domingo, 13 de março de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'O Senhor é minha luz e salvação' (Sl 26)

 13/03/2022 - Segundo Domingo da Quaresma 

16. A TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR 


Jesus acabara de fazer o anúncio de sua Paixão aos discípulos e eles experimentavam, naquele momento, o peso das tribulações e das adversidades futuras que certamente teriam de enfrentar. O Filho do Homem se revelara vítima pascal e não senhor de um exército dominador: o Reino de Deus não é deste mundo e a redenção teria que perpassar necessariamente pela subida do Calvário. Aqueles homens precisavam, mais do que nunca, da fortaleza da graça sobrenatural. E, três deles, Pedro, Tiago e João, a receberiam com abundância extrema.

Neste Segundo Domingo da Quaresma, meditamos esta extraordinária experiência sobrenatural vivida pelos três apóstolos no alto do Monte Tabor. Jesus os levou consigo para subir a montanha 'para rezar' (Lc 9,28), pois é a oração que nos coloca plenamente sob o repositório das graças divinas. A fragilidade humana tomou frente a princípio pelo sono de todos e pelas palavras desarticuladas de Pedro: 'vamos fazer três tendas' (Lc 9,33). Mas esvaiu-se de vez quando os três apóstolos foram inundados pela claridade luminosa emanada dos corpos gloriosos de Jesus, Moisés e Elias.

Naquele lugar, e ainda que por um breve tempo, os três apóstolos puderam contemplar na terra a glória de Deus. E testemunhar que a história humana evolui pelos tempos confirmada pela Lei (presença de Moisés) e pelos Profetas (presença de Elias). A transfiguração do Senhor é um evento extraordinário da manifestação divina de Jesus aos homens, um olhar da história humana no espelho da eternidade.

'Este é o meu Filho, o escolhido. Escutai o que Ele diz' (Lc 9, 35). Solícitos na oração, firmes na fé, tornamo-nos oratórios dignos das abundantes graças de Deus. Somos movidos, pela coragem, a superar as adversidades, as tentações, as dores humanas; pela fortaleza, impõe-se seguir em frente, avançar para águas mais profundas, subir a montanha das graças e da transfiguração de nossa imensa fragilidade humana. E também, descer outra vez a montanha, voltar ao caminho de Jerusalém e do Gólgota, repetir quantas vezes, e por quanto tempo for, o itinerário contínuo de enfrentar e vencer o mundo, oportuna ou inoportunamente, até o Tabor definitivo de nosso encontro com Deus na eternidade.

sábado, 12 de março de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXVII)

Capítulo XXVII

As Causas dos Sofrimentos - Razão das Expiações do Purgatório - Ensinamentos de Suarez e de Santa Catarina de Gênova

Por que as almas devem sofrer antes de serem admitidas para ver Deus face a face? Qual é a razão, ou qual é a justificativa dessas expiações? O que tem o fogo do Purgatório para purificar, o que precisa ser consumido nele? São, dizem os Padres  da Igreja, as impurezas ou máculas devidas aos nossos pecados.

Mas o que se entende aqui por impurezas? De acordo com a maioria dos teólogos, não é a culpa do pecado, mas a dor ou a dívida da dor procedente do pecado. Para entender bem isso, devemos lembrar que o pecado produz um duplo efeito na alma, que chamamos de dívida (reatus) de culpa e dívida de dor; que torna a alma não apenas culpada, mas merecedora de dor ou castigo. Ainda que a culpa seja perdoada, acontece geralmente que a dor perdura, total ou parcialmente, e, portanto, deve ser suportada ou expiada nesta vida ou na vida futura.

As almas do Purgatório não detêm nenhuma dívida de culpa; a culpa venial que tinham no momento de sua morte desaparece na ordem da pura caridade com a qual estão plenamente infundidos na outra vida; o que ainda carregam consigo é a dívida dos sofrimentos que não foram expiados antes da morte. Esta dívida procede de todas as faltas cometidas durante a vida, especialmente aquelas devidas aos pecados mortais, remidos quanto à culpa por confissões sinceras, mas que deixaram de ser expiadas devidamente com frutos dignos de penitência exterior.

