sexta-feira, 1 de abril de 2022

'CONSUMADO PELOS SOFRIMENTOS...'


Cristo, por suas palavras e ações, revelou que era verdadeiro Deus e Senhor do universo. Ao subir para Jerusalém com seus discípulos, dizia-lhes: 'Eis que estamos subindo para Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos gentios, aos sumos sacerdotes e aos mestres da Lei, para ser escarnecido, flagelado e crucificado' (Mt 20,18-19). Fazia, na verdade, estas afirmações em perfeita consonância com as predições dos profetas, que haviam anunciado a sua morte em Jerusalém.

Desde o princípio, a Sagrada Escritura havia predito a morte de Cristo com os sofrimentos que a precederiam, e também tudo quanto aconteceu com seu corpo depois da morte; predisse igualmente que aquele a quem tudo isto sucedeu é Deus impassível e imortal. De outro modo, nunca poderíamos afirmar que era Deus se, ao contemplarmos a verdade da encarnação, não encontrássemos nela razões para proclamar, com clareza e justiça, uma e outra coisa, ou seja, seu sofrimento e sua impassibilidade. O motivo pelo qual o Verbo de Deus, e portanto impassível, se submeteu à morte é que, de outra maneira, o homem não poderia salvar-se. Este motivo somente Ele o conhece e aqueles aos quais revelou. De fato, o Verbo conhece tudo o que é do Pai, como o Espírito que esquadrinha tudo, mesmo as profundezas de Deus (1 Cor 2,10).

Realmente, era preciso que Cristo sofresse. De modo algum a Paixão podia deixar de acontecer. Foi o próprio Senhor quem declarou, quando chamou de insensatos e lentos de coração os que ignoravam ser necessário que Cristo sofresse, para assim entrar em sua glória. Por isso, veio ao encontro do seu povo para salvá-lo, deixando aquela glória que tinha junto do Pai, antes da criação do mundo. Mas a salvação devia consumar-se por meio da morte do autor da nossa vida, como ensina São Paulo: 'Consumado pelos sofrimentos, ele se tornou o princípio da vida' (Hb 2,10).

Deste modo se vê como a glória do Filho unigênito, glória esta que, por nossa causa, Ele havia deixado por breve tempo, foi-lhe restituída por meio da cruz, na carne que tinha assumido. É o que afirma São João, no seu evangelho, ao indicar qual era aquela água de que falava o Salvador: 'Aquele que crê em mim, rios de água viva jorrarão do seu interior. Falava do Espírito, que deviam receber os que tivessem fé nele; pois ainda não tinha sido dado o Espírito, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado' (Jo 7,38-39); e chama glória a morte na cruz. Por isso, quando o Senhor orava, antes de ser crucificado, pedia ao Pai que o glorificasse com aquela glória que tinha junto dele, antes da criação do mundo.

(Dos Sermões de Santo Anastácio de Antioquia)

PORQUE HOJE É A PRIMEIRA SEXTA-FEIRA DO MÊS

 

DEVOÇÃO DAS NOVE PRIMEIRAS SEXTAS - FEIRAS 

quinta-feira, 31 de março de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (140/142)


140. POR QUE DEVO SOFRER TANTO?

São Pedro Mártir (falecido em 1252), da Ordem Dominicana, teve de sofrer incríveis calúnias e perseguições, mesmo sendo inocente e santo. Ajoelhou-se um dia aos pés do Crucifixo e queixou-se a Nosso Senhor de seus sofrimentos:
➖ Senhor, que mal fiz eu para sofrer tanto?
Enquanto assim se lamentava ouviu o santo, como vindas da Cruz, estas palavras:
➖ E que mal fiz eu para sofrer tanto na cruz? Teus sofrimentos não se podem comparar com os meus. Suporta-os por isso com paciência.

Estas palavras deram ânimo ao santo. Daí em diante, quando tinha de sofrer, olhava para o Crucifixo, lembrando-se que o Filho de Deus teve de sofrer imensamente mais do que ele.

141. A CONFIANÇA RECOMPENSADA

O imperador Napoleão I entrou, certa vez, num restaurante de Paris, acompanhado de seu ajudante Duroc. Ali ninguém os conhecia. Depois de haverem tomado a refeição, e apresentada a conta de 14 francos, aconteceu que nenhum deles tinha dinheiro consigo.

