sábado, 12 de fevereiro de 2022

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (IV)

 Carta Encíclica HAERENT ANIMO [04 de agosto de 1908]


Papa Pio X (1903 - 1914)

exortação ao clero católico


Preâmbulo 

1. Trazemos profundamente gravadas em nossa almas as palavras tremendas do apóstolo dos gentios ao se dirigir aos hebreus (13, 17), lembrando-lhes o dever da obediência aos superiores, e dizendo-lhes com todo o peso de sua autoridade: Ipsi enim pervigilant quasi rationem pro animabus vestris reddituri. Este aviso, não há dúvida, dirige-se a quantos tenham na Igreja autoridade mas, de modo particular, a nós, que, não obstante a nossa insuficiência, fomos chamados por Deus para ocupar o primeiro lugar na hierarquia eclesiástica. Eis porque, noite e dia preocupado com a nossa responsabilidade, temos sempre nosso pensamento e esforços voltados para tudo o que possa garantir, salvaguardar e favorecer o progresso do rebanho do Senhor. Uma coisa sobremaneira nos preocupa: ter, nas Ordens Sagradas, homens que estejam perfeitamente à altura desta missão. Pois estamos convencidos de que isso, sobretudo, nos dá motivos para as melhores e mais confiantes esperanças para o bem da Religião. Eis por que, desde nossa elevação ao Soberano Pontificado, embora bem patentes nos fossem os grandes méritos do clero considerado em geral, julgamos nosso dever exortar instantemente aos nossos veneráveis Irmãos, os Bispos do Orbe Católico, para que empreguem todos os seus cuidados e máxima solicitude em formar o Cristo naqueles que têm por missão formar também o Cristo nos outros. Bem conhecemos a solicitude com que muitos Antístites têm desempenhado essa missão. Sabemos com que vigilância e zelo procuram assiduamente formar o clero na virtude. E queremos não só louvá-los, como também publicamente agradecer-lhes. 

2. Felicitamo-nos, é certo, vendo que numerosos padres, inflamados, pelo zelo de seus bispos, de um santo ardor, fazem em si reviver ou crescer a graça de Deus que receberam no dia da ordenação sacerdotal. Todavia, temos ainda a lamentar que alguns outros, em países diversos, não procedam como deviam, de modo a oferecer ao povo cristão, que os contempla como num espelho, o modelo de vida a praticar e um exemplo a seguir. A estes, sobretudo, queremos, por esta carta, abrir nosso coração, que como um coração de pai, à vista do filho doente, palpita de um amor angustiado. E inspirado por este amor, juntamos as nossas exortações às dos bispos. E se elas têm por fim principal trazer a melhores sentimentos os transviados e os tíbios, desejamos todavia que sejam um incentivo também para os outros. Mostramos o caminho que deve cada um esforçar-se por seguir com ardor sempre maior, para que seja, em verdade, segundo a bela expressão do Apóstolo, um homo Dei (1 Tm 6, 11) e corresponda às legítimas esperanças da Igreja. 

3. Nada diremos que vos não seja conhecido ou que seja novidade para alguém. Diremos o que é preciso lembrar a todos. E Deus nos dá esperança de que a nossa palavra não deixará de produzir frutos abundantes. E vos rogamos então insistentemente: Renovamini spiritu menus vestrae, et indulte novum hominem qui secundum Deum creatus est in justitia, et sanctitate veritatis (Ef 4, 23-24). A realização deste voto é o mais belo e o mais agradável presente que possais nos oferecer neste quinquagésimo aniversário de nosso sacerdócio. Quanto a nós, quando recordamos sob o olhar de Deus, in animo contato et spiritu humilitatis (Dn 3, 39), os anos já passados de nosso sacerdócio, parece-nos que a dor de aí encontrar o que é muito humano o expiaremos, de certo modo, fazendo por nossas advertências e conselhos, ut ambuletis digne Deo per omnia placentes (Cl 1, 10). Com esta exortação não defendemos tão só vossos interesses. Defendemos também os interesses comuns das nações católicas, porque estes não se separam daquelas. Com efeito. É tal a condição do padre que não pode ser ele bom ou mau só para si. Ao invés, o seu procedimento e maneira de viver são para o povo de importância capital. Que grande dom e precioso é um padre verdadeiramente bom!

I. SANTIDADE DO PADRE 

Necessidade da Santidade Sacerdotal

4. Começamos, pois, a nossa exortação, filhos caríssimos, por vos excitar à santidade de vida que requer a vossa dignidade. Efetivamente, quem exerce o sacerdócio, não para si o exerce, mas para os outros também: Omnis namque Pontifex ex hominibus assumptus pro hominibus constituitur in iis quae sunt ad Deum (Hb 5, 1). O próprio Jesus Cristo manifestou o mesmo pensamento quando, para dar a entender em que consiste a ação sacerdotal, comparava os padres ao sal e à luz. O padre é, portanto, a luz do mundo e o sal da terra. Ninguém, sem dúvida, ignora que o padre desempenha a sua missão sobretudo quando prega a verdade cristã. Porém, este mistério não se torna quase inútil, quando ele não apoia com o exemplo o que ensina de viva voz? Os que o escutam poderão dizer injuriosamente, é verdade, mas não de todo sem razão: Confitentur se nosse Deum, factis autem negant (Tt 1, 16). E depois acabariam recusando os ensinamentos do padre, cujas luzes seriam para eles de nenhum proveito. Eis porque o próprio Cristo, feito modelo dos padres, ensinou primeiro com o exemplo e depois com a palavra: Coepit Jesus facere et docere (At 1, 1). 

5. O padre, que não faz caso da santidade de vida, também não poderá ser, de maneira alguma, o sal da terra. É impossível que o que está corrompido e contaminado seja fator de conservação. Onde falta a santidade, inevitavelmente se introduz a corrupção. Eis por que, insistindo na comparação, Cristo chama a tais padres sal infatuatum, quod ad nihilum valet ultra nisi ut mittatur foras, e desde então: Conculcetur ab hominibus (Mt 5, 13). 

6. Tanto mais patentes e mais certas são estas verdades, quando desempenhamos as funções sacerdotais, não em nosso nome, mas em nome de Jesus Cristo. Diz o Apóstolo: Sic nos existimet homo ut ministros Christi, et dispensatores mysteriorum Dei (1 Cor 4, 1), pro Christo ergo legatione fungimur (2 Cor 5, 20). E é por isto, justamente, que o próprio Cristo nos coloca entre os seus amigos e não entre os seus servos: Jam non dicam vos servos... Vos autem dixi amicos, quia omnia quaecumque audivi a Patre meo, nota feci vobis... Elegi vos et posui vos ut eatis et fructum afferatis (Jo 15, 15-16). Havemos, portanto, de desempenhar o papel de Cristo. A missão que nos deu, temos de cumpri-la, levando em conta o fim que Ele nos propôs. E como é próprio de uma verdadeira amizade estarem de acordo os amigos no querer ou não querer uma coisa, estamos obrigados, como amigos, a pôr de acordo o nosso modo de sentir com o de Jesus Cristo, que é sanctus, innocens, impollutus (Hb 7, 26). Já que por ele fomos enviados, devemos conquistar o espírito dos homens à sua doutrina e à sua lei. E é claro que devemos começar por nós mesmos, observando-as primeiro. Já que participamos do poder de Cristo para livrar as almas dos laços do pecado, tudo devemos fazer para nos preservarmos do pecado. Porém, acima de tudo como ministros do sacrifício por excelência, perpetuamente renovado pela salvação do mundo, devemos pôr-nos no estado de espírito com que o próprio Cristo, Hóstia Imaculada, se ofereceu a Deus no altar da cruz. Porque, se outrora, quando tudo eram apenas aparências e figuras, se exigia tão grande santidade dos padres, qual não será hoje nossa obrigação quando a vítima é Cristo! Poderá ser puro demais quem oferece um tal sacrifício? Não seria preciso que fosse mais imaculada que o raio de sol a mão que divide esta carne, a boca que se enche deste fogo espiritual, a língua que se enrubesce de um sangue tão tremendo? (S. Joan. Chrisost., Hom. LXXXII in Mt, n. 5). 

7. Com muita razão, São Carlos Borromeu insistia muito neste ponto nas alocuções ao seu clero: 'Se nos lembrássemos, caríssimos irmãos, de tudo quanto Deus Nosso Senhor depositou de grande e de santo em nossas mãos, que força não teria este pensamento para nos levar a uma vida bem digna e verdadeiramente eclesiástica! Haverá alguma coisa que não tenha o Senhor depositado em nossas mãos depois que nelas depositou seu Filho único, coeterno, igual a Ele? Pôs em minhas mãos todos os tesouros, os seus sacramentos e suas graças. Colocou as almas, o que Ele tem de mais caro, as almas que no seu Amor as preferiu à sua própria vida e as remiu com o seu sangue. Pôs na minha mão o céu com o poder de abri-lo ou de fechá-lo aos outros. Poderia eu ser tão ingrato e, depois de tantos favores e de tanto amor, pecar contra Ele? Hei de lhe faltar com o respeito? Manchar um corpo que é dele? Desonrar esta dignidade, esta vida consagrada ao seu serviço?'