Tal é o ensinamento comum dos teólogos, que Suarez resume em seu Tratado sobre o Sacramento da Penitência: 'Concluímos então que todos os pecados veniais com que morre um justo são remidos da culpa, no momento em que a alma é separada do corpo, em virtude de um ato de amor a Deus, e a contrição perfeita que então excita por todas as suas faltas passadas. De fato, a alma neste momento conhece perfeitamente a sua condição e os pecados dos quais foi culpada diante de Deus; ao mesmo tempo, é dona de suas faculdades, para poder agir. Por outro lado, da parte de Deus, são dadas a ela as ajudas mais eficazes, para que aja segundo a medida da graça santificante que possui. Segue-se, então, que, nesta disposição perfeita, a alma age sem a menor hesitação. Volta-se diretamente para o seu Deus e encontra-se livre de todos os seus pecados veniais por um ato de soberana aversão ao pecado. Este ato universal e eficaz basta para a remissão de sua culpa. Toda mácula de culpa então desaparece; mas a dor continua a ser imposta e deve ser expiada, com todo o rigor e longa duração, pelo menos para aquelas almas que não são assistidas pelas intenções dos vivos. Eles não podem obter o menor alívio para si mesmas, porque o tempo do mérito já passou; elas não podem mais merecer, podem apenas sofrer e, assim, pagar à temível justiça de Deus tudo o que devem, até o último centavo - usque ad novissimum quadrantem (Mt 5, 26).

Essas dívidas de dor são restos de pecados e uma espécie de obstáculo, que lhes intercepta a visão de Deus e que impõe um freio à união da alma com o seu fim último. Uma vez que as almas do Purgatório estão livres da culpa do pecado - escreve Santa Catarina de Gênova -  não há outra barreira entre elas e sua união com Deus, a não ser os restos do pecado, os quais devem ser expiados. Estes obstáculos que sentem dentro de si fazem com que padeçam os tormentos dos condenados, dos quais falamos previamente, e retardam o momento no qual o instinto pelo qual são atraídas para Deus, quanto à sua soberana bem aventurança, atingirá a sua plena manifestação. 

As almas têm a plena percepção de quão graves são, diante de Deus, os menores resquícios dos pecados cometidos e que é, por necessidade de justiça, que estes devem ser pagos até a plena saciedade do seu instinto beatífico. Esta percepção faz incendiar dentro delas um fogo ardente e semelhante ao do inferno, com exceção da culpa do pecado.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

sexta-feira, 11 de março de 2022

COMO O BOM LADRÃO DO PARAÍSO


Quanto pior um homem se vai tornando, menos irá compreendendo a sua maldade, exatamente como sucede a um doente, cuja febre vai subindo até o fazer delirar, e que menos e menos compreende que está doente, quanto mais febre tem e mais delira, a ponto de poder julgar-se tão perfeitamente são, que quer erguer-se do leito para ir trabalhar. Todas as pessoas banalmente más se julgam boas. Só quando acordamos é que sabemos que estivemos a dormir, tal qual só reconhecemos que éramos pecadores, quando libertos do pecado e restituídos à graça de Deus.

Só quando estamos doentes é que pedimos um médico, e só quando nos confessamos pecadores é que imploramos o perdão do Redentor. Assim o disse Nosso Senhor: 'Os que têm saúde não precisam de médico, mas sim os que estão doentes' (Mt 9, 12). Quando, pois, chegarmos ao ponto de começarmos a sentir-nos e a dizer-nos maus, então e só então, estaremos no caminho que levou para o Paraíso o bom ladrão. O reconhecimento da culpa é a condição da conversão, assim como o reconhecimento da doença é a condição do seu tratamento. Enquanto nos julgarmos bons, nunca encontraremos Deus. Se na nossa petulante vaidade julgamos que sabemos tudo, como poderemos admitir, ou conceber sequer, que Deus nos pode ensinar seja o que for que não saibamos já?

Condescendemos às vezes em reconhecer que temos mau gênio ou que somos um tanto imoderados nos prazeres, sejam da mesa, sejam outros, mas haverá alguém que leve a condescendência até ao ponto de reconhecer que é vaidoso ou sequer apenas pretensioso? Se não há ninguém que não censure os outros por serem vaidosos, como haverá quem reconheça em si próprio esse pecado? Quanto mais pretensioso cada um for, mais abominará a pretensão dos outros. Quanto mais cada um disser: 'Vaidoso é que eu não sou!', mais demonstrará que o é, como aquele seminarista ingenuamente vaidoso, que depois de ouvir na aula de moral uma lição sobre os males da vaidade e as virtudes da humildade, exclamou entusiasmado para o padre professor: 'Eu, senhor padre, a respeito de humildade cristã, estou primeiro que ninguém!'

