sábado, 27 de julho de 2024

AMOR DE SALVAÇÃO


'E do alto lançaste a mão e desta profunda escuridão arrancaste a minha alma, chorando por mim minha mãe, Tua fiel, diante de Ti, mais do que choram as mães nas exéquias do corpo. Ela via a minha morte na fé e no espírito que recebera de Ti, e Tu ouviste-a, Senhor, ouviste-a e não desprezaste as suas lágrimas, quando irrigavam profusamente a terra debaixo dos seus olhos em todo o lugar da sua oração: ouviste-a.

Pois donde veio aquele sonho com que a consolaste, para que acedesse a viver comigo e a ter comigo a mesma mesa em casa? O que começara por não querer, repudiando e detestando as blasfêmias do meu erro. Viu, com efeito, de pé, numa espécie de régua de madeira, um jovem que vinha em direção a ela, resplandecente, alegre e sorrindo-lhe, estando ela acabrunhada e consumida pela tristeza e das suas lágrimas diárias, para informar, como é costume, não para saber, e como ela respondesse que chorava a minha perdição, ele ordenou e advertiu, para que ficasse tranquila, que reparasse e visse que, onde ela estava, estava também eu. 

Quando ela reparou, viu-me ao seu lado de pé na mesma régua. Porquê isto, senão porque os Teus ouvidos estavam junto do seu coração, ó Tu, bom e onipotente, que cuidas de cada um de nós como se cuidasses de um só, e de todos como de cada um?'

(Confissões, de Santo Agostinho)

sexta-feira, 26 de julho de 2024

26 DE JULHO - SÃO JOAQUIM E SANTA ANA

Sagrada Família com São Joaquim e Santa Ana (Nicolás Juarez, 1699)

De acordo com a Tradição Católica e documentos apócrifos antigos, os pais de Maria foram São Joaquim e Santa Ana. Ana, em hebraico Hannah, significa 'Graça' e Joaquim equivale a 'Javé prepara ou fortalece'. Ambos os nomes indicam, portanto, a  missão divina de realização das promessas messiânicas, com o nascimento da Mãe do Salvador. Segundo a mesma Tradição, os pais de Maria teriam nascido na Galileia, transferindo-se depois para Jerusalém, onde Maria nasceu e onde ambos morreram e foram enterrados.

O culto aos pais de Maria Santíssima é antiquíssimo na Igreja Oriental (como revelados nos escritos de São Gregório de Nissa e Santo Epifânio, em hinos gregos e em homilias dos Santos Padres). Os túmulos de São Joaquim e Santa Ana em Jerusalém foram honrados até o final do Século IX, numa igreja construída no local onde viveram. No Ocidente, o culto de Santa Ana é muito mais recente, com sua festa litúrgica tendo início na Idade Média, sendo formalizada no Missal Romano apenas em 1584, no tempo de Gregório XIII. A devoção a São Joaquim foi ainda mais tardia no Ocidente.

Como pais de Nossa Senhora, São Joaquim e Santa Ana são nossos avós espirituais e o calendário litúrgico instituiu a festa conjunta destes dois santos em 26 de julho, que ficou também conhecida como 'dia dos avós'. Eles são também os santos protetores da Ordem dos Carmelos Descalços (fundada no Século XVI por Santa Teresa de Ávila). No dia dos avós, o blog presenteia os nossos irmãos mais velhos com estas duas orações.

Oração a Santa Ana

Santa Ana, mãe da Santíssima Virgem, pela intercessão da Vossa Filha e do Meu Salvador, dai-me obter a graça que Vos peço, o perdão dos meus pecados, a força para cumprir fielmente os meus deveres de cristão e a perseverança eterna no amor de Jesus e de Maria. Amém.

Oração a São Joaquim

Senhor! Pela intercessão de São Joaquim, pai da Santíssima Virgem, velai pelos Vossos filhos idosos, especialmente... (nomes) que, tendo cumprido na Terra uma vida longa, possa(m) merecer de Vós a Vida Eterna no Céu. Senhor, dai-lhes o conforto de uma idade avançada, saúde do corpo e da alma, a sabedoria de envelhecer e um coração inquieto enquanto não repousar em Vós. Amém.  

quinta-feira, 25 de julho de 2024

HOMILIA AOS NOSSOS ANJOS DA GUARDA

A teu respeito ordenou aos seus anjos que te guardem em todos os teus caminhos (Sl 90,11). Louvem o Senhor por sua misericórdia e suas maravilhas para com os filhos dos homens. Louvem e proclamem às nações que o Senhor agiu de modo magnífico a favor deles. Senhor, que é o homem para que assim o conheças? Ou por que inclinas para ele teu coração? Aproximas dele teu coração, enches de solicitude por sua causa, cuidas dele. Enfim, a ele envias o teu Unigênito, infundes o teu Espírito, prometes até a visão de tua face. E para que nas alturas nada falte no serviço ao nosso favor, envias os teus santos espíritos a servir-nos, confias-lhes nossa guarda, ordenas que se tornem nossos protetores.

