quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

SERMÃO SOBRE O AMOR (II)

PARTE II

Mas agora, meus irmãos, voltemo-nos para uma outra categoria dos santos. Tenho falado daqueles, que, de um modo admirável e algumas vezes miraculoso, foram defendidos do pecado e conduzidos de degrau em degrau, graça após graça, desde a juventude até a morte; mas agora suponhamos que Deus quis derramar a luz e o poder do Seu Espírito sobre aqueles que mal empregaram o seu auxílio, e que em si deixaram secar a graça que lhes fora dada, ficando por isso à mercê de uma multidão de demônios de que tiveram que libertar-se; que vivem sob o jugo de hábitos obstinados, de paixões complacentes e de falsas opiniões; que serviram satanás, não como crianças antes do batismo, mas segundo o seu querer e a sua razão, com as suas faculdades inteiramente responsáveis, de corações lúcidos e vivos. 

Reconduziria o Senhor estas almas a si, independentemente delas ou mediante o seu querer? Transformá-los-á com o seu Verbo que os formou e os fará morrer ou os ressuscitará e entrará nas suas almas, e se dirigirá a elas para as persuadir e para as ganhar? Sem dúvida que poderia compeli-las, constrangê-las, uma vez que é o Senhor absoluto. Poderia por uma santa violência forçar a sua entrada e neles modelar depois a estatura da santidade; poderia substituir qualquer processo de conversão e fazer nascer das pedras filhos de Abraão. 

Mas o Senhor quis que as coisas fossem de outro modo; senão por que se teria Ele próprio manifestado sobre a terra? Por que se cercou, quando da sua vinda, de tantos sinais sensíveis, persuasivos e irrecusáveis? Por que mandou os seus Anjos anunciar que Ele seria encontrado como um menino em uma manjedoura, ao peito de uma Virgem, em Belém? Por que andou espalhando o bem por toda a parte por onde passava? Por que morreu em público, à face do mundo, com sua Mãe junto de si, e o discípulo amado? Por que nos diz agora que é glorificado nos céus com uma multidão de santos que são os nossos intercessores junto do seu trono? 

Por que veio até nós mediante a maternidade de uma Virgem, a mais perfeita imagem depois de si, de tudo o que tem o sabor da beleza, da ternura, da delicadeza e da serenidade no mundo dos homens? Por que se manifesta, por uma muito misteriosa e inefável condescendência sobre os nossos altares, fazendo-se pequenino e humilde. Ele, que é o Senhor dos Céus e da Terra? O que mostra tudo isto senão que, quando as almas se afastam, Ele as resgata por meio delas próprias, 'por cordas humanas', segundo a nossa natureza, como diz o profeta, conquistando-nos de fato segundo à sua Vontade, salvando-nos a despeito de nós mesmos - e, ainda assim, por nós mesmos, de modo que as razões e afeições do Velho Adão, que propiciaram 'os instrumentos da iniquidade para pecar', haveriam de se tornar, sob o poder de sua graça, em 'instrumentos da justiça de Deus'?

Sim, meus irmãos, sem dúvida Ele nos puxa a si 'por cordas humanas' e o que são estas cordas senão, como diz o profeta no mesmo versículo, 'os enleios' ou 'os fios do amor'? É a manifestação da glória de Deus na face de Jesus Cristo; é a visão dos atributos e das glórias e das perfeições do Senhor onipotente; é o esplendor da sua santidade, a doçura da sua misericórdia, a claridade do seu Reino, a majestade da sua lei, a harmonia da sua Providência, a música mágica da sua voz, dEle que é antagônico da carne e o campeão da alma contra o demônio e o mundo. 

Tu me seduziste, Senhor, diz o profeta, e eu fui seduzido; Tu és mais forte do que eu, e a tua força prevaleceu; 'lançaste a tua rede com perícia e os seus fios sutis estão enredados em torno de cada afeto do coração, e as suas malhas manifestaram o poder de Deus, fazendo cativa a inteligência para o serviço de Cristo'. Se o mundo tem os seus fascínios, mais os tem o Altar de Deus vivo; se as pompas e as vaidades do mundo encadeiam os olhos, bem maior espanto há de trazer a visão dos anjos subindo e descendo pela escada erguida entre o céu e a terra; se a vista do mundo embriaga, e os seus encantos enfeitiçam a alma, eis que Maria intercede por nós, e com os seus olhos castos oferece o Filho Eterno à nossa humana ternura, enquanto os cânticos dos querubins se elevam em todas as direções exaltando a graça que nEle acham. 