O imperador estava incógnito e não queria dar-se a conhecer. Seu ajudante, dirigindo-se à dona do restaurante, pediu-lhe que tivesse paciência de esperar uma hora e o pagamento seria feito pontualmente. A dona, porém, uma velha muito segura, não concordou; pelo contrário, ameaçou-os com a polícia se não pagassem imediatamente.

A coisa ia ficando feia, quando chegou o garçom que, interessando-se pelos hóspedes, disse à patroa:
➖ Estes senhores fazem-me boa impressão; não devem ser gente má. Pagarei por eles os 14 francos. Se me enganar, perderei eu o dinheiro e não a senhora; mas peço-lhe que deixe os homens em paz. Em seguida pagou a conta. Os dois senhores agradeceram e logo se retiraram.

Passada uma hora, ou pouco mais, apareceu de novo o ajudante do imperador e, dirigindo-se à dona do restaurante perguntou:
➖ Senhora, quanto vale este seu restaurante?
➖ Em todo caso mais que 14 francos - respondeu ela um tanto agastada.
Mas o homem insistiu:
➖ Diga-me seriamente: quanto a senhora quer por este seu restaurante?
➖ Bem; 30.000 francos e nem um centavo a menos.

Puxando a sua carteira, pagou-lhe Duroc aquela soma e disse:
➖ Por ordem do meu senhor faço presente deste restaurante ao garçom em reconhecimento pela confiança que depositou em nós. Admirada, a senhora perguntou:
➖ E quem era aquele seu companheiro?
➖ É o imperador Napoleão...
Se assim recompensa um homem a confiança nele depositada, como não recompensará o bom Deus a quem nele confiar?

142. VOCÊ TEM RAZÃO

Havia um senhor rico à moderna, que não queria saber de religião, nem de igreja, nem de preceito pascal, nem de oração. Com ele servia, há muitos anos, um ótimo criado, piedoso, fiel e que lhe queria muito bem. Esse criado, valendo-se da confiança que lhe dava o patrão, dizia-lhe às vezes:
➖ Mas, senhor patrão, pense também um pouco em Deus e em sua alma.
➖ Fique tranquilo, respondia-lhe o patrão. Veja ou eu sou predestinado e então me salvarei da mesma forma sem ir à igreja receber os sacramentos e rezar; ou não sou predestinado, e então, faça eu o bem que fizer, me condenarei do mesmo modo.

Aconteceu que, um dia, aquele senhor caiu doente. Chamou logo o servo fiel e disse-lhe:
➖ Vá chamar o médico para mim.
O criado ouviu, mas não foi. Chegada a tarde sem que o médico aparecesse, perguntou o enfermo:
➖ Você não chamou o médico?
➖ Escute senhor patrão, eu pensei assim: ou Deus destinou que meu patrão sare, e então sarará também sem médico; ou destinou que morra, e então, mesmo com todos os médicos do mundo, morrerá igualmente; por isso é inútil chamar o médico.
➖ Você é um tolo, um imbecil! - gritou o patrão, furioso. Deus não quer fazer milagres sem motivo, quer que empreguemos os meios que estabeleceu. Em caso de doença quer que se chame o médico; e você vá correndo chamá-lo, ouviu?
➖Sim; sim, senhor; vou já; por que o senhor patrão não raciocina do mesmo modo quando se trata de sua alma?
A observação era acertada e o patrão teve de responder:
➖ Você tem razão!

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

quarta-feira, 30 de março de 2022

SOMBRAS DA PAIXÃO (II): PRISÃO


Ó alma perturbada pelo delírio da iniquidade,
autor da obra mais vil da condição humana,
forjada pelo beijo de tão monstruosa traição.


'Judas, com um beijo entregas o Filho do Homem?'


Os soldados romanos e os guardas do Templo
irrompem das sombras e avançam sobre os discípulos,
tomados de fúria insana para prender Jesus.


Sob uma torrente de imprecações e de insultos,
empurram e agarram Jesus com violência
e atam-lhe as mãos como a um mísero malfeitor.


