sábado, 28 de setembro de 2019

SOBRE A CONFISSÃO

(adaptação de ilustração original publicada no blog Senza Pagare)

'O pecado não é vergonhoso senão quando o fazemos mas, sendo convertido em confissão e penitência, é honroso e saudável. A contrição e a Confissão são tão formosas e de tal fragrância que apagam a fealdade e desvanecem o mau cheiro do pecado'.
(São Francisco de Sales)

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

BREVIÁRIO DIGITAL - ILUSTRAÇÕES DE DORÉ (II)

PARTE II (Gn 12 - 27)

[Abraão a caminho da Terra de Canaã (Gn 12)]

 [Abraão com os Três Anjos (Gn 18)]

 [Fuga da família de Lot de Sodoma (Gn 19)]

[A expulsão de Hagar e Ismael por Abraão (Gn 21A)]

 [Hagar e Ismael no deserto (Gn 21B)]

  [Abraão submetido ao teste de fé (Gn 22)]

  [O sepultamento de Sara (Gn 23)]

  [Eliezer e Rebeca no poço (Gn 24A)]

  [O encontro de Isaac e Rebeca (Gn 24B)]

 [Isaac abençoa Jacó (Gn 27)]

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

SOBRE A DOR

A criação foi obra de amor. O bem tende a comunicar-se. Deus, o ser infinitamente bom, quis espalhar em torno de si algo de sua bondade; infinitamente rico, quis distribuir as suas riquezas; infinitamente feliz, quis tornar felizes a outros. As criaturas, que lhe saíram das mãos divinas, criaturas angélicas e criaturas humanas, foram logo cumuladas por Ele de benefícios; uma doce felicidade, isenta de dor, foi o quinhão dos anjos e dos homens durante o período de provação. Em troca, o Senhor pede às criaturas que O amem; Ele as amou, em primeiro lugar, com amor gratuito, ipse prior dilexit nos; a justiça, a honra divina, exigem que elas lhe paguem amor com amor.

Ai de nós! em vez de amor e reconhecimento, Deus só recebe, de grande parte das criaturas, ingratidão e pecado. O amor divino é um fogo devorador que não pode permanecer sem efeito; se não provocar no coração da altura um incêndio de amor, que lhe seja alegria e felicidade, tornar-se-á um fogo vingador ao serviço de sua justiça. Essa justiça, portanto, sucede ao amor desprezado, enquanto os castigos sucedem aos benefícios.

Os anjos rebeldes foram os primeiros a fazer tão triste experiência; em seguida, os homens, após o pecado, viram dissipar-se a alegria e surgir a dor. Tanto nos anjos rebeldes, como nos condenados, a justiça divina defronta o ódio e a obstinação; longe de aceitar a expiação exigida pela honra divina, erguem-se contra Deus, no orgulho e na revolta; então a pena que atraem sobre si torna-se numa tortura que lhes excita o rancor e aumenta o ódio. Na terra, ao contrário, o homem pode reconhecer sua falta, detestá-la e submeter-se ao castigo; a pena assume então um caráter inteiramente diverso: é a dor resignada e amorosa, amorosa, porque o amor que os benefícios de Deus não puderam produzir, a dor o fará brotar do coração.

Tal é, pois, o escopo da dor, reparar a honra de Deus, punir o pecado, destruir todas as consequentes corrupções. O fogo terrestre purifica, devorando tudo quanto é corruptível e separando as escórias dos elementos incorruptíveis. Edificamos, diz o apóstolo, firmados em Cristo, um edifício em que se mesclam ouro e prata, pedras preciosas e lenha, feno e palha; o fogo porá esse vício à prova, revelando tudo quanto continha de puro e sólido. É o fogo da justiça, o fogo da dor, que produz semelhante efeito; no inferno, no purgatório, o fogo vingador atinge tudo quanto está maculado; não atua, porém, sobre o que se conservou puro.

A dor é, pois, filha do pecado. O Deus de toda bondade que poderia não a ter excluído a princípio do plano divino, só a introduziu, de fato, no mundo, em seguida ao pecado. Antes da queda original, o homem não sofria a tirania das paixões e só devia esperar alegrias do convívio com sua companheira e as criaturas só lhe proporcionavam prazeres, enquanto elevavam o seu coração a Deus pelo reconhecimento.

