domingo, 10 de abril de 2016

TESTEMUNHAS DO AMOR

Páginas do Evangelho - Terceiro Domingo da Páscoa


Às margens do mar de Tiberíades, Jesus Ressuscitado aparece pela terceira vez a seus discípulos. E lhes aparece após uma longa noite de aparentes fracassos porque eles não haviam conseguido pescar peixe algum. Aqueles homens, pescadores exímios, bem o tentaram; sabedores dos humores e segredos do mar, bem o tentaram; sabedores das nuances dos ventos e das propícias condições noturnas, bem o tentaram. E tentaram em vão, porque são vãos todos os esforços quando não compartilhados pela graça de Deus.

Ao amanhecer, resignados e confusos, aqueles pescadores obedecem a recomendação de Jesus, embora  não O tivessem ainda em plenitude, pois 'os discípulos não sabiam que era Jesus' (Jo 21,4). Mas, ainda assim, lançam as redes à direita da barca, pois aqueles que estiverem à direita de Cristo não serão confundidos e verão as maravilhas de Deus (Mt 25, 33-34). E agora, não lhes é vã a tentativa; a rede se enche de 153 grandes peixes, símbolo de uma pesca extremada, milagrosa porque eivada da graça manifesta de Deus aos homens.

E, tomado de assombro, o discípulo a quem Jesus amava faz um imediato testemunho de amor: 'É o Senhor!' (Jo 21,4). É um testemunho de fé no Filho do Homem, testemunho de esperança, testemunho em Jesus Ressuscitado, condutor verdadeiro dessa barca, que representa a Santa Igreja, testemunho que perpassa os tempos e as gerações humanas dos bem-aventurados que haverão de crer como João. Sim, é o Senhor! O cordeiro imolado para a redenção do mundo, o Salvador, o Ungido do Pai. 

Mas é Pedro quem se arroja nas águas frias do mar naquele amanhecer de novos tempos ao encontro do Jesus amado e retorna, na mesma toada, para arrastar a rede cheia de grandes peixes até a margem. Mais uma vez, Jesus prepara-lhes o alimento e distribui o pão e os peixes entre eles. E é a Pedro quem Jesus pergunta por três vezes: 'Simão, filho de João, tu me amas?' (Jo 21, 15-17). E o sim de Pedro, por três vezes, é a prova manifesta universalmente do amor verdadeiro do homem em resposta ao infinito amor de Deus: 'Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te amo.' (Jo 21, 17). E ante a resposta firme e decidida de Pedro, Jesus o tornará o pastor de suas ovelhas e a pedra da Igreja: 'Segue-me' (Jo 21, 19).

sábado, 9 de abril de 2016

SOBRE A ORAÇÃO - 30 DITOS ESPIRITUAIS DOS PAIS DO DESERTO


1. Moisés, quando quis aproximar-se da sarça ardente, foi impedido de fazê-lo, até que tirasse os sapatos. E tu, que pretendes ver Aquele que ultrapassa todo pensamento e todo sentimento, como não te libertas de todo pensamento apaixonado?

2. Primeiramente, ora para obter o dom das lágrimas; assim, poderás suavizar, pela compunção, a dureza inerente à tua alma e, confessando tua iniquidade ao Senhor, obter dele o perdão.

3. Esforça-te por manter teu intelecto surdo e mudo durante a oração: assim poderás orar.

4. A oração é produto da doçura e da ausência de ira.

5. A oração é fruto da alegria e do reconhecimento.

6. A oração é exclusão da tristeza e do desalento.

7. Se queres orar dignamente, renuncia-te a todo instante; se suportas toda sorte de provações, resigna-te sabiamente por amor da oração.

8. Na hora de orar, encontrarás o fruto de todo sofrimento aceito com sabedoria.

9. O rancor cega a faculdade mestra de quem ora e derrama-lhe trevas sobre as orações.

10. Armado contra a ira, não admitirás jamais a cobiça, pois é a cobiça que alimenta a ira; esta por sua vez, turva os olhos da inteligência e destrói, assim, o estado de oração.