8. Esta santidade de vida, sobre a qual ainda é bom insistir, é objeto de grandes e incessantes preocupações da parte da Igreja. Uma ideia presidiu à instituição dos seminários: os que aí se educam, para ingressarem nas fileiras do clero, não há dúvida, hão de ser instruídos nas letras e nas ciências, mas é mister que sejam ao mesmo tempo bem formados, desde os mais tenros anos, em tudo quanto diz respeito à piedade. E a Igreja, com solicitude maternal, aproveita depois a ocasião em que faz os candidatos subir degrau por degrau, e em largos intervalos, para então prodigalizar em cada etapa as exortações à santidade. É tão doce recordá-las! Desde que nos alistamos na milícia sagrada, quis ela que tomássemos este compromisso formal: Dominus pars hereditatis meae et calicis mei, tu es qui restitues hereditatem meam mihi (Sl 15, 5). Por estas palavras, diz São Jerônimo, o clérigo é adversário de que todo aquele que é a parte do Senhor ou de quem o Senhor é a herança, deve ser tal que possua o Senhor e seja possuído por Ele (Ep. III, ad Nepotianum, n. 5). 

9. No momento em que nos eleva ao subdiaconato, que linguagem tão grave é a que nos dirige! Iterum atque iterum considerare debetis attente quod onus hodie ultro appetitis... quod si hunc ordinem susceperitis, amplius non licebit a proposito resilire, sed Deo... perpetuo famulari et castitatem, illo adjuvante, servare oportebit. E para terminar: Si usque nunc fuistis tardi ad Ecclesiam, amodo debetis esse assidui; si usque nunc somnolenti, amodo vigiles... Si usque nunc inhonesti, amodo casti... videte cujus ministerium vobis traditur! Depois, na ocasião em que recebemos o diaconato, a Igreja eleva a Deus por nós esta oração pela boca do bispo: Abundet in eis totius forma virtutis, auctoritas modesta, pudor constans, innocentiae puritas, et spiritualis observantia disciplinae. In moribus eorum praecepta tua futgeant, ut suae castitatis exemplo imitationem sanctam plebs acquirat. O que, porém, mais nos comove ainda são as advertências que ela nos dirige no momento em que nos confere a ordenação sacerdotal: Cum magno timore ad tantum gradum ascendendum est, ac providendum ut caelestis sapientia, probi mores et diuturna justitiae observatio ad id electos commendet... Sit odor vitae vestrae delectamentum Ecclesiae Christi, ut praedicatione ac exemplo aedificetis domum, idest familiam DeiDe todas estas lembranças a mais premente está nesta gravíssima recomendação: Imitamini quod tractatis - a que corresponde o preceito de São Paulo - ut exhibeamus omnem hominem perfectum in Christo Jesu

10. Tal é o pensamento da Igreja sobre a vida do padre. E ninguém poderia se admirar da unanimidade dos santos Padres e Doutores todos, quando ensinam sobre este ponto uma doutrina que talvez alguns queiram tachar de exagerada. Entretanto, se a examinarmos seriamente, veremos que nada existe de mais verdadeiro nem de mais justo. Eis em resumo o seu pensamento: entre o padre e um homem honesto qualquer, deve haver tanta diferença como do céu para a terra. E o padre deve ter cuidado para que a sua virtude seja isenta de toda censura, não só em matéria grave, como também em matéria leve. O Concilio de Trento nada mais faz senão recordar o julgamento destas autoridades tão veneráveis, quando adverte os clérigos a que fujam até das mais leves faltas, levia etiam delida, quae in ipsis maxima essent (Sess. XXII, de reform. c. I). E se, com efeito, não são, em si, graves, há de se levar em conta a qualidade de quem as comete, pois a eles, bem mais do que aos edifícios de nossos templos, se aplica esta palavra: Domum tuam decet sanctitudo (Sl 92, 5). 

Exigências da Santidade Sacerdotal

11. Examinemos, pois, em que consiste esta santidade, cuja falta no padre seria a maior desgraça. A ignorância ou erro nesta matéria seria gravemente perigoso. Há os que pensam e até ensinam que o mérito do padre está em se dedicar inteiramente ao serviço do próximo. E, por isto, não dão importância às virtudes que contribuem para a santificação pessoal, que chamam por isto mesmo virtudes passivas. E julgam que devem consagrar todas as suas forças e todo zelo em cultivar e praticar as virtudes ativas. Esta doutrina é singularmente errônea e perniciosa. É dela que nosso predecessor de feliz memória escreveu com muita sabedoria: 'Pretender que as virtudes cristãs variem com as épocas é esquecer as palavras do Apóstolo: Quos praescivit et praedestinavit conformes fieri imaginis Filii sui (Rm 8, 29). O mestre e modelo de toda santidade é Cristo. E quem quiser entrar na mansão dos bem-aventurados, por ele se deve regular. Ora, Cristo não muda no decorrer dos séculos. É o mesmo ontem e hoje, heri et hodie; ipse et in saecula (Hb 13, 8). Aos homens de todas as idades dirige-se esta palavra: Discite a me quia mitis sum et humilis corde. Por nós e para todos os tempos Cristo se mostrou obediente até à morte: factus obediens usque ad mortem (Fp 2, 8). Vale para todos os tempos a sentença do Apóstolo: Qui sunt Christi, carnem suam crucifixerunt cum vitiis et concupiscentiis (Gl 5, 24)' [Epist. Testem benevolentiae, ao arcebispo de Baltimore, 22 de Janeiro de 1899]. 

12. Tais ensinamentos, não há dúvida, dirigem-se a todos os fiéis, mas imediatamente aos padres. A eles se aplica especialmente o que o nosso predecessor, no seu zelo apostólico, acrescentava: 'Prouvera a Deus, tivéssemos agora maior número de homens fiéis à prática das virtudes, à imitação dos santos dos séculos passados. E pela humanidade, obediência e abstinência, fossem todos poderosos em obras e em palavras para maior proveito da religião e da civilização'. Convém notar aqui que este pontífice tão prudente fez, e com direito, menção especial da renúncia, que, na linguagem evangélica, se chama abnegação de si mesmo. Porque, sobretudo nesta virtude, caríssimos, é que estão a força, o poder e a eficácia de todo ministério sacerdotal. E do negligenciá-la provém tudo o que no modo de proceder do padre costuma ofender os olhos e as almas dos fiéis. Com efeito, se há padres que não se envergonham de trabalhar com as vistas só no interesse e no lucro; que se metem em negócios seculares e procuram ser os primeiros sempre, desprezando os outros; que se apegam à carne e ao sangue e querem agradar aos homens e contam com as palavras persuasivas da sabedoria humana; é porque se esqueceram do preceito de Cristo e recusaram a condição por Ele imposta: si quis vult post me venire abneget semetipsum (Mt 16, 24). 

13. Embora já tivéssemos insistido muito nas exortações precedentes, ainda o fazemos para vos dizer que, afinal de contas, o padre não só por ele tem a obrigação de levar uma vida santa, mas porque é o operário que Cristo veio contratar para a sua vinha: exiit conducere in vineam suam (Mt 20, 1). A ele cabe arrancar a má erva, semear a que é útil e vigiar para que o homem inimigo não venha semear o joio e a má semente. Por isto deve o padre ter cuidado para que o zelo mal-entendido da sua perfeição interior não o leve a omitir os deveres do ministério em serviço do próximo. E assim sendo, como pastor por exemplo, deve pregar a palavra de Deus, ouvir confissões, assistir os enfermos, sobretudo os moribundos, dar instrução religiosa aos ignorantes, consolar os aflitos, reconduzir ao rebanho as ovelhas desgarradas, enfim, imitar em tudo a Cristo, qui pertransiit benefaciendo et sanando omnes oppressos a diabolo (At 10, 38). 

14. E isto fazendo, tenha sempre em mente a grave advertência de São Paulo: neque qui plantai est aliquid neque qui rigat; sed qui incrementam dat, Deus (1 Cor 3, 7). Pode acontecer que tenhamos de semear entre lágrimas. Que sejamos obrigados a dispender um trabalho enorme, para garantir o que semeamos. A germinação, entretanto, e a produção da colheita esperada só dependem de Deus e do auxílio onipotente. Outra consideração de grande importância: os homens não passam de instrumentos de que Deus se serve para a salvação das almas. É preciso, então, que sejam eles aptos para que Deus os possa manejar. E por que há de ser assim? Poderá alguém pensar que nossas qualidades naturais ou adquiridas fazem com que Deus seja levado a aproveitar o nosso concurso para a extensão da sua glória? Absolutamente! Quae stulta sunt mundi elegit Deus ut confundat sapientes: et infirma mundi elegit Deus ut confundat fortia: et ignobilia mundi, et contemptibilia elegit Deus, et ea quae non sunt, ut ea quae sunt destrueret (1 Cor 1, 27-28). 