Mas o pecado desmoronou toda a ordem da natureza. Para colher, o homem deve primeiro semear no labor e na fadiga; deve ganhar o pão com o suor de seu rosto. As rosas que o encantam estão cercadas de espinhos, aptos a ferir quem as quiser colher. Cada criatura parece dizer em sua linguagem muda: Que uso pretendes fazer de mim? Fui encarregada, pelo nosso comum Criador, de te por à prova. Ou então: sou de tal natureza que o só fato de me encontrares em teu caminho, será penoso para ti. Ou ainda: se te sou útil, obrigo-te a esforços árduos e, não raras vezes, sou rebelde a esses esforços e te imponho cruéis privações. 

Mais acerbos ainda que os sofrimentos exteriores são os sofrimentos íntimos; angústias do coração dilacerado pelas separações, pelos lutos, pela visão dos males de nossos irmãos; dores da alma causadas pelos nossos insucessos, pelas nossas próprias misérias, pelos nossos defeitos e pecados. Esses sofrimentos visam todos corrigir e reparar as consequências do pecado; são uma força destruidora e é isto que os torna tão pungentes. Há na alma humana, maculada pelo pecado original, tendências egoístas, apegos maus que se desenvolveram e se fortaleceram com as faltas individuais; são outros tantos obstáculos que impedem e tolhem as santas inclinações depositadas em nós pela graça. O fogo da dor visa devorar essas impurezas; Deus que consumir em nós o que lhe ofende a pureza do olhar e, sobre as cinzas de nossos defeitos, fazer germinar belas virtudes.

Quão viva e penetrante é por vezes a dor da alma cheia de imperfeições, mas que procura purificar-se! Dir-se-ia uma fogueira que consome muitas achas e, em cujo montão de cinzas, esperamos encontrar ocultas algumas moedas de ouro. Levará muito tempo para consumir todo esse lenho que, verde ainda, gemerá ao torcer-se e ao lançar ondas de fumaça; e só se deixará destruir depois de opor viva resistência às chamas. Assim também as almas imperfeitas têm tanto afeto às coisas deste mundo e tanto apego à sua opinião e à sua vontade, têm um amor próprio tão desenvolvido que, tudo quanto tende a consumir esses defeitos, isto é, as privações, as contradições, as humilhações mais insignificantes, tudo lhes parece extremamente penoso. E tal sofrimento, que perdurará enquanto não fizerem reais progressos na renúncia, é necessário às almas imperfeitas.

A sensualidade será destruída pela dor física; a avareza, pela perda ou diminuição dos bens; o orgulho, dos desprezos, pelas críticas, ou pelas calúnias; o egoísmo, pelo abandono, pela indiferença do próximo. Quando ao contrário, a alma está livre de tais apegos, cheia de amor de Deus e disposta a tudo aceitar de suas mãos, aquilo que outrora lhe fazia sofrer, agora a deixa indiferente; suas dores são menos acerbas; o fogo devorador tem nela pouco alimento; encontrando apenas um lenho seco ou já meio queimado, acaba de consumi-lo em silêncio. Isso não significa que essa alma purificada esteja isenta de toda dor, mas essa dor é geralmente suscitada por causas mais nobres e assim sofrerá pelas ofensas feitas a Deus. Ademais, a essas penas une-se uma paz cheia de doçura e uma resignação total que alivia e que torna amáveis as próprias dores.

(Excertos da obra 'O Caminho que leva a Deus', do cônego Augusto Saudreau)

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'O Senhor, de modo divino, também te ensinou a bondade do Pai que sabe dar coisas boas, para que ao Bom peças tudo o que é bom. E aconselhou a orar com instância e repetidamente; não em prece fastidiosa pela duração, mas continuada pela frequência. Futilidades afogam, as mais das vezes, a longa oração e, na muitas vezes interrompida, facilmente se insinua o descuido. Exorto ainda a que, quando lhe pedes perdão para ti, saibas que será concedido sobretudo aos outros, na medida em que apoiares o pedido com a voz das tuas obras. O Apóstolo também ensina que se deve orar sem ira nem contestação, para que não se turve, não se altere tua súplica. E ainda ensina que se há de rezar em todo lugar (1Tm 2,8), pois disse o Salvador: 'Entra em teu quarto' (Mt 6,6). Não entendas, porém, um quarto cercado de paredes, onde teu corpo fica fechado, mas o quarto que existe dentro de ti, onde são encerrados teus pensamentos, onde moram teus sentimentos. Este quarto de tua oração em toda parte está contigo, em toda parte é secreto, sem outro juiz que não somente Deus'.