A teu respeito, ordenou aos seus anjos que te guardem em todos os teus caminhos. Esta palavra quanta reverência deve despertar em ti, aumentar a gratidão, dar confiança. Reverência pela presença, gratidão pela benevolência, confiança pela proteção. Estão aqui, portanto, e estão junto de ti, não apenas contigo, mas em teu favor. Estão aqui para proteger, para te serem úteis. Na verdade, embora enviados por Deus, não nos é lícito ser ingratos para com eles que, com tanto amor, lhe obedecem e em tamanhas necessidades nos auxiliam.

Sejamos-lhes fiéis, sejamos gratos a tão grandes protetores; paguemos-lhes com amor; honremo-los tanto quanto pudermos, quanto devemos. Prestemos, no entanto, todo o nosso amor e nossa honra àquele que é tudo para nós e para eles; de quem recebemos poder amar e honrar, de quem merecemos ser amados e honrados. Assim, irmãos, nele amemos com ternura seus anjos como futuros co-herdeiros nossos, e enquanto esperamos nossos intendentes e tutores dados pelo Pai como nossos guias. Porque agora somos filhos de Deus, embora não se veja, pois ainda estamos sob tutela quais meninos que em nada diferem dos servos.

Aliás, mesmo assim tão pequeninos e restando-nos ainda uma tão longa, e não só tão longa, mas ainda tão perigosa caminhada, que temos a temer com tão poderosos protetores? Eles não podem ser vencidos, nem seduzidos, e ainda menos seduzir, aqueles que nos guardam em todos os nossos caminhos. São fiéis, são prudentes, são fortes; por que trememos de medo? Basta que os sigamos, unamo-nos a eles e habitaremos sob a proteção do Deus do céu.

(Dos Sermões de São Bernardo)

quarta-feira, 24 de julho de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (VII)

 

47. Todo santo pode, num dado momento, tornar-se pecador, se for vaidoso da sua santidade; e o pecador pode, com a mesma rapidez, tornar-se santo, se for contrito e humilhar-se pelo seu pecado. Quantos são os que, no fervor da sua oração, 'sobem aos céus' e, logo a seguir, à menor ocasião de pecado, 'descem aos abismos'! [Sl 106,26]. Quantos há também que, entregues à vaidade e manchados pelos pecados mais profundos, transformam-se subitamente, abrindo os olhos para o conhecimento da verdade e atingindo assim a perfeição cristã! De fato, os altos conselhos de Deus devem ser adorados e não escrutinados, porque 'o Senhor humilha e exalta; levanta do pó o mendigo; e ergue o pobre do esterco' [1Sm 2,7-8].

Quem sabe se aquele que julgo e de quem falo mal não é mais querido por Deus do que eu? Se um outro a quem tenho pouca estima e desprezo por seus defeitos físicos ou morais não está destinado a ser muito feliz com Deus por toda a eternidade? Quem sabe se eu não estarei condenado às dores do inferno por toda a eternidade? Com esta incerteza, como é que posso ter a presunção de me considerar melhor do que qualquer outro? Ninguém vale mais do que aquilo que vale aos olhos de Deus, e como posso saber se sou um objeto de ódio ou de amor para Deus? 'Pois, contudo, o homem não sabe se é digno de amor ou de ódio' [Ecl 9,1]. Como é que eu sei se Deus vai moldar um vaso de honra ou de desonra a partir do barro de que sou feito? 'O que há de superior em ti?' [1 Cor 4,7] e 'Mas para que servem estes vasos? O Oleiro será o juiz' [Sb 15,7].