O temor se apodera dos discípulos que, assustados,
fogem em debandada pela noite escura.
Sobre o Senhor dos senhores adensam-se as sombras da Paixão.

terça-feira, 29 de março de 2022

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XXII)

(Cristo com o braço direito desprendido - Igreja de San Xoán de Furelos/Espanha)

O CRISTO CRUCIFICADO DE FURELOS

Pe. Suarez estava particularmente cansado. Havia atendido quase uma centena de confissões naquela tarde escaldante; o ar parecia impregnado pelo calor de uma fornalha latente e nem mesmo uma leve brisa ousava empurrar os galhos do grande carvalho exposto pelas janelas totalmente abertas da igreja. Ainda no confessionário, reclinou-se um pouco e meditou vagamente sobre o tempo, enquanto esperava qualquer vivalma tardia para o sacramento. Restava apenas o silêncio, o calor, a tarde que se ia...

Levantou-se e ajoelhou-se aos pés do altar, fixando os seus olhos na imagem de Cristo Crucificado: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me a graça de santificar-me todo dia, no cumprimento de Vossa Santa vontade. Dai-me...' Interrompeu a oração de súbito ao ouvir os passos pesados de alguém entrando na igreja. Virou-se e viu o homem tardio, das horas passadas. Certamente não era de Furelos porque nunca o tinha visto. Trajava-se com esmero, embora com roupas simples. O dono de alguma taberna talvez? Um comerciante de fora? Um marino?

- Padre, eu queria me confessar...

O Pe. Suarez concordou com um leve suspiro e o encaminhou ao confessionário. Ouviu do homem uma confissão segura, contrita, demorada. Havia muito tempo que não se confessava e, naquele lugar remoto para ele, sentira a necessidade da fazer a confissão não feita. Após ouvir a sua confissão, com sólida convicção, o padre lhe deu as penitências devidas e o perdoou:

- Eu absolvo os teus pecados... 

O homem agradeceu e se foi e o Pe. Suarez retomou a sua lida, com e sem tardes calorentas. Cerca de um mês depois, a cena se repetiu quase como se repetem as horas de cada dia: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me a graça de santificar-me...'. De novo, a tarde sufocante de calor, de novo o homem tardio.

No mesmo confessionário, o sacerdote ouviu com certa apreensão a confissão dos mesmos pecados, repetidos, porém, na escala de um tempo do mês anterior. As penitências dadas foram agora mais severas e dadas sem a mesma convicção da primeira vez, pela negligência do pecador em se corrigir de suas tantas faltas rotineiras.  

- Eu absolvo os teus pecados... vá e procure não recair mais e mais nos teus pecados. 

E o homem tardio se foi como se vão os dias. E, tão certo como o calor abafado das tardes de verão, retornou à igreja de Furelos e ao confessionário conhecido. Nova confissão, novas admoestações de correção de vida, novas penitências.

- Eu absolvo os teus pecados... vá e procure não recair mais e mais nos teus pecados. Tenha em mente como os teus pecados ofendem a Bondade infinita...  
- Eu sei, padre, mas o meu arrependimento é sincero.
- É preciso mais que o arrependimento, meu filho, é preciso a mudança de vida. Não podemos fazer pouco caso da misericórdia de Deus. Vá e não peque mais...

E, ainda outra vez, um mês depois, o homem da confissão tardia buscou uma nova confissão. Mas, neste dia, investido de certo temor, antecipou-se à saída do sacerdote do confessionário, permanecendo como o último da fila dos pecadores. Ao iniciar, porém, a mesma ladainha dos seus pecados de sempre, o velho sacerdote o repreendeu severamente:

- Não vou mais absolver os teus pecados. Seu arrependimento e contrição não são sinceros. Eu não vou fazer mais esse teatro por você. 
- Mas, padre, eu venho me confessar porque sei que continuo pecando...
- Não absolvo mais os teus pecados! Vá até o altar, reze a Deus com contrição e peça o perdão dos seus pecados e da sua falta de persistência diretamente para o Cristo Crucificado... 