(Santo Ambrósio)

terça-feira, 24 de setembro de 2019

VERSUS: DISCERNIMENTO DOS ESPÍRITOS


OS SINAIS DO ESPÍRITO MAU

Ao contrário do espírito divino, o espírito diabólico conduz à exaltação do orgulho e, em seguida, lança a alma na confusão e no desespero, assim como ocorreu ao demônio, que pecou por orgulho e segue no desespero eterno e no ódio de Deus.

Para conhecer este espírito mal, é preciso portanto considerar sua influência no que diz respeito à mortificação, à humildade e à obediência e, em seguida, no que diz respeito às virtudes teologais. O espírito demoníaco não nos afasta sempre da mortificação; ele difere, assim, do espírito de natureza e, por vezes, até o contraria e conduz a uma mortificação exterior exagerada, visível a todos, que entretém o orgulho espiritual e enfraquece a saúde. Mas não inclina à mortificação interior da imaginação, do coração, da vontade própria e do julgamento próprio, ainda que estimule, por vezes, inspirando escrúpulos quanto à pequenos detalhes e laxismo quanto às coisas de maior importância, como os principais deveres de estado, por exemplo. Ele inspira assim a hipocrisia : 'jejuo duas vezes na semana' (Lc 18, 12).

Este espírito não nos conduz à humildade, mas nos engana pouco a pouco, para que nós nos estimemos mais do que devíamos, mais do que aos outros, com o objetivo de nos fazer rezar ao modo do fariseu: 'Graças te dou, ó Deus, porque não sou como os outros homens: ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano' (Lc 18, 11). Este orgulho espiritual é acompanhado de uma falsa humildade, do fato de confessarmos um pecado pessoal, para que os outros não nos acusem de uma falta ainda mais grave e nos considerem humildes. O espírito mal faz ainda com que confundamos a humildade com a timidez, que é filha do orgulho e teme o desprezo. Do mesmo modo, não engendra a obediência, mas a desobediência ou o espírito servil, conforme as circunstâncias.

Quanto à fé, o espírito mau não inclina nosso espírito a considerar no Evangelho o que é ao mesmo tempo mais simples e mais profundo, por exemplo, não nos faz dizer com atenção e devoção a oração dominical, meditar os mistérios do santo rosário, mas apenas nos interessa ao que é extraordinário e favorece a ostentação, como quando disse ao Salvador: 'Se és filho de Deus, lança-te daqui abaixo, porque está escrito que Deus mandou aos seus anjos que te guardem, e que te sustenham em suas mãos, para não magoares o teu pé em nenhuma pedra'. Ao que Jesus respondeu: 'Também foi dito: Não tentarás o Senhor teu Deus'.

O espírito mau, do mesmo modo, nos incita ao que é contrário à nossa vocação; por exemplo, leva um monge cartuxo a querer evangelizar os infiéis ou um missionário à vida solitária dos cartuxos. Ou ainda, no que diz respeito à devoção, inspira a rezar à revelia da liturgia, por exemplo, rezar a sexta-feira santa como se fosse Natal ou vice-versa. Do mesmo modo, nas coisas da fé, conduz a novidades dogmáticas, como, por exemplo, no tempo do modernismo, a ler os livros dos protestantes liberais sob pretexto de adaptar nossa fé ao pensamento moderno. 

Ou, ao contrário, se nossa inclinação natural está em sentido oposto, nos incita a um arcaísmo imoderado, para provocar o conflito entre católicos ; assim, levava os israelistas recém convertidos ao Cristianismo a voltar à lei mosaica; é contra esta tentação que foi escrita a Epístola aos Hebreus, onde está dito (Hb 3, 13): 'Exortai-vos uns aos outros todos os dias, para que nenhum de vós se endureça, seduzido pelo pecado'. Do mesmo modo, o espírito mau altera os dogmas: por exemplo, o da predestinação, quando surge no calvinismo; então se realiza o adágio: corruptio optimi pessima. A corrupção do melhor é a pior das coisas. 

