segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR

A beleza e a glória de Cristo transfigurado expressam a vida plena prometida por Deus aos que o amam e também a beleza e a glória da natureza humana renovada. No Tabor, a transfiguração de Jesus manifesta a transformação gloriosa da natureza humana, outrora obscurecida em Adão, sob o esplendor da divina essência. 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Andarei na presença de Deus, junto a Ele na terra dos vivos' (Sl 115)

Primeira Leitura (Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18)  Segunda Leitura (Rm 8,31-34)  Evangelho (Mc 9,2-10)

 25/02/2024 - Segundo Domingo da Quaresma

13. A TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR


'Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte, sobre uma alta montanha' (Mc 9,2). Uma alta montanha, o Monte Tabor. Como testemunhas da extraordinária manifestação da glória celeste e da vida eterna em Deus, Jesus conduz os três apóstolos escolhidos para o alto, numa clara assertiva de que é por meio do profundo recolhimento interior e da elevação da alma muito acima das coisas do mundo é que podemos viver efetivamente a experiência plena da contemplação de Deus.

'E transfigurou-se diante deles. Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar' (Mc 9,2-3). No mistério da transubstanciação do Senhor, os apóstolos testemunharam antecipadamente alguma coisa dos mistérios de Deus. Algo profundamente diverso da natureza humana, pois nascido direto da glória de Deus. Algo muito limitado da Visão Beatífica, posto que deveria atender sentidos humanos: 'nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passou pelo pensamento do homem o que Deus preparou para aqueles que o amam' (1Cor 2,9). Ainda assim, algo tão extraordinário e consolador, que perturbou completamente aqueles homens e, ao mesmo tempo, os moldou definitivamente na certeza da vitória e da ressurreição de Cristo.

'Apareceram-lhe Elias e Moisés, e estavam conversando com Jesus' (Mc 9,4). A revelação da glória de Deus é atestada pela Lei e pelos Profetas, pelo Senhor da vida e da morte, pelos textos das Sagradas Escrituras. Naquele momento, se fecha a Lei e a morte (com Moisés) e se cumprem todas as profecias e se impõe a vida eterna em Deus (com Elias, que ainda vive). E, para não se ter dúvida alguma, Deus se pronuncia no Alto do Tabor em favor do Filho: 'Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!' (Mc 9,7).

Do alto do Tabor, a ordem divina ecoa pelos tempos e pelas gerações humanas a todos nós, transfigurados na glória de Deus pelo batismo e herdeiros do Tabor eterno: 'Escutai o que ele diz!'. Como batizados, somos como os apóstolos descidos do monte e novamente envoltos pelas brumas e incredulidades do mundo. Pela transfiguração, entretanto, somos encorajados a vencer o mundo como Cristo, a superar a fragilidade dos nossos sentidos, a elevarmos nosso pensamento às coisas do Alto, a manifestar em nós a glória de Deus como primícias do Céu, sob o consolo da fortaleza e da perseverança: 'Se Deus é por nós, quem será contra nós?' (Rm 8,31b).

sábado, 24 de fevereiro de 2024

SOBRE O CONHECIMENTO E A LEI NATURAL

Passemos a outra matéria que demonstra, por sua vez, a providência divina. Qual é essa matéria? Que Deus, ao formar lá no princípio o homem, imprimiu no seu ser uma lei natural. Mas, que é a lei natural  Pôs-nos Deus interiormente a consciência e fez que tivéssemos por natureza o conhecimento do bem, e do mal, que é o seu contrário. Porque não necessitamos aprender que a fornicação é má e que a continência é boa, já que conhecemos isto desde o princípio. E para que vejas que sabemos isso desde o princípio, mais tarde, o Legislador, ao promulgar a lei, e dizer: 'Não matarás!' (Ex 20, 13), não acrescentou: porque o homicídio é mau, mas disse simplesmente: 'não matarás': proibiu, pois, somente o pecado, não ensinou.

