sábado, 26 de fevereiro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXVI)

Capítulo XXVI

Duração do Purgatório - Venerável Catarina Paluzzi e a Irmã Bernardina - Irmãos Finetti e Rudolfini - São Pedro Claver e os Casos de Duas Almas

Citemos alguns outros exemplos que servirão para nos convencer ainda mais de quão longa é a duração dos sofrimentos do Purgatório. Veremos que a Justiça Divina é relativamente severa para com as almas chamadas à perfeição e que receberam muitas graças. Não diz Jesus Cristo no Evangelho: 'a quem muito é dado, muito será exigido; e que mais será pedido daquele a quem mais foi confiado?' (Lc 12,48).

Lemos na Vida da Venerável Catarina Paluzzi que uma santa religiosa, que morreu em seus braços, só foi admitida à beatitude eterna depois de passar um ano inteiro no Purgatório. Catarina Paluzzi levou uma vida santa na diocese de Nepi, na Itália, onde fundou um convento de dominicanos. Vivia com ela uma religiosa chamada Bernardina, também muito avançada nos caminhos da vida espiritual. Estas duas santas imitaram-se com fervor e ajudaram-se mutuamente a progredir cada vez mais na perfeição a que Deus as chamou.

O biógrafo da Venerável Catarina as compara a duas brasas vivas que comunicam calor entre si e a duas harpas afinadas que se harmonizaram em um hino perpétuo de amor à maior glória de Deus. Bernardina morreu depois de uma doença dolorosa, que suportou com paciência cristã. Quando estava prestes a expirar, ela disse a Catarina que não a esqueceria diante de Deus e que, se Deus assim o permitisse, voltaria a conversar com ela sobre assuntos espirituais que contribuíssem para a sua santificação.

Catarina orou muito pela alma da irmã religiosa e, ao mesmo tempo, implorou a Deus que permitisse que a sua alma pudesse aparecer a ela. Um ano inteiro se passou e a falecida não retornou. Finalmente, no aniversário da morte de Bernardina, estando Catarina em oração, viu um poço de onde saíam volumes de fumaça e chamas; então ela percebeu saindo do poço uma forma cercada de nuvens escuras. Aos poucos, esses vapores foram se dispersando e a aparição tornou-se radiante com um brilho extraordinário. Nessa gloriosa personagem, Catarina reconheceu Bernardina e correu em sua direção. 'É você, minha querida irmã?' - disse ela. 'Mas de onde você vem? O que significam este poço e esta fumaça ardente? Somente hoje termina o seu purgatório?'. 'Você está certa' - respondeu a alma - 'há um ano estou detida neste lugar de expiação, e hoje, finalmente, poderei entrar no Céu. Quanto a ti, persevere em seus santos exercícios: continue sendo caridosa e misericordiosa e você obterá misericórdia'.

O seguinte incidente pertence à história da Companhia de Jesus. Dois escolásticos ou jovens religiosos daquele Instituto, os Irmãos Finetti e Rudolfini, prosseguiram os seus estudos no Colégio Romano, no final do século XVI. Ambos eram modelos de piedade e regularidade, e ambos também haviam recebido uma advertência do Céu, que divulgaram, segundo a Regra, ao seu diretor espiritual. Deus lhes dera a conhecer a proximidade da morte e os sofrimentos que os esperava no Purgatório. Um ali iria permanecer por dois anos; o outro, por quatro anos. Eles morreram, de fato, um após o outro. Seus irmãos na religião imediatamente ofereceram as orações mais fervorosas e todos os tipos de penitências pelo descanso de suas almas. Eles sabiam que se a santidade de Deus impõe longas expiações aos seus eleitos, elas também podem ser abreviadas e inteiramente remidas pelos sufrágios dos vivos. Se Deus é severo para com aqueles que receberam muitos conhecimentos e graças, por outro lado Ele é muito indulgente para com os pobres e simples, desde que estes o sirvam com sinceridade e paciência.

