segunda-feira, 11 de setembro de 2023

DOUTORES DA IGREJA (XXIV)

  24Santo Efrém, o Sírio, Diácono (†373)

Cítara do Espírito Santo

(306 - 373)

Concessão do título: 1920 - Papa Bento XV

Celebração: 08 de junho (Memória Facultativa)

 Obras e Escritos 

  • Comentário sobre o Gênesis
  • Comentário sobre o Êxodo
  • Comentário sobre os Atos dos Apóstolos
  • Comentário sobre as Epístolas Paulinas
  • Refutações contra Bardesanes e outros
  • Hinos contra as Heresias
  • Hinos Diversos
  • Homilias

domingo, 10 de setembro de 2023

EVANGELHO DO DOMINGO

'Não fecheis o coração, ouvi, hoje, a voz de Deus!' (Sl 94)

Primeira Leitura (Ez 33,7-9) - Segunda Leitura (Rm 13,8-10)  -  Evangelho (Mt 18,15-20)

 10/09/2023 - Vigésimo Terceiro Domingo do Tempo Comum

42. A VIRTUDE DA CORREÇÃO FRATERNA 


O Evangelho deste domingo é um tributo sobre o dever da correção fraterna. Reconhecer o erro e assumir o ônus da responsabilidade pelo erro cometido, são os atributos básicos do perdão. Mas o erro reverbera além daquele que o pratica e é dever - dever cristão - a sua pronta caracterização, a sua expressa condenação, o seu combate efetivo, a sua oportuna ou inoportuna contenção. A correção do erro é uma virtude cristã por excelência, quando praticada e vivida sob os ditames do reto juízo, da prudência caritativa, do verdadeiro amor fraterno: 'Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo!' (Mt 18, 15).

Jesus nos adverte sobre a insensatez da omissão, do menosprezo, da condenação exaltada e pública do pecador que nos ofendeu: 'a sós contigo!' é uma proposição enfática e contundente pela correção fraterna, emanada pelo zelo apostólico e pela prudência cristã. Corrigir o erro para não se omitir em defesa da verdade; corrigir o erro sem destruir as pontes e as passagens que possam fazer o pecador retomar o caminho da verdade: 'Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão' (Mt 18, 15). Benditos aqueles que levarem consigo para Deus os que puderam fazer o caminho de volta!

A correção fraterna é oportuna e inoportuna, porque a salvação de uma alma tem valor infinitamente maior que todos os nossos queixumes ou sentimentos desprezados. Não basta a correção, é preciso insistir nela mais uma vez, e outra vez, e outra ainda. A insistência moldada pelo zelo extremado na salvação da alma do próximo é o cimento que agrega as pedras frouxas de nossa própria caminhada para Deus.

Esse ardor de correção perpassa por terceiros e se encerra na própria vida da Igreja, Corpo Místico de Cristo, pois a perseverança da graça atrai graças em profusão e frutos extremos de conversão, piedade e misericórdia: 'se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está nos céus. Pois, onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles' (Mt 18, 19 - 20). Porém, a obstinação determinada no erro tem natureza diabólica e, portanto, não é mais passível da graça. Aqueles que optam pelo desvario do mal e se afastam dos ensinamentos da Igreja, tornam-se, então, réus de delitos eternos: 'tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu' (Mt 18, 18).

sábado, 9 de setembro de 2023

TESOURO DE EXEMPLOS (245/250)

 

245. UM MENINO HERÓI

Não faz muito tempo, numa vila da Itália chegava em casa um menino de 12 anos, pálido e choramingando. Que acontecera? Alguns malvados, movidos de ódio contra ele porque fizera a primeira comunhão, disseram-lhe:
➖ Tens de repetir as blasfêmias que dissermos.
➖ Não - disse o menino com firmeza - eu não blasfemo.
➖ Tens de blasfemar, por bem ou por mal.
Dito e feito: atiraram-no ao chão e bateram-lhe brutalmente. Mas dos lábios do menino não saiu nenhuma blasfêmia e nem sequer uma palavra de queixa.

246. DECORAI ESTES CINCO PONTOS

O trabalho de domingo nunca enriquece.
A fortuna mal adquirida nunca se aproveita.
A esmola nunca empobrece.
O encomendar-se a Deus pela manhã e à noite nunca atrasa o trabalho.
Um filho rebelde e libertino jamais será feliz.

247. PRIMEIRO IREI À MISSA

Refere Santo Afonso que três negociantes estavam prontos para partir juntos da cidade de Gúbio. Era domingo, e um deles quis ouvir a missa; os outros, porém, não quiseram nem mesmo esperá-lo. Mas, quando atravessaram a ponte do rio Borfoune, cheio pelas últimas chuvas, caiu a ponte, perecendo afogados os dois negociantes.

248. POR UM PECADO A MENOS

Voltava da missa um domingo, em Londres, uma dama, irmã de um ministro do reino. Encontrou uma mulher a varrer a rua. Soube que era católica. Perguntou-lhe se tinha ido à missa.