O demônio conhece muito bem este provérbio e trabalha para a perversão da fé sobrenatural. Ele sabe, com efeito, que não há nada pior, nada de mais perigoso que o cristianismo falseado, que conserva uma certa aparência de verdade, e ele age, por vezes, como um falso Cristo antes de aparecer como Anticristo. Tal como existiu no pensamento de Lutero e Calvino (não nos protestantes de boa fé), o protestantismo é então alguma coisa de pior e de mais perigoso que o naturalismo, pois é mais sedutor e abusa ainda mais da sagrada Escritura. É verdade que aceita a Escritura, mas para um uso depravado.

O naturalismo prático e, em seguida, teórico, provém muitas vezes do espírito da natureza decaído, mas a pervertíssima corrupção dos dogmas sobrenaturais, como no calvinismo, vem do espírito do demônio. Alterar a fé divina é, portanto, podemos dizê-lo, utilizar-se de uma arma de grande precisão, não contra os inimigos, mas contra os próprios irmãos e contra si próprio – é um fratricídio e um suicídio. Assim se explica, em grande parte, a história da pseudo-Reforma quanto ao seu espírito, ainda que muitos protestantes estejam de boa fé, pelo fato de ignorarem o verdadeiro espírito do protestantismo.

Quanto à esperança, o espírito mau trabalha para fazer com que nossa esperança degenere em presunção; por exemplo, quer-se chegar rápido demais à santidade e não pouco a pouco subindo os degraus necessários, nem pela via da humildade e nem da abnegação. Ele inspira igualmente uma certa impaciência quanto à nós mesmos, uma vez que nossos defeitos parecem grandes demais. Por consequência, produz em nós a indignação no lugar da contrição, uma indignação que é filha do orgulho e contrária à contrição. Ora, a presunção conduz ao desespero, quando se verifica a impossibilidade de chegar por suas próprias forças ao fim visado: o bem árduo parece então quase inacessível – é a desesperança.

Quanto à caridade, o espírito mau favorece os simulacros que são como um falso diamante; assim, conforme as inclinações variadas e opostas de nossa natureza, ele inclina algumas a esta falsa caridade para com o próximo que é o sentimentalismo, com uma indulgência excessiva sob pretexto de misericórdia e de generosidade. Em outros engendra um falso zelo: queremos sempre corrigir os outros, mas não a nós mesmos e, vendo a aresta no olho de nosso irmão, não vemos a trave no nosso olho.

De tudo isto resulta o contrário da paz, ou seja, a discórdia. O homem conduzido por este espírito não pode suportar a contradição, não vê senão a si mesmo em sua ofuscante personalidade, e se coloca, inconscientemente, acima de todos os demais, como uma estátua sobre o seu pedestal. Se este homem cai em um pecado grave e manifesto que não pode esconder, ele se deixará vencer pela confusão, indignação, desespero e, enfim, pela cegueira do espírito e pelo endurecimento do coração. Antes desta falta, o demônio escondia as consequências desencorajantes do pecado e inspirava o relaxamento; agora, após a falta, fala da justiça inexorável de Deus, para nos conduzir ao desespero. É assim que forma as almas à sua imagem: após o arrebatamento do orgulho, vem o desespero.

Portanto, se alguém tem uma grande devoção sensível na oração, mas sai dela com maior amor próprio, julgando-se acima dos outros, sem obediência aos superiores, desprovido de simplicidade no que toca seu diretor espiritual, isto é sinal da presença do espírito mau na sua devoção sensível. A falta de humildade, obediência e caridade fraterna é o indício de que se está privado do espírito de Deus.


OS SINAIS DO ESPÍRITO DE DEUS

Estes sinais opõem-se aos do espírito da natureza e do espírito demoníaco. O espírito de Deus inclina à mortificação exterior, no que difere do espírito de natureza, mas à mortificação exterior regrada pela prudência cristã e pela obediência, e que não atrai a atenção para nós nem enfraquece a saúde. Este espírito nos ensina, por outro lado, que a mortificação exterior é coisa pequena, se não há, ao mesmo tempo, a mortificação da imaginação, da memória (lembrança dos erros que cometemos), do coração, da vontade própria e do julgamento próprio. Inspira igualmente a verdadeira humildade, que dispõe à perfeita obediência, nos impede preferirmos a nós mesmos que aos outros, não teme o menosprezo, guarda silêncio sobre nossas qualidades; no entanto, ela não os nega, se existem, mas rende glória a Deus por elas.