São Pedro Claver, da Companhia de Jesus, Apóstolo dos Negros de Cartagena, soube do Purgatório de duas almas, que levaram vidas pobres e humildes sobre a terra; seus sofrimentos foram reduzidos a algumas horas. Encontramos o seguinte relato na vida deste grande servo de Deus. Ele havia persuadido uma mulher virtuosa, chamada Ângela, a receber em sua casa outra mulher chamada Úrsula, que havia perdido o uso de seus membros e estava coberta de feridas. Um dia, quando foi visitá-los, como fazia de vez em quando, para ouvir as suas confissões e levar-lhes algumas provisões, a caridosa anfitriã lhe disse com pesar que Úrsula estava à beira da morte. 'Não, não' - respondeu o sacerdote, consolando-a - 'ela ainda tem quatro dias de vida e não morrerá até sábado'. Quando chegou o sábado, ele rezou a missa por sua intenção, e saiu para prepará-la para a morte. Depois de algum tempo em oração, disse à anfitriã com ar de confiança: 'Consola-te, Deus ama Úrsula; ela morrerá hoje, mas ficará apenas três horas no Purgatório. Que ela se lembre de mim quando estiver com Deus, para que possa orar por mim e por aquela que até agora foi sua mãe'. Ela morreu ao meio-dia, e o cumprimento de uma parte da profecia deu grande razão para acreditar no cumprimento da outra.

Numa outra ocasião, tendo ido ouvir a confissão de uma pobre doente que costumava visitar, soube que ela estava morta. Os pais estavam muito angustiados e ele ficou também inconsolável, porque não acreditava que ela estivesse tão perto de seu fim e com a ideia de não ter podido ajudá-la em seus últimos momentos. Ajoelhando-se para rezar ao lado do cadáver, levantou-se de repente e com um semblante sereno disse: 'Tal morte é mais digna de nossa inveja do que de nossas lágrimas; esta alma está condenada ao Purgatório, mas apenas por vinte e quatro horas. Procuremos encurtar este tempo pelo fervor de nossas orações'.

Já foi dito o suficiente sobre a duração dos sofrimentos. Vemos que eles podem ser prolongados a um grau terrível; mesmo os sofrimentos mais curtos, ao considerarmos a sua gravidade, são longos. Procuremos abreviá-los para os outros e mitigá-los para nós mesmos, ou melhor ainda, preveni-los completamente. Agora vamos preveni-los removendo as causas. Quais são as causas? Qual é o cerne das penas de expiação no Purgatório?

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

PERDOAR OS NOSSOS INIMIGOS?

Cristo nos ordenou peremptoriamente a 'amar os nossos inimigos' (Lc 6,27 e Lc 6,35). Porque amar aos que nos amam é tarefa que fazem até mesmo os pecadores mais contumazes. Como católicos, somos exortados a amar os que não nos amam; mais ainda, amar aqueles que nos desprezam, caluniam e ultrajam diante de todos e diante de tudo! Obedecer ao Mestre implica nesse caso resistir e domar por completo o ódio que pode nos confrontar diante o outro.

Esse 'amar ao inimigo' implica, em primeiro lugar, desejar-lhes todo bem e, em segundo lugar, fazer a eles todo o bem possível. Do ponto de vista essencialmente humano, essa imposição nos parece demasiado forte, provavelmente antagônica a todos os nossos sentimentos e aspirações. Quem sabe 'ignorar os nossos inimigos' seja plausível; ou talvez não responder as ofensas ou ultrajes na mesma moeda já não seria um grande ato de amor? Por que Deus nos exige não apenas isso e, além mais do que o perdão, atos de caridade extrema para com os nossos inimigos?

A resposta é muito simples. Deus quer a salvação de todos os homens, quer sejam amigos, quer sejam inimigos nessa terra. Há aqueles que serão salvos porque são como as sementes do lavrador que foram lançadas em terra fértil, foram abertos à graça e se tornaram homens e mulheres de oração. Mas... e aquelas sementes lançadas em terra rude e que nunca deram frutos? Que, pelo contrário, produzem e espalham o mal, a discórdia e os confrontos de todos os tipos? Os nossos 'benditos' inimigos?

Sem oração, não serão salvos. Sem caridade, não serão salvos. Sem frutos e graças, não serão salvos. Eles serão salvos se houver outros que rezem por eles, que sofram e se penitenciem por eles, que deem frutos - muitos frutos de perdão e de caridade - por eles. E estes outros somos nós. Desde que possamos nos oferecer como instrumentos da graça divina para que muitos outros sejam salvos e possam, assim, tornarem-se também herdeiros da redenção de Cristo. Nada acontece por acaso e a nossa salvação depende da salvação de muitos outros, particularmente daqueles que foram colocados ou que nós mesmos colocamos, por razões diversas, como nossos 'inimigos' neste mundo. Amar os inimigos é levar o amor ao próximo aos limites mais insondáveis do amor divino. O nosso empenho será sempre agradável a Deus, ainda que possa ser inútil para os nossos inimigos.