Respondeu a varredoura que não tinha tempo, porque antes do meio-dia tinha de acabar a limpeza. A dama deu-lhe uma moeda e, mandando que fosse à missa, disse-lhe:
➖ Cumpra o seu dever de cristã, que eu farei seu trabalho.

E assim dizendo, pegou da vassoura e pôs-se a varrer. Interrogada por que se humilhava assim em lugar tão público, respondeu:
➖ Por um pecado a menos!

249. A ÁRVORE CRESCIA

O ermitão Nicolau, de Suíça, estando a ouvir a missa, teve uma visão. Viu uma arvorezinha que, brotando do piso da igreja, crescia rapidamente e, em poucos segundos, estava coberta de flores, resplandecentes como estrelas. Essas flores caíam sobre a cabeça dos fieis: em alguns murchavam e perdiam o brilho; em outros aumentavam de resplendor, adornando-lhes as frontes como uma cora de luz.

A árvore era figura da benção celeste e as flores simbolizavam a benção que caía sobre cada um, frutificando nos fervorosos e murchando nos distraídos e desatentos.

250. SEMPRE CHEGAVA TARDE

Um homem da Westfalia, durante muitos anos sempre chegava tarde à missa nos dias de preceito. Adoeceu para morrer e mandou chamar o padre com urgência. O vigário sem demora pôs-se a caminho, mas dizia consigo: 'Não será para estranhar que Jesus Cristo chegue tarde para ele, como castigo de sempre ter chegado tarde à missa'. E com efeito; quando o padre chegava à casa, o enfermo expirava sem os últimos sacramentos.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

GLÓRIAS DE MARIA: FESTA DA NATIVIDADE DE MARIA

 

Com o nascimento de Maria, Deus dá ao mundo a aurora que anuncia a vinda do Messias, o início histórico da obra da Redenção. Maria, 'bendita entre todas as mulheres' e rainha dos anjos, foi privilegiada pelos desígnios da Providência com as graças mais sublimes para ser elevada à excelsa dignidade de Mãe do Nosso Salvador Jesus Cristo, Mãe de Deus. 

'Deus onipotente, antes que o homem caísse, previu a sua queda e decidiu, antes dos séculos, a redenção humana. Decidiu Ele encarnar-se em Maria... Hoje é o dia em que Deus começa a pôr em prática o seu plano eterno, pois era necessário que se construísse a casa, antes que o Rei descesse para habitá-la. Casa linda, porque, se a Sabedoria constrói uma casa com sete colunas trabalhadas, este palácio de Maria está alicerçado nos sete dons do Espírito Santo. Salomão celebrou de modo soleníssimo a inauguração de um templo de pedra. Como celebraremos o nascimento de Maria, templo do Verbo encarnado?'

(Homilia sobre a Natividade de Maria, de São Pedro Damião)

A Festa da Natividade de Maria (celebrada no dia 8 de Setembro, pelo calendário tridentino) era celebrada no Oriente Católico muito antes de ser instituída no Ocidente e tem sua origem provavelmente em Jerusalém, pelos meados do século V. De acordo com a Tradição, Maria nasceu de pais virtuosos e avançados em idade, Joaquim e Ana, que cumpriam fielmente os seus preceitos cristãos em Jerusalém, resignados e pacientes diante a esterilidade do casal. Contemplados com a gravidez tardia, nasceu-lhes pela Divina Providência a filha que seria a Mãe de Deus, evento singular da história da humanidade que não foi objeto nem de profecias e nem de sinais extraordinários antes, durante ou depois da natividade de Maria.

'Ó Joaquim e Ana, casal bem-aventurado e verdadeiramente sem mancha! Pelo fruto do vosso seio fostes reconhecidos, segundo a palavra do Senhor: 'Pelos seus frutos os reconhecereis'. A vossa conduta foi agradável a Deus e digna daquela que nasceu de vós. Tendo levado uma vida casta e santa, engendrastes a joia da virgindade, aquela que deveria permanecer Virgem antes, durante e depois do parto, a única sempre Virgem de espírito, de alma e de corpo. Convinha, de fato, que a virgindade saída da castidade produzisse a Luz única e monógena, corporalmente, pela benevolência d’Aquele que A gerou sem corpo – o Ser que não gera, mas que é eternamente gerado, para Quem ser gerado é a única qualidade própria da Sua Pessoa. Ó que maravilhas, e que alianças estão neste menino! Ó Filha da esterilidade, virgindade que engravida, nela se unirão divindade e humanidade, sofrimento e impassibilidade, vida e morte, para que em todas as coisas o menos perfeito seja vencido pelo melhor! E tudo isto para minha salvação, ó Mestre! Amas-me tanto que não realizaste esta salvação nem pelos anjos, nem por nenhuma outra criatura, mas tal como já a minha criação, também a minha regeneração foi Tua obra pessoal. Assim, eu exulto, faço despertar a minha alegria e o meu júbilo, volto à fonte das maravilhas, e embriagado de uma torrente de alegria, toco de novo a cítara do espírito e canto o hino divino da natividade'.

