'Faça o bem enquanto há tempo. Reflita sobre a morte para viver bem e morrer bem. Pense na morte, desista do pecado, afaste-se do mundo, cuida das coisas de Deus. Prepare-se para uma boa morte com uma boa vida, pois o tempo é curto. Hoje é a minha vez, amanhã será a sua. Eu fui e você será o que eu sou. A sua escolha é agora para ter uma Eternidade. Céu Eterno. Inferno Eterno'.
sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023
SERMÕES DO CURA D'ARS (VI)
SOBRE OS MEIOS DA PRESERVAÇÃO DA PUREZA

'Mas - você me dirá - 'já que é muito difícil preservar uma virtude tão preciosa aos olhos de Deus, o que devemos fazer?' Vejamos aqui os meios de preservá-la. A primeira é exercer grande vigilância sobre os nossos olhos, nossos pensamentos, nossas palavras e nossas ações; o segundo, recorrer à oração; o terceiro, frequentar dignamente os sacramentos; o quarto, fugir de tudo que possa nos induzir ao mal; o quinto, ser muito devoto da Santíssima Virgem. Observando tudo isso, apesar dos esforços de nossos inimigos e apesar da fragilidade dessa virtude, teremos a segurança de preservá-la.
Eu disse que, primeiro de tudo, devemos resguardar a nossa vista; o que é bem verdade, pois vemos, por experiência, que muitos sucumbiram por um único olhar e nunca mais se levantaram... (Pv 9, 9). Não dê ao olhar nenhuma liberdade além daquela que seja verdadeiramente necessária. Antes enfrentar a superação de tal dificuldade do que se expor ao pecado... Diz-nos São Tiago que esta virtude vem do céu e que nunca a obteremos se não a pedirmos a Deus. Devemos, portanto, implorar a Deus com frequência para nos dar pureza nos olhares, nas palavras e nas ações. Disse, em terceiro lugar, que se quisermos conservar esta bela virtude, devemos receber os santos sacramentos com frequência e dignidade; caso contrário, nunca alcançaremos tal bem-aventurança. Jesus Cristo não só instituiu o sacramento da Penitência para perdoar os nossos pecados, mas também para nos dar forças para lutar contra o demônio. O que pode ser facilmente compreendido. Quem será, com efeito, que tendo feito hoje uma boa confissão, se deixará vencer pelas tentações? O pecado, com todo o prazer que contém, o horrorizaria. Quem será que, pouco depois de receber a Comunhão, poderá consentir, não digo num ato impuro, mas apenas num mau pensamento? Jesus, que então habita em seu coração, faz-lhe bem para compreender quão infame é aquele pecado, e quanto este o desagrada e, assim, o faz separar Dele. O cristão que frequenta santamente os sacramentos pode ser tentado, mais dificilmente pecará.
De fato, quando temos a grande alegria de receber o corpo adorável de Jesus Cristo, não sentimos o fogo impuro extinto em nossos corações? O adorável Sangue que corre em nossas veias não faz outra coisa senão purificar o nosso sangue? A carne sagrada que se mistura com a nossa não a diviniza de certo modo? Nosso corpo não parece retornar ao primeiro estado em que Adão estava antes de pecar? Aquele Sangue adorável 'que gerou tantas virgens!...' (Zc 9, 17.). Estejamos certos de que, deixando de frequentar os sacramentos, cairemos em pecado a cada momento.
Além disso, para nos defendermos do diabo, devemos evitar a companhia daquelas pessoas que podem nos induzir a praticar o mal. Veja o que fez José quando foi tentado pela esposa do seu mestre: deixou o manto em suas mãos e fugiu para salvar sua alma (Gn 39, 12.). Os irmãos de Santo Tomás de Aquino, vendo com maus olhos que o seu irmão era consagrado a Deus, a fim de obstruir este propósito, trancaram-no num castelo e fizeram entrar ali uma mulher de má vida para tentar corrompê-lo. Vendo-se em apuros devido à sanha perversa daquela criatura maligna, tomou nas mãos uma tocha acesa e a fez então fugir em desabalada correria para fora do seu quarto. Diante do perigo a que estava exposto, rezou com lágrimas tão copiosas que Nosso Senhor lhe concedeu o precioso dom da continência.
