quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A MINHA CRUZ


Também a mim Jesus quis dar uma cruz. E que melhor coisa Ele podia dar-me, depois de si mesmo, do que o Trono onde reinou na hora da sua máxima vitória, quando subjugou o inferno? Se Ele há de aparecer no último dia flanqueado pela cruz, não é justo e belo que eu me encaminhe para a eternidade levando-a sobre os ombros?

Às vezes relanceio os olhos em torno e vejo muitas cruzes arrastadas pelos meus irmãos. Ao vê-las tão de longe, parecem-me pequenas e ligeiras mas, se me aproximo a examiná-las, constato que são feitas como a minha e, às vezes, ainda mais pesadas. Não seria uma estultice perguntar a Deus porque me deu uma cruz? Eu sou filho de Adão e filho de Jesus: filho do primeiro culpado e filho do maior inocente; portanto? Portanto, devo também eu ter uma cruz para fazer penitência e santificar-me na imitação de Jesus.

Quem é que sabe que eu tenho uma cruz? Quase ninguém. E quem se compadece ao ver-me vergado ao peso dela? Bem poucos e, certos dias, absolutamente ninguém. As criaturas tendem mais para a alegria que para a dor: eis porque os dolentes são muitas vezes abandonados. Mas se poucos ou ninguém se ocupa de mim, há um que sabe tudo o que tenho sobre os ombros e me pesa no coração: é Jesus. Que alegria apresentar-me a Jesus e ser conhecido por Ele somente! Assim, posso confidenciar com Ele só, eu e Ele, falar-lhe dos meus sofrimentos, sem que o mundo venha tentar-me com os seus perigosos confortos. Ah! Quando se sofre, é muito mais fácil entendermo-nos com Jesus do que com as criaturas.

O mundo tem um critério que é uma verdadeira malícia. Quando alguém geme sob o peso da cruz que o esmaga, julga-se que ele seja um culpado e, em vez de se admirar a sua paciência e expiação, considera-se exclusivamente a sua culpa e ele é desprezado. Jesus, ao contrário, segue o critério oposto. Quando vou encontrá-lo, Ele olha-me sorrindo. Mas por quê? Não o tenho eu ofendido mil vezes? Sim, mas agora trago a cruz do sofrimento e da penitência, e é isto o que mais lhe agrada. Se comigo entrassem na igreja todos os reis da Terra cingindo as suas coroas e empunhando os seus cetros, Jesus, ao dar-nos audiência, receber-me-ia a mim de preferência, porque eu trago uma cruz e eles não.

Pobre coração o meu! Também tu lamentas de teres de arrastar uma cruz, tu que eras chamado para a alegria e para a felicidade. Pobre coração! De que serviriam todas as minhas penitências, se tu não fosses o primeiro a sofrer, e se não sofresses mais que todos os sentidos e que toda a minha alma? Todo o mal que eu pratiquei não veio porventura de ti? Foste tu que me afastaste de Jesus para me impelir a amar as criaturas; por isso toca-te agora a parte mais amarga da expiação. De resto, és tu que recebes todas as manhãs o teu Jesus; e desejarias que Jesus descesse a um coração sem encontrar nele ao menos um pouco do seu calvário, uma relíquia da sua cruz, uma reminiscência da sua paixão e morte? Ah! Se não tivesses também tu a tua cruz, em um só dia tornar-te-ias tão mau como dantes.

Eu beijo, embora chorando, a minha cruz, porque, se não fosse ela, eu não me teria avizinhando tanto do Tabernáculo. Ah! Quando se sofre, não bastam já ao coração as imagens santas; quer-se uma realidade vivente, falante e, sobretudo, amante; mas onde encontrá-la fora do Tabernáculo? Agora, depois de tantas dores suportadas, se me propusessem aliviar-me da minha cruz com a condição de me distanciar de Jesus Sacramentado, embora esteja cansado de sofrer e desejoso de repousar em paz, repeliria a oferta, como se repele um veneno. A cruz amargura-me a alma e o coração, é verdade; mas não tão completamente, que não lhes deixe intactas e livres as partes mais recônditas, mais secretas e mais delicadas; e é aqui exatamente que vem repousar o meu Jesus quando o recebo na Comunhão. Se a cruz me fere e me pesa externamente, Jesus me alegra e me conforta na parte mais viva e mais íntima do meu ser.