A vaidade e o orgulho faz com que vejamos toda a restante humanidade lá muito em baixo, de maneira que nunca poderemos erguer os olhos para ver Deus lá muito em cima. E realmente, se o nosso orgulho não nos deixa reconhecer e admitir outra lei e outra autoridade que não sejam a nossa própria, está claro que é um orgulho essencialmente contrário à lei e à autoridade de Deus. 

Todos os mais pecados que possamos cometer, tais como avareza, luxúria, cólera, gula, todos podem provir de nós apenas, mas o pecado do orgulho, esse provém diretamente de Satanás. Foi esse o pecado que o precipitou, e aos anjos seus sequazes, do alto dos Céus no abismo do Inferno, e é um pecado que elimina até mesmo a possibilidade da conversão.

Se, portanto, formos capazes de nos humilharmos, como se humilhou o ladrão crucificado à direita de Nosso Senhor; se chegarmos como ele a confessar que pecamos, então o nosso brado de arrependimento erguer-se-á até Deus, a implorar-lhe que se lembre de nós na desventura em que caímos! No mesmo instante em que deixarmos de nos envaidecer e em que começarmos a ver-nos como realmente somos, então na nossa humildade e penitência seremos erguidos pela graça de Deus até ao seu perdão.

Façamos, portanto, o nosso exame de consciência: perguntemos a nós próprios, com total e inteira franqueza, não se sabemos muitas coisas, mas sim quais as muitíssimas coisas que não sabemos; não se somos muito bons e virtuosos, mas se somos muito maus e muito pecadores. Julguemo-nos a nós mesmos, não à luz do nosso amor-próprio, mas à luz da nossa reta consciência; não à vista da nossa cultura, mas à vista dos nossos atos; não perante a nossa educação, mas perante o nosso coração. 

Não tardaremos, se bem verdadeira, leal e profundamente nos examinarmos, em sentir nas nossas almas um grande vácuo, em reconhecer que só estavam cheias da negação que se chama pecado, em experimentar a sede da água límpida da Divina Graça, em bradar como o bom ladrão e como depois dele, todos os tementes a Deus, quando se vão ajoelhar no Tribunal da Penitência: 'Padre, absolva-me, porque pequei e sou agora um pecador arrependido!'. É assim que principia para cada um de nós a salvação.

O bom ladrão foi ladrão até na morte porque conseguiu com ela ser ladrão do Paraíso, que em vida não merecera e só à hora da morte conquistou. Pois também cada um de nós, se conquistar o Paraíso, será ladrão como ele foi, porque teremos conquistado o que também em vida não merecemos: o eterno descanso na perpétua luz e na suprema paz do Reino de Deus!

('As Sete Palavras da Cruz', do Mons. Fulton Sheen, 1953)

quinta-feira, 10 de março de 2022

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (VI)

Bula Pontifícia BULA UNAM SANCTAM [18 de novembro de 1302]

Papa Bonifácio VIII (1295 - 1303)

sobre o primado papal


Una, santa, católica e apostólica: esta é a Igreja que devemos crer e professar já que é isso o que a ensina a fé. Nesta Igreja cremos com firmeza e com simplicidade testemunhamos. Fora dela não há salvação, nem remissão dos pecados, como declara o esposo no Cântico: 'Uma só é minha pomba sem defeito. Uma só a preferida pela mãe que a gerou' (Ct 6,9). Ela representa o único corpo místico, cuja cabeça é Cristo e Deus é a cabeça de Cristo. Nela existe 'um só Senhor, uma só fé e um só batismo' (Ef 4,5). De fato, apenas uma foi a arca de Noé na época do dilúvio; ela foi a figura antecipada da única Igreja; encerrada com 'um côvado' (Gn 6,16), teve um único piloto e um único chefe: Noé. Como lemos, tudo o que existia fora dela, sobre a terra, foi destruído.