11. Não ores para que tuas vontades se cumpram: elas não concordam necessariamente com a vontade de Deus. Ora, sim, segundo o ensinamento recebido, dizendo: 'que vossa vontade se cumpra em mim'. Em tudo, pede-lhe que se faça a sua vontade, pois ele quer o bem e o benefício para tua alma; tu, porém, não é isso necessariamente que procuras.

12. Não te aflijas quando não receberes imediatamente, de Deus, o objeto de teu pedido: é que ele quer fazer-te ainda maior bem, por tua perseverança em permanecer com ele na oração. O que há de mais sublime, de fato, do que conversar com Deus e abstrair-se numa íntima comunicação com ele?

13. A oração sem distração é a intelecção mais alta da inteligência.

14. A oração é uma ascensão da inteligência para Deus.

15. Ora, em primeiro lugar, para te purificares das paixões; em segundo lugar, para te libertares da ignorância; em terceiro lugar, para te libertares de toda tentação e abandono.

16. Orando com teus irmãos ou orando só, esforça-te por orar, não por hábito, mas com sentimento.

17. Enquanto oras, vigia intensamente a tua memória, para que, ao invés de sugerir-te as suas lembranças, ela te leve à consciência da tua prática; pois, a inteligência tem uma perigosa tendência: deixar-se pilhar pela memória, no momento da criação.

18. Qual o objetivo dos demônios, quando excitam em nós a gula, a impudicícia, a cobiça, a ira, o rancor e as outras paixões? Querem que a nossa inteligência, estupidificada por elas, não possa orar convenientemente; pois, as paixões da parte irracional, vencedoras, impedem-na de mover-se de acordo com a razão (de acordo com as razões dos seres como objeto de contemplação) para procurar atingir a Razão (o Logos: o Verbo) de Deus.

19. O estado de oração é um 'hábito' impassível que, por um amor supremo, arrebata aos cimos intelectuais a inteligência possuída pela sabedoria.

20. Quem ama a Deus conversa incessantemente com ele, como com um Pai, despojando-se de todo pensamento apaixonado.

21. Quem ora em espírito e em verdade, não tira mais das criaturas os louvores que dá ao Criador: é do próprio Deus que ele louva Deus.

22. Sê prudente, protegendo tua inteligência de todo conceito, na hora da oração, para que ela seja firme na sua tranquilidade própria (de sua natureza original). Então, Aquele que tem piedade dos ignorantes virá também sobre ti e receberás um dom de oração muito glorioso.

23. Não poderias possuir a oração pura, estando perturbado com coisas materiais e agitado por inquietações contínuas, pois a oração é o abandono dos pensamentos.

24. A oração é atividade que mais convém à dignidade da inteligência.

25. O corpo tem o pão por alimento; a alma, a virtude; a inteligência, a oração espiritual.

26.  Não eleves os olhos enquanto oras; renuncia à carne e à alma e vive segundo a inteligência.

27. Um santo, cheio do amor de Deus e de zelo na oração, encontrou, quando andava pelo deserto, dois anjos que se puseram, um à sua direita, outro à sua esquerda, e caminharam juntos. Mas ele não lhes deu a mínima atenção, para não perder o melhor. Pois, lembrava-se da palavra do Apóstolo: 'Nem os anjos, nem os principados, nem os poderes, poderão separar-nos da caridade de Cristo' (Rm 8,38).

28. Bem-aventurada a inteligência que, no momento da oração, torna-se imaterial e despojada de tudo.

29. A visão é o melhor de todos os sentidos; a oração é a mais divina de todas as virtudes.

30. Quando, em tua oração, tiveres conseguido ultrapassar qualquer outra alegria, é que finalmente, em toda verdade, terás encontrado a oração.

(Ditos Espirituais dos Pais do Deserto, de Evágrio Pôntico - séc. IV)

sexta-feira, 8 de abril de 2016

GALERIA DE ARTE SACRA (XXI)

AS COROAS DA VIRGEM MARIA

Deus pôs sobre a Cabeça de Maria uma coroa de preço infinito, ou melhor, pôs um privilégio que lhe e próprio: Maria tem direito a todas as coroas.

A coroa do mérito e da virtude, laurea virtutis, porque é a única criatura humana que nunca contraiu e nem cometeu pecado, ultrapassando em santidade aos anjos e serafins. 