15. Só uma coisa, na verdade, é capaz de realizar a união do homem com Deus; só uma coisa faz o homem agradável a Deus e o torna ministro menos indigno da sua misericórdia: a santidade de vida e de costumes. Se faltar ao padre esta santidade, que outra coisa não é senão a ciência supereminente de Jesus Cristo, falta-lhe tudo. Porque, sem a santidade, a própria ciência (e envidamos esforços para desenvolvê-la entre o clero), as habilidades e talentos, por mais úteis que possam ser à Igreja e aos indivíduos, quase sempre têm sido uma fonte de lamentáveis prejuízos. Ao contrário, suponhamos um homem profundamente santo. Fosse o último de todos. Quantas obras maravilhosas não pode empreender e realizar para a salvação do povo de Deus! Testemunhos não faltam e muitos neste ponto, e em todos os tempos. Prova brilhante a temos e não longe de nós, em João Batista Vianney, esse modelo de pastor de almas a quem tivemos a felicidade de conferir as honras da beatificação. Unicamente a santidade nos pode fazer tais como o exige a nossa vocação, isto é, homens crucificados para o mundo e para os quais o mundo está crucificado; homens, cujo modo de proceder se inspira numa vida nova, e que, segundo o conselho do Apóstolo, se mostram verdadeiros ministros de Deus in laboribus, in vigiliis, in jejuniis, in castitate, in scientia, in longanimitate, in suavitate, in Spiritu Sancto, in caritate non fida, in verbo veritatis (2 Cor 6, 5-), homens que só aspiram aos bens celestes e trabalham com todas as forças para conduzir os outros aos mesmos. 

II. MEIOS DE ADQUIRIR A SANTIDADE 

Oração

16. Ninguém o ignora, a santidade de vida é fruto de nossa vontade, enquanto a esta a graça divina ajuda e fortifica. Eis por que Deus providencia para que jamais nos falte o auxílio da graça, com a condição de a querermos. Este auxílio, antes de tudo, o asseguramos pela nossa aplicação à oração. Entre a oração e a santidade é tão necessária a dependência, que uma não pode existir, de maneira alguma, sem a outra. São João Crisóstomo diz e com uma verdade absoluta: 'a meu ver, é simplesmente impossível viver na virtude sem o auxílio da oração' (De Precatione, orat. I). Santo Agostinho com muita penetração conclui: 'A ciência da virtude é a ciência da oração: Vere novit recte vivere qui recte novit orare (Hom. IV ex 50). Estes ensinamentos, o próprio Cristo no-los inculcou firmemente por exortações frequentes e sobretudo pelo exemplo. Com efeito, para orar retirava-se no deserto ou subia as montanhas. Passava as noites todo absorvido na oração. Ia ao templo frequentemente. E ainda mesmo em presença das multidões que se acotovelavam em torno dele, orava publicamente com os olhos levantados para o céu. Finalmente, pregado na cruz e já nas dores da morte, dirigiu ainda, com soluços e lágrimas, súplicas ao Pai.

17. Estejamos absolutamente certos de que o padre que quiser ser fiel à dignidade do seu meio e da sua missão, deve ter em grande estima a oração e nela se aplicar! Muitas vezes, no entanto, é de lamentar-se que rezem mais por hábito que com fervor e recitem com tanto relaxamento o ofício nas horas de obrigação ou se contentem apenas com algumas breves orações, sem que mais pensem em consagrar a Deus outro momento do dia em piedosas orações. O padre, mais ainda que qualquer outro, deve obedecer ao preceito de Cristo: Oportet semper orare (Lc 18, 1), preceito que São Paulo instantemente recomendava: Orationi instate vigilantes in ea in gratiarum actione (Cl 4, 2); sine intermissione orate (1 Tes 5, 17). E para a alma que deseja a sua própria santificação e a salvação do próximo, quantas ocasiões durante o dia precisa para se elevar a Deus. As angústias íntimas, a violência e obstinação das tentações, a falta de virtude, o insucesso ou a esterilidade das obras, os pecados e negligências sem número, enfim, o temor dos juízos de Deus, tudo, tudo, nos excita vivamente a chorar na presença do Senhor, e, depois de obtido o socorro divino, enriquecermo-nos com os méritos tão fáceis. E não só por nossa causa devemos chorar. Em face deste dilúvio de crimes que dia a dia se espalha e se estende por toda parte, a nós, sobretudo, cabe implorar e obter a divina clemência. A nós importa rogar instantemente a Cristo que, na sua imensa bondade, nos prodigalize todas as suas graças no Admirável Sacramento: Parce, Domine, parce populo tuo!

18. De grande importância é reservar cada dia um tempo determinado para a meditação das verdades eternas. Nenhum padre poderá se dispensar disto sem incorrer na grave censura de negligente e sem prejuízo para sua alma. O Abade São Bernardo, escrevendo ao Papa Eugênio III, que fora seu discípulo e veio a ser Pontífice de Roma, o advertia franca e insistentemente que nunca poderia deixar passar um dia sem meditar as coisas divinas, fossem quais fossem a multiplicidade e importância das ocupações inerentes ao supremo apostolado. E justificava esta recomendação enumerando com muita sabedoria as vantagens deste exercício: 'A meditação purifica a fonte donde jorra, isto é, o espírito. Regula as afeições, dirige os atos, corrige os exageros, governa os costumes, põe honestidade e ordem na vida: enfim, ela dá a ciência das coisas divinas e também das coisas humanas. Determina ela o que é confuso, coíbe o que está relaxado, ajunta o que está disperso, perscruta o oculto, procura o que é verdadeiro, examina o que se parece com a verdade, descobre o que é disfarçado e enganador. Prevê e regula o que se há de fazer, reconsidera o que está feito, a fim de que nada fique no espírito que não seja corrigido ou tenha necessidade de correção. Ela é que nos dias maus pressente a adversidade e a torna facilmente suportável, quando é mister sofrê-la. São dois bens dos quais o primeiro pertence à força, outro à prudência' (De Consid., 1. 1, c. 7). Estes serviços que a meditação está destinada a nos prestar, nos servem de lição e aviso: mostram-nos quanto ela nos é, sobre todos os pontos de vista, não só útil, para a salvação, mas até necessária.

19. Porque, embora sejam veneráveis e augustas as funções do sacerdócio, acontece, entretanto, que ao exercê-las os que as desempenham vão perdendo, com o tempo, algo daquele religioso respeito que elas exigem. E a diminuição gradual de seu fervor os coloca facilmente no plano inclinado da tibieza e no desgosto das coisas mais santas. E a isto ajuntai a necessidade que tem o padre de passar a vida, por assim dizer, no meio de uma sociedade má (in medio nationis pravae); de sorte que, muitas vezes, até exercendo a caridade pastoral, há de temer as insídias ocultas da infernal serpente. É para se admirar que até almas religiosas se manchem ao contato com a poeira do mundo? Daí a grave necessidade que tem o padre de, cada dia, voltar à contemplação das verdades eternas, a fim de que, por esta renovação constante de vigor, fortifique o espírito e a vontade contra as seduções do mundo.

20. E além do mais, é mister que tenha o padre uma certa facilidade para se elevar e tender para as coisas do céu, porque é seu dever rigoroso prová-las para as ensinar e inculcar aos outros. E de tal modo deve colocar a sua vida acima dos interesses humanos, que todas as obras do seu santo ministério se façam segundo Deus e sob a inspiração e direção da fé. Ora, o que sobretudo estabelece e sustenta o padre neste estado de alma, nesta união, por assim dizer, natural com Deus, é a prática tutelar da meditação cotidiana. Para todo homem que reflete, é isto de tal modo evidente que inútil é insistir mais.

21. Para se achar a lamentável confirmação destas verdades, certamente basta observar a vida dos padres que pouca importância dão ou se aborrecem da meditação das coisas eternas. Vede: são homens nos quais o sensus Christi, este preciosíssimo bem, já quase desapareceu. Sempre voltados para as coisas da terra, seguem as suas vaidades, andam à cata de frivolidades, são espíritos superficiais. Desempenham as funções sagradas com relaxamento, com frieza e até mesmo indignamente. Quando acabaram outrora de receber a unção sacerdotal, preparavam-se cuidadosamente para a recitação do Ofício Divino. Não queriam parecer estes homens que tentam a Deus. Escolhiam para a oração o tempo mais propício e o lugar mais recolhido. Procuravam penetrar o sentido das palavras divinas. Com o salmista, louvavam, gemiam, alegravam-se e expandiam sua alma na oração. Como eles mudaram depois disto! Ademais, quase nada conservam daquela piedade viva que lhes inspiravam os mistérios divinos. Como os tabernáculos outrora lhe eram queridos! Era uma festa para seus corações acharem-se à mesa do Senhor e a ele atraírem um número cada vez maior de almas piedosas. Antes da missa, como sentiam necessidade de pureza! Que orações não lhes saíam da alma fervorosa! Durante a celebração da missa, que respeito na observância integral destas belas e augustas cerimônias! Que expansões afetuosas na ação de graças! E como no povo felizmente se difundia o bom odor de Cristo! Rememoramini, recordai-vos, filhos diletos, rememoramini... pristinos dies! (Hb 10, 32). Então, a vossa alma se abrasava, nutrida com o ardor da santa meditação. 