Mas por que quem disse 'não matarás', não acrescentou 'porque o homicídio é mau'? Porque já antes a consciência nos ensinou isso e, por esta razão, o Legislador fala como com pessoas que sabem e entendem isso. Ao contrário, quando fala de utro mandamento, que não nos é conhecido pela consciência adulta, não se limita a proibir, mas acrescenta o motivo. Deste modo, ao estabelecer a lei do sábado, diz: 'No sétimo dia não trabalharás' (Ex 20, 10). E acrescenta o motivo do descanso. Qual é? Porque, diz, no sétimo dia Deus descansou de todos os trabalhos que tinha feito (Ibid). Então, diz-me, por que ao falar do sábado acrescentou a causa, enquanto que ao falar do assasínio não fez o mesmo?

Porque aquele mandamento não era dos primários, nem dos conhecidos exatamente pela consciência, mas para um tempo particular  e por isso depois foi abolido. Pelo contrário, os necessários e que se prolongam na nossa vida são: 'não matarás, não fornicarás, não roubarás'. E por isso aqui não acrescenta nenhum motivo, nem introduz um ensinamento, basta unicamente a proibição.

Não somente por isso, mas também por outro motivo procurarei demonstrar-vos como o homem é autodidata no conhecimento da virtude. Adão cometeu o primeiro pecado e escondeu-se imediatamente depois do pecado. Mas se não conhecia que tinha feito uma coisa má, por que se escondia? Não existiam ainda escrituras, nem lei e nem Moisés; como conheceu o pecado para o qual se escondia? E não só se escondeu, mas também acusado, esforçou-se por deitar a culpa a outro, dizendo: 'a mulher que me deste deu-me da árvore e comi (Gn 3, 12); esta, por sua vez, deita a culpa a outro, à serpente. 

Repara na sabedoria de Deus: com efeito, tendo dito Adão 'Ouvi a tua voz e tive medo, porque estava nu, e escondi-me' (Gn 3, 10), Deus não lhe deitou na cara imediatamente o que tinha acontecido, nem disse 'por que comeste da árvore?', mas 'quem te disse que estavas nu' (Gn 3, 11) senão por ter comido da árvore que lhe tinha sido indicado que não comesse? Não se calou nem o repreendeu claramente; não se calou para o convidar a confessar o pecado; não o repreendeu claramente para que não fosse todo seu (de Deus) e,assim, aquele ficasse privado do perdão que nos veio pela confissão. Por isso não lhe disse claramente a causa de onde procedia o conhe cimento, mas falou em forma de pergunta para dar àquele a oportunidade de confessar. 

Podes ver isto mesmo novamente em Caim e Abel. Primeiramente ofereciam a Deus as primícias dos seus trabalhos. Mostremos, não só pelo lado do pecado mas também pelo lado da virtude, que o homem estava capacitado para saber ambas as coisas. Que, portanto, o homem sabia que o pecado é mau, mostrou-o Adão; que também sabia que a virtude é boa, tornou-o claro Abel. Sem ter sido ensinado por ninguém, sem ter ouvido uma lei que lhe falasse das primícias, mas por si mesmo e instruído pela consciência, ofereceu aquele sacrifício. Por isso não falou dos seus descendentes, mas dos primeiros homens quando ainda não havia escrituras, nem lei e nem profetas e juizes, mas somente Adão e os seus filhos, para que vejas que o conhecimento das coisas boas e das contrárias estava fixado já de antes na natureza. 

Como, pois, aprendeu Abel que é bom oferecer sacrifícios, que é bom honrar a Deus e dar-lhe graças por todas as coisas? Então? Será que Caim não ofereceu sacrifícios? Sim, também ofereceu, mas não do mesmo modo. E, assim, põe-se novamente de manifesto o conhecimento da consciência porque, efetivamente, como invejava ao que tinha sido honrado e deliberava acerca do assassínio, escondia a decisão mentirosa. E que diz? 'Vamos! Saiamos ao campo' (Gn 4, 8). Uma coisa é a aparência e a simulação da caridade; mas outra distinta é a intenção e a decisão do fratricídio. Mas se pensava que não era mau o que tinha planejado, por que razão o escondia? Uma vez cometido o assassínio, interrogado novamente por Deus: 'Onde está o teu irmão Abel?', disse: 'Não sei! Sou eu, acaso, guarda do meu irmão?' (Gn 4, 9). Por que nega? Não está claro que se condena duramente a si mesmo? Do mesmo modo que o seu pai se tinha escondido, assim também o faz.