(Homilia sobre a Natividade de Maria, de São João Damasceno)


Nasce Maria, dádiva de Deus, santíssima em sua concepção, santíssima no seio de sua mãe, santíssima desde o primeiro instante de sua vida. Pois não convinha que o santuário de Deus, a mansão da sabedoria, o relicário do Espírito Santo, a urna do maná celestial, tivesse em si a menor mácula. Antes de receber sua alma santíssima, sua carne foi completamente purificada até do menor resíduo de toda mancha, sem a mais ínfima inclinação para o pecado.

'A gloriosa Virgem não apenas foi preservada do pecado original em sua concepção, como foi também adornada da justiça original e confirmada em graça desde o primeiro momento de sua vida, segundo muitos eminentes teólogos, a fim de ser mais digna de conceber e dar à luz o Salvador do mundo. Privilégio que jamais foi concedido à criatura alguma, nem humana nem angélica, pertencendo somente à Mãe do Santo dos Santos, depois de seu Filho Jesus ... Todas as virtudes, com todos os dons e frutos do Espírito Santo, e as oito bem-aventuranças evangélicas se encontram no coração de Maria desde o momento de sua concepção, tomando inteira posse e estabelecendo n'Ela seu trono num grau altíssimo e proporcionado à eminência de sua graça'.

(Homilia, São João Eudes)


Maria Santíssima é a nova Eva, a mãe espiritual dos homens; é Judite que será vitoriosa sobre o inimigo do povo de Deus; é Ester que alcançará misericórdia para o seu povo. Foi Maria que Adão entreviu quando Deus lhe disse que uma mulher esmagaria a cabeça da serpente. Deus a tinha em vista quando prometeu a Abraão, aos patriarcas e a Davi, que o Salvador brotaria da sua estirpe. Ela é o tronco de Jessé que havia de dar a flor escolhida, conforme a profecia de Isaías. 

Genealogia de Jesus Cristo, filho de David, filho de Abraão: 2Abraão gerou Isaac;Isaac gerou Jacob; Jacob gerou Judá e seus irmãos; 3Judá gerou, de Tamar, Peres e Zera; Peres gerou Hesron; Hesron gerou Rame; 4Rame gerou Aminadab; Aminadab gerou Nachon; Nachon gerou Salmon; 5Salmon gerou, de Raab, Booz; Booz gerou, de Rute, Obed; Obed gerou Jessé;6Jessé gerou o rei David. David, da mulher de Urias, gerou Salomão; 7Salomão gerou Roboão; Roboão gerou Abias; Abias gerou Asa; 8Asa gerou Josafat; Josafat gerou Jorão; Jorão gerou Uzias; 9Uzias gerou Jotam; Jotam gerou Acaz; Acaz gerou Ezequias; 10Ezequias gerou Manassés; Manassés gerou Amon; Amon gerou Josias; 11Josias gerou Jeconias e seus irmãos, na época da deportação para Babilónia.12Depois da deportação para Babilónia, Jeconias gerou Salatiel; Salatiel gerou Zorobabel;13Zorobabel gerou Abiud. Abiud gerou Eliaquim; Eliaquim gerou Azur; 14Azur gerou Sadoc; Sadoc gerou Aquim; Aquim gerou Eliud; 15Eliud gerou Eleázar; Eleázar gerou Matan; Matan gerou Jacob. 16Jacob gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo.18Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo.19José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la, resolveu deixá-la secretamente.20Andando ele a pensar nisto, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: 'José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. 21Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados'. 22Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: 23Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho; e hão-de chamá-lo Emanuel, que quer dizer: Deus conosco.

(Evangelho: Mateus, 1, 1-16.18-23)

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

DA SUBMISSÃO À VONTADE DE DEUS

Uma das verdades mais bem estabelecidas e das mais consoladoras que jamais nos tenham sido reveladas é que, com ressalva do pecado, nada nos sucede na terra senão porque Deus o quer; é Ele quem dá as riquezas e é Ele quem envia a pobreza; se estais doente, Deus é a causa do vosso mal; se haveis recuperado a saúde, foi Deus quem a restituiu; se viveis, é unicamente a Ele que deveis tão grande bem; e quando a morte vier terminar a vossa vida, será da mão dEle que recebereis o golpe mortal.

Mas, quando os maus nos perseguem, é então a Deus que o devemos imputar? Sim, cristãos ouvintes, é ainda a Ele que deveis então acusar unicamente do mal que sofreis. Ele não é causa do pecado que comete o vosso inimigo maltratando-vos, mas é causa do mal que esse inimigo vos faz pecando. Esse homem injusto é como uma torrente que, do alto de um rochedo, vem despenhar-se num vasto campo. Não é o lavrador que dá a essa torrente rápida o movimento que a arrasta, mas é o lavrador quem, ora rompendo um dique, ora tapando um valado ou levantando uma represa, lhe faz entrar as águas num campo antes que em outro, quer pretenda adubar, quer pretenda desolar por esse meio aquele campo.