Veja ainda o que São Jerônimo fez para preservar a pureza; vede-o no deserto abandonando-se a todos os rigores da penitência, às lágrimas e às duras macerações da sua carne (Vida dos Padres do Deserto, p. 264). Aquele grande santo nos conta (S. Hieron., Vita S. Pauli, Primi Ermitae, 3) também a vitória alcançada por um virtuoso jovem, em uma luta talvez única na história, travada nos tempos da cruel perseguição aos cristãos movida pelo imperador Décio. Este tirano, depois de ter submetido o jovem a todas as provas que o demônio o inspirava, pensou que se conseguisse fazê-lo perder a pureza de sua alma, talvez facilmente o levasse a renunciar à sua religião. Para tanto, ordenou que fosse conduzido a um jardim de delícias, repleto de rosas e lírios, junto a um riacho de águas cristalinas e lúdicas, à sombra de belas e frondosas árvores agitadas por uma brisa suave e refrescante. Uma vez lá, eles o colocaram em um colchão de penas e o amarraram com faixas de seda, deixando-o sozinho. Em seguida, fizeram uma cortesã dele se aproximar, ornada de forma muito sensual e provocativa, que passou a incitá-lo ao mal com toda a impudência e provocações que a paixão pode inspirar. Aquele pobre jovem, que teria dado mil vezes a vida para não manchar a pureza de sua bela alma, viu-se indefeso, pois encontrava-se de pés e mãos amarrados. Não tendo como resistir aos ataques da voluptuosidade e, impelido pelo espírito de Deus, cortou a própria língua com os dentes e cuspiu carne e sangue no rosto da mulher, que fugiu dele tomada de espanto e medo. Este fato nos mostra como Deus nunca permitirá que sejamos tentados além das nossas forças.
Vede também São Martiniano, que viveu no século IV. Depois de ter vivido vinte e cinco anos no deserto, viu-se exposto a uma ocasião muito próxima ao pecado, ao qual já havia consentido em pensamento e palavra. Mas Deus tocou o seu coração e veio em seu auxílio. Ele então concebeu uma tristeza tão profunda pelo pecado que iria cometer que, entrando imediatamente em sua cela, acendeu um fogo e colocou os pés sobre ele. A dor que experimentou e o remorso do pecado o fizeram soltar gritos horríveis. Zoe, a mulher motivo de sua tentação, ao ouvir os gritos, correu para ver o que estava acontecendo; e tão comovida ficou diante aquela cena espantosa que, em vez de perverter o santo, se converteu e passou o resto de sua vida em lágrimas e em penitência. São Martiniano teve que passar sete meses deitado no chão sem conseguir se mover por causa dos ferimentos nos pés. Curado, retirou-se para outro deserto, onde chorou, pensando no perigo que correu de perder a sua alma. Vede o que fizeram os santos e os tormentos a que se submeteram para fugir de perder a pureza de suas almas; talvez isso o possa surpreender; mas o que deveria surpreendê-lo é a baixa estima que você tem por tão bela virtude. Infelizmente, tal desprezo deplorável vem de não conhecer na realidade o seu verdadeiro valor!
Finalmente, digo que devemos professar uma fervorosa devoção à Santíssima Virgem, se quisermos preservar esta bela virtude; da qual não devemos duvidar, se considerarmos que ela é a rainha, modelo e padroeira das virgens... Santo Ambrósio chama a Santíssima Virgem de senhora da castidade; São Epifânio a declara princesa da castidade; São Gregório, rainha da castidade... Ouçamos um exemplo que nos mostra o quanto a Santíssima Virgem protege a castidade daqueles que nela confiam, a ponto de não saber negar-lhes tudo o que lhe pedem. Um senhor muito devoto da Santíssima Virgem mandou construir uma capela em sua homenagem, numa das salas do castelo onde morava. Ninguém sabia da existência da referida capela. Todas as noites, depois do primeiro sono, sem dizer nada à esposa, levantava-se e ia à capela da Virgem, para aí passar o resto da noite.