... Como se manifesta isto? Por aquelas coisas pelas que se castigou outros que pecaram, pelas que se promulgou leis, pelas que se instituiu tribunais. Paulo, manifestando isto, dizia dos que vivem no vício: 'os quais conhecendo a justiça de Deus, segundo a qual os que fazem tais coisas são dignos de morte, não só as fazem, mas aprovam inclusive aos que as fazem' (Rm 1, 32). E como souberam que é vontade de Deus que os que vivem na maldade sejam castigados com a morte? Como? Se, efetivamente, não crês que o homicídio é mau, ao apanhar um homicida, não o castigues com o teu voto; se não crês que cometer adultério é mau, quando te encontrares com um adúltero não o castigues. Mas se escreves leis contra os pecados de outros e determinas castigos, e és severo, que defesa podes ter naquelas coisas em que tu próprio pecas? Dizendo que desconheces o que se deve fazer? 

Pecaste tu e aquele. Porque castigas àquele e te consideras a ti próprio digno de perdão? Se não sabias que o adultério era mau, não deve ser castigado nenhum dos dois; se castigas o outro e pensas tu fugir do castigo como poderá parecer racional que os réus dos mesmos crimes não sofram o mesmo castigo? (...) Posto que, com efeito, dará a cada um conforme às suas obras, pôs por isto em nós a lei natural e, mais tarde, deu-nos a lei escrita, para impor penas aos pecadores e coroar os que atuam retamente. Atuemos, pois, nas nossas ações com grande cuidado e como pessoas que tem que apresentar-se ao juízo tremendo, sabendo que não gozamos de nenhuma indulgência, se depois da lei natural e escrita e de tanta doutrina e de contínuas advertências, ainda descuidamos da nossa salvação.

(Das Homilias das Estátuas, aos cristãos de Antioquia, de São João Crisóstomo)

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

TRABALHA E LUTA, COMO UM BOM SOLDADO DE CRISTO!

Labora sicut bonus miles Christi (II Tm 2,3) - Trabalha como um bom soldado de Cristo.Os combates pelo amor são longos e por vezes difíceis, e toda alma, por pouco generosa que seja, verifica em si mesma, em dados momentos, um movimento de depressão que se chama desânimo. Essa depressão nasce insensivelmente da acumulação de contratempos e reveses sucessivos. A alma sente-se abatida depois, de repente, de um acidente qualquer, de uma pequena indisposição, de uma fadiga corporal, de uma palavra de repreensão, de uma falta de atenção que sobrevém a nosso respeito e, então, a alma desanima.

Então tudo se torna pesado. A conversação espiritual é insípida, os livros que de ordinário a estimulavam perdem o sabor, os exercícios espirituais tornam-se um ônus intolerável. Nada a encoraja, tudo a aborrece e a desgosta. A vida espiritual parece uma ilusão; atingir-lhe o cimo, uma impossibilidade. E ela senta-se tristemente a meia encosta sem forças para as alturas. Eis, por certo, um sério obstáculo, que impede por vezes o caminho às almas mais resolutas. Importa procurar as causas do desânimo e os meios de frustrar-lhes a influência paralisante.

Antes de tudo, o que deve consolar-te, alma piedosa, é não seres tu a única, sujeita a essas depressões passageiras. As melhores almas sofrem por vezes desse mal. Jesus, em sua infinita sabedoria, permite de bom grado que as almas mais dispostas sintam algumas vezes sua impotência pessoal. 'Não é extraordinário' - como diz São Francisco de Sales - 'que a miséria se sinta por vezes miserável'. Não é de estranhar que a natureza se canse e não queira mais avançar. Não é de admirar que o  nosso corpo, como o asno de Balaão, recuse às vezes, os seus serviços e, insensível aos golpes, se deixe abater antes que nos conduzir.