Ou se preferis, aquele mau homem é, nas mãos de Deus, como um veneno nas mãos de um artista hábil: não foi o artista que deu àquela erva ou àquele mineral a virtude maligna que lhes é própria, mas foi ele quem as misturou na beberagem que vos apresenta, quer tenha o intento de vos dar a morte, quer talvez o de vos restituir a saúde. Assim, não foi Deus quem inspirou ao vosso inimigo a má vontade que tem de vos prejudicar, mas foi Ele quem lhe deu o poder, foi Ele quem fez voltar sobre vós a malícia daquela pessoa, quem dispôs as coisas de tal sorte que ele se tenha achado em estado de perturbar o vosso repouso, que o tenha efetivamente perturbado. 

O Senhor quis que caísseis na cilada, já que não a evitou, já que prestou mesmo mão aos que a armavam; é Ele que vos entrega sem defesa aos vossos inimigos, e foi Ele que dirigiu, por assim dizer, todos os golpes que eles vos desfecharam. Não duvideis: se recebeis alguma chaga, foi o próprio Deus quem vos feriu. Quando todas as criaturas se ligassem contra vós, se o Criador não quisesse, se se lhes não juntasse; se lhes não desse tanto as forças como os meios de executar os seus maus desígnios, nunca o conseguiriam: 'Não teríeis nenhum poder sobre mim se ele não vos fosse dado do alto', dizia o Salvador do mundo a Pilatos. Nós podemos dizer outro tanto aos homens como aos demônios, mesmo às criaturas que são privadas de razão e de sentimento. Não, vós não me afligiríeis, não me prejudicaríeis como fazeis, se Deus não o tivesse ordenado; é Ele quem vos envia, é Ele quem vos dá o poder de me tentardes e de me fazerdes sofrer: 'Não teríeis nenhum poder sobre mim, se ele não vos tivesse sido dado do alto'.

Se, de quando em quando, meditássemos seriamente este artigo da nossa crença, não seria preciso mais para abafar as nossas murmurações em todas as perdas, em todas as infelicidades que nos acontecem. Era o Senhor que me tinha dado todos aqueles bens, foi Ele mesmo quem os tirou; não foi nem aquela parte, nem aquele juiz, nem aquele ladrão quem me arruinou, não foi aquela mulher que me denegriu a reputação com as suas maledicências; se esse menino morreu, não foi nem por ter sido maltratado, nem por ter sido mal servido; foi Deus, a quem tudo aquilo pertencia, quem não me quis deixar fruir dele por mais tempo. É, pois, uma verdade de fé que Deus conduz todos os acontecimentos de que a gente se queixa no mundo; e, demais, não podemos duvidar de que todos os males que Deus nos manda nos sejam utilíssimos: não podemos duvidá-lo sem suspeitar a Deus de carecer de luz para discernir o que é vantajoso.

É prova de um orgulho insuportável, diz são Basílio, que nos próprios negócios a gente não necessita de tomar conselho de ninguém, e que tem por si mesmo bastante prudência para escolher o melhor partido. Mas, se nas coisas que nos dizem respeito qualquer outro vê melhor do que nós aquilo que nos é útil, que loucura pensar que o vemos melhor do que Deus mesmo, Deus que é isento das paixões que nos cegam, que penetra o futuro, que prevê os acontecimentos e o efeito que cada causa deve produzir! Sabeis que os acidentes mais molestos têm às vezes felizes consequências e que, ao contrário, os sucessos mais favoráveis podem finalmente terminar em funestos desfechos. É mesmo uma regra que Deus observa assaz comumente, ir aos seus fins por vias inteiramente opostas às que a prudência humana costuma escolher.

Na ignorância em que estamos do que deve acontecer no futuro, como então ousamos murmurar daquilo que sofremos pela permissão de Deus! E mesmo por simples vantagens deste mundo, quantos exemplos não temos desse proceder! Vendem José, trazem-no em servidão, lançam-no numa prisão: ele se aflige das suas desditas aparentes, aflige-se com efeito da sua felicidade, pois são outros tantos degraus que o elevam insensivelmente ao trono do Egito. Saul perdeu as mulas de seu pai, tem que as ir buscar muito longe e muito inutilmente: é muito tempo e muito trabalho perdido, é certo; mas se essa mágoa o aflige, jamais houve pesar tão desarrazoado, visto que tudo aquilo só foi permitido para o conduzir ao profeta que o deve ungir da parte do Senhor, para ser o rei de seu povo. Qual não há de ser a nossa confusão, quando comparecermos perante Deus, quando virmos as razões que Ele terá tido de nos mandar essas cruzes que nós tão mal lhe agradecemos! 