A coroa da ciência e da doutrina, laurea doctoralis, porque Ela conheceu todos os segredos do verbo e o livro da vida lhe foi revelado.

A coroa do combate e da vitória, corona triunphalis, porque conquistou as legiões do inferno e exterminou todas as heresias.

A coroa do mérito e da coragem, corona muralis, porque defendeu os muros da cidade santa contra o furor dos salteadores, preservando da ruína os assediados e por Ela conquistamos o direito de cidadãos do Céu.

A coroa de núpcias e de esposa, corona nuptialis, porque, sem perder o seu diadema de Virgem, ela foi associada por um matrimônio inefável à fecundidade da divina natureza.

A coroa real e sacerdotal, corona regni, infuia sacerdotii, porque, tendo dado à vida a quem é Rei e Sacerdote por excelência, participou e participará eternamente da autoridade do seu Reinado, mérito da sua imolação.

Mas... que profundezas nos metemos a sondar, ó filhos meus? Se em nós refulgem raios, em Maria descansa o sol. Se para uns correm as águas das fontes, em Maria se despeja o mar. Se alguns tem a participação medida, Maria tem a soberania absoluta, de tal modo que as coroas de graças que cingem a sua fronte correspondem à esplêndida manifestação da coroa de glória que a esperou no Céu.
(São Pio X)

quinta-feira, 7 de abril de 2016

DO FALAR CONTIDO


Ouvi, filhos, o conhecimento que eu vos dou: aquele que o guardar não perecerá pelos lábios, nem cairá em ações criminosas.

O pecador é apanhado pela sua leviandade; o orgulhoso e o maledicente nela encontrarão motivos de queda.

Que tua boca não se acostume ao juramento, porque isso leva a muitos pecados.

Que o nome de Deus não esteja sempre na tua boca, e que não mistures nas tuas conversas o nome dos santos, porque nisso não estarias isento de culpa.

Pois, assim como um escravo submetido continuamente à tortura, dela trará as cicatrizes, assim, todo homem que jura pelo nome de Deus, não poderá totalmente escapar ao pecado.

O homem que jura com frequência será cheio de iniquidade, e o flagelo não deixará a sua casa; se não cumprir o juramento, sua culpa recairá sobre ele; e, se o dissimular, pecará duplamente.

Se jurar em vão, isso não o justificará: sua casa será cheia de castigos.

Há uma outra palavra que merece a morte, e não deve ser encontrada na herança de Jacó!

Tudo isto está longe dos homens piedosos, que não se comprazem em tais crimes.

Não acostumes tua boca a uma linguagem grosseira, pois aí sempre haverá pecado.

Lembra-te de teu pai e de tua mãe, quando te achares no meio dos poderosos, para não acontecer que Deus se esqueça de ti na presença deles, e que, tornando-te insensato pela tua excessiva familiaridade, tenhas de suportar um insulto, e desejes não ter nascido, e amaldiçoes o dia do teu nascimento.

O homem acostumado a dizer palavras injuriosas jamais se corrigirá disso.

(Eclesiástico 23, 7 - 20)

terça-feira, 5 de abril de 2016

SEDE DE JUSTIÇA E FOME DE SANTIDADE

Os profetas de Israel não deixavam de lembrar que ninguém se podia vangloriar de ser justo diante de Deus se desprezasse os seus deveres para com os homens. Escutemos, por exemplo, Ezequiel: 'Aquele que não oprime ninguém, que devolve o penhor que lhe confiaram, que não saqueia, que dá o pão a quem tem fome, que veste os nus, que não empresta com usura e nem reclama juros, que afasta a sua mão da iniquidade, que julga segundo a verdade entre um e outro homem – esse é verdadeiramente justo', diz o Senhor (Ez 18, 9). 'Para que serve uma fidelidade puramente cultual', lê-se no Livro de Isaías, 'se no dia em que jejuais vos mostrais gananciosos, provocais questões e bateis nos outros? Em vão inclinais a cabeça como o junco e dormis sobre o saco e a cinza. Eis o jejum que me agrada: libertai aquele que oprimis, quebrai toda a espécie de jugo, recolhei os pobres sem abrigo. Então podereis invocar a Deus e Ele responderá: Eis-me aqui' (Is 58, 3-9). Estas exclamações preparavam a pregação de Cristo, que tornou as nossas obrigações para com Deus inseparáveis dos nossos deveres para com os homens.