A esposa lamentava muito este comportamento do marido porque acreditava que saía à noite para se encontrar com mulheres de baixa vida. Um dia, não mais suportando aquele sofrimento secreto, a esposa questionou ao marido o quão claro estava que ele tinha outra mulher favorita. O marido, com o pensamento na Santíssima Virgem, respondeu afirmativamente. Essa resposta feriu profundamente os sentimentos daquela mulher que, diante a situação confirmada e num acesso de fúria descontrolada, suicidou-se cravando uma adaga no peito. Quando o marido retornou da capela, deparou-se com o corpo de sua esposa banhado em sangue. Transtornado por aquela cena, fechou a porta do seu quarto e voltou à capela da Virgem, onde, desconsolado e em prantos, prostrou-se diante da imagem da Virgem, exclamando: 'Vê, ó Virgem Santa, que minha esposa suicidou-se porque vim à noite para ficar em vossa companhia. Eis que a minha esposa está condenada; vós a deixareis queimando nas chamas porque cometeu suicídio desesperado por causa de minha devoção a vós? Virgem Santa, refúgio dos aflitos, restituí a vida a ela e mostrai a vossa misericórdia em fazer o bem a todos. Não me afastarei daqui até que me alcanceis esta graça ao vosso divino Filho'.
Enquanto estava absorto em suas lágrimas e orações, ouviu uma criada o procurando e chamando por ele. 'A senhora está chamando pelos senhor' - ela lhe disse; ao que ele indagou: 'Tem a certeza que é ela quem está me chamando?' 'Sim, ouço a voz dela de dentro do quarto que está fechado'. Tomado de indizível alegria, não sabia se separava-se da companhia da Virgem ou se ia ao encontro da esposa, à qual finalmente encontrou com plena saúde. Das chagas do ferimento, restaram apenas as cicatrizes, para que jamais fosse esquecido o tão grande milagre operado pela intercessão da Santíssima Virgem. Vendo o marido adentrar o quarto, a esposa o abraçou dizendo: 'Meu amado! Estou muito grata a você por sua caridade em orar por mim'. Diante de tal prodígio da graça, passou o resto da vida em lágrimas e penitência e não tinha outro desejo senão o de mostrar a todos o quão poderosa é a intercessão da Santíssima Virgem para ajudar aqueles que nela confiam.
Podemos ter alguma dúvida de que ela nunca deixará de nos conceder tantas graças quanto pedirmos, a nós que ainda estamos na terra, um lugar tão propício para a misericórdia do Filho e para a compaixão da Mãe? Sempre que tivermos que pedir uma graça a Deus, recorramos à Santíssima Virgem e certamente seremos ouvidos. Se queremos sair do pecado, devemos ir a Maria; Ela nos pegará pela mão e nos conduzirá à presença de seu divino Filho para recebermos dEle o perdão. Queremos perseverar no bem, dirijamo-nos à Mãe de Deus; Ela nos abrigará sob o seu manto protetor e o inferno nada poderá fazer contra nós. Quereis uma prova disso? Vede aqui: lemos na vida de Santa Justina que um certo jovem sentiu um amor veemente pela santa e, vendo que nada poderia ser obtido com suas solicitações, foi obter ajuda com súdito chamado Cipriano, que tinha tratos com o demônio. Prometeu-lhe uma quantia em dinheiro caso conseguisse que Justina aceitasse com o seus maus propósitos. Imediatamente a moça foi fortemente tentada contra a pureza mas, recorrendo à proteção da Virgem, repeliu os ataques do demônio. O moço perguntou então a Cipriano porque não conseguia seduzir a donzela e este, por sua vez, questionou o demônio por sua falta de poder naquele caso, quando em outros casos semelhantes sempre satisfizera os seus desígnios. Ao que demônio respondeu: 'É verdade, mas uma vez que a jovem foi pedir a intercessão da Mãe de Deus, assim que começa a rezar, perco todas as minhas forças e não posso mais fazer nada'. Cipriano ficou tão admirado com essa revelação que, vendo que quem se volta para a Santíssima Virgem, retém o poder do próprio inferno, converteu-se de imediato e morreu santo e mártir.
Termino dizendo que, se quisermos conservar a pureza da alma e do corpo, devemos mortificar a imaginação. Nunca devemos permitir que o nosso espírito vagueie pensando naqueles objetos que nos levam ao mal, e também ter muito cuidado para não ser ocasião de pecado para os outros, seja com nossas palavras ou com a forma como nos vestimos, particularmente nesse caso para as pessoas do sexo feminino. Se por acaso nos encontrarmos diante de uma mulher vestida de forma indecente, devemos desviar imediatamente os olhos e não fazer como aqueles desgraçados que, com olhar impudente, fixam os olhos nela enquanto o diabo assim o exigir. Devemos mortificar os nossos ouvidos e nunca devemos ouvir de bom grado palavras ou canções impuras. Meu Deus, como se explica que tantos pais e mães, tantos homens e mulheres, e em tantos lugares, se prestem a ouvir sem protestar as canções mais infames, ou assistir atos que escandalizariam os pagãos, sem qualquer tentativa de evitá-los sob o pretexto de que são ninharias? Ah, desgraçados, quantos pecados os vossos filhos e filhas não haverão de cometer por vossa causa!