22. Os que sentem muito pesado este recogitare corde (Jr 12, 11) ou o negligenciam, já não podem mais dissimular a pobreza que disto resulta para a sua alma. Costumam se desculpar, pretextando que se lançaram sem reserva no turbilhão do ministério, a fim de prestarem toda espécie de serviços ao próximo. Erro lamentável! Pela falta do hábito de conversar com Deus, quando eles falam de Deus aos homens ou lhes dão conselhos para a prática da vida cristã, falta-lhes o sopro divino, e a palavra evangélica neles parece quase morta. Sua voz tão elogiada, por mais habilidade e eloquência que tenha, não será jamais esta voz do Bom Pastor que as ovelhas escutam com proveito. Ressoa e se perde no vácuo. E muitas vezes é um mau exemplo que importa em desdouro para a religião e detrimento para os bons. E isto vale também para os outros campos da sua atividade. Aqui, também, nenhum resultado sério, durável, porque falta o orvalho celeste, que só a oração do que se humilha, oratio humiliantis se (Ecli 25, 2) atrai com abundância.

23. E aqui não podemos deixar de lamentar amargamente os que, levados por novidades perniciosas, ousam sustentar uma opinião oposta à nossa, considerando como perdido o tempo consagrado à oração e à meditação. Cegueira funesta! Prouvera Deus se examinassem eles seriamente e com lealdade, e reconhecessem afinal até onde chegarão com esta negligência e desprezo da oração, porque daí é que procedem o orgulho e a obstinação, daí estes frutos amargos que nosso coração paterno nem quer lembrar e até quisera absolutamente esquecer. Queira Deus ouvir os nossos votos e lançar sobre os transviados um olhar misericordioso e neles difundir com abundância o espírito da graça e da oração, para que chorem os seus erros, e voltem ao caminho que cometeram o erro de abandonar, e nele andem com mais prudência! Como outrora o Apóstolo (Fp 1, 8), também nós tomamos Deus por testemunha do quanto os amamos no Coração de Jesus Cristo! 

24. Neles, portanto, e em todos vós, filhos caríssimos, fique profundamente gravada a nossa exortação, que outra não é senão a de Nosso Senhor Jesus Cristo: Videte, vigilate et orate (Mc 13, 83). Que cada um empregue todo o seu esforço e todo zelo em meditar piedosamente e, com grande confiança, repita muitas vezes: Domine, doce nos orare (Lc 11, 1). Há uma razão especial e de grande importância, que nos deve levar à meditação: é o grande poder de conselho e de virtude que nela encontramos e que nos é tão útil para a boa direção das almas, obra de todas a mais difícil. Vem a propósito, e merece bem ser lembrada aqui, essa alocução pastoral de São Carlos: 'Compreendei, meus irmãos, que nada é tão necessário aos eclesiásticos como a oração mental. Deve ela preceder, acompanhar e seguir a todas as nossas ações. Psallam - diz o Profeta - et intelligam (Sl 100, 2). Cantarei e entenderei. Administrais os sacramentos? Meditai no que estais fazendo. Celebrais a Missa? Meditai no que ofereceis. Recitais o Ofício? Meditai no que dizeis e a quem falais. Dirigis as almas? Pensai no sangue que as purificou' (Ex orationib. ad clerum). É, pois, com muita razão que a Igreja nos convida a repetir muitas vezes estes pensamentos de Davi: Beatas vir qui in lege Domini meditatur; voluntas ejus permanet die ac nocte; omnia quaecumque faciet semper prosperabuntur. Acrescentamos, para excitar o nosso zelo, um derradeiro motivo e que vale bem por todos os demais. Se o padre é chamado um outro Cristo, e o é verdadeiramente em virtude do poder que lhe é comunicado, não deve, pois, em todo o seu modo de proceder ser e parecer conforme ao seu modelo? Summum igitur studium nostrum sit in vita Jesu Christi meditari (Imit. de Cr., I, 1).

Leitura Espiritual

25. Há de juntar o padre à meditação cotidiana das coisas divinas a leitura dos livros piedosos, sobretudo dos que foram divinamente inspirados. É o que São Paulo ordenava a Timóteo: Attende lectioni (1 Tm 4, 13). Assim também São Jerônimo instruía a Nepociano sobre a vida sacerdotal e lhe inculcava: 'Nunca deixes a leitura dos Livros Santos'. E dava a seguinte razão: 'Aprende o que deves ensinar, adquire a verdadeira doutrina que tem sido ensinada, para que estejas em condições de exortar segundo a sã doutrina e refutar os que a contradizem'. Quanto aproveitam, em verdade, os padres constantemente fiéis a esta prática! Com que sabor pregam o Cristo! Em vez de lisonjas ao espírito e adulações ao coração dos seus ouvintes, como os arrastam a se tornarem melhores e os fazem levantar os desejos para as coisas do céu! 

26. E por um outro motivo, ainda, caros filhos, para vosso interesse pessoal, o preceito do mesmo São Jerônimo: Semper in manu tua sacra sit lectio pode vos ser de resultados fecundos. Quem não sabe a influência enorme, que, sobre o espírito de um amigo, exerce uma voz amiga que o adverte francamente, o ajuda e aconselha, o repreende, o levanta e o afasta do erro? Beatus qui invenit amicum verum (Ecli 25, 12)... qui autem invenit illum, invenit thesaurum (Ib 6, 14). Ora, devemos pôr os livros piedosos no número dos nossos amigos verdadeiramente fiéis, porque nos chamam eles severamente ao cumprimento de nossos deveres e das prescrições da verdadeira disciplina. Despertam no coração as vozes do céu já adormecidas. Sacodem o torpor de nossas boas resoluções. Não nos deixam adormecer numa tranquilidade enganadora. Reprovam nossas afeições secretas quando são elas pouco recomendáveis. Descobrem aos imprudentes os perigos que os esperam muitas vezes. Prestam-nos todos estes bons ofícios e com uma tão discreta benevolência, que não somente amigos, mas ainda vêm a ser os melhores dentre os melhores amigos. Temo-los quando os quisermos, sempre ao nosso lado, prontos a cada momento para nos ajudarem nas necessidades de nossas almas. Deles a voz nunca é dura, os conselhos sempre desinteressados, e a palavra nunca tímida ou mentirosa. 

27. Inúmeros e notáveis exemplos demonstram a eficácia muito salutar dos livros piedosos. Entretanto ela aparece sobremaneira no exemplo da conversão de Santo Agostinho, porque foi para ele o ponto de partida dos seus méritos imensos na Igreja: 'Toma e lê, toma e lê. Eu tomei (as Epístolas do Apóstolo São Paulo) abri e li em silêncio... Dissiparam-se todas as trevas de minhas dúvidas, como se a luz que dá a paz invadisse o meu espírito' (Conf. L. VIII, c. 12). Ao contrário, porém, ai! frequentemente em nossos dias, quantos membros do clero se deixam pouco a pouco invadir pelas trevas da dúvida e seguem os caminhos perversos do século! A causa é sobretudo esta: preferem aos livros piedosos e divinos toda sorte de outros livros, e uma multidão de jornais que espalham em profusão o erro subtil e a corrupção. Vigiai-vos, filhos caríssimos. Não vos fieis na vossa idade adulta ou avançada. Não abuseis, com a esperança ilusória de que podereis servir melhor ao bem comum. Ficai nos limites traçados pelas leis da Igreja ou reconhecidos pela prudência e amor que deveis a vós mesmos. Porque, quem já uma vez deixou o seu espírito se impregnar destes venenos, raramente escapará das consequências desastrosas do mal, cujo germe a ele já se incorporou. 

Exame de Consciência 

28. Ainda mais. O padre tirará maior proveito das leituras piedosas e da meditação das coisas celestes, se procurar seriamente descobrir até que ponto faz ele passar à prática da vida as suas leituras e meditações. Nada melhor, a esse respeito, que o conselho de São João Crisóstomo, principalmente aos padres: 'Cada dia, ao se aproximar a noite, antes que chegue o sono, faze o exame da tua consciência, pede que te preste contas e, se tiveste maus desejos durante o dia, fere-os, arranca-os e faze deles penitência' (Expos, in Ps 4, n. 8). Este exercício é muito oportuno e fecundo para a virtude cristã. Os mais sábios mestres da vida espiritual o provam excelentemente e com as melhores razões e com suas exortações. Há na regra de São Bernardo uma passagem que nos comprazemos em citar: Como um investigador diligente da pureza da alma, submete tua vida a um exame cotidiano; indaga com cuidado no que ganhaste ou no que perdeste; aplica-te em conhecer-te a ti mesmo; põe sob teus olhos todas as tuas faltas; coloca-te em face de ti mesmo como em face de outrem e, neste estado, bate no teu peito (Meditationes piissimae, c. V, De quotidiano sui ipsius examine).

29. Seria uma vergonha, se, na verdade, neste ponto se verificasse a palavra de Cristo: os filhos do século são mais prudentes que os filhos da luz: Filii hujus saeculi, prudentiores filii lucis (Lc 16, 8). Vede, pois, com que dedicação se ocupam eles dos seus negócios. Como dão balanço em suas despesas e receitas! Com que atenção, com que rigor fazem suas contas! Como se afligem com as perdas e tratam vivamente de repará-las! Quanto a nós, que, talvez, nos abrasamos no desejo de chegar às honras, aumentar nosso patrimônio, alcançar unicamente o renome e a glória pela nossa ciência, tratamos com moleza e desgosto o mais importante e o mais difícil de todos os negócios, isto é: a aquisição da santidade. Apenas de tempos em tempos nos recolhemos para examinar a nossa alma, e esta é quase como uma terra inculta, como a vinha do preguiçoso da qual está escrito: Per agrum hominis pigri transivi, et per vineam viri stulti; et ecce totam repleverant urticae et operierunt superficiem ejus spinae; et maceria lapidum destructa erat (Pv 24, 30-31). 