O espírito de Deus alimenta nossa fé com o que há de mais simples e profundo no Evangelho como, por exemplo, o Pai Nosso, fazendo-nos fugir às novidades pela fidelidade à tradição. Esta verdadeira fé sobrenatural nos revela a presença de Deus nos nossos superiores; assim, aperfeiçoa-se o espírito de fé, porque tudo julgamos à luz dessa virtude. O espírito de Deus torna a esperança firme, preservando-a da presunção; diz-nos, por exemplo: é preciso desejar ardentemente a água viva da oração, que conseguimos pela via da humildade, da abnegação e da cruz. Por conseguinte, dá-nos uma santa indiferença pelo sucesso humano.

O espírito de Deus aumenta o fervor da caridade, dá o zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas, o esquecimento de si mesmo. Assim, pensamos antes de tudo em Deus, depois em nosso benefício. Inclina igualmente ao amor eficaz ao próximo; nos ensina que a caridade fraterna é o principal indício do progresso no amor de Deus. Impede o julgamento temerário, o escândalo sem motivo. Inspira o zelo, certamente, mas um zelo paciente, doce e prudente, que edifica pela oração e pelo exemplo e não se irrita pelas repreensões intempestivas. Produz uma grande paciência nas adversidades, o amor pela cruz, o amor pelos inimigos. Propicia a paz com Deus, com os outros, com nós mesmos e, frequentemente, a paz interior.

Se ocorre uma queda acidental, então o espírito de Deus nos fala em misericórdia. São Paulo diz (Gl 5, 22-23): 'O fruto do Espírito é a caridade, o gozo, a paz, a paciência, a benignidade, a bondade, a longanimidade, a mansidão, a fidelidade, a modéstia, a continência, a castidade', com a humildade e a obediência. Se se trata de um ato particular, é mais difícil discernir se provém ou não de Deus. No entanto, se, encontrando-se antes na tristeza, a alma reza e recebe uma consolação profunda, é o sinal da visita de Deus, se esta consolação incita à obediência humilde e à caridade fraterna. Mas é preciso distinguir o primeiro momento da consolação do tempo seguinte, onde, por vezes, a alma julga por si mesma sobre esta consolação e o pode fazer conforme seu amor próprio.

Haverá presunção se desejar graças propriamente extraordinárias, como visões ou palavras interiores; mas se a alma vive e persevera na humildade, abnegação e recolhimento quase contínuo, não é raro que, em virtude dos sete dons do Espírito Santo, ela receba inspirações pelas quais se conciliam a simplicidade e a prudência, a humildade e o zelo, a firmeza e a doçura. Esta conciliação e esta harmonia constituem sinal claríssimo do espírito de Deus. O segredo, o silêncio e a cruz são absolutamente necessários àqueles a quem Deus conduz verdadeiramente por vias extraordinárias e estes não as devem manifestar senão ao seu pai espiritual; caso contrário, há grande perigo de orgulho espiritual.

Particularmente perigosa é a disposição de se comprazer nas revelações, de forma dogmática ou profética; pois elas se acompanham facilmente de ilusões e, mesmo se a primeira inspiração vem de Deus, frequentemente vem a ela se acrescentar uma interpretação humana, mais ou menos errônea, geralmente compreendida de modo extremamente material. Enfim, o espírito que procura êxtases e revelações, se não aperfeiçoa os costumes e a vida e não faz o homem desconfiar-se de si mesmo, é um espírito de ilusão, sobretudo se tudo isto impede a realização do dever de estado e engendra discórdias. Os sinais do espírito de Deus são, portanto, a obediência humilde, a caridade fraterna, a paz e a alegria espiritual radiantes.