Pensando bem, vejo que é uma estultice considerar as cruzes unicamente como um castigo dos pecados cometidos. Mais que um castigo, a cruz é uma honra, porque é uma participação da paixão de Jesus e produz na alma uma semelhança belíssima com Ele. Que coisas seriam todas as virtudes cristãs se não fossem embelezadas e enriquecidas por uma cruz? É inútil procurar uma santidade que sofra, porque é impossível haver sabor de virtude que não amadureça sobre o Calvário. Portanto, se sofro, sou honrado e santificado pelo meu próprio sofrimento, e devo agradecer a Jesus que, quando vem encontrar-me, traz-me sempre um pouco desta santidade; nem me devo maravilhar se, depois de feita a Comunhão, voltando às costumeiras ocupações, encontro muitas vezes uma cruz bela e preparada. É o presente de Jesus ao seu dileto.

A minha cruz é ainda santa, porque me foi dada por Jesus, e é destinada a santificar-me. Contudo, quando adoro Jesus junto do Tabernáculo e, mais ainda, quando o aperto ao coração na Comunhão, depois de lhe oferecer tudo o que a cruz me faz sofrer, não sei por que extravagância do espírito, quisera deixar ali a minha cruz e ir-me embora sem ela. É este um sinal evidentíssimo da pouca perfeição com que o visito e o recebo, e uma revelação da minha insensatez, visto demonstrar como eu tenho esquecido a sentença de Jesus: que não é digno d'Ele quem não arrasta a sua cruz. Se há uma coisa que deveria me fazer amar a cruz e me torná-la leve, é exatamente a Eucaristia; e eu hei de querer servir-me da Eucaristia para livrar-me das minhas cruzes?

Quando contemplo as imagens do Coração de Jesus, faz-me sempre uma singular impressão vê-lo com uma cruz implantada ao meio, com uma abertura no lado e todo cingido em torno por uma coroa de espinhos: são estes os símbolos dos seus sofrimentos imensos. Mas o que mais me impressiona é ver que, das feridas produzidas pela cruz, pela lança e pelos espinhos, saem tantas flamas, que são outros tantos símbolos do amor. Portanto, concluo comigo mesmo que o Coração de Jesus é feito de tal maneira que as feridas, que os homens lhe fazem, correspondem não a raios da indignação e da vingança, mas a chamas de amor. 

Oh! Se o meu coração se assemelhasse um pouco ao Coração de Jesus! Como me tornaria santo bem depressa, se a todo o golpe que Jesus me dá com a cruz, a toda a tribulação que me manda, eu soubesse responder, não com lamentos e impaciências, como estou acostumado, mas com outras tantas chamas de amor! E, todavia, se desejo que o meu coração se torne semelhante ao seu, devo desejar amá-lo em proporção daquilo que sofro e desejar sofrer ainda mais para poder amá-lo sempre mais. Assim deveria fazer. Mas, quanto estou longe do perfeito cumprimento do meu dever!

A minha Cruz... Pobre cruz! Um pouco a desejo, e outro pouco a temo: ora a encontro bela, e ora me causa repulsão: hoje beijo-a e amanhã dela me afasto. E pensar que esta cruz afinal não é minha, mas a própria Cruz de Jesus! Se a olho bem vejo ainda, aqui e além, pérolas de sangue que correm misturadas a gotas de pranto. São o Sangue de Jesus e as lágrimas de Maria. E porque não desejá-la sempre, não a encontrar sempre bela, não a beijar sempre? Certo que, se espero conhecer-lhe o mérito escutando a voz do mundo, a cruz me será sempre apresentada como uma coisa detestável. O melhor será arrastá-la sempre recorrendo a Jesus e rogando-lhe que me faça conhecer tal qual ela é, e amá-la quanto merece. Assim farei sempre; e Jesus me verá todos os dias afastado das criaturas, reconhecido aos pés d'Ele e, como um prisioneiro do Tabernáculo, a mover-me incessantemente entre a sua Cruz e o seu Coração.

(Excertos da obra 'Centelhas Eucarísticas', de original italiano, 1906; trad. de Adolfo Tarroso Gomes, 1924)

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