A razão dessa canseira é quase sempre uma série de exercícios espirituais e trabalhos exteriores por demais longa. É preciso que tudo se faça com medida e não exigir do corpo e do espírito senão o que eles podem razoavelmente dar. É preciso, pois, repousar, confortar-se a tempo, e depois dizer com nova energia: 'Vamos! Ainda um pouco de tempo, o cimo já não está tão longe, Deus ajudará. Para frente!'

Os sentidos do homem são inclinados, desde tenra idade, para o sensível e fascinados pelos objetos exteriores. A razão não conhece a existência de Deus, senão por um trabalho de educação. Tudo que ele sabe do mundo sobrenatural sabe-o por ouvir dizer! E esse ser tão ínfimo, tão ignorante e tão inclinado para o mal, que somos nós, quer aspirar, por um esforço contínuo, a tornar-se amante apaixonado de uma beleza superior. Quer esgotar, para atingir esse ideal, todas as forças de sua alma e de seu corpo, e a cada inspiração, a cada apelo apenas perceptível, de uma graça invisível, quer elevar-se ainda mais alto.

Esse homem fraco, feito de sangue e de pó, propõe-se renunciar a todas as aspirações animais, modificar-se, contradizer-se, corrigir seu raciocínio e seu coração, não uma vez por acaso, mas sempre, e isso sob a influência de um agente misterioso que ele não vê e no qual crê e cujo socorro implora. Não, uma vida tão heróica só pode ser levada graças a uma luta incessante. Como é belo ver esse homem, exposto a todas as seduções, a todos os ataques do mundo e do inferno, a todas as conivências íntimas, voltar-se para Deus, impertubavelmente, apesar de suas fraquezas!

Também a santidade não exclui a luta, ela a supõe e a exige. A perfeição na terra não é o repouso nem o prazer. Não é um estado fixo. É uma ascensão para Deus, uma continuidade de esforços, uma tendência incessante para aproximar-se do ideal sobrenatural: ad ea vero quae priora sunt extendens meipsum (Fp 3,13). Toda santidade no mundo é relativa; pode e deve aumentar continuamente. Quanto mais a alma se une a Deus, e afunda-se na sua infinidade, tanto mais os espaços se estendem e os horizontes se ampliam. É o infinito a atravessar.

Afasta, pois, de teu espírito essa falsa ideia de que aqui na terra encontrarás repouso. Não estás no mundo para se deleitar de Deus, mas para amá-lo no trabalho, no sofrimento e na luta. E se há luta, haverá quedas algumas vezes; o soldado que combate valorosamente expõe-se a golpes e ferimentos, porém suas cicatrizes são para ele títulos de glória. Muitos há que não distinguem, na vida espiritual, a parte que lhes pertence e a que pertence a Deus.

(Excertos da obra 'O Divino Amigo', do Pe. Schrijvers)

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

ORAÇÃO: MEDIA VITA IN MORTE SUMUS

MEDIA VITA IN MORTE SUMUS é um canto gregoriano tradicionalmente atribuído a Notker, o Gago (840-912), monge beneditino da Abadia de Saint Gall (Suiça). Este hino era entoado tanto em cerimônias litúrgicas como em ritos de preparação para guerras religiosas, particularmente considerando a condição efêmera da existência humana que busca, no auxílio divino, a paz de espírito diante a inevitabilidade da morte.


MEDIA VITA IN MORTE SUMUS

Media vita in morte sumus:
quem quærimus adiutorem,
nisi te Domine,
qui pro peccatis nostris iuste irasceris?

Sancte Deus,
Sancte fortis,
Sancte misericors Salvator,
amaræ morti ne tradas nos.

In te speraverunt patres nostri,
speraverunt et liberasti eos.

Sancte Deus,
Sancte fortis,
Sancte misericors Salvator,
amaræ morti ne tradas nos.

Ad te clamaverunt patres nostri,
clamaverunt, et non sunt confusi.

Sancte Deus,Sancte fortis,
Sancte misericors Salvator,
amaræ morti ne tradas nos.

Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto.

Sancte Deus,
Sancte fortis,
Sancte misericors Salvator,
amaræ morti ne tradas nos.