30. Esta situação se agrava pelo fato de que os maus exemplos, que põem sempre em perigo a própria virtude do padre, vão se multiplicando em torno dele; de sorte que deve ele redobrar cada dia a vigilância e os generosos esforços. Ora, está provado pela experiência que todo aquele que se entrega frequentemente a um exame severo dos seus pensamentos, das suas palavras e ações, tem mais força para detestar e fugir do mal, e ao mesmo tempo mais zelo e ardor para fazer o bem. Outro fato de experiência é este: quem recusa comparecer diante deste tribunal, onde a justiça se assenta como juiz e onde a consciência ao mesmo tempo é acusada e a acusadora, se expõe geralmente a inconveniências e danos. Em vão procurais nele a circunspecção, tão apreciada num cristão e que lhe faz evitar as mais pequeninas faltas; a delicadeza de alma que convém de modo todo particular ao padre, e que se assusta com a mais leve ofensa de Deus. Ainda mais. Esta incúria, este abandono de si mesmo, vem a tal ponto se agravar que lhe faz até mesmo negligenciar o Sacramento da Penitência, pelo qual Cristo, da maneira mais eficaz, supriu, na sua misericórdia insigne, a fraqueza humana.

31. Não se poderia negar e é para deplorar amargamente: Não é raro que um homem encontre acentos inflamados para afastar os outros do pecado, e não tema, entretanto, para si coisa semelhante, e se endureça nas suas faltas. Exorta os outros a que não se demorem em se purificar pelo rito sacramental das manchas da alma, enquanto ele mesmo neste ponto é de uma tal indolência, que espera meses inteiros para o fazer. Derrama óleo e vinho salutares nas chagas de outros, e fica ele mesmo ferido à margem do caminho sem se preocupar em fazer um apelo à mão de um confrade que o socorra e que está, por assim dizer, ao seu lado! Ai como daí já resultaram e ainda hoje resultam, aqui e acolá, indignidades diante de Deus e da Igreja, males para o povo cristão e o sacerdócio! 

32. E nós, caríssimos filhos, ao pensar, por dever de consciência, nestas coisas tão tristes, temos a alma toda cheia de amargura e nossa voz se expande gemendo. Infeliz do padre que desconhece a sua posição e que mancha por suas infidelidades o nome do Deus Santo, a quem ele deve ser consagrado! Nada mais triste que a corrupção dos melhores: 'Sublime é a dignidade dos padres, mas profunda é a sua queda, se pecam; alegramo-nos com a sua elevação, mas trememos pela sua queda. Há menos alegria por ter sido elevado, que tristeza por ter caído das alturas' (S. Hierom. in Ezech., 1. XXIII, c. 44, v. 30). Infeliz, pois, do padre que, esquecido de si mesmo, perde o zelo da oração, despreza o alimento das leituras piedosas, que jamais se volta para si mesmo para escutar a voz acusadora da sua consciência! Nem as feridas de sua alma que se vão envenenando, nem os gemidos da Madre Igreja, tocarão o desgraçado, até que o firam estas ameaças terríveis: Excaeca cor populi hujus et aures ejus aggrava; et oculos ejus claude: ne forte videat oculis suis, et auribus suis audiat et corde suo intelligat, et convertatur, et sanem eum (Is 6, 10). 

33. Que o Deus rico em misericórdia afaste de vós, filhos caríssimos, este augúrio triste. Sim, o pedimos a este Deus que vê o nosso coração e que o sabe isento de amargura para quem quer que seja, mas cheio de um amor de pastor e de pai para com todos. Quae est enim nostra spes, aut gaudium, aut corona gloriae? nonne vos ante Dominum nostrum Jesum Christum? (1 Tes 2, 19). 

34. Mas todos, onde quer que estejais, vedes que dias maus a Igreja deve hoje viver por um oculto desígnio de Deus! Considerai e meditai como é santo o dever a que estais obrigados, pois, honrados com tão alta dignidade, deveis esforçar-vos para estar sempre com a Igreja e assisti-la nas suas provações e sofrimentos. O clero, hoje mais do que nunca, tem necessidade de uma virtude não medíocre, de uma virtude absolutamente exemplar, ardente, ativa, inteiramente disposta, enfim, a fazer grandes coisas e a sofrer muito por Cristo. E nada há que peçamos tanto a Deus e que desejemos com mais ardor a todos e a cada um de vós.

35. Em vós, portanto, brilhe com resplendor inalterável a castidade, que é mais belo ornamento de nossa ordem sacerdotal. Pela beleza desta virtude, o padre se torna semelhante aos anjos e aparece também mais digno da veneração do povo cristão e produz frutos santos em maior abundância. Fortifique-se e sempre se desenvolva entre os padres o respeito e obediência que prometeram solenemente àqueles que o Espírito Santo estabeleceu para governar a Igreja. Sobretudo, que de coração e de espírito se apeguem pelos laços de fidelidade, cada dia mais estreitados, às obrigações de respeito e de submissão que, com toda justiça, se devem à Santa Sé Apostólica. Reine em todos vós uma caridade que não busca os próprios interesses, a fim de que reprimais os aguilhões da inveja, a ambição e a cobiça que seduzem os homens. Vossos esforços, numa fraterna emulação, sejam para o acréscimo da glória divina. 

36. A grande multidão dos doentes, cegos, coxos, paralíticos, multidão tão infeliz, espera o benefício de vossa caridade. Esperam-nos sobretudo estas legiões da juventude, esperança querida da sociedade e da religião, hoje assediada por todos os lados pela corrupção e a mentira. Aplicai-vos com ardor não só a ensinar o catecismo. Mas, de novo, instantemente e mais do que nunca vo-lo recomendamos, procurai merecer de todos a confiança por todos os meios que vos sugerirem o vosso zelo e a vossa prudência. Assistir, proteger, curar, pacificar; em tudo isto não tenhais outro desejo, outra sede, senão ganhar ou conservar as almas para Jesus Cristo. Oh! com que ardor, com que atividade e com que audácia os inimigos trabalham e se agitam para perdição de uma imensa multidão de almas!

37. Sobretudo é por esta caridade tão grande que a Igreja Católica goza de renome e se gloria de seu clero. Este clero anuncia a paz cristã, leva a civilização aos povos selvagens. Por seu apostolado laborioso, não raro fecundado com a efusão de sangue, se estende cada vez o reinado de Cristo entre estes e a fé cristã brilha e resplandece em novos triunfos. E, caríssimos filhos, se aos serviços prestados pela vossa caridade correspondem com a inveja, a injúria e a calúnia, como acontece muitas vezes, não vos deixeis abater pela tristeza, não vos canseis de fazer o bem (2 Tes 2, 13). Tende diante dos olhos estas falanges de homens tão notáveis pelo seu número como pelos méritos, e que, à imitação dos apóstolos, no meio dos mais cruéis opróbrios suportados pelo nome de Cristo, ibant gaudentes, maledicti benedicebant, porque somos nós filhos e irmãos dos santos cujos nomes resplandecem no livro da vida e dos quais celebra a Igreja os méritos: non inferamus crimen gloriae nostrae (1 Mac 9, 10). 

III. MEIOS DE RENOVAÇÃO ESPIRITUAL 

38. Quando o espírito da graça sacerdotal for renovado e desenvolvido em todos os membros do clero, as outras reformas, sejam quais forem, que projetamos, serão, com o auxílio de Deus, muito mais eficazes. Por isto pareceu-nos bem acrescentar ao que já dissemos atrás alguns conselhos práticos sobre os meios de conservar e sustentar esta graça. 

Retiro Anual

39. Em primeiro lugar, há um exercício conhecido e recomendado por todos, mas que nem todos igualmente praticam: é o retiro, durante o qual a alma se entrega aos exercícios chamados espirituais. Deve ser feito quanto possível cada ano ou privadamente ou, o que seria preferível, em comum. Este segundo modo ordinariamente é mais fecundo em resultados. Tudo, segundo as prescrições episcopais. Nós mesmos já fizemos sentir as vantagens desta prática quando tomamos, na mesma ordem de ideias, certas decisões relativas à disciplina do clero romano. 

Retiro Mensal 

40. Não será de menor proveito para as almas, que um retiro deste gênero se faça cada mês durante algumas horas, em particular ou em comum. Sentimo-nos felizes em atestar que este uso já foi introduzido em diversos lugares pela iniciativa dos bispos, e que, muitas vezes, este mesmo exercício foi presidido por eles.