A esta única Igreja, nós a veneramos, como diz o Senhor pelo profeta: 'Salva minha vida da espada, meu único ser, da pata do cão' (Sl 21,21). Ao mesmo tempo que Ele pediu pela alma - ou seja, pela cabeça - também pediu pelo corpo, porque chamou o seu corpo como único, isto é, a Igreja, por causa da unidade da Igreja no seu esposo, na fé, nos sacramentos e na caridade. Ela é a veste sem costura (Jo 19,23) do Salvador, que não foi dividida, mas tirada à sorte. Por isso, esta Igreja, una e única, tem um só corpo e uma só cabeça, e não duas como um monstro: é Cristo e Pedro, vigário de Cristo, e o sucessor de Pedro, conforme o que disse o Senhor ao próprio Pedro: 'Apascenta as minhas ovelhas' (Jo 21,17). Disse 'minhas' em geral e não 'esta' ou 'aquela' em particular, de forma que se subentende que todas lhe foram confiadas. Assim, se os gregos ou outros dizem que não foram confiados a Pedro e aos seus sucessores, é necessário que reconheçam que não fazem parte das ovelhas de Cristo pois o Senhor disse no evangelho de São João: 'Há um só rebanho e um só Pastor' (Jo 10,16).

As palavras do Evangelho nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, todas as duas estão em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a Igreja enquanto que a primeira deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do padre; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual.

O poder espiritual deve superar em dignidade e nobreza toda espécie de poder terrestre. Devemos reconhecer isso quando mais nitidamente percebemos que as coisas espirituais sobrepujam as temporais. A verdade o atesta: o poder espiritual pode estabelecer o poder terrestre e julgá-lo se este não for bom. Ora, se o poder terrestre se desvia, será julgado pelo poder espiritual. Se o poder espiritual inferior se desvia, será julgado pelo poder superior. Mas, se o poder superior se desvia, somente Deus poderá julgá-lo e não o homem. Assim testemunha o apóstolo: 'O homem espiritual julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado' (1Cor 2,15).

Esta autoridade, ainda que tenha sido dada a um homem e por ele seja exercida, não é humana, mas de Deus. Foi dada a Pedro pela boca de Deus e fundada para ele e seus sucessores naquele que ele, a rocha, confessou, quando o Senhor disse a Pedro: 'Tudo o que ligares...' (Mt 16,19). Assim, quem resiste a este poder determinado por Deus, 'resiste à ordem de Deus' (Rm 13,2), a menos que não esteja imaginando dois princípios, como fez Manes, opinião que julgamos falsa e herética, já que, conforme Moisés, não é 'nos princípios', mas 'no princípio Deus criou o céu e a terra' (Gn 1,1).

Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao romano pontífice.

quarta-feira, 9 de março de 2022

'SENHOR, AJUDA A MINHA INCREDULIDADE!'


Era uma vez um sacerdote, um sacerdote que duvidava: duvidava que Cristo fosse o Filho de Deus, duvidava da sua Ressurreição, duvidava de que estivesse realmente presente na Eucaristia, duvidava de que a ele, sacerdote, pudesse ser conferido o poder de transformar, pelas palavras da consagração, o pão e o vinho no Corpo e no Sangue de Cristo. Duvidava até da existência de Deus. Essa dúvida era para ele um tormento contínuo. Às vezes, invadia-o por inteiro, e a sua vida parecia-lhe um sem sentido e o seu ministério, uma mentira. Outras vezes, abrandava um pouco, deixando-lhe o terrível remorso de ter consentido.

Ele sabia, é certo, que não era nem o primeiro nem o único a ter dúvidas. Lembrava-se de que um mestre em teologia tinha ido, certo dia, confiar as suas dúvidas ao bispo de Paris. O bispo Guillaume, depois de se ter certificado de que o mestre em teologia lutava com todas as suas forças contra essas dúvidas e que não desejava por nada neste mundo abandonar-se a elas, tinha-lhe dito:

- Sabeis muito bem, mestre, que o rei da França está em guerra com o rei da Inglaterra, e que a praça forte mais exposta e mais próxima da frente de batalha é o castelo de La Rochelle, no Poitou. Se o rei vos tivesse confiado a guarda de La Rochelle e a mim a do castelo de Montlhéry, bem em paz no coração da França, a qual de nós dois, no fim da guerra, deveria ele mais reconhecimento por ter guardado o seu castelo?
- A mim, que teria defendido La Rochelle.
- Pois Deus - concluiu o bispo - agradece-vos muito mais que lhe permaneçais fiel do que a mim, que fui poupado de toda dúvida. O vosso coração é La Rochelle e o meu, Montlhéry.