'Bem-aventurados os que têm o coração puro, porque verão a Deus', diz-nos Nosso Senhor Jesus Cristo. Como são abençoados aqueles que têm a sorte de possuir esta bela virtude! Não são eles os amigos de Deus, os favoritos dos anjos, os filhos mimados da Santíssima Virgem? Peçamos frequentemente a Deus, por intercessão de nossa Mãe Santíssima, que nos dê uma alma e um coração puros e um corpo casto; e assim, possuindo a alegria de agradar a Deus nesta vida, possamos glorificá-lo por toda a eternidade: é isso o que desejo a todos.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023
08 DE FEVEREIRO - SANTA JOSEFINA BAKHITA
A primeira santa africana nasceu numa aldeia próxima a Dardur, no Sudão, por volta de 1869 – ela mesma não sabia a data precisa. Raptada por traficantes de escravos aos nove anos de idade, foi trancada inicialmente em um quarto escuro e miserável, depois espancada barbaramente e vendida cinco vezes nos mercados do Sudão, padecendo todo tipo de humilhação e selvageria nas mãos dos seus senhores. Este martírio atroz desde tenra idade roubou-lhe o próprio nome; o nome Bakhita - 'afortunada' em árabe - foi-lhe dado pelos próprios traficantes.
Mas o pior dos tormentos ainda estava por vir. Comprada por um general turco, foi submetida a sofrimentos inimagináveis a serviço da mãe e da esposa deste homem, que incluíram dezenas de tatuagens no seu corpo abertas por navalha e que lhe legaram 144 cicatrizes e um leve defeito ao caminhar. A descrição destes tormentos foi assim exposta nas palavras da santa:
'Uma mulher habilidosa nesta arte cruel [tatuagem] veio à casa principal... nossa patroa colocou-se atrás de nós, com o chicote nas mãos. A mulher trazia uma vasilha com farinha branca, uma vasilha com sal e uma navalha. Quando terminou de desenhar com a farinha, a mulher pegou da navalha e começou a fazer cortes seguindo o padrão desenhado. O sal foi aplicado em cada ferida... Meu rosto foi poupado, mas 6 desenhos foram feitos em meus seios, e mais 60 em minha barriga e braços. Pensei que fosse morrer, principalmente quando o sal era aplicado nas feridas... foi por milagre de Deus que não morri. Ele havia me destinado para coisas melhores'.
Em 1882, com o retorno do general à Turquia, Bakhita foi comprada pelo cônsul italiano Calixto Legnani que a tratou como serviçal e não como escrava, sem humilhações e castigos. Diante de uma revolução nacionalista no Sudão, o cônsul retornou à itália levando Bakhita consigo, que foi cedida então a amigos do cônsul, o casal Michieli, em cuja casa começou a morar na região do Veneto, tendo por encargo especial os cuidados da filha do casal, a pequena Mimina. Foi nesta família católica que Bakhita conheceu a revelação de Jesus Cristo, sua flagelação e sua morte de cruz. O caminho de Bakhita estava traçado: da conversão à santidade pela via da caridade e do perdão.
Em 9 de janeiro de 1890, foi batizada e crismada com o nome de Josefina e recebeu a Sagrada Comunhão das mãos do Patriarca de Veneza. Pouco depois, solicitou seu ingresso no Instituto das Filhas da Caridade, fundado por Santa Madalena de Canossa. Em 8 de dezembro de 1896, em Verona, pronunciou os votos finais de religiosa da congregação. A partir de então, por mais de 50 anos, sua vida foi um ato constante de amor a Deus e à caridade para com todos. Além de operosa nos serviços simples como na sacristia e na portaria do convento, realizou várias viagens através da Itália para difundir a sua missão: a libertação dada a ela pelo encontro com Cristo deveria ser compartilhada com o maior número possível de pessoas; a redenção que experimentara não podia ser guardada como posse, mas levada como sinal de esperança para todos.