Amar os nossos inimigos tem o limite de oferecer a outra face. A verdadeira caridade implica a concessão e a busca sincera do BEM ESPIRITUAL ao outro, destinada mesmo aos inimigos pessoais, com ofensas pessoais, com ultrajes pessoais que, independentemente disso, queremos que se  convertam e sejam salvos. Este propósito do bem espiritual implica necessariamente conversão e a mudança de vida do outro, objetivos que podem ser alcançados por bem ou por mal. Se não se tem tal resultado por bem, é absolutamente legítimo ao cristão rezar a Deus pedindo o afastamento, a derrubada ou a morte dos inimigos da Igreja e dos detratores contumazes dos valores da civilização cristã pelo simples fato de que não são apenas os 'nossos inimigos', mas inimigos de Deus. Podemos e devemos rezar a Deus, então, para que possam ser realmente detidos na sua iniquidade e sob o domínio do mal (e, ainda mesmo com a morte de alguns, neste caso com o propósito de ter fim essa alma continuar a acumular castigos eternos cada vez maiores para si mesmo).

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

ARS LONGA, VITA BREVIS

Os aforismos constituem sentenças curtas e objetivas, que incorporam conceitos fundamentais numa determinada área, expressando certos ensinamentos, regras ou princípios éticos e morais. Estão associados intimamente à medicina desde tempos remotos, mas podem ser extrapolados a quaisquer outras áreas do conhecimento.

Um exemplo clássico de aforismo é: Ars longa, vita brevis - a arte é longa, a vida é breve - tradução para o latim dos dois primeiros epigramas (com a ordem invertida) do Primeiro Aforismo de Hipócrates (do original grego):

ὁ βίος βραχὺς,
ἡ δὲ τέχνη μακρὴ

Embora a palavra Ars seja traduzida como arte, a sua acepção original estava relacionada à medicina. Uma vez que a natureza filosófica do aforismo expressa um sentimento universal, este pode ser extrapolado, então, a qualquer área do conhecimento. O aforismo completo é o seguinte: 'Vita brevis, ars longa, occasio praeceps, experimentum periculosum, iudicium difficile' – 'A vida é breve, a arte (ciência) é longa (extensa), a ocasião é fugaz, a experiência é perigosa, o julgamento é difícil'. 


Nesse conceito geral, o aforismo ressalta o paradoxo entre a limitação de uma vida e o domínio de qualquer ciência ou, em outras palavras, os mais sábios e os mais doutos sabem um pouco mais do que os outros sobre determinadas ciências ou áreas do conhecimento. E tudo se resume a saber nada mais do que um pouco do que realmente existe em qualquer área do conhecimento humano.

Conhecimento, portanto, nunca foi e nunca será a compreensão de tudo. Mas a busca do conhecimento é tudo o que podemos (e devemos) fazer das nossas vidas. Como criaturas de Deus, apequenados e extremamente limitados, somos chamados, no espaço reduzido de uma vida mais ou menos curta, a empreender a busca do conhecimento do Criador, de forma difusa e incompleta sim, mas como 'artistas' que estão no mundo para torná-lo melhor, mais conhecido e mais belo. E, assim, fazer Ars e Vita serem uma coisa só: a eternidade com Deus.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A CRUZ É EXEMPLO DAS VIRTUDES

Que necessidade havia para que o Filho de Deus sofresse por nós? Uma necessidade grande e, por assim dizer, dupla: para remédio contra o pecado e para exemplo do que devemos fazer. Foi em primeiro lugar um remédio, porque na paixão de Cristo encontramos remédio contra todos os males em que incorremos por causa dos nossos pecados.

Mas não é menor a utilidade que tem como exemplo. Na verdade, a paixão de Cristo é suficiente para orientar toda a nossa vida. Quem quiser viver em perfeição, basta que despreze o que Cristo desprezou na cruz e deseje o que Ele desejou. Nenhum exemplo de virtude está ausente da cruz. 

Se queres um exemplo de caridade: Não há maior prova de amor do que dar a vida pelos seus amigos. Assim fez Cristo na cruz. E se Ele deu a vida por nós, não devemos considerar penoso qualquer mal que tenhamos de sofrer por Ele.