O sacerdote pensava com frequência nesse exemplo, mas isso não lhe dava muito consolo. Também ele lutava contra a dúvida, também ele não teria, por nada neste mundo, cedido à incredulidade. Mas podia submergir a qualquer momento. Podia perder La Rochelle. E que reconhecimento esperar, para que continuar a lutar, se já não cria na existência do 'rei da França'?

O seu maior sofrimento era ter de celebrar a Santa Missa todos os dias. Sentia-se indigno. Sabia que quem come a carne de Cristo e bebe o seu sangue indignamente, come e bebe a sua própria condenação (1 Cor 11, 27). E ele, que consagrava o pão e o vinho, que confeccionava o Corpo e o Sangue de Cristo antes de comê-lo e de bebê-lo, antes de distribuí-lo aos seus irmãos, em que condenação não incorria!

E se a dúvida fosse fundada? Para que então essa mascarada, essa palhaçada, dia após dia? Nesse caso, indigno não seria o sacerdote nele, mas o homem, que se enganava a si mesmo e enganava os outros, que pregava aquilo que sabia ser falso, que prometia uma salvação ilusória, que consentia em viver cercado do respeito, que se prestava a um estado que ele mesmo já não respeitava.

Certa manhã, como na véspera, e na antevéspera, e no dia anterior, como todas as manhãs, subia angustiado os degraus do altar. As únicas palavras de toda a Missa que lhe saíam do fundo do coração, as únicas que podia pronunciar sem mentir- assim lhe parecia- acabava de dizê-las; eram os versículos do salmo que o oficiante recita antes de subir ao altar, para se preparar para o ofício divino:
- Quare me repulisti, et quare tristes incedo... - 'Por que me rejeitaste, meu Deus, e por que ando triste sob a opressão do inimigo? Por que está tristes, ó minha alma? E por que me inquietas?'
Mas parecia-lhe estar mentindo já o final dessas orações : 'Subirei ao altar de Deus, do Deus que alegra a minha juventude...' E, ao traçar sobre si mesmo o sinal da cruz, não cria naquilo que o ajudante proclamava: 'A nossa salvação está no nome do Senhor...'

Naquele dia, à medida que a missa avançava, mais se convencia a cada instante de que já não era habitado pela dúvida, mas pela certeza de não crer mais. No entanto, essa certeza não lhe trazia paz alguma, antes o dilacerava, fazendo-o sofrer como por um amor traído. Agora, tinha de pronunciar as vãs palavras da consagração sobre esse pão e esse vinho, que depois disso - tinha a certeza - continuariam a ser pão e vinho, e nada mais:
Accipite et manducate ex eo omnes: hoc est enim corpus meum - 'tomai e comei todos vós, este é o meu corpo'.
E elevou a hóstia para apresenta-la à adoração dos fiéis, fixando os olhos com angústia nesse círculo de farinha branca e dura.

Soaram os três toques da sineta, seguidos do seu repique. Os assistentes baixaram a cabeça. Como prevê a liturgia, adorou a hóstia com uma genuflexão e preparava para depô-la na patena e tomar o cálice, quando percebeu de repente que ela sangrava. Sangrava de verdade. Era sangue o que corria sobre a toalha do altar, havia sangue nos seus dedos, sentia-os úmidos. Subiram-lhe lágrimas aos olhos, a voz se lhe embargava. No entanto, conseguiu de alguma forma chegar até o fim da missa, sustentado por essa Presença mais certa do que a de todos os objetos que o cercavam.

Como fizera outrora o mestre parisiense, foi falar com o bispo. Confessou-lhe tudo. A hóstia que sangrava tinha o libertado da sua dúvida, mas apenas para mergulhá-lo numa angústia ainda maior por causa do seu pecado. Esse sinal do Céu marcava a sua condenação, abatia a imprudência sacrílega do sacerdote que tinha profanado em pensamento o Corpo do Senhor, que tinha ousado consagrar as espécies sacramentais e ajoelhar-se diante da hóstia sem reconhecer nela mais do que um pedaço de pão.