Será que a esperança de Deus é sem emoção, será que a caridade de Deus é insensível e sem êxtase? 'Como são amáveis os teus tabernáculos, Senhor dos Exércitos', diz o profeta; 'a minha alma se regozija e desvanece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne se alegram no Deus vivo. Um só dia nos teus átrios melhor é que mil; prefiro ser objeto na casa do meu Deus do que morar nas tendas dos pecadores'. Assim é, como disse o grande penitente e doutor da Igreja, Santo Agostinho: 'Não basta ser conduzido pela vontade, mas também levado pelo sentido da alegria. O que é que significa ser conduzido assim pelo prazer? Alegra-te na presença do Senhor, Ele te dará o que o teu coração lhe pedi'. 

Há um certo prazer do coração para o qual doce é o pão dos céus. Além disso, se o poeta disse: 'Todos somos levados pelo nosso prazer', não por necessidade, mas por prazer, não por dever, mas por deleite; quão mais ousado seria dizer que o homem é levado a Cristo, quando a verdade o delicia e se alegra na perfeição, e se deleita com a justiça e se regozija com a vida eterna, sendo que tudo isso é Cristo? Será que os sentidos são suscetíveis de prazer e a inteligência não? Se assim é, donde vem dizer-se: 'Os filhos do homem viverão na esperança ao abrigo das suas asas; eles se embriagarão com a riqueza da tua casa, e das fontes da tua alegria lhes matarás a sede; porque em ti está a felicidade da vida, e na tua luz veremos a luz'? 

'Aquele que o Pai chamou, venha até mim'. E a quem chamou o Pai? Aquele que disse: 'Tu és Cristo, o Filho do Deus vivo'. Estende-se à ovelha um ramo verde e ela vem. O menino apressa-se à vista da fruta que lhe oferecemos; é chamado aquele que come, aquele que corre ao chamamento do amor vem sem que o seu corpo se doa, trazido pelo impulso do seu coração. Se então é verdade que a contemplação das delícias do mundo atraem aquele que ama, será que Cristo nos não seduz a nós quando revelado pelo Pai? Que mais do que a verdade atrai o espírito do homem? A alma anseia por descansar à sombra da sua paz.

Estes são os meios de que Deus se serve para fazer um santo de um pecador. Toma-o tal qual é, usa-o contra si próprio. Canaliza as suas afeições e purifica o amor carnal, inspirando-lhe a caridade sobrenatural. Não como se se tratasse de uma simples criatura irracional, compelido por instintos e condicionada por estímulos externos, sem vontade própria, e para quem um prazer é igual a qualquer outro, da mesma espécie, só que de intensidade diferente. Já afirmei que faz parte do glorioso plano da sua graça que ele venha ao coração do homem e o persuada e nele prevaleça, ao mesmo tempo que nele opera um nascimento de novo. 

Não despreza em nada a natureza original a que o ordenou; trata-o como homem e deixa-lhe o poder de agir de uma ou de outra maneira. Apela para todos os seus poderes e faculdades, para a sua razão, para a sua prudência, para a sua consciência moral. Acorda o seu temor e desperta a sua ânsia de amar. Esclarece-o sobre a perversidade do pecado, ao mesmo tempo que sobre a misericórdia de Deus; mas ainda e em resumo, o princípio animador da nova vida, que o ilumina e o sustém, é o fogo da caridade. Só ela é suficientemente forte para destruir o homem velho, para dissolver a tirania dos hábitos, para consumir a malícia da concupiscência e para queimar as sólidas raízes do orgulho.

E, desta maneira, o amor surge-nos como a graça que distingue aqueles que eram pecadores antes de serem santos; não que o amor não seja a vida de todos os santos, daqueles que nunca precisaram de converter-se, como a Santíssima Virgem, São João Batista ou o Apóstolo São João e de todos aqueles, muitos, que são as primícias de Deus e do Cordeiro; porém, enquanto que naqueles, que nunca pecaram, esse amor é contemplativo ao ponto de se identificar com a santidade do próprio Deus, naqueles em quem Ele se estabelece como princípio da convalescença e de recuperação, vem com tal força e potencial de devoção de entrega, de disponibilidade, de cuidado e de zelo, de atividade e de boas obras, que chega para conferir um caráter visível às suas vidas, e permanece aos nossos olhos associado à ideia que deles fazemos.