(Pe. Garrigou-Lagrange)

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

SUMA TEOLÓGICA EM FORMA DE CATECISMO (XXXIX)

VII

DA CIÊNCIA DE CRISTO ENQUANTO HOMEM: CIÊNCIA BEATÍFICA, INFUSA E ADQUIRIDA

Além da graça que o Filho de Deus concedeu à natureza humana, unida à sua divina Pessoa, dotou-a também com outras prerrogativas?
Sim, Senhor; e em primeiro lugar, com as de ciência (IX-XII)*.

Quantas classes de ciência possuía o Filho de Deus Encarnado?
Três: aquela, em virtude da qual são felizes os santos no céu ou ciência da visão beatífica; a ciência infusa ou inata, derivada do Verbo, a qual põe na alma as noções e idéias necessárias para saber e compreender todas as coisas de um só relance e de um modo natural e a ciência experimental ou adquirida, resultado do exercício ordinário das faculdades mentais que assimilam o mundo exterior por meio dos sentidos (IX, 2, 3, 4).

Foi especial e perfeitíssima a ciência de visão beatífica de Cristo Nosso Senhor?
Foi tão grande que excede sem proporção a de todos os anjos e homens bem-aventurados; desde o primeiro instante de sua Encarnação, pode Jesus Cristo, enquanto homem, conhecer no Verbo todas as coisas, de sorte que nada houve, presente, passado ou futuro, fossem ações, palavras ou pensamentos, qualquer que fosse a sua causa ou motivo, que o Filho de Deus não conhecesse, segundo a natureza humana a Ele unida hipostaticamente (X, 2-4).

Foi também, singularmente perfeita, a ciência infusa de Jesus Cristo?
Sim, Senhor; visto que Jesus Cristo, enquanto homem. sabia quanto pode conhecer a inteligência humana, utilizando as suas luzes naturais e, além disso, quantos conhecimentos pode a revelação proporcionar a qualquer inteligência criada mediante o dom de sabedoria, de profecia ou de qualquer outro dos dons do Espírito Santo, e isto com uma perfeição e abundância absolutamente transcendentais, não só em comparação com a ciência dos outros homens, mas também com a dos espíritos angélicos (XI, 1. 3. 4).

Que devemos pensar da ciência adquirida pelo Filho de Deus feito homem?
Que possuía toda quanta a inteligência humana pode alcançar trabalhando sobre os dados dos sentidos; que esta ciência foi progredindo e aperfeiçoando-se, à medida que o entendimento reflexionava sobre os novos dados que iam aflorando aos sentidos, sem que jamais tivesse aprendido qualquer verdade dos lábios de um mestre, porque à medida que se ia desenvolvendo, aprendia por si mesmo nas obras de Deus, tudo o que um mestre poderia explicar-lhe (XII, 1,3).

Aprendeu alguma coisa dos anjos?
De maneira nenhuma, pois toda a ciência que, enquanto homem, possuía, adquiriu-a ou imediatamente do Verbo ao qual pessoalmente estava unido ou no exercício de suas faculdades naturais, e qualquer outro modo de adquiri-la teria sido indigno Dele (XII, 4).

VIII

DO PODER DE JESUS CRISTO ENQUANTO HOMEM

Possuiu Jesus Cristo, enquanto homem, alguma outra prerrogativa, além da ciência?
Sim, Senhor, a do poder (XIII).

De que poderes estava investida a alma humana de Cristo?
Em primeiro lugar, do poder que tem toda alma pelo fato de ser forma substancial do corpo; além disso, do poder próprio e exclusivo da alma de Cristo na ordem da graça, visto que está destinada a comunicá-la a todos os que hajam de possuí-la; por último, a natureza humana de Cristo participa instrumentalmente do poder do Filho de Deus que, unido pessoalmente a ela, transformará e restaurará todas as coisas no céu e na terra, conforme o plano fixado por Deus e em harmonia com o fim da Encarnação (XIII, 1-4).

IX

DOS DEFEITOS DA NATUREZA HUMANA UNIDA HIPOSTATICAMENTE AO FILHO DE DEUS  DEFEITOS POR PARTE DO CORPO E POR PARTE DA ALMA

Foi conveniente que, ao lado das prerrogativas de ciência, graça e poder, tomasse o Filho de Deus a natureza humana com alguns defeitos de alma e corpo?
Pensando que o fim intentado pelo Filho de Deus na Encarnação foi satisfazer pelos nossos pecados, aparecer no mundo como um dentre os homens, reservando todo o seu mérito para a fé, e dar-nos exemplo com a prática das mais sublimes virtudes de paciência e imolação, sim, Senhor.