Eu lamentei a perda daquele filho único morto na flor da idade: ai! Se Ele tivesse vivido ainda alguns meses, alguns anos, teria perecido da mão de um inimigo ou teria morrido em pecado mortal. Eu não me pude consolar do rompimento daquele casamento: se Deus tivesse permitido que ele se concluísse, eu iria passar os meus dias no luto e na miséria. Devo trinta ou quarenta anos de minha vida àquela doença que sofri com tanta impaciência. Devo a minha salvação eterna àquela confusão que me custou tantas lágrimas. Minha alma estaria perdida, se eu não tivesse perdido aquele dinheiro. Com que nos embaraçamos, cristãos ouvintes? Deus se encarrega da nossa direção, e nós estamos na inquietude! 

Abandonamo-nos à boa fé de um médico porque supomos que ele entende da sua profissão; ele ordena que vos façam as operações mais violentas, às vezes até que vos abram o crânio com o ferro: ali, que vos furem o corpo; aqui que vos cortem um membro para deter a gangrena que poderia enfim chegar até ao coração; a gente sofre tudo isso, fica-lhe agradecido, recompensa-o liberalmente, porque julga que ele não o faria se o remédio não fosse necessário, porque julga que cumpre fiar-se na sua arte; e não queremos fazer a mesma honra ao nosso Deus! Dir-se-ia que desconfiamos da sua sabedoria e que tememos que ele nos transvie! O quê? Entregais vosso corpo a um homem que se pode enganar e cujos menores erros vos podem tirar a vida, e não vos podeis submeter à conduta do Senhor!

Se nós víssemos tudo o que Ele vê, quereríamos infalivelmente tudo o que Ele quer; haviam-nos de ver pedir-lhe com lágrimas as mesmas aflições que tratamos de desviar pelos nossos votos e pelas nossas preces. Por isto, é a nós todos que Ele diz nas pessoa dos filhos de Zebedeu: nescitis quid petitis; homens cegos, a vossa ignorância me faz pena, não sabeis o que me pedis; deixai-me cuidar dos vossos interesses, conduzir-vos à fortuna. Eu conheço o que vos é necessário, melhor do que vós mesmos; se até aqui eu tivesse levado em conta os vossos sentimentos e os vossos gostos, já estaríeis perdidos sem recurso.

Mas quereis, cristãos ouvintes, quereis ficar persuadidos de que em tudo o que Deus permite, em tudo quanto vos sucede, não tem Ele em mira senão as vossas verdadeiras vantagens, a vossa felicidade eterna? Fazei um momento de reflexão sobre tudo o que Ele há feito por vós. Estais agora na aflição: pensai que quem é o autor dela é Aquele mesmo que quis passar toda a sua vida nas dores para as poupar das eternas; que é Aquele cujo anjo está sempre ao vosso lado, velando por sua ordem sobre todos os vossos caminhos, e se aplicando a desviar tudo o que vos possa ferir o corpo ou manchar a alma; pensai que quem vos expõe a essa pena é Aquele que nos nossos altares ora incessantemente e se sacrifica mil vezes ao dia para expiar os vossos crimes e aplacar a cólera de seu Pai, à medida que o irritais; que é Aquele que vem a vós com tanta bondade no sacramento da eucaristia; Aquele que não tem prazer maior do que conversar convosco, do que se unir a vós. Que ingratidão, após tamanhas provas de amor, desconfiar ainda dEle, duvidar de se é para nos prejudicar ou para nos fazer bem que Ele nos visita! Mas Ele me fere cruelmente, faz pesar a sua mão sobre mim. E que temeis de uma mão que foi transfixada, que se deixou pregar na cruz por vós? Ele me faz andar por um caminho espinhoso. Se não há outro para ir ao céu, ai de vós se preferis perecer para sempre a sofrer por um tempo! Não foi esse mesmo caminho que Ele seguiu, antes de vós e por amor de vós? Achais acaso nEle um espinho que Ele não tenha marcado, que não tenha enrubescido com o seu sangue?

Ele me apresenta um cálice cheio de amargura. Sim, mas pensai que é o vosso Redentor que o apresenta; amando-vos tanto quanto vos ama, poderia resolver-se a tratar-vos com rigor se não houvesse uma utilidade extraordinária ou uma urgente necessidade? Ouvistes falar daquele príncipe que preferiu expor-se a ser envenenado, a recusar a bebida que seu médico lhe receitara, porque reconhecera sempre naquele médico muita fidelidade e muito apego à sua pessoa; e nós, cristãos ouvintes, nós recusamos o cálice que nosso Divino Mestre nos preparou Ele próprio, atrevemo-nos a ultrajá-lo até esse ponto! Rogo-vos não esquecerdes esta reflexão; ela basta, se me não engano, para nos fazer aceitar, para nos fazer amar as disposições da vontade divina que nos parecem mais incômodas, e nos conformarmos desse modo com essa vontade suprema; é, aliás, assegurar infalivelmente a nossa felicidade, mesmo desde esta vida.