E o pecador, pesaroso, dirigiu-se ao altar. O Pe. Suarez foi em seguida também ao altar, ajoelhando-se num banco lateral ao homem que não havia confessado: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me...' De repente, o braço direito do Crucificado desprendeu-se da cruz e a mão ensanguentada do Senhor foi estendida na direção do pecador, fazendo sobre a sua cabeça o sinal de absolvição de todos os seus pecados. E, volvendo o rosto ferido e ensanguentado na direção do Pe. Suarez, o Crucificado lhe falou ao coração:

- Não fostes tu que derramastes o Sangue por ele...

('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)

segunda-feira, 28 de março de 2022

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'A fé verdadeira consiste em que acreditemos e confessemos que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é Deus e homem. É Deus gerado da substância do Pai antes do início dos tempos; é homem nascido da substância de sua Mãe no tempo. Perfeito Deus e perfeito homem, que subsiste com alma racional e carne humana, igual ao Pai segundo a divindade, menor que o Pai segundo a humanidade. E embora seja Deus e homem, não há dois cristos, mas um único Cristo; um, não porque a divindade se tenha dissolvido na carne, mas porque a humanidade foi assumida por Deus. Absolutamente uno, não por confusão das substâncias, mas pela unidade da Pessoa. Pois assim como a alma racional e o corpo constituem um só homem, assim também Deus e homem constituem um só Cristo: que padeceu pela nossa salvação, desceu à mansão dos mortos e ao terceiro dia ressuscitou; subiu aos céus, onde está sentado à direita de Deus Pai omnipotente, e de onde há de vir a julgar os vivos e os mortos'.
(Santo Atanásio)

domingo, 27 de março de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Provai e vede quão suave é o Senhor!' (Sl 33)

 27/03/2022 - Quarto Domingo da Quaresma 

18. PAI DE MISERICÓRDIA 


Neste Quarto Domingo da Quaresma, São Lucas nos mostra uma das páginas mais belas dos Evangelhos, que é a parábola do filho pródigo. Que poderia muito bem ser a parábola da verdadeira conversão. Ou, com muito mais correção e sentido espiritual, a parábola do pai de misericórdia. Três personagens: o filho mais velho e o filho mais novo que, em meio às dolorosas experiências da vida humana, se reencontram no grande abraço da misericórdia do pai.

Com a parte da herança que lhe cabe, o 'filho mais novo' opta pelo caminho fácil e tortuoso dos prazeres e vícios humanos, dos instintos insaciados, do vazio do mal. E esbanja, na via dolorosa do pecado, os bens que possuía: a alma pura, o coração sincero, os nobres sentimentos, a fortuna da graça. E, a cada passo, se afunda mais e mais no lodo das paixões humanas desregradas, da vida consumida no nada. Mas, eis que chega o tempo da reflexão madura, da conversão sincera, do caminho de volta ao Pai: 'Pequei contra ti; já não mereço ser chamado teu filho' (Lc 15, 18-19).

O pai nem ouve as palavras do filho pródigo; no abraço da volta, somente ecoa pelos tempos a misericórdia de Deus: 'Haverá maior alegria no Céu por um pecador que fizer penitência que por noventa e nove justos que não necessitem de arrependimento' (Lc 15, 7). Diante do filho que volta, um coração de misericórdia aniquila a justiça da razão: 'Trazei depressa a melhor túnica para vestir o meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés' (Lc, 15, 22). Como as talhas de água que se tornam vinho, a conversão verdadeira apaga e aniquila o mal desejado e consumido outrora: na reconciliação de agora desfaz-se em pó as misérias passadas de uma vida de pecado.

O 'filho mais velho' não se move por igual misericórdia e se atém aos limites difusos da justiça humana. Na impossibilidade absoluta de compreender o júbilo do pai com o filho que volta, faz-se vítima e refém da soberba e do orgulho humano: 'tu nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos' (Lc, 15,29). O filho mais novo, que estava tão longe, está lá dentro outra vez. E o filho mais velho, que sempre lá esteve, recusa-se agora a entrar na casa do pai. Tal como no caso do primeiro filho, o pai de misericórdia vem, mais uma vez, buscar a ovelha desgarrada no filho mais velho que está fora e não quer entrar. Porque Deus, pura misericórdia, quer salvar a todos os seus pobres filhos afastados de casa e espera, com paciência e amor infinitos, a volta dos filhos pródigos e a volta dos seus filhos que creem apenas na justiça dos homens.