sábado, 16 de abril de 2016

A MEDIDA DO PERDÃO


Mamãe, me falaram que não nasci porque você fez as suas escolhas.
Que você tinha o direito de decidir, de escolher.
De não me escolher.
E decidiu assim porque era o melhor a fazer.
Que não era a hora.
Que eu seria um peso enorme, uma alternativa errada, uma coisa indesejada.
Uma coisa que deveria ser abortada.

Mamãe, me falaram que eu não tenho direito nenhum,
que, na verdade, eu não sou nada.
Apenas um feto desprovido de emoções, de sensações, de reações.
Mas, isso não é verdade, mamãe, eles estão errados,
eu era com você dois corações. Dois corações.
Senti o seu calor. Senti o seu desconforto. E senti dor, muita dor.

Mamãe, me falaram para que não falasse por mim.
Que eu fosse apenas o que todos imaginam o que eu fui: um nada.
E que eu sou apenas mais uma pessoa que não existiu
porque alguém decidiu isso por mim.
E esse alguém foi você, que eu chamo de mamãe.
Eu não tenho nem um nome,
você sabe como teria me chamado, mamãe?

Mas eu quis voltar para você ainda que apenas em pensamento
para murmurar carinho e afeição ao seu ouvido,
para acalentar a sua aflição,
para estancar a sua dor.
Porque eu não entendo nada de escolhas, mamãe, nada mesmo,
mas aprendi aqui, do outro lado,
o que significa o perdão
e a medida do amor sem medidas.

(Arcos de Pilares)

sexta-feira, 15 de abril de 2016

TANTUM QUANTUM

Eu não existia... Deus me criou; não podia continuar a existir por mim mesmo. Deus me tem conservado: logo sou todo seu. Entregar-me-ei em suas mãos sem reservas. 'Entrego-me nas vossas mãos, com confiança, como um pouco de barro, fazei de mim um homem novo!' Que fim nobre é o meu! A felicidade de Deus consiste em amar a si mesmo e este amor é também um objeto de minha felicidade. Ó liberalidade infinita de Deus: a alma no céu ficará saturada de gozo, não pode imaginar um prazer que não possua. Para um fim sobrenatural, é necessário viver uma vida sobrenatural; todas as minhas ações, palavras e pensamentos devem ser dirigidos pelo sobrenatural: ser o homem sobrenatural. 

Eis o ideal! Mas se o homem não alcançar o seu fim será lançado no inferno por toda a eternidade... desespero eterno; sem um momento de descanso, de felicidade. E eu me salvarei? Com tantos pecados? Que dúvida terrível! No entanto, posso assegurar a minha salvação e nela cuido tão pouco. A minha vocação à Companhia é uma prova não só de que Deus quer me salvar, mas que quer me salvar com perfeição. Se queres entrar na vida observa os mandamentos: os mandamentos, os votos, as regras, as ordens dos superiores, eis como posso assegurar a minha salvação: na sua perfeita observância. Ânimo e coragem! Um fim tão nobre merece que se empreguem todos os meios. E todas as mais criaturas Deus criou para a consecução do meu fim e para que eu O glorifique por meio delas. As criaturas me ajudarão: i) buscando nelas o seu Criador pela contemplação; ii) usando delas moderadamente; iii) abstendo-me daquelas que prejudicam a minha salvação. Reta intenção antes de usar qualquer criatura. 

Para observar a lei do uso das criaturas necesse est facere nos indifferentes. Durante a explicação dos pontos, parece-me que compreendi a necessidade e os bens desta indiferença. Na vida prática e cotidiana como tem lugar a aplicação deste facere indifferentes. É uma conclusão lógica do que ficou atrás: fui criado por Deus, devo servi-lo e para este fim usar das criaturas tantum quantum. Ora, a respeito do uso de algumas, não sei quanto e quando me ajudam à consecução do meu fim. Logo, devo estar indiferente. É necessário. Sem esta indiferença, a vida religiosa toma-se pesada, custe embora à natureza nada lhe devo conceder. Tempo livre, trabalhos manuais, ofício, mudança de horário, em tudo a aplicação prática do necesse est facere nos indifferentes. Não só nisto mas também nas coisas espirituais, na oração, facere nos indifferentes, quanto à consolação ou à desolação. 