Deus provou-nos o seu amor pela doação que nos fez de seu Filho. Em Jesus Cristo, Deus uniu-se a toda a humanidade; por Ele, a comunidade humana tornou-se uma família, cujos membros são realmente irmãos. O ato da Encarnação estabeleceu uma conexão fundamental entre estes termos: Deus, o próximo e eu; já não me é permitido isolá-los. Pretender aproximar-me de Deus abstraindo do próximo, é uma ilusão. Entre mim e Deus estão todos os outros homens, também seus filhos. A fidelidade que eu lhe prometo, prová-la-ei pela forma como me dedicar ao meu próximo. Violei algum direito alheio? O Pai comum considera-se lesado. 'Eis que o salário dos trabalhadores que ceifavam os vossos campos, o qual foi defraudado por vós, clama, e o clamor deles subiu até os ouvidos do Senhor dos exércitos' (Ti 5, 4). Ainda mais: mesmo que eu não prejudique positivamente o meu próximo, se, podendo, não remedeio a desgraça do mais humilde dos meus irmãos, Cristo, no dia do Juízo, considerará a minha indiferença como uma afronta feita a si próprio.

Não será menor o erro de querer aproximar-me dos outros esquecendo-me de Deus. Só Deus, em quem somos irmãos, pode estabelecer uma lei que permita sairmos do nosso egoísmo instintivo para chegarmos a um altruísmo sincero. Não há dúvida de que seria falso negar a bondade natural do homem. 'É uma lei da natureza', afirmava Cícero, 'que o homem queira bem ao homem, unicamente porque é homem' (De officiis, 111, 6). A mais segura teologia confirma esta doutrina: 'A natureza', escreve São Tomás, 'pôs no coração do homem uma inclinação natural para amar todos os homens'(Contra Gentes, 111, c. 130). A amizade, a simpatia, a compaixão conseguem por si sós que os homens se esqueçam de si próprios, que se sacrifiquem e se consagrem aos outros. Também não é menos forte o sentimento natural de solidariedade, embora muitas vezes só se manifeste efetivamente no círculo de determinados agrupamentos (nações, classes, partidos). Mas aqui se observa claramente o grande fator de divisão entre os homens – o interesse.

Numa coletividade, o interesse constitui um elo apenas provisório; no fundo, é um dissolvente que fatalmente quebra todas as uniões. Na vida cotidiana, há sempre um momento em que os dois termos – a outra pessoa e eu – tendem a opor-se, e em que o meu direito me parece mais líquido e certo. Devo abrir mão daquilo que essa pessoa reclama para si?

É necessário um terceiro termo para me convencer de que nada perco ao renunciar a alguma coisa em benefício dos meus irmãos. É Deus quem me faz encontrar a felicidade amando o próximo como a mim mesmo. A justiça dos cristãos não se baseia num código: é o exercício de uma fraternidade que ama e que tem a sua origem em Deus. A propósito de São Vicente de Paula, houve alguém que fez esta observação muito oportuna: 'Não foi o amor aos homens que o levou à santidade; foi antes a santidade que o tornou verdadeira e eficazmente caritativo. Não foram os pobres que o deram a Deus; foi Deus quem o deu aos pobres'. Gratry observava o mesmo: 'Os santos não se elevam até o amor de Deus à força de não amarem mais ninguém, mas amam toda a gente mais do que a si próprios por muito amarem a Deus sobre todas as coisas'.

Descobrimos agora a amplitude da 'justiça' de que os discípulos de Cristo têm fome e sede: ela torna-os insaciáveis em alcançar a glória de Deus promovendo a felicidade dos homens; em reconstruir o mundo tal como Deus o ordenou, tendo como alicerce o amor. Renegaríamos, sem dúvida, o nosso nome de cristãos se prejudicássemos voluntariamente um dos nossos irmãos; mas a sede de justiça vai muito mais longe do que o respeito pelos direitos dos outros. É uma inquietação que nos faz recear não darmos aos nossos irmãos tudo o que lhes devemos; é um tormento que não nos dá tréguas enquanto não forem suprimidos os abusos de que os nossos semelhantes são vítimas, e que nos leva a repará-los, na medida em que nos for possível.