Associações Sacerdotais 

41. Temos também em mente recomendar as associações em que os padres, como é conveniente a irmãos, se unam por laços particularmente bem estreitos, com a aprovação e sob a direção da autoridade episcopal. Convém, certamente, que se agrupem em associações, já para se garantirem mutuamente os recursos na desgraça, já para a defesa da integridade da sua honra e das suas funções contra os artifícios do inimigo, já por qualquer outra razão semelhante. Entretanto, importa bem mais que se associem, tendo em vista o desenvolvimento e cultura da ciência sagrada, visando sobretudo aplicar-se com um fervor cada vez maior aos deveres da sua santa vocação, e melhor trabalhar pela salvação das almas, pondo em comum ideias e esforços. Os anais da Igreja atestam que nas épocas em que os padres daqui e dali viviam em comum, este gênero de associações foi mais fecundo e de mais felizes resultados. Por que não se poderia restabelecer em nossos dias algo de semelhante, levando em conta a diversidade dos países e das funções? Não se terá pois o direito de esperar para a felicidade da Igreja as mesmas vantagens de outrora? 

42. Efetivamente não faltam associações deste gênero, munidas da aprovação dos bispos. São tanto mais úteis quanto nelas se entra logo no começo do sacerdócio. Nós mesmos, no tempo de nosso episcopado, encorajamos uma delas que a experiência nos mostrou ser de muita vantagem, e ainda agora continuaremos a cercá-la bem como todas as outras semelhantes de toda nossa benevolência. Estes esteios da piedade sacerdotal e outros do mesmo gênero que uma prudência esclarecida sugerir aos bispos, segundo as circunstâncias, apreciai-as, filhos caríssimos, e utilizai-as de tal maneira que, cada vez mais, digne ambuletis vocatione qua vocati estis (Ef 4,1). Honrareis o vosso ministério e cumprireis a vontade de Deus, que é a vossa santificação. 

CONCLUSÃO

43. Tal é, efetivamente, o objeto dos nossos pensamentos e solicitudes. E eis por que, com os olhos levantados para o céu, renovamos muitas vezes por todo o clero a mesma súplica de Jesus Cristo: Pai Santo, santificai-os: Pater Sancte, sanctifica eos (Jo 17, 11-17). Alegramo-nos ao pensar que um grande número de fiéis, de todas as condições, se preocupam vivamente com o vosso bem e o da Igreja e se unem a nós nesta oração. E também grato nos é saber que há muitas almas generosas, não somente nos claustros, mas ainda mesmo na vida do século, que, nesta mesma intenção, não cessam de se oferecer a Deus como vítimas santas. Que o Altíssimo aceite como um perfume suave as suas orações puras e sublimes e não deixe de ouvir as nossas mais humildes súplicas. Que, na sua bondade e Providência, venha em nosso auxílio, nós o pedimos e, que do Coração Sacratíssimo de seu Amado Filho, venham sobre todo o clero tesouros de graças, de caridade e de todas as virtudes. 

44. Enfim, muito grato nos é, caros filhos, exprimir-vos de todo coração nosso reconhecimento pelos votos de felicidade que nos oferecestes no ardor de vossa piedade filial, pelo quinquagésimo aniversário de nosso sacerdócio, votos que, retribuindo, também por vós os formulamos. Queremos confiá-los à Augusta Virgem Maria, Rainha dos Apóstolos, para que se realizem com maior plenitude. Ela, na verdade, mostrou, pelo exemplo aos apóstolos, as felizes primícias do sacerdócio, e como deviam perseverar unânimes na oração até que fossem revestidos da virtude do Alto, E esta virtude certamente ela lhes obteve por suas orações em maior abundância. E ao mesmo tempo a incrementou e fortificou por seus conselhos, a fim de assegurar maior fecundidade aos seus trabalhos. E, finalmente, desejamos, filhos caríssimos, que a paz de Cristo reine em vossos corações com a alegria do Espírito Santo. E com estes votos vos damos a todos, de todo coração, a bênção apostólica. 

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

GLÓRIAS DE MARIA - NOSSA SENHORA DE LOURDES

Em Lourdes, Nossa Senhora apareceu a Bernadette Soubirous, para confirmar o dogma de sua imaculada conceição e para ratificar os valores incomensuráveis da oração, da penitência e da verdadeira vida de devoção a Deus. Nas palavras da própria vidente, eis o relato da primeira de um total de 18 aparições:

'A primeira vez que fui à gruta, era quinta-feira, 11 de fevereiro [quinta-feira anterior à quarta-feira de cinzas]. Após o jantar, saí para recolher galhos secos [a lenha para aquecer a casa simples de sua família havia acabado, durante um período de tempo particularmente frio] com a minha irmã Toinette e uma vizinha chamada Jeanne Abadie. Após procurarmos lenha em outros lugares sem sucesso, nos deparamos com o canal do moinho. Perguntei, então a elas se queriam ver onde a água do canal se encontrava com o Gave [rio Gave]. Elas me responderam que sim. Seguimos o canal do moinho até que nos encontramos diante de uma gruta [gruta de Massabielle], não podendo mais prosseguir.

Jeanne e minha irmã tiraram rapidamente os seus tamancos e atravessaram o fluxo que não era intenso. Após atravessarem o canal, começaram a esfregar os pés, dizendo que a água estava gelada. Isso aumentou a minha preocupação [Bernadette sofria de asma e não podia se expor à friagem]. Chegou a pedir a Jeanne [maior e mais forte que ela] para levá-la nos ombros, no que não foi atendida: 'Se você não consegue vir, fique aí então!' Apanhando galhos secos ali perto, as duas se afastaram e eu as perdi de vista. Tentei ainda buscar uma passagem mais embaixo sem ter que tirar os sapatos, colocando pedras no canal, mas não consegui passar. 

(gruta à época das aparições; em primeiro plano, o canal que Bernadette não conseguiu atravessar)

Então, regressei diante da gruta e comecei a tirar os sapatos, para fazer a travessia como elas fizeram. Tinha acabado de tirar a primeira meia, quando ouvi um barulho como de uma ventania. Então girei a cabeça para um lado e para o outro e não vi nada, nem nenhum movimento das folhas das árvores. Continuei a tirar os sapatos e nisso ouvi, mais uma vez, o mesmo barulho. Olhando em direção à gruta, vi um arbusto - um único arbusto encravado nas aberturas da rocha - balançando fortemente. Quase no mesmo tempo, saiu do interior da gruta uma nuvem de cor dourada e, logo depois, uma senhora, jovem e muito bonita, como eu nunca tinha visto antes, veio e se colocou na entrada da abertura, suspensa sobre uma roseira [mais tarde, instada a descrever a aparição, Bernadette a descreveu assim: 'Ela tinha a aparência de uma jovem de dezesseis ou dezessete anos e estava vestida com uma túnica branca, um véu também branco, uma cinta azul e os pés desnudos e ornados com uma rosa dourada em cada pé, ambos encobertos pelas últimas dobras do seu manto. Ela segurava na mão direita  um rosário de contas brancas com uma corrente de ouro brilhando como as duas rosas em seus pés]. 


Sorrindo para mim, fez um sinal para que eu me aproximasse. Eu pensei estar sendo vítima de uma ilusão. Esfreguei os olhos; porém, ao olhar outra vez, ela continuava ali e, sorrindo, me deu a entender que eu não estava enganada. Tirei o meu terço do bolso e, caindo de joelhos, tentei rezá-lo. Queria fazer o sinal da cruz, mas não conseguia sequer levar a mão à testa. A senhora fez com a cabeça um sinal de aprovação e, tomando o seu próprio terço, começou a oração e, somente então, pude fazer o mesmo. Assim que fiz o sinal da cruz, desapareceu o grande medo que sentia e fiquei tranquila. Deixou-me rezar o terço sozinha, somente acompanhando as contas com os dedos, em silêncio; somente rezando oralmente o Gloria  comigo, ao final de cada dezena. Ao final da recitação do terço, a senhora voltou ao interior da gruta e a nuvem dourada desapareceu com ela.

Assim que a senhora desapareceu, Jeanne e a minha irmã regressaram, encontrando-me de joelhos no mesmo lugar onde tinham me deixado, fazendo troça da minha covardia. Mergulhei os pés no canal e a água estava bem aquecida e elas aparentemente não se importaram com isso. Perguntei às duas se não haviam visto algo na gruta: 'Não'. Me disseram, então: 'Por que nos pergunta isso?' 'Ó, por nada, por nada', respondi tentando mostrar indiferença. Pensava sem parar em tudo o que tinha acabado de ver. No retorno à casa, diante da grande insistência delas, contei-lhes tudo o que acontecera, pedindo que não dissessem nada a ninguém.


À noite, em casa, durante a oração familiar, fiquei tão perturbada que comecei a chorar. Minha mãe me perguntou qual era o problema. Minha irmã começou a responder por mim e eu fui obrigada a contar os acontecimentos daquele dia. 'São ilusões' - respondeu minha mãe - 'tire essas coisas da cabeça e não volte mais à Massabielle'. Fui dormir, mas eu não conseguia tirar da memória o rosto e o sorriso doce da senhora. Era impossível acreditar que eu podia estar enganada'.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

GALERIA DE ARTE SACRA (XXXI)

 A Virgem com um Peixe (Rafael Sanzio)

'A Virgem com um Peixe' é uma das mais famosas pinturas de Rafael Sanzio (nascido em Urbino em 1483 e falecido em Roma, em 1520), da sua série com pinturas da Virgem Maria e o Menino Jesus. Sentada em um trono, a Virgem segura o Menino Jesus no colo. À esquerda, encontra-se o Arcanjo Rafael que apresenta à Virgem o jovem Tobias, ao qual guiara previamente até o Rio Tigre e que segura o peixe com cujo fel haverá de curar a cegueira do seu pai (Tb 11, 13). À direita, São Jerônimo, vestido de cardeal, tem a Vulgata (Bíblia que traduziu para o latim) aberta nas mãos, aparentemente na passagem do Livro de Tobias. 