Persuadi-me intimamente que não devo servir a Deus como eu quero, mas como Ele quer, e a Sua vontade se manifesta pelo superior, qualquer que seja ele. Esta indiferença pode ser matéria de meditações e reformas com muita aplicação na vida prática, desejando e escolhendo aquilo que mais conduz ao fim. Em geral são as coisas da natureza que mais nos ajudam à consecução do nosso fim; estas, é lícito desejar a procurar não tendo nada em contrário manifestado pela obediência. Eis o ideal do jesuíta: homens crucificados para o mundo e para os quais o mundo seja também crucificado, tais devemos ser por obrigação do nosso estado. Que perfeição exige de mim a Companhia! Como tenho me ocupado pouco em alcançar as sólidas e verdadeiras virtudes! Determinei usar dos meios que a Companhia me oferece: oração, exame geral e particular, leituras, exercícios espirituais, renovação semestral, reforma mensal, sacramentos etc. e com tantos meios não chegarei à perfeição de meu estado? Um jesuíta perfeito, igual em tudo a si mesmo! 

Todas as criaturas já estão no mundo. Deus forma o primeiro homem, dá-lhe uma alma racional e colocando-o no paraíso lhe diz: 'Tu me glorificarás, por meio destas criaturas; criei-as para te servirem de meio ao teu fim que é servir-me'. E o homem usa das criaturas para seu deleite e prazer, põe nelas o seu fim! Que loucura! O que não me conduz ao meu fim devo deixar, embora agrade à natureza. Se Deus não tivesse usado de misericórdia comigo eu estaria no inferno. Quantos pecados Deus suportou e não me castigou! 

Mas não só não estou no inferno. Estou na Companhia. Que ingratidão se não correspondo à minha vocação; uma vida de mediocridade não basta, é necessário ser santo. Devo trazer sempre à memória os meus pecados, como um estímulo e aguilhão para me levar à perfeição. Senti uma dor viva dos meus pecados. No colóquio me dava grande fervor e consolação imaginar-me aos pés de Jesus Crucificado, abraçando-o como Madalena e o seu sangue me lavara toda a alma. Senti vivamente a bondade divina. Que misericórdia! Jesus, meu Pai, meu amor! Será possível que Vós me não tivésseis perdoado depois de me fazer sentir o que senti? Jesus, continue a usar comigo a vossa misericórdia. Manda-me qualquer castigo, tudo é pouco em relação ao número e enormidade de meus pecados. Perdão, meu amado Jesus!

Impressionou-me nesta meditação, principalmente, os tormentos da vida e dos ouvidos. Milhões e milhões de condenados agitando-se em convulsões horrorosas, o desespero transparecendo no rosto, os cabelos eriçados como outras tantas víboras. Que espetáculo! Resolvi observar com rigor a regra da modéstia para de algum modo satisfazer os pecados que cometi com a vista. Os ouvidos são atormentados por uma gritaria de desespero, imprecações, injúrias e blasfêmias contra Jesus e Maria. Se Deus não houvesse usado de misericórdia para comigo, estaria agora ouvindo blasfêmias contra Jesus e contra minha boa mãe, Maria. Que gratidão não devo mostrar para com Deus. Ó pecado, como és um grande mal, pois mereces tamanho castigo. Um castigo eterno! Passam-se mil anos, um milhão de milhões de anos e ainda está no seu princípio. Como por um prazer instantâneo me hei de por em perigo de ir ao inferno. Ah, não, com o auxílio de Deus, não cometerei nunca um pecado mortal!

(Excertos da obra 'Exercícios Espirituais' do Pe. Leonel Franca)

quarta-feira, 13 de abril de 2016

NO LIMIAR DO SOBRENATURAL (III)

OS MANUSCRITOS QUE O INFERNO NÃO QUEIMOU


Santa Gemma Galgani sofreu, durante a sua curta vida, os incessantes ataques e tentações do demônio. Um dos fatos mais extraordinários destas investidas foi a tentativa diabólica da queima e destruição do diário escrito pela santa, sob voto de obediência e por intimação do seu confessor, o Pe. Germano de Santo Estanislau. Guardados em uma gaveta do quarto de Gemma, os manuscritos foram roubados pelo próprio demônio, que a fez conhecer do fato e se vangloriou da sua astúcia. Caracterizado o sumiço do diário e dado ciência disso ao Pe Germano, este pronunciou, junto ao túmulo de São Gabriel da Virgem Dolorosa, os procedimentos completos de exorcismo da Santa Igreja, invocando a Deus a plena recuperação dos manuscritos, o que ocorreu de imediato. Ao ser recuperado, ficou evidente a tentativa de queima do diário, pois várias páginas estavam como que chamuscadas e exalavam um forte cheiro de queimado. Mas, contra todos os esforços do demônio para a sua destruição, os manuscritos permaneceram incólumes à ação do fogo do inferno, constituindo, na verdade, mais um extraordinário testemunho da santidade de Gemma e da glória de Deus.

terça-feira, 12 de abril de 2016

FOTO DA SEMANA

Por cima de sua cabeça penduraram um escrito trazendo o motivo de sua crucificação: 'Este é Jesus, o rei dos judeus' (Mt 27, 37)