Era assim o Grande Apóstolo, sobre o qual a Igreja está construída, e que eu coloquei no princípio em contraste com o seu companheiro São João; se o contemplarmos depois da sua primeira chamada, ou durante o seu arrependimento, ele, que entre todos os Apóstolos foi que negou o Senhor, veremos que é o que mais se distingue pelo seu amor por Ele. Foi por este amor de Cristo, que fluía da sua impetuosidade e exuberância para o amor dos irmãos, que ele foi escolhido para ser o principal pastor do rebanho. 'Simão, filho de João, amas-me mais do que os outros?' A prova foi-lhe feita pelo Senhor; e a recompensa foi: 'apascenta as minhas ovelhas'. E é maravilhoso que o Apóstolo que Jesus amava tenha sido assim ultrapassado no seu amor a Jesus por um irmão que não era virgem como ele; porque não foi a João que Jesus fez esta pergunta nem foi ele quem assim respondeu, mas Pedro.

Reparemos numa passagem anterior da mesma narrativa; aí também os dois Apóstolos aparecem do mesmo modo contrastados nos seus caracteres. Assim, quando estavam no barco e o Senhor lhes falou da praia, e 'eles não sabiam que era Jesus', primeiro, 'o discípulo que Jesus amava disse a Pedro: é o Senhor'; e logo 'Simão Pedro cingiu a sua túnica e lançou-se ao mar' para chegar mais depressa ao pé de Jesus. São João contempla e São Pedro age.

Portanto, à vista de Jesus, o coração de Pedro ilumina-se e logo se lança após Ele; assim também, uma vez, quando viu o seu Senhor caminhando sobre as águas, o seu primeiro impulso foi, como mais tarde, saltar do barco e precipitar-se ao seu encontro: 'Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo sobre as águas'. E quando caiu no seu grande pecado, foi o próprio olhar de Jesus que o fez vir a si: 'E o Senhor voltou-se e olhou para Pedro; e Pedro lembrou-se da Palavra do Senhor e, saindo, chorou amargamente'. Por isso, noutra ocasião, quando muitos dos discípulos abandonaram o Senhor, e Jesus perguntou aos doze: 'Também quereis ir?', São Pedro respondeu: 'Senhor para quem haveríamos de ir? Só tu tens as palavras da vida eterna e nós acreditamos e sabemos que Tu és o Cristo, o Filho de Deus'.

Assim também era aquele outro Grande Apóstolo, que, de muitas maneiras, costuma ser associado a São Pedro, o Doutor dos Gentios. Quando do milagre da sua conversão, o Senhor lhe apareceu na estrada de Damasco para onde ele se dirigia com a intenção de condenar à morte os cristãos — que nos diz ele? 'Se somos loucos, é para Deus que somos; se somos sensatos é para vós; porque o amor de Cristo nos compele. Assim, que se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo'. E ainda: 'Estou crucificado com Cristo, já não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim; e ainda que na carne, vivo pela fé do Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim'. E ainda: 'Sou o último dos Apóstolos, porque persegui a Igreja de Deus. Mas pela sua graça sou o que sou; e ela não foi vã em mim, antes trabalhei mais abundantemente do que eles, não eu, contudo, mas a graça de Deus comigo'. E ainda, em outra passagem: 'Se vivemos, no Senhor vivemos; se morremos é no Senhor que morremos; quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor'. 

Vemos, meus irmãos, o caráter do Amor de São Paulo; um amor fervoroso, ávido, enérgico, dinâmico, cheio de grandes obras, 'forte como a morte' como diz o Rei Sábio, uma chama que 'muitas águas não podiam esconder, nem os regatos afogar', que permaneceu fiel até ao fim, quando pôde dizer: 'Combati o bom combate, cheguei ao fim da corrida, guardei a fé; daqui em diante me está reservada a coroa da justiça que o Senhor me dará naquele dia, o Justo Juiz'.