NO MEIO DA VIDA, NA MORTE ESTAMOS

No meio da vida, na morte estamos,
a quem recorrer a não ser a Vós, Senhor,
que vos irais com justiça pelos nossos pecados?

Deus Santo,
Deus Forte,
Santo e misericordioso Salvador
não nos imponha uma amrga morte.

Nossos pais puseram sua confiança em vós,
esperaram e vós os livrastes.

Deus Santo,
Deus Forte,
Santo e misericordioso Salvador
não nos imponha uma amarga morte.

A vós clamaram nossos pais
clamaram e não foram confundidos.

Deus Santo,
Deus Forte,
Santo e misericordioso Salvador
não nos imponha uma amarga morte.

Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

Deus Santo,
Deus Forte,
Santo e misericordioso Salvador
não nos imponha uma amarga morte.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

TESOURO DE EXEMPLOS (301/305)


301. JUSTO REMORSO

O herege Berengário, mesmo depois de fazer penitência de seus pecados, à hora da morte experimentou grandes angústias, causadas pelos remorsos da consciência. E dizia ao sacerdote que o socorria e animava naquela hora tremenda: 'Não temo os meus pecados, mas os que cometeram as almas a quem dei escândalo'. E tudo isto, apesar de que, para reparar esses pecados de escândalo, dera muito bom exemplo e se dedicara em sua casa ao ensino do catecismo.

302. MAUS CONSELHEIROS

Os cortesãos do imperador Frederico III, tutor do rei Ladislau da Hungria, sugeriram-lhe o envenenamento do seu pupilo para se apoderar da coroa. Mas o nobre imperador replicou-lhes: 'É este o conselho que me dais, homens sem fé e sem honra? Fora daqui! Que meus olhos não vos tornem a ver'. E os cortesãos foram expulsos da côrte e desterrados em castigo de seu criminoso conselho.

303. O MELHOR CILÍCIO

Uma senhora piedosa - ou que o julgava ser - era muito inclinada à maledicência e encontrava defeitos em toda gente. Um dia pediu ao diretor espiritual licença para colocar o cilício. O sacerdote, homem de muita experiência, conhecia a fundo a sua penitente. Pôs os dedos sôbre os lábios e disse: 'Filha, para a senhora, o melhor cilício será deixar de prestar atenção a tudo o que se passa além dessa porta'.

304. FUNDAMENTO DO DEVER

O dogma é a base da moral. Quando Miguel Renaud, em 1871, foi eleito deputado, ao chegar a Versalhes, alugou um apartamento por 150 francos mensais. Pagou adiantado. O proprietário perguntou-lhe se queria que lhe passasse o recibo. O deputado respondeu:
➖ Para que passar recibo entre homens de bem? Deus nos vê.
➖ O senhor crê em Deus? - perguntou o dono da casa.
➖ Creio, naturalmente - respondeu Miguel.
➖ Pois eu não - replicou o outro.
➖ Nesse caso, passe-me logo o recibo - disse o deputado - porque quando não se tem fé, a moral carece de fundamento.

305. CARLOS MAGNO E OS MANDAMENTOS

Carlos Magno, um dos maiores soberanos, foi provado por Deus com a morte de quatro dos seus filhos. Restando-lhe somente o seu filho Luís, quis associá-lo ao império. Chegado o momento solene, quando todos os magnatas rodeavam o altar sobre o qual estava a coroa, Carlos Magno volveu-se para o filho e, cheio de emoção, disse: 'Filho querido de Deus e do povo; tu, a quem Deus conservou para meu consolo, vês que minha vida está declinando; que os meus anos passam e a morte se aproxima. Prometes-me temer a Deus, guardar os mandamentos e proteger a Igreja?' Luís prometeu chorando de comoção. Carlos Magno, pondo a coroa sobre a cabeça de seu filho, acrescentou: 'Recebe, pois, a coroa e jamais te esqueças de teu juramento!'