Eu suponho, por exemplo, que um cristão está liberto de todas as ilusões do mundo, pelas suas reflexões e pelas luzes que recebeu de Deus; que reconhece que tudo não passa de vaidade; que nada lhe pode encher o coração; que aquilo que há desejado com mais afã é muitas vezes fonte dos mais mortais pesares; que a gente custa a distinguir o que nos é útil e o que nos é contrário, por isto que o bem e o mal estão quase por toda a parte misturados, e porque aquilo que ontem era o mais vantajoso é hoje o pior; que os seus desejos só fazem atormentá-lo; que os cuidados que emprega para lograr êxito o consomem e até lhe prejudicam às vezes os desígnios, ao invés de os adiantar; que, ao cabo de tudo, é uma necessidade que a vontade de Deus se cumpra; que nada se faz senão por suas ordens, e que Ele nada pode ordenar a nosso respeito que não nos reverta em vantagem.

Após todas essas vistas, suponho ainda que ele se lance nos braços de Deus como às cegas; que se lhe entregue, por assim dizer, sem condição e sem reserva, inteiramente resolvido a confiar nEle para tudo, e nada mais desejar, nada mais temer, em uma palavra, nada mais querer senão aquilo que Ele quiser; digo que, desde esse momento, essa feliz criatura adquire uma liberdade perfeita, que não pode mais nem ser molestada nem constrangida; que não há autoridade, não há poder na terra que seja capaz de lhe fazer violência ou de lhe dar um momento de inquietação.

'Como me quereis obrigar a fazer o que eu não quero?' dizia um santo homem cujos sentimentos são referidos. Seria preciso poder constranger o próprio Deus, para me por no caso de fazer algo contra minha vontade; porque, enquanto Deus fizer tudo o que quiser, eu não posso deixar de ser perfeitamente livre, visto que só quero o que Ele faz. Deus quer que eu adoeça? Pois a moléstia me é mais agradável do que a saúde; que eu seja pobre? Pois eu não queria ser rico; que eu seja o repúdio de todos. Consinto que toda a gente me despreze, fundo toda a minha glória nos seus desprezos. Importa que eu viva aqui ou alhures, que eu passe os meus dias no repouso ou no redemoinho dos negócios, que morra na flor ou no declínio da idade? De tudo isso eu não poderia dizer o que gosto mais; mas, desde que Deus tiver feito a sua escolha, e me tiver feito conhecer para que lado pende o seu coração, o meu seguirá esse pendor, e achará nele a sua felicidade.

Mas não é uma quimera um homem em quem os bens e os males fazem uma igual impressão? Não, não é uma quimera; conheço pessoas que estão igualmente contentes na moléstia e na saúde, nas riquezas e na indigência; algumas conheço mesmo que preferem a indigência e a moléstia às riquezas e à saúde. De resto, não há nada tão verdadeiro como o que vos vou dizer: tanta submissão temos à vontade de Deus, tanta condescendência tem Ele para com as nossas vontades. Parece que, desde que a gente se apega unicamente a lhe obedecer, Ele próprio só cuida de nos satisfazer: não só ouve as nossas preces, mas até as previne; vai buscar até no fundo do coração aqueles mesmos desejos que a gente trata de sufocar para lhe aprazer, e os realiza, cumula-os, excede-os todos.

Enfim a ventura daquele cuja vontade é submissa à vontade de Deus é uma ventura constante, inalterável, eterna. Temor algum lhe perturba a felicidade, porque acidente algum a pode destruir. Eu a represento como um homem sentado num rochedo no meio do oceano: vê virem a ele as mais furiosas vagas sem ficar atemorizado, acha prazer em considerá-las e contá-las, à medida que elas se lhe veem quebrar aos pés; quer o mar esteja calmo ou agitado, quer o vento empurre as ondas para um lado ou para outro, ele fica igualmente imóvel, porque o lugar em que se encontra é firme e inabalável.

Vem daí essa paz, essa calma, esse semblante sempre sereno, esse ânimo sempre igual que notamos nos verdadeiros servos de Deus. Que razão não tendes, almas santas, de ser sem inquietações? Achastes na vontade do vosso Deus um retiro inacessível a todas as desditas da vida; elevastes muito acima da região das tempestades: não há dardo que possa chegar até lá. Não podeis temer nem os homens nem os demônios. Façam o que fizerem, suceda o que suceder, sereis sempre felizes, ou então o próprio Deus deixará de sê-lo.