O bispo reconfortou-o. O Senhor desejava tanto a sua salvação que chegara ao ponto de favorecê-lo com um sinal miraculoso para arrancá-lo à sua dúvida.
- Mas - objetou o sacerdote - Cristo ressuscitado disse a São Tomé: 'Porque me viste, crês. Felizes os que não viram e creram' (Jo 19,29). Não estive à altura dessa felicidade, dessa benção. Tive de ver para crer.
- É verdade - respondeu-lhe o bispo - mas qual é a fé que não dá lugar a dúvidas? Não duvidar não é crer, é saber, como quem viu.
- Mas uma dúvida como a minha, uma fraqueza tão grande!
- E quem tem força para crer? Nós só podemos esperar fielmente, na dúvida, que nos seja dada essa força. Não foi isso o que fizestes? Não pensais que é necessário muito amor para, mergulhado na dúvida, oferecer-se à fé mesmo antes de crer? Para isso, é necessário o amor mais violento e mais ansioso, como o amor que se experimenta por uma criança doente; conheceis bem esse pai que ouviu da boca de cristo que a fé era necessária para a cura do seu filho e que exclamou...

E o bispo interrompeu-se para deixar que o sacerdote citasse por si mesmo o Evangelho de São Marcos (Mc 9, 24) e fizesse seu o grito daquele pai angustiado:
- Senhor, eu creio, mas ajuda a minha incredulidade!

(Excertos da obra 'O Jogral de Nossa Senhora - Contos Cristãos da Idade Média; Ed. Quadrante, 2001)

terça-feira, 8 de março de 2022

PALAVRAS DE SALVAÇÃO



'É estranho a quantidade de inimigos que temos que combater desde o momento que tomamos a resolução de nos tornarmos santos. Parece que tudo se desencadeia: o demônio com as suas astúcias, o mundo com os seus atrativos, a natureza com a sua resistência que se opõe aos nossos bons desejos, os louvores dos bons, a crítica dos maus, as pressões dos tíbios'.

(São Cláudio de La Colombière)

segunda-feira, 7 de março de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (134/136)

 

134. DIÁLOGO COM SÃO PAULO

Jesus Cristo disse de si mesmo: 'Eu sou a luz do mundo'. Nos seus lábios e nos lábios dos seus apóstolos, em poucos anos, viu o mundo a formosura dessa luz e ficou envolvido em seus raios. Duvidais? Interrogai São Paulo, o gigante da verdade e do amor, o apóstolo que não descansa, a boca que não cala, as mãos que não desmaiam, o coração que nunca se apaga. Aí o tendes: interrogai-o.

➖ Santo Apóstolo, de onde vens?
➖ Da Grécia.
➖ Percorreste a Arábia?
➖ Toda.
➖ Estiveste na Ásia?
➖ Cheguei às suas praias mais remotas.
➖ E visitaste Atenas?
➖ Falei do Areópago, bem como nas ruas de Corinto, Tessalônica e Éfeso.
➖ Pensas em ir a Roma?
➖ Até lá chegarei. Tenho ardentes desejos de avistar-me com os césares do mundo.
➖ Estiveste na prisão?
➖ Muitas vezes.
➖ Sofreste naufrágios?
➖ Três vezes me vi nos abismos do mar.
➖ Estiveste em perigo de morte?
➖ Em muitos; a cada passo.
➖ Sofreste fome?
➖ Sim.
➖ Frio?
➖ Também.
➖ Ódios e calúnias?
➖ Isso toda a vida; prego a verdade e não me creem; prego o amor e odeiam-me.
➖ Santo Apóstolo, descansa!
➖ Não posso.
➖ Modera tuas energias.
➖ Tudo me parece pouco.
➖ És incompreensível.
➖ Sou a lógica, a lógica da verdade, a lógica do amor.