Em 8 de fevereiro de 1947, após muito sofrimento de doenças como bronquites e pneumonias, a Irmã Josefina faleceu no convento canossiano de Schio, com a idade de 78 anos. Na hora da sua morte, seu semblante pareceu iluminar-se e exclamou com alegria suas últimas palavras 'Como estou contente! Nossa Senhora, Nossa Senhora!' A Irmã Moretta - a Irmã Morena - como era carinhosamente conhecida entregava serenamente a sua alma ao Senhor, rodeada pela comunidade em pranto e em oração. Seu corpo foi enterrado originalmente na capela de uma família de Schio, para um sepultamento definitivo posterior no Templo da Sagrada Família. Quando isso foi finalmente preparado, verificou-se que o corpo de Bakhita estava incorrupto, sendo o mesmo sepultado então sob o altar da igreja do mesmo convento. Em 17 de maio de 1992 foi beatificada e, em 1º de outubro de 2000, foi elevada à honra dos altares e declarada santa pelo Papa João Paulo II.
terça-feira, 7 de fevereiro de 2023
SOBRE O ESPÍRITO DO ANIQUILAMENTO INTERIOR
Quando nos falam de renunciarmos a nós mesmos, de aniquilar-nos; quando nos dizem ser esse o fundo da moral cristã e consistir nisso a adoração em espírito e verdade, tal palavra nos parece dura e até injusta: não queremos ouvi-la e repelimos quem no-lo prega da parte de Deus. Convençamo-nos, uma vez por todas, de que esse preceito nada de injusto encerra e na prática é mais suave do que pensamos. Em seguida, humilhemo-nos se nos faltar coragem para pô-lo em prática e, ao invés de condená-lo, condenemos a nós mesmos.
Que nos pede o Senhor ordenando que nos aniquilemos? Pede fazermos justiça a nós mesmos, colocarmo-nos em nosso lugar e reconhecermo-nos tais quais somos. Quando mesmo tivéssemos nascido e vivido sempre na inocência, quando jamais houvéssemos perdido a graça original, outra coisa não seríamos, por nós mesmos, senão nada; não poderíamos considerar-nos de outro modo sem nos desconhecermos e injustos seríamos pretendendo que diversamente Deus ou os homens nos tratassem. Que se pode dever ao que nada é? Que pode exigir o que nada é? Se a sua própria existência é uma graça, também e com razão maior é tudo quanto tem. Há, portanto, injustiça formal da nossa parte em recusarmos ser tratados e tratar-nos a nós mesmos como verdadeiros nadas.
Diz-se nada custar e ser justa essa confissão em relação a Deus; mas que assim não é a respeito dos homens, porquanto estes, nada sendo, como nós, não têm título algum para obrigar-nos a tal confissão e às suas consequências. A confissão nada custa em relação a Deus se nos limitamos a fazê-la de boca; porém, quando faz-se mister procedermos de acordo com ela, deixarmos que Ele se arrogue e exerça sobre nós todos os direitos que lhe pertencem, consentirmos em que disponha ao seu talante do nosso espírito e do nosso coração, de todo o nosso coração, de todo o nosso ser, custa-nos infinitamente e com grande dificuldade não chamarmos de injustiça. Ele, todavia, poupa a nossa fraqueza, não usa dos seus direitos com todo o rigor, jamais nos expõe a certas provas aniquiladoras, sem ter obtido o nosso consentimento.
Quanto aos homens, concordo não terem por si mesmos domínio algum sobre nós e que injusto é da sua parte qualquer desprezo, humilhação ou ultraje. Mas nem por isso temos direito de nos queixarmos dessa injustiça, porque no fundo não é injustiça a nós, que nada somos, a quem nada é devido, mas para com Deus, cujo mandamento violam desprezando-nos, humilhando-nos, ultrajando-nos. É, pois, o Senhor quem deve ressentir-se da injúria que lhe fazem maltratando-nos e não nós, que em tudo quanto nos acontece não devemos ser sensíveis senão à injúria feita a Deus. Meu próximo despreza-me; não tem razão, porque não é mais do que eu e Deus assim o proíbe. Mas não terá ele razão porque eu sou verdadeiramente digno de estima e porque em mim nada há merecedor de desprezo? Não, porque se ele arrebata meus bens, mancha a minha reputação, atenta contra a minha vida, é certamente culpado e muito culpado para com Deus; mas será também para comigo? Estarei autorizado a querer-lhe mal e a vingar-me?