Resta ver como é que poderemos atingir essa venturosa submissão. Isto só se pode fazer, senhores, pela experiência frequente dessa virtude; e por isto que as grandes ocasiões de praticá-la são raras, todo o segredo consiste em aproveitar as pequenas, que são diárias, e cujo bom uso em breve nos porá em estado de sustentar os maiores revezes sem sermos abalados. Não há ninguém a quem cada dia não aconteçam cem pequenas coisas contrárias aos seus desejos e inclinações, seja que as atraia a nossa imprudência ou nosso pouco espírito, seja que elas nos venham da inconsideração ou da malignidade alheia, seja enfim que constituam um puro efeito do acaso ou do concurso imprevisto de certas causas necessárias. Toda a nossa vida é semeada dessas sortes de espinhos, que nos nascem incessantemente debaixo dos pés, que produzem no nosso coração mil frutos amargos, mil movimentos involuntários de ódio, de inveja, de temor, de impaciência, mil pequenas mágoas passageiras, mil ligeiras inquietações, mil perturbações, que, ao menos por um momento, alteram a paz da alma. 

Escapa-nos, por exemplo, uma palavra que não quiséramos ter dito, dizem-nos outra que nos ofende, um criado vos serve mal ou com vagarosidade, uma criança vos incomoda, um estorvante vos faz parar, um estouvado vos encontrou, um cavalo vos cobre de lama, faz um tempo que vos desagrada, a vossa obra não vai como desejaríeis, um pequeno móvel se quebra, uma roupa se mancha ou se rasga; eu sei que não há aí em que exercer uma virtude bem heroica, mas digo que seria o bastante para adquiri-la infalivelmente se o quiséssemos; digo que todo o que estivesse alerta para oferecer a Deus todas essas contrariedades, e para aceitá-las como ordenadas pela sua providência, esse homem, além de adquirir por essa prática grande número de méritos, além de se dispor insensivelmente a uma união muito íntima com Deus, seria ainda, em pouco tempo, capaz de aguentar os mais tristes e os mais funestos acidentes da vida.

A este exercício, que é tão fácil, e não obstante mais útil para nós e mais agradável a Deus do que vos posso dizer, pode-se ajuntar ainda outro. Embora as grandes desgraças não aconteçam todos os dias, pode-se a gente oferecer a Deus todos os dias para aturá-las quando lhe aprouver. Se Deus vos quisesse tirar ou aquele filho ou aquele marido, se permitisse que perdêsseis aquele processo ou aquele dinheiro que colocastes, precisaríeis duma grande forca de espírito para suportar esses golpes tão rudes. Não sabeis ainda qual será a vontade Dele sobre esses pontos; preveni-lhe as ordens, e desde agora submetei-vos a tudo quanto Ele resolveu fazer; renunciai com frequência em sua presença a todos os desejos que podeis ter de aumentar ou de conservar os vossos bens, a vossa saúde, a vossa reputação, e protestai-lhe que estais pronto a lhe sacrificar tudo. Pensai todos os dias, desde a manhã, em tudo quanto vos pode suceder de mais molesto durante o curso do dia. Pode suceder que no correr do dia tragam a notícia de um naufrágio, de uma bancarrota, de um incêndio; talvez que antes da noite recebais alguma afronta pesada, alguma sangrenta confusão; talvez que a morte vos roube a pessoa do mundo que mais amais; não sabeis se vós mesmo não morrereis subitamente e de uma maneira trágica. Aceitai todas essas desgraças no caso que praza a Deus permiti-las, coagi a vossa vontade a consentir nesse sacrifício, e não vos deis trégua enquanto não a sentirdes disposta a querer ou a não querer tudo o que Deus pode querer ou não querer.

Enfim, quando uma dessas desditas se fizer efetivamente sentir, em lugar de perderdes tempo em vos queixardes ou dos homens ou da fortuna, ide lançar-vos prontamente aos pés do Divino Mestre, para lhe pedir a graça de suportar com constância aquele infortúnio. Um homem que recebeu uma chaga mortal, se é prudente, não corre atrás de quem o feriu. Vai primeiro ao médico que o pode curar. Mas quando, em tais conjunturas, buscásseis o autor dos vossos males, seria ainda a Deus que cumpriria ir, pois só Ele lhes pode ser a causa.

Ide, pois, a Deus, mas ide prontamente, ide na mesma hora, seja o primeiro de todos os vossos cuidados: ide levar a Ele, por assim dizer, a flecha que Ele vos atirou, o flagelo de que se serviu para vos provar. Beijai mil vezes as mãos do Vosso Senhor crucificado, essas mãos que vos feriram, que fizeram todo o mal que vos aflige. Repeti-lhe muitas vezes estas palavras que Ele próprio dizia a seu Pai no auge da sua dor: 'Senhor, faça-se a vossa vontade, e não a minha'. Eu vos bendigo mil vezes, eu vos dou graças de que as vossas ordens se cumpram sobre mim; e quando estivesse em meu poder resistir-lhes, eu continuaria a me submeter a elas. Aceito esta calamidade em si mesma como em todas as suas circunstâncias; não me queixo nem do mal que sofro, nem das pessoas que me causam, nem do modo por que ele veio até mim, nem da conjuntura do tempo ou do lugar em que ele me surpreendeu; estou certo de que o quisestes sob todos esses pontos de vista, e gostaria mais de morrer do que de me opor no que fosse à Vossa Vontade: Fiat voluntas tua... Sim, meu Deus, em tudo o que quiserdes de mim, hoje e por todos os tempos, no céu e na terra, faça-se essa vontade, mas faça-se na terra como se cumpre no céu.