(Excertos da obra 'Purity and Love', do Cardeal Newman)

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

SERMÃO SOBRE O AMOR (I)

PARTE I 

Por dois modos distintos a graça de Deus nos é manifestada, segundo vemos nos exemplos tirados das Escrituras ou da história da Igreja, ou ainda da vida dos santos e de outros fieis servos de Deus. Encontramo-los entre os Apóstolos do Senhor, representados pelas duas figuras mais significativas daquela pequena comunidade privilegiada: São Pedro e São João. São João é o Santo da Pureza e São Pedro é o Santo do Amor. Não que amor e pureza se possam separar; não, pois, como se um santo não tivesse em si e desde logo todas as virtudes; não como se São Pedro não fosse tão puro pelo muito que amava ou São João amasse menos pela sua pureza. 

As graças do Espírito não podem separar-se uma das outras; uma implica todas as outras o que é o amor senão um comprazimento, uma entrega total do homem a Deus? O que é a impureza, por outro lado, senão o tomar de alguma coisa deste mundo, algo de pecaminoso, para objeto das nossas paixões, em lugar de Deus? O que é, senão um deliberado voltar de costas da criatura em face do seu Criador, e uma procura insaciável de prazer não na transbordada presença de alegria, de luz e de santidade, senão à sombra da morte? Portanto, o homem impuro não pode amar Deus; e aqueles que secos se tornaram de amor não podem realmente ser puros; em qualquer objeto havemos de fixar os nossos afetos, e nisso havemos de achar contentamento; ora, não podemos pôr a nossa alegria em dois objetos, tal como não podemos servir a dois senhores, que um ao outro sejam contrários. Muito menos ainda, pode o santo ser imperfeito na pureza ou no amor, porque não será este, fogo claro e límpido, se a substância que o alimente não for inalterável e puríssima.

Porém, certo que assim é, o é igualmente que as obras espirituais de Deus se mostram aos nossos olhos de modo diverso, e que os santos revelam no seu caráter e nas suas vidas, uns, esta virtude mais do que as outras, outros, aquela mais do que estas. Por outras palavras, é do agrado daquele que tem o poder de dispensar todas as graças, conferir-lhes certos dons especiais para a sua glória, que iluminam e embelezam uma porção ou parte da sua alma, de maneira a colocar na sobra as suas outras abundantes virtudes. E então essa graça torna-se como que o sinal e assume especial relevo aos nossos olhos, de maneira que o que eles possuem, para além dela, nós o consideramos nela incluído ou dela dependente; é como se mais não tivessem, embora tudo possuam; e assim lhes buscamos títulos distintivos ou os pintamos com a cor e a tonalidade dessa graça particular que lhes é com tal relevo própria. E neste sentido podemos falar, como tenciono fazê-lo a seguir, de duas categorias principais de santos, cujos símbolos são o lírio e a rosa: um alvo e casto da pureza dos anjos, o outro abrasado pelo amor de Deus.

Dos dois personagens, do mesmo nome João, surgem os grandes exemplos da vida angélica. Quem poderemos, meus irmãos, imaginar possuídos de tal grandeza e de tão severa santidade como São João Batista? Foi-lhe dado um privilégio que quase iguala a prerrogativa da Bem-Aventurada Mãe de Deus; porque se ela foi concebida sem pecado, ele sem mancha nasceu. Ela era toda pureza e toda santidade, e nada havia o pecado com ela; São João, porém, nos primeiros dias da sua existência foi ainda cúmplice da maldição do nosso primeiro pai; sob a ira de Deus, privado da graça que Adão recebera, e que é a perfeição da natureza humana. 

No entanto, assim que Cristo seu Senhor e Salvador se fez carne, e Maria saudou Isabel, a mãe de João, logo a graça de Deus baixou sobre ele e o pecado original se apagou em sua alma. É por isso que celebramos a natividade de São João; ora, a Igreja não celebra o que não é santo; não celebra, por exemplo, a natividade de São Pedro ou de São Paulo, ou de Santo Agostinho, ou São Gregório, ou São Bernardo ou São Luís, nem a de qualquer santo, por mais glorioso, porque todos nasceram em pecado. Celebra, sim, a sua conversão, os seus privilégios, o seu martírio, a sua morte, a sua trasladação, mas nunca o seu nascimento, porque em nenhum caso foi santo. 