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

SOBRE A TIBIEZA E A MISÉRIA HUMANA


1. Miserável serás, onde quer que estejas e para onde quer que te voltes, se não te voltares para Deus. Por que te afliges, quando não te correm as coisas a teu gosto e vontade? Quem é que tem tudo à medida de seu desejo? Nem eu, nem tu, nem homem algum sobre a terra. Ninguém há no mundo sem nenhuma tribulação ou angústia, quer seja rei quer papa. Quem é que vive mais feliz? Aquele, de certo, que sabe sofrer alguma coisa por Deus.

2. Dizem muitos mesquinhos e tíbios: Olhai, que boa vida tem este homem: quão rico é, quão grande e poderoso, de que alta posição! Olha tu para os bens do céu, e verás que nada são os bens corporais, mas muito incertos e onerosos, pois nunca vive sem temor e cuidado quem os possui. Não consiste a felicidade do homem na abundância dos bens temporais; basta-lhe a mediania. O viver na terra é verdadeira miséria. Quanto mais espiritual quer ser o homem, mais amarga lhe será a vida presente, porque conhece melhor e mais claramente vê os defeitos da humana corrupção. Porque o comer, beber, velar, dormir, descansar, trabalhar e estar sujeito a todas as demais grandes misérias e aflições para o homem espiritual que deseja estar isento disto e livre de todo pecado.

3. Sim, muito oprimido se sente o homem interior com as necessidades corporais neste mundo. Por isto roga o profeta a Deus, devotamente, que o livre delas, dizendo: 'Livrai-me, Senhor, das minhas necessidades' (Sl 25,17)). Mas, ai daqueles que não conhecem a sua miséria, e, outra vez, ai daqueles que amam esta miserável e corruptível vida! Porque há alguns tão apegados a ela - posto que mal arranjem o necessário com o trabalho ou com a esmola - que, se pudessem viver aqui sempre, nada se lhes daria do reino de Deus.

4. Ó insensatos e duros de coração, que tão profundamente jazem apegados à terra, que não gostam senão das coisas carnais. Infelizes! Lá virá o tempo em que hão de sentir, muito a seu custo, como era vil e nulo aquilo que amaram. Os santos de Deus, e todos os fiéis amigos de Cristo, não tinham em conta o que agradava à carne nem o que neste mundo brilhava, mas toda a sua esperança e intenção se fixavam nos bens eternos. Todo o seu desejo se elevava para as coisas invisíveis e perenes, para que o amor do visível não os arrastasse a desejar as coisas inferiores. Não percas, irmão meu, a confiança de fazer progressos na vida espiritual; ainda tens tempo e ocasião.

5. Por que queres adiar tua resolução? Levanta-te, começa já e dize: Agora é tempo de agir, agora é tempo de pelejar, agora é tempo próprio para me emendar. Quando estás atribulado e aflito, é tempo de merecer. Importa que passes por fogo e água, antes que chegues ao refrigério. Se não te fizeres violência, não vencerás os vícios. Enquanto estamos neste frágil corpo, não podemos estar sem pecado, nem viver sem enfado e dor. Bem quiséramos descanso de toda miséria; mas como pelo pecado perdemos a inocência, perdemos também a verdadeira felicidade. Por isso devemos ter paciência, e confiar na divina misericórdia, até que passe a iniquidade, e a vida absorva esta mortalidade.

6. Como é grande a fragilidade humana, inclinada sempre ao mal! Hoje confessas os teus pecados, e amanhã cometes outra vez os mesmos que confessaste. Resolves agora te acautelar, e daqui a uma hora de portas como quem nada se propôs. Com muita razão nos devemos humilhar e não nos ter em grande conta, já que tão frágeis somos e tão inconstantes. Assim, facilmente se pode perder pela negligência o que tanto nos custou a adquirir com a divina graça.

7. Que será de nós no fim, se já tão cedo somos tíbios? Ai de nós, se assim procuramos repouso, como se já estivéssemos em paz e segurança, quando nem sinal aparece em nossa vida de verdadeira santidade. Bem necessário nos fora que nos intruíssemos de novo, como bons noviços, nos bons costumes; talvez que assim houvesse esperança de alguma emenda futura e maior progresso espiritual.

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)