O Apóstolo cala-se um instante. Pensa. Levanta a cabeça e prossegue:
➖ Vi o meu divino Mestre. Conheci-o na estrada de Damasco. Compreendi que é a verdade, a luz. Levo-o no coração: é um fogo que me abrasa. Levo-o nos lábios: é uma luz que me guia e me arrebata. Poucos anos faz que andamos pelo mundo, eu e os demais Apóstolos, pregando a sua doutrina, anunciando a sua lei. Erguei os olhos e vede: a fé tem sido pregada em todo o universo. Jesus Cristo conquista toda a terra, porque Ele é a luz, é o sol da verdade. Viva Jesus Cristo!

135. UM MENTIROSO CRUEL

O czar Nicolau, que há cem anos governou o império russo, foi um dos homens mais sanguinários. A sua crueldade arrancou a vida de milhares de filhos da Igreja Católica; maior, porém, foi o número dos que tiveram uma morte lenta nos trabalhos forçados e nos horrendos cárceres do clima horrível da Sibéria.

Entretanto, diante dos reis europeus e sobretudo diante do Soberano Pontífice, fazia sempre alarde de sentimentos religiosos e humanitários. Indo a Roma, o poderoso e sanguinário czar foi recebido em audiência por sua Santidade o Papa Pio IX. O Pontífice perguntou-lhe como tratava os católicos. E o czar, com a mais vil hipocrisia, respondeu:
➖ Muito bem, Santíssimo Padre.

Não pôde o Papa sofrer a vileza daquele coração traidor. Levantou-se de seu trono, fitou o poderoso imperador com majestosa dignidade e com voz forte e enérgica disse:
➖ Mentis!
O imperador russo não pôde conservar-se em pé; ficou com que aniquilado e saiu dali aterrado, como se uma tempestade tivesse estalado sobre a sua cabeça e o fogo de um raio o ameaçasse. Desceu rapidamente as escadas do Vaticano e foi ocultar-se no palácio em que se hospedava.

Também a vós, milhares de cristãos; também a vós, milhares de católicos, pergunta o vigário de Jesus Cristo:
➖ Amais a Jesus Cristo?
E respondeis com hipócrita serenidade:
➖ Amamos!

➖ Mentis! vos dirá o Papa.
E com razão, pois não sois vós que profanais os dias santos de guarda? Não sois vós que abandonais a oração e os sacramentos? Não sois vós que desprezais os mandamentos divinos? E não mentis aos homens, mas a Jesus Cristo... ao próprio Deus!

136. O PUNHAL DA IMPUREZA

Aquele moço não conhecia maior tesouro neste mundo do que o coração de sua mãe. Filho e mãe viviam sozinhos no mundo. E eram felizes, porque possuíam a maior felicidade da vida: a felicidade do amor.

Mas aquele moço começou a sofrer de uma doença esquisita. Tremiam-lhe as pernas. O tremor nervoso subia pouco a pouco pelo corpo e, quando chegava à cabeça, estourava a loucura. Naqueles momentos de furiosa loucura, o rapaz procurava uma faca, empunhava-se e corria por toda a casa, com os olhos arregalados, gesticulando ferozmente, e gritando: 'Minha mãe, minha mãe! Onde está minha mãe? Quero matar minha mãe!'

Cessava a loucura. O filho voltava a si. Conhecia a sua loucura e, de joelhos, pedia mil vezes perdão a sua mãe. Dizia-lhe: 'Mãe, minha mãe, se um dia, num desses arrebatamentos, eu te tirasse a vida? Que seria de mim? Morreria de dor'. Assim também eram grandes os temores da mãe como as angústias do filho. Sabeis o que ele resolveu fazer? Quando sentia que o temor começava a subir-lhe pelo corpo, pegava uma corda muito forte, corria para a mãe e dizia-lhe: 'Amarra-me, mãe, amarra-me' e a mãe amarrava fortemente as mãos do filho.

No momento em que a loucura subia à cabeça, ele soltava rugidos de fera e gritava: 'Onde está minha mãe? Quero matar minha mãe!' Mas, como poderia fazer-lhe mal, se tinha as mãos bem amarradas? Passada a loucura, o moço tomava aquela corda e beijava-a com loucuras de amor. Meu irmão, alerta! Quando sentires que vem chegando a tentação, o perigo, toma o rosário, cinge-te com as cadeiras da oração. Reza e serás forte. Quando passar o perigo, beijarás, reconhecido e grato, o teu rosário, que te livrou do punhal da impureza.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)