O Livro de Tobias é um dos livros deuterocanônicos do Antigo Testamento, possuindo 14 capítulos e 297 versículos, e foi considerado canônico pelo Concílio de Cartago em 397 e reconfirmado por todos os demais concílios. Entre os principais ensinamentos do livro, destacam-se a descoberta da providência divina na vida cotidiana, a fidelidade à vontade de Deus, a prática da esmola, o amor aos pais, a oração e o jejum, a integridade do matrimônio e o respeito pelos mortos. A ênfase é dada ao fato de que o homem justo não vive sozinho: mas está sempre acompanhado pela graça de Deus.

A Verdade das primícias da fé é sempre a mesma, unindo o Antigo (Tobias) e o Novo Testamento (São Jerônimo e a tradução da Bíblia), perpassando por Cristo (que nos redimiu pelo batismo - símbolo do peixe - e nos legou o primado de 'pescadores de homens') e a sua Mãe, medianeira de todas as graças. O Anjo do Senhor revelou-se a Tobias e este foi agraciado com as bênçãos dos Céus depois de muito sofrimento; Jesus se revela por Maria como caminho, verdade e vida para todos os homens, com as mesmas promessas: chega-se ao Céu por meio da superação das vicissitudes, sofrimentos e realidades tremendas dessa vida.

A pintura (215cm x 158cm) data de 1513-1514 e foi encomendada por Geronimo del Doce para a capela de Santa Rosa de Lima no Mosteiro de San Domenico em Nápoles e, mais de cem anos depois, transferida pelo vice-rei espanhol de Nápoles para a Espanha, encontrando-se atualmente no Museu Nacional do Prado, em Madri. São conhecidos dois desenhos prévios da obra, disponíveis atualmente em Florença na Itália e em Edimburgh, na Escócia.

(Esboço da obra - giz vermelho sobre papel branco - Florença / Itália)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

08 DE FEVEREIRO - SANTA JOSEFINA BAKHITA


A primeira santa africana nasceu numa aldeia próxima a Dardur, no Sudão, por volta de 1869 – ela mesma não sabia a data precisa. Raptada por traficantes de escravos aos nove anos de idade, foi trancada inicialmente em um quarto escuro e miserável, depois espancada barbaramente e vendida cinco vezes nos mercados do Sudão, padecendo todo tipo de humilhação e selvageria nas mãos dos seus senhores. Este martírio atroz desde tenra idade roubou-lhe o próprio nome; o nome Bakhita - 'afortunada' em árabe -  foi-lhe dado pelos próprios traficantes.

Mas o pior dos tormentos ainda estava por vir. Comprada por um general turco, foi submetida a sofrimentos inimagináveis a serviço da mãe e da esposa deste homem, que incluíram dezenas de tatuagens no seu corpo abertas por navalha e que lhe legaram 144 cicatrizes e um leve defeito ao caminhar. A descrição destes tormentos foi assim exposta nas palavras da santa:

'Uma mulher habilidosa nesta arte cruel [tatuagem] veio à casa principal... nossa patroa colocou-se atrás de nós, com o chicote nas mãos. A mulher trazia uma vasilha com farinha branca, uma vasilha com sal e uma navalha. Quando terminou de desenhar com a farinha, a mulher pegou da navalha e começou a fazer cortes seguindo o padrão desenhado. O sal foi aplicado em cada ferida... Meu rosto foi poupado, mas 6 desenhos foram feitos em meus seios, e mais 60 em minha barriga e braços. Pensei que fosse morrer, principalmente quando o sal era aplicado nas feridas... foi por milagre de Deus que não morri. Ele havia me destinado para coisas melhores'.

Em 1882, com o retorno do general à Turquia, Bakhita foi comprada pelo cônsul italiano Calixto Legnani que a tratou como serviçal e não como escrava, sem humilhações e castigos. Diante de uma revolução nacionalista no Sudão, o cônsul retornou à itália levando Bakhita consigo, que foi cedida então a amigos do cônsul, o casal Michieli, em cuja casa começou a morar na região do Veneto, tendo por encargo especial os cuidados da filha do casal, a pequena Mimina. Foi nesta família católica que Bakhita conheceu a revelação de Jesus Cristo, sua flagelação e sua morte de cruz. O caminho de Bakhita estava traçado: da conversão à santidade pela via da caridade e do perdão. 

Em 9 de janeiro de 1890, foi batizada e crismada com o nome de Josefina e recebeu a Sagrada Comunhão das mãos do Patriarca de Veneza. Pouco depois, solicitou seu ingresso no Instituto das Filhas da Caridade, fundado por Santa Madalena de Canossa. Em 8 de dezembro de 1896, em Verona, pronunciou os votos finais de religiosa da congregação. A partir de então, por mais de 50 anos, sua vida foi um ato constante de amor a Deus e à caridade para com todos. Além de operosa nos serviços simples como na sacristia e na portaria do convento, realizou várias viagens através da Itália para difundir a sua missão: a libertação dada a ela pelo encontro com Cristo deveria ser compartilhada com o maior número possível de pessoas; a redenção que experimentara não podia ser guardada como posse, mas levada como sinal de esperança para todos.


Em 8 de fevereiro de 1947, após muito sofrimento de doenças como bronquites e pneumonias, a Irmã Josefina faleceu no convento canossiano de Schio, com a idade de 78 anos. Na hora da sua morte, seu semblante pareceu iluminar-se e exclamou com alegria suas últimas palavras 'Como estou contente! Nossa Senhora, Nossa Senhora!' A Irmã Moretta - a Irmã Morena - como era carinhosamente conhecida entregava serenamente a sua alma ao Senhor, rodeada pela comunidade em pranto e em oração. Seu corpo foi enterrado originalmente na capela de uma família de Schio, para um sepultamento definitivo posterior no Templo da Sagrada Família. Quando isso foi finalmente preparado, verificou-se que o corpo de Bakhita estava incorrupto, sendo o mesmo sepultado então sob o altar da igreja do mesmo convento. Em 17 de maio de 1992 foi beatificada e, em 1º de outubro de 2000, foi elevada à honra dos altares e declarada santa pelo Papa João Paulo II.

 

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (128/130)


128. OLHAI PARA O ALTO

Santo Afonso, um dos homens mais santos e sábios, gostava de recordar o seguinte fato. Caminhavam por montes e vales uns homens ricos e amigos dos prazeres. Eram caçadores? Não sabemos; o certo é que se internaram pela floresta adentro e, no meio dela, entre as árvores frondosas, encontraram uma choupana. Aproximaram-se e dentro dela viram um anacoreta, cujo rosto era o retrato de uma alma que gozava de paz.
➖ Irmão - perguntaram aqueles senhores - o que fazes aqui?
➖ Irmãos - respondeu o ermitão - vim procurar a felicidade.
➖ A felicidade? Nós gozamos da abundância das riquezas; corremos de diversão em diversão e, contudo, não pudemos achar a felicidade; e tu a procuraste aqui?
➖ Aqui a procurei e aqui a encontrei.
➖ Encontraste mesmo a felicidade?
➖ Sim; olhai por esta janelinha da minha choupana. Por aí se vê a minha felicidade.

Os caçadores precipitaram-se para a janelinha e olharam ansiosos. Em seguida, mal-humorados, disseram:
➖ Irmão, enganaste-nos como um velhaco.
➖ Nunca, nunca - replicou o santo solitário; é porque não olhastes bem; tornai a olhar. Garanto que por aí se vê a minha felicidade.

Pela segunda vez chegaram-se os homens à janelinha, olharam por todos os lados e, agastados, disseram:
➖ Irmão, pela segunda vez nos enganaste. És um impostor.
E o solitário, com aquele ar de paz que nunca o abandonava, responde:
➖ Irmãos, não olhais bem. Asseguro-vos que não vos engano: olhai melhor, pois garanto que daí se vê a minha felicidade.

Os homens, desejosos de descobrir a felicidade, olharam, tornaram a olhar para baixo, para cima, para os lados e, por fim, disseram:
➖ Irmão, não nos enganes mais. Por aqui não se vê nada; apenas um pedacinho do céu...
➖ Isso, isso - exclamou radiante da alegria o ermitão - isso, isso. Aí está a minha felicidade. Quando tenho algum sofrimento, quando a dor me atormenta, contemplo esse pedacinho de céu e digo a mim mesmo: tudo passa; dentro em pouco estarei no céu e a alegria enche a minha alma.

Esse solitário era Santo Antão. Havia ido para o deserto em busca da felicidade. Passou os longos anos de sua vida em orações e penitências. Olhava para o alto e via um pedacinho do céu! Teve lutas terríveis com o espírito do mal; não via o fim daquela guerra; mas olhava para o alto, e via um pedacinho do céu!