(Cristo na Cruz, de Diego Velázquez, 1632, Museu do Prado/Madrid)

segunda-feira, 11 de abril de 2016

11 DE ABRIL - SANTA GEMMA GALGANI



Mística, contemplativa, estigmatizada, Santa Gemma Galgani foi contemplada por Deus com um enorme acervo de privilégios, graças e carismas, como os estigmas da Paixão, a coroa de espinhos, a flagelação e o suor de sangue, êxtases frequentes, espírito de profecia, discernimento dos espíritos e visões de Nosso Senhor, de sua Mãe Santíssima, de São Gabriel e uma incrível familiaridade com o seu Anjo da Guarda. Nasceu em  12 de março de 1878 em Camigliano, um vilarejo situado perto de Lucca, na Itália, de família católica tradicional e faleceu, com apenas 25 anos, no Sábado Santo de 11 de Abril de 1903. Foi canonizada a 2 de março de 1940, apenas trinta e sete anos depois da sua morte.

Palavras do Anjo da Guarda à Santa Gemma:

'Lembra, filha, que aquele que ama verdadeiramente Jesus fala pouco e suporta muito. Eu te ordeno, em nome de Jesus, de nunca dar a tua opinião a menos que ela seja pedida; de nunca insistir na tua opinião, mas a ficar em silêncio imediatamente. Quando tiveres cometido qualquer erro, acusa-te a ti mesma dele imediatamente sem esperar que os outros o façam... Lembra-te de guardar os teus olhos e considera que os olhos mortificados possuirão as belezas do Céu.'

Santa Gemma Galgani, rogai por nós!

domingo, 10 de abril de 2016

TESTEMUNHAS DO AMOR

Páginas do Evangelho - Terceiro Domingo da Páscoa


Às margens do mar de Tiberíades, Jesus Ressuscitado aparece pela terceira vez a seus discípulos. E lhes aparece após uma longa noite de aparentes fracassos porque eles não haviam conseguido pescar peixe algum. Aqueles homens, pescadores exímios, bem o tentaram; sabedores dos humores e segredos do mar, bem o tentaram; sabedores das nuances dos ventos e das propícias condições noturnas, bem o tentaram. E tentaram em vão, porque são vãos todos os esforços quando não compartilhados pela graça de Deus.

Ao amanhecer, resignados e confusos, aqueles pescadores obedecem a recomendação de Jesus, embora  não O tivessem ainda em plenitude, pois 'os discípulos não sabiam que era Jesus' (Jo 21,4). Mas, ainda assim, lançam as redes à direita da barca, pois aqueles que estiverem à direita de Cristo não serão confundidos e verão as maravilhas de Deus (Mt 25, 33-34). E agora, não lhes é vã a tentativa; a rede se enche de 153 grandes peixes, símbolo de uma pesca extremada, milagrosa porque eivada da graça manifesta de Deus aos homens.

E, tomado de assombro, o discípulo a quem Jesus amava faz um imediato testemunho de amor: 'É o Senhor!' (Jo 21,4). É um testemunho de fé no Filho do Homem, testemunho de esperança, testemunho em Jesus Ressuscitado, condutor verdadeiro dessa barca, que representa a Santa Igreja, testemunho que perpassa os tempos e as gerações humanas dos bem-aventurados que haverão de crer como João. Sim, é o Senhor! O cordeiro imolado para a redenção do mundo, o Salvador, o Ungido do Pai. 

Mas é Pedro quem se arroja nas águas frias do mar naquele amanhecer de novos tempos ao encontro do Jesus amado e retorna, na mesma toada, para arrastar a rede cheia de grandes peixes até a margem. Mais uma vez, Jesus prepara-lhes o alimento e distribui o pão e os peixes entre eles. E é a Pedro quem Jesus pergunta por três vezes: 'Simão, filho de João, tu me amas?' (Jo 21, 15-17). E o sim de Pedro, por três vezes, é a prova manifesta universalmente do amor verdadeiro do homem em resposta ao infinito amor de Deus: 'Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te amo.' (Jo 21, 17). E ante a resposta firme e decidida de Pedro, Jesus o tornará o pastor de suas ovelhas e a pedra da Igreja: 'Segue-me' (Jo 21, 19).

sábado, 9 de abril de 2016

SOBRE A ORAÇÃO - 30 DITOS ESPIRITUAIS DOS PAIS DO DESERTO


1. Moisés, quando quis aproximar-se da sarça ardente, foi impedido de fazê-lo, até que tirasse os sapatos. E tu, que pretendes ver Aquele que ultrapassa todo pensamento e todo sentimento, como não te libertas de todo pensamento apaixonado?