Que defeitos corporais tinha a natureza humana assumida pelo Verbo?
As misérias e debilidades inerentes a toda a natureza humana, como pena do pecado de nossos primeiros pais, tais como a fome, a sede e a a morte; não, porém, os defeitos consequentes de pecados pessoais, nem os hereditários, nem os acidentalmente contraídos na concepção (XIV, 1).

Logo o corpo de Jesus Cristo, com a exceção das debilidades mencionadas, era soberanamente formoso e perfeito?
Sim, Senhor; porque assim convinha à dignidade do Verbo divino e à ação do Espírito Santo, que diretamente o modelou nas entranhas da Santíssima Virgem, como mais tarde diremos.

Que defeitos de alma tinha a natureza humana unida ao Filho de Deus?
Em primeiro lugar, a possibilidade de experimentar dor sensível, especialmente a que produziriam as lesões corporais que havia de padecer no curso de sua paixão; em segundo lugar, o sentir a contrariedade produzida pelos movimentos interiores da ordem afetiva sensível e intelectual que supõem sempre um mal iminente, tais como a tristeza, o temor e a cólera, tendo em vista que esses movimentos em Cristo nunca estiveram em desacordo com a razão, à qual estavam em tudo submetidos (XV, 1-9).

Podemos dizer que Jesus Cristo, enquanto homem, era ao mesmo tempo 'compreensor' por estar em termo e 'viador' por achar-se no caminho da bem-aventurança?
Sim, Senhor; o primeiro, porque gozava plenamente da visão da essência divina e o segundo porque, suspensa milagrosamente a derivação da glória da alma para a parte sensível, como o fim de não impedir a obra da redenção, conquistou e mereceu, durante a sua vida mortal, a glorificação do corpo que começou a desfrutar depois da Ressurreição e da Ascensão (XV, 10).

X

CONSEQUÊNCIAS DA ENCARNAÇÃO DO FILHO DE DEUS — DE QUE MANEIRA PODEMOS EXPRESSAR-NOS AO FALAR DO VERBO ENCARNADO

Que proposições podemos sustentar referindo-nos ao adorável mistério da Encarnação?
Podemos dizer com verdade que Deus é homem porque uma pessoa de natureza divina é homem; também podemos dizer que o homem é Deus, porquanto uma pessoa, que é realmente homem, se identifica com a pessoa de Deus; e, em geral, podemos atribuir a Deus todas as propriedades da natureza humana, porque se realizam numa pessoa divina, e as da natureza divina podem dizer-se do homem Verbo Encarnado, porque aquele homem é pessoa de Deus. Ao contrário, não podemos atribuir à divindade os predicados da humanidade, nem a esta os daquela porque, na pessoa do Filho de Deus Encarnado, permanecem inconfusas as duas naturezas, conservando cada uma as suas propriedades (XVI, 1,2).

Podemos dizer: Deus se fez homem?
Sim, Senhor; porque uma pessoa divina, que não era homem, começou a sê-lo no tempo (XVI, 6).

Podemos dizer que o Verbo Encarnado é uma criatura?
Em absoluto, não, Senhor; porque tal locução faria supor que um puro homem chegou a transformar-se em Deus (XVI, 7); porém, acrescentando: em atenção à natureza humana que assumiu hipostaticamente, sim, porque a natureza humana, unida à pessoa do Verbo, é uma criatura (XVI, 8).

Podemos dizer: este homem (indicando a Cristo) começou a existir?
Não, Senhor; porque daríamos a entender que quem começou a existir foi a pessoa divina. Poderíamos, apesar disto, empregar a frase, ajuntando: 'enquanto homem ou em atenção à natureza humana' (XVI, 9).

referências aos artigos da obra original

('A Suma Teológica de São Tomás de Aquino em Forma de Catecismo', de R.P. Tomás Pègues, tradução de um sacerdote secular)

domingo, 22 de setembro de 2019

PÁGINAS COMENTADAS DOS EVANGELHOS DOS DOMINGOS


'Ele quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens: o homem Cristo Jesus, que se entregou em resgate por todos' (1Tm 2,4-6)