A Igreja comemora, pois, três natividades apenas, a do Senhor, a de Sua Mãe e por fim a de São João Batista, distinguindo-o acima de todos os profetas e pregadores que jamais, por muitos santos, viveram, salvo talvez o profeta Jeremias! E tal como o seu começo, assim o curso da sua vida. Foi transportado pelo Espírito do deserto, e ali viveu, nutrindo-se dos alimentos mais pobres, vestindo as roupas mais grosseiras, açoitando-se numa caverna de animais selvagens, longe dos homens, durante trinta anos, uma vida de morte e de meditação, até que foi chamado a pregar o arrependimento, a anunciar a vinda de Cristo e a ser o ministro do seu batismo. 

Uma vez cumprida a sua missão, e não havendo deixado qualquer resto de pecado, foi posto de lado como um instrumento que já não serve e, na masmorra, o seu corpo definhou até que, súbito, a espada do carrasco o trespassou para a vida eterna. Santidade, eis que a qualidade, a ideia com que a sua vida nos surpreende no seu começo no seu fim; o mais maravilhoso dos santos, um eremita desde a infância, pregador depois a um povo decaído e mártir finalmente. Decerto tal vida encheu bem a expectativa que a voz de Maria anunciara a seu respeito antes ainda que nascesse.

Porém, ainda mais bela, e quase tamanha, é a imagem do seu homônimo o grande Apóstolo, evangelista e profeta da Igreja, que muito cedo veio juntar-se aos amigos escolhidos do Senhor e que por muito tempo lhes sobreviveu. Podemos contemplá-lo na sua juventude e na sua velhice; e toda a sua vida, de extremos, é percorrida por este dom inefável da pureza. É o Apóstolo virgem, por isso tão amado do seu Senhor - 'o discípulo que Jesus amou' e que reclinava a cabeça em seu peito, e que recebeu em sua casa a Mãe de Jesus, segundo desejo manifesto por seu filho na cruz, que teve a visão de todos os prodígios que haviam de vir ao mundo no fim dos tempos.

'Digno de muito louvor', diz a Igreja, 'é o Bem-Aventurado João, que, durante a Ceia, se reclinou no seio do Senhor, a quem Cristo na cruz entregou uma virgem, sua Mãe sempre virgem. Foi escolhido casto e sem mancha pelo Senhor, e mais amado do que os outros. A semente particular da castidade fecundou-o para um amor mais profundo, porque, havendo sido escolhido virgem pelo Senhor, como tal permaneceu toda a sua vida'. Ele fora quem, na sua juventude, se mostrara tão pronto a beber com Cristo o seu cálice, que viveu durante muito tempo como um estranho desolado numa terra estrangeira, que foi levado para Roma e mergulhado em óleo fervente e depois banido para uma ilha distante, até que a conta dos seus dias se fechou.

É para nós impossível imaginar a santidade destes dois grandes servos de Deus, tão diferente a sua história, a sua vida e a sua morte, convergindo contudo no seu abandono do mundo, na sua serenidade, na sua liberdade em face do pecado. Nenhuma culpa mortal jamais os tocou; e podemos crer que mesmo isentos foram do pecado venial e voluntário; é impossível, mesmo, que nenhuma ocasião mais propícia ou momento de maior tentação tenha achado neles resposta do pecado. A rebeldia da razão, o capricho dos sentimentos, a desordem da inteligência, a febre da paixão, a traição dos sentidos, tudo lhes era sujeito pela onipotente graça de Deus. 

Viveram num mundo à sua imagem, uniforme, sereno, aceito, entre visões de paz inefável e perfeita, em comunhão com os Céus, numa antecipação da glória; e se falavam ao mundo pregadores ou confessores, a sua voz vinha como que de um santuário, não se misturando com ele mesmo quando a ele se dirigiam, como 'uma voz que clama no deserto' ou 'no Espírito do Dia do Senhor'. E, assim, nós falamos neles mais como modelos de santidade do que de amor, porque o amor diz respeito a um só objeto externo, para o qual conflui e se esforça; e no entanto, porque eles eram tão íntimos do objeto amado, foi-lhes dado recebê-lo nos seus corações; não precisavam de amar o céu porque já eram o céu, não lhes era mister ver a luz, porque luz eram eles, e viveram entre os homens como aqueles anjos de outrora que vieram ter com os patriarcas e lhes falaram como se fossem eles o próprio Deus, porque Deus estava neles, e por eles falava. 