Se procuras um exemplo de paciência, encontras na cruz o mais excelente. Reconhece-se uma grande paciência em duas circunstâncias: quando alguém suporta com serenidade grandes sofrimentos ou quando pode evitar os sofrimentos e não os evita. Ora Cristo suportou na cruz grandes sofrimentos, e com grande serenidade, porque sofrendo não ameaçava; e como ovelha levada ao matadouro, não abriu a boca. É grande portanto a paciência de Cristo na cruz: corramos com paciência a prova que nos é proposta, pondo os olhos em Jesus, autor e consumador da fé, que em lugar da alegria que lhe era proposta suportou a cruz, desprezando-lhe a ignomínia.

Se queres um exemplo de humildade, olha para o crucifixo: Deus quis ser julgado sob Pôncio Pilatos e morrer. Se procuras um exemplo de obediência, segue Aquele que se fez obediente ao Pai até à morte: assim como pela desobediência de um só, isto é, Adão, muitos foram constituídos pecadores, assim também pela obediência de um só, muitos serão justificados.

Se queres um exemplo de desprezo pelas honras da Terra, segue Aquele que é Rei dos reis e Senhor dos senhores, no qual se encontram todos os tesouros de sabedoria e de ciência e que, na cruz, está despojado das suas vestes, escarnecido, cuspido, espancado, coroado de espinhos e dessedentado com fel e vinagre.

Não te preocupes com trajes e riquezas, porque repartiram entre si as minhas vestes; nem com as honras, porque troçaram de Mim e me bateram; nem com as dignidades, porque teceram uma coroa de espinhos e a puseram sobre a minha cabeça; nem com os prazeres, porque para a minha sede me deram vinagre.

(Dos Comentários de São Tomás de Aquino, Liturgia das Horas)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (131/133)


131. O CONSOLO DE LÚCIFER

Um dia, voltando da terra, chegou um demônio ao inferno. Estava triste e abatido. Dirigindo-se a Lúcifer, o rei das trevas, disse:
➖ Chefe, falhou completamente o meu esforço. Mostrei ao Filho do Homem todas as riquezas e grandezas do universo e prometi-lhe dar-lhe tudo aquilo com a única condição de que me adorasse. E eis que Ele me repeliu com desprezo.
➖ Consola-te, meu filho - respondeu Lúcifer - mesmo que esse esteja perdido, todos os outros nos pertencem.

Depois de algum tempo regressa o demônio de sua nova excursão pela terra e diz:
➖ Chefe, está tudo perdido. O Filho do Homem acaba de fazer ao povo, no monte Tabor, um sermão sem igual. Ele afasta a todos das vaidades terrenas e impele-os para o reino de Deus.
➖ Consola-te, meu filho - disse Lúcifer - eles gostam de ouvir palavras novas e belas, mas não as põem em prática. Esquecer-se-ão delas como se esqueceram dos ensinamentos dos profetas.

Faz o demônio outra excursão pela terra. Quando volta ao inferno, chega-se ao poderoso rei Lúcifer e, desanimado, diz:
➖ Meu chefe, o nosso poder está liquidado para sempre. O Filho do Homem selou sua doutrina com a própria vida, provando assim que é realmente o Filho de Deus.
➖ Não te aflijas demais, meu filho - replicou Lúcifer - eles serão nossos apesar de tudo. O Filho do homem provou, é verdade, por sua morte na Cruz, que é o Filho de Deus, mas consola-te, meu fiel emissário, os homens não crerão nele.

Meu irmão, tira deste imaginário diálogo uma preciosa lição para tua alma, isto é, que não deves viver, como pagãos e libertinos, sem fé, sem religião e sem Deus.

132. SEMPRE MAIS

Perguntai a São Paulo o que deveis fazer para vos tornardes semelhantes a Jesus Cristo. São Paulo não vos enganará. Ele é o doutor que mais admiravelmente expôs as leis divinas de nossa perfeição na vida espiritual.
➖ Santo Apóstolo, temos a fé de Pedro, o discípulo escolhido por Jesus Cristo para seu vigário na terra. Isso nos basta?
➖ Não basta.
➖ Temos a caridade para com Deus e o amor para com o próximo, que aprendemos do discípulo predileto de Jesus. Isso nos basta?
➖ Não.
➖ Temos a fortaleza heroica demonstrada pelo Batista diante os inimigos. Isso nos basta?
➖ Não.
➖ Temos a confiança em Deus que distinguiu o patriarca São José, o qual mereceu ser tido por pai de Jesus. Isso nos basta?
➖ Não basta, não.