(Excertos da obra 'Reflexões Cristãs - Excertos', de São Cláudio de la Colombiére)

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

POEMAS PARA REZAR (XLVIII)

 

Senhor, livra-me de mim!

Senhor, que és o céu e a terra, e que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo estás (o teu templo) — eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.

...

Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.

(Fernando Pessoa)

terça-feira, 5 de setembro de 2023

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXIII)

Capítulo LXIII

Alívio às Santas Almas pelas Orações - O Santo Rosário - Padre Nieremberg e o Terço Perdido - Madre Francisca do Santíssimo Sacramento e o Santo Rosário

Sabemos que o Santo Rosário ocupa o primeiro lugar entre todas as orações que a Igreja recomenda aos fiéis. Esta excelente oração, fonte de tantas graças para os vivos, é também singularmente eficaz para aliviar os defuntos. Temos uma prova comovente disso na vida do Padre Nieremberg, que já mencionamos em outro lugar. Este caridoso servo de Deus impunha a si mesmo frequentes mortificações, acompanhadas de devoções e orações para o alívio das pobres almas sofredoras. Não deixava de rezar o terço todos os dias em intenção delas e de lhes obter todas as indulgências ao seu alcance, oferta que recomendou aos fiéis numa obra especial que publicou sobre o assunto. O terço que usava era ornamentado com medalhas piedosas e enriquecido com numerosas indulgências. Um dia perdeu este terço e ficou inconsolável; não que este santo religioso, cujo coração não estava preso a nada na terra, tivesse qualquer apego material a essas contas, mas porque se viu privado do meio de obter o alívio que costumava dar às pobres almas. Procurou por toda a parte, tentou lembrar-se de onde poderia ter colocado o seu precioso tesouro: tudo foi inútil e, quando chegou a noite, viu-se obrigado a substituir o seu terço indulgenciado por orações comuns.


Enquanto estava assim ocupado e sozinho na sua cela, ouviu um ruído no teto semelhante ao passar de suas contas e que lhe era bem conhecido; levantando os olhos, viu na realidade o seu terço, segurado por mãos invisíveis, descer em direção a ele e cair aos seus pés. Não duvidou que as mãos invisíveis eram as das almas que foram aliviadas por este meio. Podemos imaginar com que renovado fervor recitava as suas habituais cinco dezenas e quanto este fato extraordinário o encorajava a perseverar numa prática que era tão visivelmente aprovada pelo Céu.

A Venerável Madre Francisca do Santíssimo Sacramento teve desde a sua infância a maior devoção para com as almas sofredoras e nela perseverou enquanto viveu (Sa Vie par le R. Joachim; Vid. Rossignoli, Merv., 26). Ela era toda coração e toda devoção para com aquelas pobres e santas almas. Para as ajudar, rezava diariamente o seu terço, a que costumava chamar o seu esmoler, e terminava cada dezena com o requiescant in pace. Nos dias de festa, quando tinha um maior tempo livre, acrescentava o Ofício dos Mortos. À oração juntava as penitências. A maior parte do ano jejuava a pão e água e nas vigílias praticava outras austeridades. Teve de suportar muitos trabalhos e fadigas, dores e perseguições. Todos estes trabalhos foram transformados em sufrágios para as santas almas, a quem Madre Francisca oferecia tudo a Deus para o alívio delas.

Não contente com o fato de os ajudar ela própria, na medida das suas possibilidades empenhava os outros a fazer o mesmo. Se acorriam sacerdotes ao convento, pedia missas para as almas; se eram leigos, aconselhava-os a distribuir abundantes esmolas pelos fieis defuntos. Em recompensa da sua caridade, Deus permitia frequentemente que as almas a visitassem, quer para pedir os seus sufrágios, quer para lhe agradecer. Testemunhas afirmam que, por várias vezes, certas almas a esperavam visivelmente à porta, quando ela se dirigia para o Ofício das Matinas, para se recomendarem às suas orações. Outras vezes, entravam em sua cela para lhes apresentar o seu pedido e rodeavam a sua cama, esperando que ela acordasse. Estas aparições, a que estava habituada, não lhe causavam qualquer receio e, para que não se julgasse refém de algum sonho ou vítima do demônio, diziam-lhe, ao entrar: 'Salve, serva de Deus, esposa do Senhor! Que Jesus Cristo esteja sempre contigo!' Em seguida, testemunhavam a sua veneração por uma grande cruz e pelas relíquias dos santos que a sua benfeitora guardava em sua cela. Se a encontravam a rezar o terço, acrescentam as mesmas testemunhas, tomavam-lhe as mãos e beijavam-nas carinhosamente, como fruto e instrumento da sua libertação.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog