos. O seu funeral já foi um reflexo da sua santidade precoce. O seu corpo foi sepultado no túmulo da família em Ternengo e, em fevereiro de 2007, transferido para o cemitério municipal de Assis, conforme seu próprio desejo, mesmo antes de passar pela doença. Em 10 de outubro de 2020, foi beatificado em Assis pelo Papa Francisco. Cerca de 10 dias antes, havia sido feita a exumação do seu corpo, constatando-se que o mesmo permanecia intacto a quaisquer processos de decomposição desde a época da sua morte.