Não; porque tudo quanto possuo, tudo quanto sou, não pertence propriamente a mim; que só tenho de meu o nada e a quem nada se pode tirar. Se assim encararássemos, sempre do lado de Deus e jamais do nosso, tudo que nos acontece, não seríamos tão melindrosos, tão sensíveis, tão sujeitos a nos queixarmos e irritarmos. Toda a desordem vem sempre de supormos que somos alguma coisa, de nos arrogarmos direitos que não temos, de em tudo começarmos sempre por nos considerarmos diretamente e não prestarmos atenção aos direitos e aos interesses de Deus, os únicos lesados no que nos concerne. Confesso que isso é de prática muito difícil e para consegui-lo faz-se mister renunciarmos, absoluta e completamente, a nós mesmos. Mas, em suma, é justo e a razão coisa alguma pode opor.
Deus, portanto, nada exige de nós que não seja razoável, quando a seu respeito e a respeito do próximo quer que nos portemos como nada sendo, nada tendo, nada pretendendo. Isto como já se disse, seria justo, quando mesmo tivéssemos conservado a nossa primeira inocência. Mas, se nascemos culpados, se estamos inteiramente cobertos de pecados pessoais, se contraímos infinitas dívidas para com a justiça divina, se merecemos não sei quantas vezes a condenação eterna, não é para nós castigo demasiado brando só sermos tratados como nadas?
E não deve o pecador colocar-se infinitamente abaixo do que nada é? Se qual for a provação imposta a ele por Deus, sejam quais forem os maus tratos suportados do próximo, terá direito de se queixar? Poderá acusar de rigor excessivo a Deus ou de injustiça os homens? Não deve, antes, considerar-se muito feliz em resgatar, com alguma pena temporal, tormentos eternos? Se a religião não é uma ilusão, se é verdade o que a fé nos ensina acerca do pecado e dos suplícios que lhe estão reservados, como pode entrar no espírito de um pecador – a quem Deus se dispõe a perdoar – que não merece tudo quanto se possa suportar de males neste mundo, embora dure sua vida milhões de séculos?
Sim, é injustiça soberana, é monstruosa ingratidão de quem ofendeu a Deus (e quem de nós não o ofendeu?) não aceitar de boa vontade, em reconhecimento, por amor, por dedicação aos interesses de Deus, tudo quanto de sofrimentos e de humilhações aprouver à divina bondade lhe enviar. E que será se tais sofrimentos e se essas humilhações passageiras são, não só a compensação do inferno, mas o preço de uma felicidade eterna, o preço da posse eterna de Deus; se no céu seremos glorificados na proporção do nosso aniquilamento aqui na terra? Teremos ainda horror a nos aniquilarmos? Pensaremos que é nos fazer mal, quando, por sermos pecadores e para emergirmos do nada, exige-se a renúncia completa do nosso eu, com a promessa de uma recompensa que sempre durará?
Acrescento que semelhante forma de aniquilamento, contra a qual a natureza tanto se insurge e clama, ao invés de tão penosa como imaginamos, é até suave, porque antes de tudo Jesus Cristo a declarou tal: 'Tomai sobre vós o meu jugo porque é doce e suave'. Por mais pesado que seja esse jugo, Deus o suaviza para os que o tomam de boa vontade e consentem em carregá-lo por seu amor. O amor não nos impede de sofrer, mas faz como que amemos o sofrimento e torna-o preferível e a todos os prazeres. A recompensa presente do aniquilamento é a paz do coração, a calma das paixões, a cessação de todas as agitações do espírito, das murmurações, das revoltas interiores.
Vejamos, em pormenores, a prova disto. Qual é o maior mal do sofrimento? Não é a própria dor, é a revolta, a sublevação interior que a acompanha. A alma aniquilada sofreria todos os males imagináveis sem perder o repouso conexo ao seu estado: é fato de experiência. Custa-nos conseguir o nosso aniquilamento, temos que fazer grandes esforços sobre nós mesmos: mas também gozamos da paz na proporção das vitórias alcançadas. O hábito de renunciarmos a nós mesmos, de não atendermos ao nosso eu, torna-se cada dia mais fácil; admiramo-nos de que não nos faça mais sofrer, no fim de certo tempo, aquilo que nos parecia intolerável, assustava a imaginação, sublevava as paixões e punha a natureza em estado violento.