Escutai o que vos digo: Jesus Cristo é o modelo que deveis ter sempre diante dos olhos; é o retrato que haveis de reproduzir em vosso corpo e em vossa alma. E quem era Jesus Cristo? Era a caridade, era a justiça, a mansidão, a prudência e a paciência... Era a beleza de Deus manifestando-se aos olhos humanos, para que nele nos transformemos. Tendes, pois, de trabalhar, trabalhar muito, até que sejais retratos perfeitos desse divino Modelo.

➖ Mas, santo Apóstolo, nossa carne é fraca, nosso coração é louco, nossa concupiscência é animal, nossas inclinações são perversas, as tentações são muitas, os demônios rodeiam-nos dia e noite, o mundo nos fascina...
➖ Trabalhai! É preciso imitar a Jesus Cristo. Essa é a única segura garantia de nossa eterna salvação. Se temos a sua graça, temos tudo.
➖ Mas isso será trabalho de muitos anos.
➖ Tendes razão; é trabalho de toda a vida. Mas para isso é que Deus nos pôs no mundo, para isso é a vida. Se não a entendeis assim, estais tristemente equivocados.

Trabalhai! Tendes diante de vós uma eternidade para descansar e gozar pelas nossas virtudes.
 
CASTO... SEM RELIGIÃO?!

Estava aquele médico na flor da idade. Era uma cabeça leviana e andava cheio de orgulho por sua ciência vã. Além disso, relegara a fé a um canto de sua inteligência e, segundo havia aprendido de seus mestres sem religião, afirmava que para viver bem e ser feliz bastava a luz da razão.

Por aqueles dias um famoso pregador, um homem de eloquência singular, alvoroçara toda a cidade. O vaidoso doutor afirmava à boca-cheia, no círculo de suas amizades, que iria entrevistar o famoso orador e que o havia de encurralar com a força de sua discussão. E lá se foi, com efeito, seguido de alguns amigos zombeteiros e curiosos. Achando-se frente à frente com o missionário, o doutor disse entre outras coisas:
➖ Padre, eu não pratico a religião; sou, porém, homem honrado e posso garantir-lhe que sou casto. Sorriu com desconfiança o ilustre pregador e observou:
➖ Casto?... Casto sem religião?!
➖ Sim , casto - insistia o doutor.
➖ E vai a toda espécie de cinema?
➖ Naturalmente.
➖ E lê toda espécie de livros?
➖ Tudo o que cai sob os meus olhos.
➖ Desvia o olhar quando se encontra com alguma beleza provocadora?
➖ Ó, pelo contrário.
➖ E diz que não reza?
➖ Nada.
➖ E diz que é casto?
➖ Digo.

➖ Pois bem - replicou aquele homem apostólico, aquele profundo conhecedor do coração humano - acredito que o senhor seja casto, mas casto como os cachorros. E nada mais disse. E havia dito tudo. O doutor mordeu a língua; os amigos sorriam maliciosamente e o missionário interrompeu bruscamente o diálogo. Todos estavam de acordo: sem a prática da oração não podiam ser castos. E constitui refinada loucura afirmar o contrário.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

VERSUS: SEREI O VOSSO DEUS OU O VOSSO FLAGELO

'Se seguirdes minhas leis e guardardes os meus preceitos e os praticardes, eu vos darei a chuva nos seus tempos. 

A terra dará o seu produto e as árvores da terra se carregarão de frutos. 

A debulha do trigo se estenderá até a colheita da uva, e a colheita da uva até a sementei­ra; comereis o vosso pão à saciedade, e ha­bitareis em segurança na vossa terra. 

Darei paz à vossa terra e vosso sono não será perturbado. Afastarei da terra os ani­mais nocivos, e a espada não passará pela vossa terra. 

Quando perseguirdes os vossos inimigos, cairão sob vossa espada. 

Cinco dentre vós perseguirão um cento, e cem dos vossos perseguirão dez mil, e os vossos inimigos cairão sob vossa espada. 

Eu me voltarei para vós, e vos farei crescer; eu vos multiplicarei e ratificarei a minha aliança convosco. 

Comereis as colheitas antigas, bem conservadas, e lançareis fora as velhas, para dar lugar às novas. 

Porei o meu taber­ná­culo no meio de vós, e a minha alma não vos rejeita­rá.

Andarei entre vós: serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo'. 