Quando leio sobre São Paulo, arauto do Espírito Santo e grande doutor dos gentios, que dizia de si mesmo que vivia com medo de cair em pecado e de se tornar um náufrago, depois de ter convertido tantos milhares de almas a Deus: Se o próprio São Paulo, que foi arrebatado ao terceiro céu e podia dizer que 'Cristo vivia nele' e 'agora vivo, não eu, mas Cristo que vive em mim' [Gl 2,20], devia temer assim, que direi de mim mesmo, que sou tão desprezível? No dia do juízo, quantos veremos à direita de Deus, a quem considerávamos náufragos, e quantos veremos à sua esquerda, a quem julgávamos estar entre os seus eleitos! Mas seria bom para nós, quando fazemos comparações entre nós e os outros, dizer o que Juda disse de Thamar: 'Ela é mais justa do que eu' e, em alguma circunstância ou outra, isso sempre se mostrará verdadeiro. São Tomás ensinou que um homem pode dizer e acreditar com verdade que é pior do que os outros, em parte devido aos defeitos ocultos que sabe que possui e, em parte, devido aos dons de Deus que estão ocultos nos outros [xxii, qu. 161, art. 6 ad 2].

48. Quem me garante que não cairei em breve num pecado mortal? E, uma vez caído, quem me garante que não morrerei em pecado e serei condenado ao castigo eterno? Enquanto viver neste mundo, não posso ter a certeza de nada. Tenho esperança de salvar a minha alma, mas também tenho medo de a perder. Ó minha alma, não pretendo deprimir-te; não, nem quero encher-te de desespero pusilânime com estes pensamentos. Desejo apenas que sejas humilde. E quanta razão tens para te humilhares nesta incerteza, não sabendo que tipo de morte será a tua, nem qual será o teu destino por toda a eternidade? É somente na medida de tua humildade que podes esperar agradar a Deus e salvar a ti mesmo, porque é certo que Deus 'salvará os humildes' [Sl 17,28] e 'salvará os humildes de espírito' [Sl 33,19].

Há quem pense que meditar sobre o mistério da predestinação é suscetível de nos encher de desespero; mas parece-me, como também a Santo Agostinho, que este pensamento é um meio muito eficaz de praticar a humildade [Lib. de Praedest. et Grat.] porque, quando medito sobre a minha salvação eterna, vejo que ela não depende do poder do meu livre arbítrio, mas apenas da misericórdia divina. Não confiando em mim mesmo, mas pondo toda a minha esperança em Deus, devo dizer com a sabedoria de Judite: 'E, portanto, humilhemos as nossas almas perante Ele, e continuando com um espírito humilde no seu serviço, peçamos ao Senhor que mostre a sua misericórdia para conosco' [Jt 8, 16-17].

49. É um dom especial de Deus saber como governar a língua, como diz o pregador em seus Provérbios: 'É o Senhor que governa a língua' [Pv 16,1] e, quando Deus quer conferir este seu dom a alguém, o faz por meio da humildade. E o Salvador ensina-nos ainda que 'a boca fala do que lhe transborda do coração' [Mt 12,34]. Portanto, se o coração estiver bem regulado pela humildade, a língua também estará bem regulada.

Aquele que é humilde de coração não tem senão uma má opinião de si mesmo e uma boa opinião dos outros; é por isso que nunca se elogia nem censura os outros. O homem humilde fala pouco, pondera e mede as suas palavras para não dizer mais do que a verdade e a modéstia exigem e, como o seu coração está livre de vaidade, assim é a sua fala. Argumentamos, portanto, que pode haver pouca ou nenhuma humildade em nossos corações quando há pouca ou nenhuma continência em nossa fala. 'O seu coração é vão' - diz o profeta e é por isso que ele acrescenta - 'a sua garganta é um sepulcro aberto' [Sl 5,10]. Falamos das coisas que enchem o coração: 'a boca fala daquilo de que o coração está cheio' [Lc 6,45] e o nosso falar determinará se no nosso coração predomina a verdade ou a vaidade. É bom pedir a Deus que refreie a nossa língua, mas peçamos-lhe também que nos dê humildade ao nosso coração, pois isso por si só já será um autocontrole muito poderoso.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

terça-feira, 23 de julho de 2024

MUITO FAZ AQUELE QUE MUITO AMA

 


1. Por nenhuma coisa do mundo, nem por amor de pessoa alguma, se deve praticar qualquer mal; mas, em prol de algum necessitado, pode-se, às vezes, omitir uma boa obra, ou trocá-la por outra melhor. Desta sorte, a boa obra não se perde, mas se converte em outra melhor. Sem a caridade, nada vale a obra exterior; tudo, porém, que da caridade procede, por insignificante e desprezível que seja, produz abundantes frutos, porque Deus não atende tanto à obra, como à intenção com que a fazemos.