Assim estes dois servos do Senhor estavam tão absortos da divindade que mereceram viver a vida angélica, tanto quanto possível ao homem viver, sereníssimos e cheios de doçura, tão acima da tristeza e do medo, da desilusão e do pesar, do desejo e da aversão, até se tornarem na imagem mais perfeita que a terra já contemplou da paz e da serena imutabilidade de Deus. Assim são os muitos santos que sempre guardaram a sua virgindade e que a história registra para a nossa veneração, como São José, o grande Santo Antônio, Santa Cecília, que foi visitada pelos anjos, São Nicolau de Bari, São Pedro Celestino, Santa Rosa de Viterbo, Santa Catarina de Sena e uma multidão de muitos outros e, acima de todos, a Virgem das Virgens, a Rainha das Virgens, a Bem Aventurada Maria, tão cheia e transbordante da graça do amor, porque ela é 'o trono da sabedoria' e a 'arca da aliança', posto que, assim, é representada mais sob o sinal do lírio do que da rosa...

(Excertos da obra 'Purity and Love', do Cardeal Newman)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O SINAL DA CRUZ (V)


In hoc Signo vinces - 'Por este Sinal vencerás'

V

A terceira razão do Sinal da Cruz ter sido dado aos homens é a de nos tirarmos da pobreza, pois é um tesouro inesgotável que nos enriquece. E nos enriquece porque é uma excelente súplica. O Sinal da Cruz é uma súplica poderosa; uma súplica universal. E o que é um homem suplicando? É um indivíduo que, diante de Deus, confessa sua indigência: indigência intelectual, indigência moral, indigência material. Assim, suplicou por nós sobre a Cruz o adorável Mendigo do Calvário. E o que faz o homem formando o Sinal da Cruz, quer com a mão, quer estendendo os braços? Imprime em si mesmo a imagem do Divino Mendigo. Identifica-se com Ele como Jacó cobrindo-se das vestes de Esaú, para obter a bênção paterna. 

Quando o homem, ameaçado por um perigo, assaltado pela dúvida, perseguido por uma tentação, dominado pelo sofrimento ou pela doença, ao pronunciar estas palavras de solene autoridade: 'Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo" — e, ao pronunciá-las, faz o Sinal redentor do mundo, o Sinal vencedor do inferno, como poderás admitir a menor resistência por parte do mal? Não satisfez o homem todas as condições necessárias ao resultado? E não está Deus em posição de intervir e de glorificar o seu Nome e o poder de Seu Cristo? 

A piedade de quem faz o Sinal da Cruz, muito contribui para a sua eficácia. O Sinal da é uma invocação tácita a Jesus Crucificado; é pois, tento mais eficaz quanto maior for o fervor com que é feito. Seja ela de coração ou de boca, a invocação é tanto mais apta a produzir efeito quanto mais o fiel é virtuoso e mais do agrado do Senhor. é uma súplica universal e, de certo modo, com ele pode-se dizer como o próprio Salvador: 'foi-me dado todo o poder do Céu e da terra'. 

Se o Sinal da Cruz presidisse todas as lições que hoje se dão, todos os livros que se imprimem, acreditas tu que haveríamos de estar, assim, inundados como estamos de erros, de sofismas, de ideias falsas e de sistemas incoerentes cujo resultado incontestável é fazer baixar a olhos vistos o mundo moderno às trevas intelectuais de onde o Cristianismo já o havia tirado?

Vinte vezes ao dia sedutores objetos se oferecem aos nossos olhos; maus pensamentos nos importunam o espírito; e, revoltados, os sentidos solicitam-nos o coração a traições covardes. Ó de quanta força carece o homem! E onde a encontrará? No Sinal da Cruz. O testemunho dos séculos, a experiência dos veteranos e o exemplo dos conscritos na virtude, atestam hoje como ontem o poder soberano que o Sinal Divino tem para dissipar os encantos sedutores, afugentar os maus pensamentos e reprimir os movimentos da concupiscência.