(Lv 26, 3-12)


'Mas se não me escutardes e não guardardes os meus mandamentos, 

se desprezardes os meus preceitos e vossa alma aborrecer as minhas leis, de sorte que não pratiqueis todos os meus mandamentos e violeis minha aliança, eis como vos hei de tratar: 

enviarei terríveis flagelos sobre vós: a tísica e a febre que enfraquecerão vossa vista e vos farão desfalecer. Debalde semeareis a vossa semente, porque vossos inimigos a comerão. 

Voltarei minha face contra vós e sereis vencidos pelos vossos inimigos: eles vos dominarão, e fugireis sem que ninguém vos persiga. 

Se nem ainda assim me ouvirdes, castigarei sete vezes mais pelos vossos pecados. 

Quebrarei o orgulho de vosso poder, tornarei o vosso céu como ferro e a vossa terra como bronze. 

Inutilmente se gastará a vossa força, pois vossa terra não dará os seus produtos, e as árvores da terra não produzirão os seus frutos. 

Se me puserdes obstáculos e não quiserdes ouvir-me, vos ferirei sete vezes mais, conforme os vossos pecados. 

Mandarei contra vós as feras do campo, que devorarão vossos filhos, matarão vossos animais e vos reduzirão a um pequeno número, de modo que os vossos caminhos se tornarão desertos. 

Se apesar desses castigos não vos quiserdes corrigir, e vos obstinardes em resistir-me, eu vos resistirei por minha vez e vos ferirei sete vezes mais, por causa dos vossos pecados. 

Farei cair sobre vós a espada para vingar a minha aliança. Se vos ajuntardes em vossas cidades, lançarei a peste no meio de vós e sereis entregues nas mãos de vossos inimigos'. 

(Lv 26, 14 - 25)

domingo, 20 de fevereiro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'O Senhor é bondoso e compassivo' (Sl 102)

 20/02/2022 - Sétimo Domingo do Tempo Comum

13. 'AMAI OS VOSSOS INIMIGOS'

Nas santas palavras do Evangelho deste domingo, Jesus enuncia aos homens daquele tempo as máximas da caridade divina, não uma, mas duas vezes: 'amai os vossos inimigos' (Lc 6,27 e Lc 6,35). Sim, amai os vossos inimigos uma primeira vez: desejando-lhes todo bem; e amai os vossos inimigos uma segunda vez: fazendo todo bem a eles. Eis a chave de ouro para aqueles que se pretendem 'filhos do Altíssimo' (Lc 6, 35).

Para cumprir estes mandamentos da caridade, Jesus nos apresenta imediatamente três opções concretas: 'fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam e rezai por aqueles que vos caluniam' (Lc 6, 27-28). Se Deus não nos pede o impossível, também não nos pede o que é fácil: amar nossos inimigos implica um dom extremado da graça e, para alcançá-lo, Jesus nos propõe violentarmos a tibieza da alma e apagar o fogo do egoísmo e do orgulho incandescentes com as águas abundantes da mansidão e da misericórdia: 'Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso' (Lc 6, 36).

No Coração de Deus impera o amor por todos os homens. Pelos justos e pelos injustos, pelos bons e também pelos ingratos e maus. A caridade nasce do amor sem medidas e se detém diante da medida imposta: 'com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos' (Lc 6,38). Ao impor tais limites ao nosso amor humano, amando apenas aqueles que nos amam ou fazendo o bem somente àqueles que nos interessam, nos tornamos reféns de igual julgamento e abortamos as graças da prática de uma verdadeira caridade cristã. Deus não nos impõe regras impossíveis ou obstáculos intransponíveis para alcançarmos as eternas recompensas, mas os frutos da graça não se encontram nas Vinhas do Senhor simplesmente espalhados pelo chão.

Mas como amar aqueles que nos desejam o mal? Como entregar a túnica ao que nos arranca o manto? Como oferecer a outra face à bofetada indigna? Amparados pelas reservas humanas, nada disso seria pertinente ou verossímil e, quase sempre, seria a intempestiva resposta dos instintos. Para torná-las possíveis e, sábias mais que possíveis, o instinto deve ser submerso pelo perdão: 'perdoai e sereis perdoados' (Lc 6, 37). Pelo perdão que Jesus extrapola aos limites mais insondáveis da misericórdia infinita de Deus; com o perdão verdadeiro, nascido e pautado como reflexo da misericórdia que não impõe contenção de medidas e marco limite algum.