'Lembrai-vos dos que são maltratados, como se habitásseis o mesmo corpo'. Este conselho da Epístola aos Hebreus (Hb 13, 3) deve ser uma norma de ação para todos os cristãos. A falta de respeito, a denegação da justiça, infligidas aos outros, devemos nós senti-las como se fôssemos nós os atingidos: devemos senti-las em nossa carne.

No fim do seu livro Les Sources, Gratry resumia deste modo a sua mensagem: 'Só peço uma coisa ao mundo contemporâneo: a vontade resoluta, decidida, de abolir a miséria. Que se decida publicamente, solenemente, a tomar como divisa a indicação de Moisés: 'Ó Israel, não suportarás que haja em teu seio um só mendigo nem um só indigente'. Que todos os povos, todos os partidos estejam de acordo neste único ponto e o ponham em prática incansavelmente. Isso basta. Afirmo que é por esse caminho que a justiça, a verdade e a religião se propagam pela face da terra'.

Este apelo pungente, doloroso, não ficou sem eco. É inegável que, de há umas décadas para cá, a boa vontade geral se tem esforçado por melhorar a condição dos homens que sofrem, isto é, da maior parte dos seres humanos. Também é certo que os cristãos tomaram uma ampla parte nesta recuperação da justiça. Gostaríamos, no entanto, que todos os discípulos de Cristo, sem exceções, tivessem sido os seus promotores. Nem todos compreenderam imediatamente que o entrechoque de interesses deve ceder o lugar a uma cooperação equitativa; que a esmola é uma hipocrisia quando substitui o salário; que a reabilitação das classes desfavorecidas exige a renúncia aos privilégios da fortuna.

Não tenhamos ilusões; as reformas sociais a que se procedeu desde o início deste século foram muitíssimas vezes obtidas pelo recurso à força, e outras tantas concedidas sob o domínio do medo. Muitos males passados e futuros se teriam podido ou se poderiam evitar se os cristãos cerrassem fileiras e se transformassem em campeões da justiça!

Não devemos pensar que estas considerações se situam fora da esfera do reino de Deus. Para ser eficaz, a luta contra a miséria deve ser combatida em suas origens. E um cristão não pode resignar-se a ver o pecado alterar a ordem do mundo. A sua sede de justiça confunde-se com a sua fome de santidade. E não é menos verdade que, contribuindo para tornar mais humana a sorte dos homens, é a Cristo em pessoa que os seus discípulos glorificam.

Um desgraçado que esteja em contato com cristãos emshy;penhados em lutar pela dignidade e pelos direitos dos meshy;nos favorecidos, com cristãos dispostos a suportar todas as misérias para aliviar as dos outros, esse desgraçado não tarda a reconhecer que ”nem só de pão vive o homem” e que a virtude é a condição necessária para um progresso real e duradouro.

Mas o verdadeiro drama do cristão que toma a sério o Evangelho é não poder viver dentro da justiça, pois faz parte de um estado social que contradiz o seu ideal de fraternidade e santidade. Condena a guerra, e tem de viver numa sociedade que a prepara; come o pão de cada dia, mas num mundo onde centenas de milhares de indivíduos padecem fome; serve-se das vantagens de um regime econômico que permite abusos revoltantes; exerce talvez uma profissão em que não lhe é permitido ser rigorosamente honesto.

Não há dúvida de que se dedica, no círculo restrito da sua atividade, a denunciar o mal, a reduzi-lo, a repará-lo. Mas nem por isso deixa de partilhar da responsabilidade dos grupos a que pertence. Os pecados coletivos de uma sociedade que tolera a miséria e a imoralidade pública são, em parte, pecados seus, pois é um dos membros dessa sociedade. Estes pecados que vê com horror, não pode ele impedir que se cometam. Tem de viver e sofrer nessa tensão contínua. Compreende-se agora que, nesta contradição atroz, soframos, depois do Cordeiro de Deus, 'o pecado do mundo', e que, por este despedaçamento da nossa consciência e do nosso coração, prolonguemos o sofrimento de Cristo crucificado, para redenção dos homens. É vocação nossa viver esta contradição, aceitar no meio da multidão a solidão da cruz, ter apenas a amargura das nossas desilusões para matar a nossa sede de justiça.