2. Primeiramente, ora para obter o dom das lágrimas; assim, poderás suavizar, pela compunção, a dureza inerente à tua alma e, confessando tua iniquidade ao Senhor, obter dele o perdão.

3. Esforça-te por manter teu intelecto surdo e mudo durante a oração: assim poderás orar.

4. A oração é produto da doçura e da ausência de ira.

5. A oração é fruto da alegria e do reconhecimento.

6. A oração é exclusão da tristeza e do desalento.

7. Se queres orar dignamente, renuncia-te a todo instante; se suportas toda sorte de provações, resigna-te sabiamente por amor da oração.

8. Na hora de orar, encontrarás o fruto de todo sofrimento aceito com sabedoria.

9. O rancor cega a faculdade mestra de quem ora e derrama-lhe trevas sobre as orações.

10. Armado contra a ira, não admitirás jamais a cobiça, pois é a cobiça que alimenta a ira; esta por sua vez, turva os olhos da inteligência e destrói, assim, o estado de oração.

11. Não ores para que tuas vontades se cumpram: elas não concordam necessariamente com a vontade de Deus. Ora, sim, segundo o ensinamento recebido, dizendo: 'que vossa vontade se cumpra em mim'. Em tudo, pede-lhe que se faça a sua vontade, pois ele quer o bem e o benefício para tua alma; tu, porém, não é isso necessariamente que procuras.

12. Não te aflijas quando não receberes imediatamente, de Deus, o objeto de teu pedido: é que ele quer fazer-te ainda maior bem, por tua perseverança em permanecer com ele na oração. O que há de mais sublime, de fato, do que conversar com Deus e abstrair-se numa íntima comunicação com ele?

13. A oração sem distração é a intelecção mais alta da inteligência.

14. A oração é uma ascensão da inteligência para Deus.

15. Ora, em primeiro lugar, para te purificares das paixões; em segundo lugar, para te libertares da ignorância; em terceiro lugar, para te libertares de toda tentação e abandono.

16. Orando com teus irmãos ou orando só, esforça-te por orar, não por hábito, mas com sentimento.

17. Enquanto oras, vigia intensamente a tua memória, para que, ao invés de sugerir-te as suas lembranças, ela te leve à consciência da tua prática; pois, a inteligência tem uma perigosa tendência: deixar-se pilhar pela memória, no momento da criação.

18. Qual o objetivo dos demônios, quando excitam em nós a gula, a impudicícia, a cobiça, a ira, o rancor e as outras paixões? Querem que a nossa inteligência, estupidificada por elas, não possa orar convenientemente; pois, as paixões da parte irracional, vencedoras, impedem-na de mover-se de acordo com a razão (de acordo com as razões dos seres como objeto de contemplação) para procurar atingir a Razão (o Logos: o Verbo) de Deus.

19. O estado de oração é um 'hábito' impassível que, por um amor supremo, arrebata aos cimos intelectuais a inteligência possuída pela sabedoria.

20. Quem ama a Deus conversa incessantemente com ele, como com um Pai, despojando-se de todo pensamento apaixonado.

21. Quem ora em espírito e em verdade, não tira mais das criaturas os louvores que dá ao Criador: é do próprio Deus que ele louva Deus.

22. Sê prudente, protegendo tua inteligência de todo conceito, na hora da oração, para que ela seja firme na sua tranquilidade própria (de sua natureza original). Então, Aquele que tem piedade dos ignorantes virá também sobre ti e receberás um dom de oração muito glorioso.

23. Não poderias possuir a oração pura, estando perturbado com coisas materiais e agitado por inquietações contínuas, pois a oração é o abandono dos pensamentos.

24. A oração é atividade que mais convém à dignidade da inteligência.

25. O corpo tem o pão por alimento; a alma, a virtude; a inteligência, a oração espiritual.

26.  Não eleves os olhos enquanto oras; renuncia à carne e à alma e vive segundo a inteligência.

27. Um santo, cheio do amor de Deus e de zelo na oração, encontrou, quando andava pelo deserto, dois anjos que se puseram, um à sua direita, outro à sua esquerda, e caminharam juntos. Mas ele não lhes deu a mínima atenção, para não perder o melhor. Pois, lembrava-se da palavra do Apóstolo: 'Nem os anjos, nem os principados, nem os poderes, poderão separar-nos da caridade de Cristo' (Rm 8,38).

28. Bem-aventurada a inteligência que, no momento da oração, torna-se imaterial e despojada de tudo.

29. A visão é o melhor de todos os sentidos; a oração é a mais divina de todas as virtudes.

30. Quando, em tua oração, tiveres conseguido ultrapassar qualquer outra alegria, é que finalmente, em toda verdade, terás encontrado a oração.

(Ditos Espirituais dos Pais do Deserto, de Evágrio Pôntico - séc. IV)