Nos desprezos, nas calúnias, humilhações, o que as torna tão duras de suportar é o nosso orgulho; é o nosso desejo de ser estimados, considerados, tratados com certas atenções; é o pavor que temos das zombarias e do desprezo do próximo. Eis o que nos agita e enche de indignação, o que nos torna a vida amarga e insuportável. Trabalhemos com afinco para aniquilar-nos; não demos alimento nenhum ao orgulho, deixemos caírem todos os artifícios de estima e amor próprio, aceitemos interiormente as pequenas mortificações que se apresentarem. Pouco a pouco chegaremos a não mais nos inquietarmos com o que se pensa e diz de nós, nem com o modo pelo qual nos tratam. Um morto nada sente; para ele não há honra nem reputação; os louvores e as injúrias lhe são indiferentes.
A maior parte dos sofrimentos e desgostos por que passamos no serviço de Deus provém de não estarmos bastante aniquilados em sua presença, de conservarmos certa vida própria no meio dos nossos exercícios, de imiscuir-se um secreto orgulho em nossa devoção. E por isso não somos indiferentes às consolações e à sua falta; sofremos quanto Deus parece afastar-se de nós; esgotamo-nos em desejos e esforços tendentes a fazê-lo voltar; ficamos abatidos e desolados, se o afastamento perdura muito. Por isso também temos falsos alarmes a respeito do nosso estado. Afigura-nos estarmos mal com Deus porque Ele nos priva de algumas doçuras sensíveis. Julgamos más as nossas comunhões, porque as fazemos sem gosto, a mesma coisa acontecendo quanto às nossas leituras, orações e outras práticas.
Sirvamos a Deus com espírito de aniquilamento; sirvamo-lo por Ele e não em atenção a nós; sacrifiquemos os nossos interesses à sua glória e ao seu bel-prazer; então, estaremos sempre contentes com o seu modo de tratar-nos, persuadidos de que nada merecemos e de ser imensa a sua bondade para conosco, não digo aceitando, mas suportando os nossos serviços. Nas grandes tentações contra a pureza, a fé ou a esperança, o que há de mais penoso para nós não é precisamente o temor de ofender a Deus, mas o medo de perder-nos, ofendendo-o. É o nosso interesse que nos ocupa muito mais do que a sua glória.
Eis a razão de ter um confessor tanta dificuldade em tranquilizar-nos e reduzir-nos à obediência. Cremos que ele nos engana, transvia e perde, porque nos obriga a deixar de lado as nossas vãs apreensões. Aniquilemos o nosso conceito; não julguemos por nós mesmos. Encontraremos a paz e paz perfeita, no esquecimento total de nós mesmos. Nada há no céu, na terra, nem do inferno, capaz de perturbar uma alma verdadeiramente aniquilada.
(Excertos da obra 'Manual das Almas Interiores', do Pe. Grou)
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023
TESOURO DE EXEMPLOS (201/203)
201. MORTO E CONDENADO
O conde Orloff e um general russo, ambos incrédulos, juraram por zombaria que o primeiro deles que morresse apareceria ao outro, para comunicar-lhes e há inferno. Poucos meses mais tarde, teve o general de seguir para a guerra, pois as tropas do imperador francês Napoleão haviam invadido a Rússia.
Eis que um dia, ao amanhecer, estando o conde Orloff em seu leito, mas bem acordado, abrem-se de par em par as cortinas do aposento e aparece o general, em pé, com o rosto muito pálido e as mãos sobre o peito. Espantou-se não pouco o conde; maior, porém, espanto, quando ouviu estas palavras:
➖ Existe o inferno e eu estou nele!" - e a visão desapareceu.
Poucos dias depois recebia o conde uma carta em que lhe era comunicada a morte do general. Precisamente o dia e hora, em que aparecera a o conde, recebera uma bala no peito e falecera.
O inferno existe. É uma verdade de fé. Foi Deus que o revelou. De Deus não se zomba impunemente.
202. VENCIDO PELA PACIÊNCIA DE DEUS
A vida do venerável Queriolet, contemporâneo de São Vicente de Paulo, é a mais bela prova da paciência de Deus com o pecador. Até aos trinta anos, esta alma impetuosa vivera numa contínua alternativa de confissões e pecados.
Depois, possuído de um ódio satânico contra Jesus Cristo, partiu para Constantinopla para se fazer maometano. Num bosque da Alemanha foi assaltado por assassinos que, depois de matarem seus dois companheiros, queriam acabar com ele também. Diante da morte iminente, Queriolet fez voto a Nossa Senhora de converter-se se ela o livrasse dos assassinos.