Sede benéfica, pois o seu aguilhão nos lembra incessantemente que devemos dedicar-nos aos nossos irmãos. Sede abençoada, porque o próprio Cristo a acalma, fazendo-nos vislumbrar, para além das tristezas e dúvidas do presente, dias melhores em que os nossos descendentes hão de viver em sociedades mais fraternais. Sede de justiça e fome de santidade, que se misturam no nosso interior num mesmo tormento, e que serão plenamente saciadas se tivermos sofrido o bastante para que Deus nos reconheça no último dia e nos diga: 'Vinde, abençoados de meu Pai. Tive sede, e me destes de beber, pois tudo o que fizestes ao mais pequeno dos meus irmãos, a mim o fizestes'.

(Excertos da obra ' Sermão da Montanha', de Georges Chevrot, Ed. Quadrante, 1988)

domingo, 3 de abril de 2016

'MEU SENHOR E MEU DEUS!'

Páginas do Evangelho - Segundo Domingo da Páscoa


O segundo domingo do tempo pascal é consagrado como sendo o 'Domingo da Divina Misericórdia', com base no decreto promulgado pelo Papa João Paulo II na Páscoa do ano 2000. No Domingo da Divina Misericórdia daquele ano, o Santo Padre canonizou Santa Maria Faustina Kowalska, instrumento pelo qual Nosso Senhor Jesus Cristo fez conhecer aos homens o seu amor misericordioso: 'Causam-me prazer as almas que recorrem à Minha misericórdia. A estas almas concedo graças que excedem os seus pedidos. Não posso castigar, mesmo o maior dos pecadores, se ele recorre à Minha compaixão, mas justifico-o na Minha insondável e inescrutável misericórdia'.

No Evangelho deste domingo, Jesus já havia se revelado às santas mulheres, a Pedro e aos discípulos de Emaús. Agora, apresenta-se diante os Apóstolos reunidos em local fechado e, uma vez 'estando fechadas as portas' (Jo 20, 19), manifesta, assim, a glória de sua ressurreição aos discípulos amados. 'A paz esteja convosco' (Jo 20, 19) foi a saudação inicial do Mestre aos apóstolos mergulhados em tristeza e desamparo profundos. 'A paz esteja convosco' (Lc 20, 21) vai dizer ainda uma segunda vez e, em seguida, infunde sobre eles o dom do Espírito Santo para o perdão dos pecados: 'Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos' (Jo 20, 22-23), manifestação preceptora da infusão dos demais dons do Espírito Santo por ocasião de Pentecostes. A paz de Cristo e o Sacramento da Reconciliação são reflexos incomensuráveis do amor e da misericórdia de Deus. 

E eis que se manifesta, então, o apóstolo da incredulidade, Tomé, tomado pela obstinação à graça: 'Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei' (Jo 20, 25). E o Deus de Infinita Misericórdia se submete à presunção do apóstolo incrédulo ao lhe oferecer as chagas e o lado, numa segunda aparição oito dias depois, quando estão todos novamente reunidos, agora com a presença de Tomé, chamado Dídimo. 'Meu Senhor e meu Deus!' (Jo, 20, 28) é a confissão extremada de fé do apóstolo arrependido, expressando, nesta curta expressão, todo o tesouro teológico das duas naturezas - humana e divina - imanentes na pessoa do Cristo.

'Bem-aventurados os que creram sem terem visto!' (Jo 20, 29) é a exclamação final de Jesus Ressuscitado pronunciada neste Evangelho. Benditos somos nós, que cremos sem termos vistos, que colocamos toda a nossa vida nas mãos do Pai, que nos consolamos no tesouro de graças da Santa Igreja. E bem-aventurados somos nós que podemos chegar ao Cristo Ressuscitado com Maria, espelho da eternidade de Deus na consumação infinita da Misericórdia do Pai.