2. Muito faz aquele que muito ama. Muito faz quem bem faz o que faz. Bem faz quem serve mais ao bem comum que à sua própria vontade. Muitas vezes parece caridade o que é mero amor-próprio, porque raras vezes nos deixa a inclinação natural, a própria vontade, a esperança da recompensa, o nosso interesse.

3. Aquele que tem verdadeira e perfeita caridade em nada se busca a si mesmo, mas deseja que tudo se faça para a glória de Deus. De ninguém tem inveja, porque não deseja proveito algum pessoal, nem busca sua felicidade em si, mas procura sobre todas as coisas ter alegria e felicidade em Deus. Não atribui bem algum à criatura, mas refere tudo a Deus, como à fonte de que tudo procede, e em que, como em fim último, acham todos os santos o deleitoso repousar. Oh! Quem tivera só uma centelha de verdadeira caridade logo compreenderia a vaidade de todas as coisas terrenas!

(Da Imitação de Cristo, de Thomas de Kempis)

segunda-feira, 22 de julho de 2024

PALAVRAS ETERNAS (XIX)


'Como podes amar ao Senhor se amas a farsa e o vinho, as pompas do mundo e as suas vaidades enganosas? Aprende a não amar para que aprendas a amar; afasta-te, para poderes acercar-te; esvazia-te, para que possas encher-te da verdade'.

(Santo Agostinho)

domingo, 21 de julho de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'O Senhor é o pastor que me conduz: felicidade e todo bem hão de seguir-me!' (Sl 22)

Primeira Leitura (Jr 23,1-6) - Segunda Leitura (Ef 2,13-18) -  Evangelho (Mc 6,30-34)

  21/07/2024 - DÉCIMO SEXTO DOMINGO DO TEMPO COMUM

34. A DUALIDADE DA GRAÇA


O Evangelho deste domingo reflete as dimensões opostas da vida cristã em comunidade e em isolamento, feitas das santas alegrias do convívio social ou moldadas pelas graças do recolhimento absoluto, tangidas pelo frenesi de multidões em marcha ou pelo silêncio contemplativo dos claustros mais inacessíveis. Como nos são diversos os desígnios do Senhor! Quão diversos são os caminhos e os meios que imprimem a santidade no coração e na alma daqueles que buscam sinceramente a Deus!

Os Apóstolos haviam sido enviados por Jesus em missão, 'dois a dois' (Mc 6,7), com a recomendação expressa de levarem muito pouca coisa: 'nem pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura' e nem 'duas túnicas' (Mc 6, 8 - 9) e providos pela graça do dom da cura e do 'poder sobre os espíritos impuros' (Mc 6, 7). E estes homens, pescadores sem erudição, sem alforge e sem preparos retóricos, cumpriram, com coragem heróica e humildade santa, os ditames proclamados pelo Mestre: levar a Boa Nova a todos os povos e a todas as nações! E, na santa alegria da primeira missão apostólica cumprida, retornam agora ao convívio do Senhor e, cheios de júbilo, 'contaram tudo o que haviam feito e ensinado' (Mc 6, 30).

No convívio do Senhor! Na santa alegria do convívio do Senhor e dos demais Apóstolos, as primícias da Igreja são matizadas naqueles tempos pioneiros da evangelização universal. Uma comunidade viva, moldada pelos princípios das sólidas virtudes da humildade, do despojamento, da fraternidade e da partilha. Uma comunidade que crescia, que exigia novas pregações, que demandava zelo e tempo... Jesus, então, chama os seus discípulos: 'Vinde sozinhos para um lugar deserto e descansai um pouco' (Mc 6, 31). No meio da multidão, Jesus os exorta a viver a outra dimensão da realidade cristã, moldada pelo anonimato, pelo silêncio e pela solidão com Deus.

Nesse encontro pessoal com Deus, Jesus nos ensina a buscar a barca, os montes ou o deserto. Sim, na busca de uma maior intimidade com as coisas sobrenaturais, impõe-se afastar do burburinho e da agitação do mundo, para se mergulhar a alma no repouso físico e na contemplação do espírito. Eis, assim, a síntese da perfeição cristã, que associa ação e contemplação, convívio fraterno e recolhimento interior! E, como um círculo de perfeição, refaz-se em seguida a dualidade da graça: as multidões acercam-se uma vez mais do Mestre e este, movido pela compaixão, cerne da verdadeira devoção cristã, recomeça a sua pregação divina 'porque eram como ovelhas sem pastor' (Mc 30, 34).