Ela o livrou, mas ele não se converteu e, não tendo podido fazer-se maometano, fez-se huguenote ao regressar à França. Deus, porém, o seguia como o pastor procura a ovelha desgarrada. Numa tenebrosa noite de grande tempestade, acorda com a queda de um raio sobre a casa. Queriolet saltou do leito como uma fera, cerrou os punhos e blasfemou.
Qualquer homem já teria cansado de suportá-lo; mas Deus não se cansa e o segue. Em Loudun, uma pobre mulher desconhecida o detém e lhe diz: 'Tu tens um voto a cumprir. Lembra-te de que, naquele bosque na Alemanha, te queriam assassinar?' Queriolet tremeu como naquele dia em que estivera nas mãos dos assassinos. Mas, como o sabia aquela mulher, se ele não comunicara isso a ninguém? Teria Deus suscitado aquela mulher para a sua conversão? Deus ainda tinha compaixão dele para o chamar daquela maneira? Este pensamento venceu-o finalmente, e depois de alguns anos, Queriolet ressuscitava à graça para nunca mais cair, tornando- se a admiração do mundo inteiro por suas virtudes.
Não obstante os nossos grandes pecados, não desesperemos; voltemos a Deus. Ele nos espera.
203. A CONFIANÇA NA PROVIDÊNCIA
Uma vez, estando Santa Catarina muito atribulada, apareceu-lhe Jesus e disse-lhe: 'Catarina, pensa em mim e eu pensarei em ti e em tuas necessidades'. Quando as cruzes, as desgraças e as perseguições nos afligirem, pensemos em Deus, pondo nele a nossa confiança.
Sem a confiança na Providência, como São Camilo, São Jerônimo Emiliani, São João Bosco, São José Cottolengo e tantos outros teriam podido asilar e manter milhares de pessoas, milhares de infelizes? Lede a história deles. Alguma vez chegou a faltar o dinheiro, a roupa, o pão... e o único que não faltou foi a confiança na Providência. E esta encarregava-se de provê-los de tudo.
(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)
domingo, 5 de fevereiro de 2023
EVANGELHO DO DOMINGO
'Uma luz brilha nas trevas para o justo, permanece para sempre o bem que fez' (Sl 111)
Primeira Leitura (Is 58,7-10) - Segunda Leitura (1 Cor 2, 1-5) - Evangelho (Mt 5, 13-16)
05/02/2023 - Quinto Domingo do Tempo Comum
11. SAL DA TERRA E LUZ DO MUNDO
Na missão de testemunhar com nossas vidas o Evangelho de Cristo, somos instados a deixar nos caminhos do mundo a marca característica da fé e dos valores cristãos. Os passos de um cristão marcham para o triunfo da Igreja; os caminhos são forjados pelo amor à Verdade; como peregrinos da eternidade, somos mensageiros e arautos da Boa Nova anunciada por Jesus. Somos cristãos espalhados no mundo mas, desde agora, herdeiros da Pátria Celeste.
Este propósito nos foi delegado por Jesus, no evangelho deste Quinto Domingo Comum: 'Vós sois o sal da terra' (Mt 5, 13). Sal capaz de dar sabor e sentido à vida de todos, em meio às labutas e sofrimentos humanos; sal capaz de conservar os valores e a integridade da Palavra de Deus no mundo afeito às glórias mais passageiras; sal capaz de condimentar o desvario, a vertigem e o entorpecimento de uma humanidade que insiste em se deleitar com a sedução do pecado.
Este legado nos foi outorgado por Jesus uma vez mais: 'Vós sois a luz do mundo' (Mt 5, 14). Luz para refletir no próximo a graça do Espírito Santo distribuída a todos; luz para fazer brilhar a verdade no meio de um mundo dominado pela mentira e pela manipulação dos costumes; luz para dar foco aos que vivem à deriva e acostumados às comodidades dos erros; luz para aniquilar a cegueira e a loucura que ensoberbecem os que tateiam nas trevas do pecado.
Ai do cristão que, amesquinhado e omisso pelos valores do mundo, não for o sal que salga ou a luz que não ilumina! Como testemunhas do Senhor, mais que vocação, nossa missão no mundo é praticar o bem em todas as nossas ações, dando sabor e sentido à nossa vida e à vida de nossos irmãos, como reflexos diretos da Luz de Cristo, para honra e glória de Deus: 'Assim também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus' (Mt 5, 16).
sábado, 4 de fevereiro de 2023
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