Vês este doente cercado de dores, abandonado de todos ou rodeado de parentes e amigos sem forças para lhes valer? Detrás dele, há o tempo que foge e, à sua frente, a eternidade que avança. Sim; a eternidade em que ele vai cair sem que nenhuma força humana possa retardar-lhe o momento da partida ou adoçar as angústias da. viagem! Este doente, meu caro amigo, és tu, sou eu, é todo o homem, rico ou pobre, súdito ou monarca. Se durante os combates da vida carecemos de luz, de força de consolação e de esperança, não teremos nós de tudo isto uma necessidade mil vezes maior nas lutas decisivas da morte? Pois bem, o Sinal da Cruz é tudo isto para todos nós. À maneira dos mártires que, ao caminhar ao último combate, não deixavam de se fortalecer pelo Sinal da Cruz, os verdadeiros cristãos dos séculos passados recorriam sempre ao Divino Sinal para adoçar as dores e santificar suas mortes.

Mendigo na ordem espiritual, o homem não é menos indigente na ordem temporal. Nosso corpo e nossa alma vivem senão de esmolas. Entre os bens necessários ao corpo, há dois em particular que gostaria de mencionar — a saúde e a segurança. Um e outro, o Sinal da Cruz no-los alcança. Quantos e quão numerosos são os testemunhos que o  Sinal adorável dAqueIe que veio ao mundo para curar todas as moléstias, não tem deixado nunca de dar vista aos cegos, ouvido aos surdos, fala aos mudos, saúde aos doentes e vida aos mortos. O Sinal da Cruz protege não só a nossa vida, mas tudo quanto nos pertença, e daí o hábito católico de se benzer, com o Sinal libertador, também as nossas casas, animais e todas as coisas de nosso uso particular. 

(Excertos adaptados da obra 'O Sinal da Cruz', do Monsenhor Gaume, 1862)

domingo, 2 de fevereiro de 2020

PÁGINAS COMENTADAS DOS EVANGELHOS DOS DOMINGOS


'(Jesus) devia fazer-se em tudo semelhante aos irmãos, para se tornar um sumo-sacerdote misericordioso e digno de confiança nas coisas referentes a Deus, a fim de expiar os pecados do povo. Pois, tendo ele próprio sofrido ao ser tentado, é capaz de socorrer os que agora sofrem a tentação' (Hb 2, 17-18)

PÁGINAS DO EVANGELHO (2019 - 2020)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

31 DE JANEIRO - SÃO JOÃO BOSCO

 

Filho de uma humilde família de camponeses, São João (Melchior) Bosco nasceu em Colle dos Becchi, localidade próxima a Castelnuovo de Asti em 16 de agosto de 1815. Órfão de pai aos dois anos, viveu de ofícios diversos na pobreza da infância e da juventude, até ser ordenado sacerdote em 5 de junho de 1841, com a missão apostólica de servir, educar e catequizar os jovens, o que fez com extremado zelo e santificação durante toda a sua vida.

Em 1846, fundou o Oratório de São Francisco de Sales em Turim, dando início à sua obra prodigiosa, arregimentando colaboradores e filhos, aos quais chamava de salesianos, em meio a um intenso e profícuo apostolado. Em 1859, fundou  a Congregação Salesiana e, em 1872, com a ajuda de Santa Maria Domingas Mazzarello, fundou o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora para a educação da juventude feminina. Em 1875, enviou a primeira turma de seus missionários para a América do Sul. No Brasil, as primeiras casas salesianas foram o Colégio Santa Rosa em Niterói e o Liceu Coração de Jesus em São Paulo. 

Faleceu a 31 de janeiro de 1888 em Turim, aos 72 anos, deixando como herança cristã a Congregação Religiosa Salesiana espalhada por diversos países da Europa e das Américas. O Papa Pio XI, que o conheceu e gozou da sua amizade, canonizou-o na Páscoa de 1934. Popularizado como 'Dom Bosco', foi aclamado pelo Papa João Paulo II como 'pai e mestre da juventude' e se tornaram lendários os seus sonhos proféticos (exemplo abaixo), que ele narrava em suas pregações aos jovens salesianos.

A BIGORNA E O MARTELO

Em 20 de agosto de 1862, depois de rezadas as orações da noite e de dar alguns avisos relacionados com a ordem da casa, Dom Bosco disse: 'Quero contar-lhes um sonho que tive faz algumas noites'.