Sofreu fome, calor, sede; a carne pedia comodidade, o cilício atormentava-o, molestava-o a pobreza do hábito. Olhava para o alto e via um pedacinho do céu! Passaram-se os dias e passaram-se os anos. Olhava sempre para o alto, e o pedacinho do céu parecia-lhe cada vez mais próximo, cada vez maior. Afinal, um dia não viu mais a terra, não viu mais o deserto. Ante seus olhos surgia uma cidade fantástica. Aquilo era a terra da promissão, era a pátria de Deus, era o que tantas vezes vira de longe: o céu! o céu! E a alma de Santo Antão, que vivera para Deus, para a oração, para a penitência, para a santidade, para o céu, entrava gloriosa no paraíso...

129. A MENINA QUE REZAVA PELOS AVIADORES

Do alto do púlpito, um dos mais famosos oradores contemporâneos da Espanha dirigia a sua palavra eloquente a um seleto auditório. Era na festa de Nossa Senhora de Loreto e ele falava aos aviadores que a haviam escolhido por padroeira. Falou-lhes assim:

'Aviadores de minha pátria, ainda vos lembrais? Era nos primeiros dias do nosso movimento contra o comunismo. Vós, todas as manhãs, em vossos aviões de bombardeio, em formação impecável, voáveis sobre as terras de Castela e, ousados e destemidos, internando-vos nas zonas montanhosas de Biscaia, íeis romper com vossas bombas o cinturão de ferro de Bilbao.

O que, porém, não sabeis é que ali, nas margens do Ebro, todos os dias, guardando o seu rebanho, estava uma menina que não passaria dos onze anos. Ao ver-vos ficava emocionada: ajoelhava-se, e com as mãos postas, rezava a Nossa Senhora por vós para que triunfásseis sobre os inimigos de Deus e da Espanha, e para que não sofrêsseis nenhuma desgraça. E quando em vossos aviões desaparecíeis ao longe, a menina, sempre de joelhos, levava os dedos da mão direita à boca, imprimia neles um beijo e o mandava a vós, heróis da pátria e soldados da fé.

Os aviões tinham já desaparecido e a menina continuava ainda de joelhos rezando por vós. Graças a Deus estais com vida. Não deveis - quem sabe? - a vossa vida às orações daquele anjo de onze anos que guardava seu rebanho de ovelhas em terras de Castela?'

E aqueles frios aviadores, acostumados a desafiar a morte e a permanecer tranquilos e calmos no meio dos tremendos perigos dos ares, choravam como crianças.

130. CALVÁRIO DE UMA MÃE

Quereis um exemplo de paciência e resignação de uma mãe sublime e heroica? Foi sempre boa aquela senhora. Nascera na pobreza e, nos trabalhos dos campos, passara os anos da juventude. Quando estava para completar vinte e cinco anos, casou-se com um moço bom como ela, e, como ela, lavrador de pobres campos, que eram toda a sua fazenda.

Tiveram cinco filhos: três meninos e duas meninas. Estavam todos ainda na infância, quando lhes morreu o pai. A pobre viúva pôs a sua confiança naquele Senhor que nos livros sagrados se chama a si mesmo 'consolo e amparo das viúvas'. E não esperou em vão. Trabalhou muito a pobre mãe; mas afinal teve a consolação de ver que seus filhos cresciam fortes e bons. Naquela casa não faltava o pão ganho com o trabalho honesto e comido em paz e na graça de Deus.

O mais velho dos filhos disse um dia à mãe: 'Mãe, vou a N. para ver se ganho algum dinheiro para nós'. Foi a N. e, poucos dias depois de lá chegar, morreu. Disse o segundo filho: 'Mãe eu não vou a N.; vou à capital à procura de uma colocação para que não tenhas de trabalhar tanto'. E foi à capital; mas apenas lá chegou, pereceu num incêndio.

O terceiro filho disse um dia à mãe: 'Mãe, eu não vou nem a N. e nem à capital; ficarei em casa cultivando nossos pobres campos. Deus jamais nos negará um pedaço de pão'. E um dia subiu a um morro em companhia de um amigo; e este, ao experimentar uma arma, sem querer desfechou-lhe um tiro e o matou; e o pobre ali ficou no meio do caminho estendido e banhado no próprio sangue.

A filha mais velha, derramando lágrimas sobre os finados irmãos, disse à mãe: 'Mãe, que pecado teremos cometido para que Deus nos prove tanto? Vou para o convento'. E para o convento foi e, oito dias, depois a levavam ao cemitério.

Por fim, a última filha, que contaria uns dezesseis anos, disse à mãe: 'Mãe, não chores; enquanto eu viver, não te faltará um pedaço de pão. Vou para a cidade aprender costura e corte'. E foi para a cidade; mas, no primeiro motim comunista, uma bala perdida atingiu a sua cabeça e ela caiu morta.

A mãe não tinha mais lágrimas nos olhos. Inclinava a cabeça, chorava e rezava. Por fim, ficou doente, teve de meter-se na cama, onde, durante anos, dores horríveis não lhe deram descanso. Contudo, a Providência divina não a desamparou: nunca faltaram almas boas que cuidassem dela. Um missionário, que por ali pregava, foi um dia visitá-la. Sentou-se à cabeceira do carte e ela contou-lhe a sua trágica história. Quando terminou, chorava e soluçava.
➖ Filha - disse-lhe o Padre Missionário - estás agora conformada com a vontade de Deus?
➖ Padre - respondeu - já sou velha; já completei oitenta e quatro anos. Oitenta e quatro anos, Padre, dizendo muitas vezes ao dia: 'Faça-se a vossa vontade, assim na terra como no céu'. Virou a cabeça e fixou o crucifixo pendurado à parede. Era Ele a sua única esperança.

Aí tendes uma mulher simples, uma mulher camponesa, que aprendeu, na sua fé e no seu amor a Deus, a lição dificílima da paciência e da conformidade com as penas e as dores desta vida.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

domingo, 6 de fevereiro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Vou cantar-Vos ante os anjos, ó Senhor, e ante Vosso templo vou prostrar-me' (Sl 137)

 06/02/2022 - Quinto Domingo do Tempo Comum

11. 'AVANÇA PARA ÁGUAS MAIS PROFUNDAS!' 


'Avança para águas mais profundas' (Lc 5,4). A orientação imperativa de Jesus aos pescadores, às margens do Lago de Genesaré, é um clamor que reverbera a todos os homens de todos os tempos. Que os filhos de Deus manifestem, além dos horizontes estreitos de sua religiosidade comum, a vocação de autênticos apóstolos, movidos na plenitude do amor e da generosidade de corações verdadeiramente cristãos. Não nos basta sermos artífices da graça de Deus em nós; neste quinto domingo do Tempo Comum, Jesus nos convoca a sermos missionários das graças de Deus para a salvação de muitos.

Após uma noite de duro trabalho totalmente infrutífero, os pescadores exaustos sabiam e tinham razões mais do que suficientes para julgar que o pedido de Jesus seria inútil. Com toda a experiência acumulada de anos de pesca naquelas águas, da pescaria mais adequada sob a luz noturna, voltar às águas à luz da manhã parecia um despropósito completo. Pedro, no entanto, abre mão do seu conhecimento especializado e do seu juízo dos fatos, em obediência e em generosa confiança às palavras do Mestre: 'Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos. Mas, em atenção à tua palavra, vou lançar as redes' (Lc 5, 5). Naquele pescador de lida bruta, Jesus divisou a alma do verdadeiro apóstolo! E o milagre dos peixes antecipou o milagre da salvação dos homens.

Quanto trabalho e esforço em vão dispensaram tantos pescadores naquela noite sem resultados... E, certamente, eles eram os mais preparados e os mais qualificados para a tarefa. Não são assim as práticas daqueles que se vêem em suas obras? Que partilham com os outros sua diligência e disponibilidade como senhores dos seus dons? E, por mais que julguemos tais obras meritórias do ponto de vista das concepções humanas, são apenas trabalho e esforço vão de pescadores qualificados e disponíveis. Porque foi o próprio Cristo quem nos alertou: 'Sem mim, nada podeis fazer' (Jo, 15,5). E nada é nada mesmo. Sem a reparação infinita por Jesus Cristo, qualquer atitude nossa, por maior que seja sua relevância e excepcionalidade, torna-se meramente figurativa e essencialmente insignificante, porque moldada na superficialidade dos valores humanos.

Eis porque se impõe o avanço confiante às águas mais profundas, para ir ao encontro de tantos que estão perdidos no submundo das drogas, do aborto e do hedonismo, nas trevas do pecado, submersos no emaranhado de tantas consciências afastadas de Deus, na miséria do ateísmo e da indiferença religiosa. Em águas profundas, com Cristo, por Cristo e em Cristo, um nosso ato de generosidade confiante é capaz de produzir prodígios, um nosso ato de amor tem o poder de operar milagres! E, feitos apóstolos dos nossos dias, como Pedro e os homens à beira do Lago de Genesaré, poderemos ser também pescadores de homens! E, como eles, seremos aqueles outros que 'levaram as barcas para a margem, deixaram tudo e seguiram a Jesus' (Lc 5,11).