Sonhei que estava em companhia de todos os jovens em Castelnuovo do Asti, na casa de meu irmão. Enquanto todos faziam recreio, dirigiu-se a mim um desconhecido e convidou-me a acompanhá-lo. Segui-o e ele me conduziu a um prado próximo ao pátio e ali indicou-me, entre a erva, uma enorme serpente de sete ou oito metros de comprimento e grossura extraordinária. Horrorizado ao contemplá-la, quis fugir.

— 'Não, não' — disse-me meu acompanhante — 'não fujas; vem comigo'.
 'Ah!' — exclamei — 'não sou tão néscio para me expor a um tal perigo'.
— 'Então' — continuou meu acompanhante —'aguarda aqui'.
E, em seguida, foi em busca de uma corda e com ela na mão voltou novamente junto a mim e disse-me:
— 'Tome esta corda por uma ponta e agarre-a bem; eu agarrarei o outro extremo e por-me-ei na parte oposta e, assim, a manteremos suspensa sobre a serpente'.
— 'E depois?'
— 'Depois a deixaremos cair sobre a espinha dorsal'.
— 'Ah! não; por caridade. Pois ai de nós se o fizermos! A serpente saltará enfurecida e nos despedaçará'.
— 'Não, não; confie em mim' — acrescentou o desconhecido —'eu sei o que faço'.
— 'De maneira nenhuma; não quero fazer uma experiência que pode-me custar a vida'.

E já me dispunha a fugir, quando o homem insistiu de novo, assegurando-me que não havia nada que temer; e tanto me disse que fiquei onde estava, disposto a fazer o que me dizia. Ele, entretanto, passou do outro lado do monstro, levantou a corda e com ela deu uma chicotada sobre o lombo do animal. A serpente deu um salto voltando a cabeça para trás para morder ao objeto que a tinha ferido, mas em lugar de cravar os dentes na corda, ficou enlaçada nela mediante um nó corrediço. Então o desconhecido gritou-me:

— 'Agarre bem a corda, agarre-a bem, que não se lhe escape'.

E correu a uma pereira que havia ali perto e atou a seu tronco o extremo que tinha na mão; correu depois para mim, agarrou a outra ponta e foi amarrá-la à grade de uma janela. Enquanto isso, a serpente agitava-se, movia-se em espirais e dava tais golpes com a cabeça e com sua calda no chão, que suas carnes rompiam-se saltando em pedaços a grande distancia. Assim continuou enquanto teve vida; e, uma vez morta, só ficou dela o esqueleto descascado e sem carne. Então, aquele mesmo homem desatou a corda da árvore e da janela, recolheu-a, formou com ela um novelo e disse-me:

— 'Presta atenção!'

Colocou a corda em uma caixa, fechou-a e depois de uns momentos a abriu. Os jovens tinham-se ajuntado ao ao meu redor. Olhamos o interior da caixa e ficamos maravilhados. A corda estava disposta de tal maneira, que formava as palavras: Ave Maria!

— 'Mas como é possível?' — disse — 'Você colocou a corda na caixa e agora ela aparece dessa maneira!'.

— 'Olhe' — disse ele — 'a serpente representa o demônio e a corda é a Ave Maria, ou melhor, o Santo Rosário, que é uma série de Ave Marias com a qual e com as quais se pode derrubar, vencer e destruir todos os demônios do inferno.

Enquanto falávamos sobre o significado da corda e da serpente, voltei-me para trás e vi alguns jovens que, agarrando os pedaços da carne da serpente, os comiam. Então gritei-lhes imediatamente:

— 'Mas o que é o que fazem? Estão loucos? Não sabem que essa carne é venenosa e que far-lhes-á muito dano?'

'Não, não' — respondiam-me os jovens — 'a carne está muito boa'.

Mas, depois de havê-la comido, caíam ao chão, inchavam-se e tornavam-se duros como uma pedra. Eu não podia ficar em paz porque, apesar daquele espetáculo, cada vez era maior o número de jovens que comiam aquelas carnes. Eu gritava a um e a outro; dava bofetadas a este, um murro naquele, tentando impedir que comessem; mas era inútil. Aqui caía um, enquanto que lá começava a comer outro. Então chamei os clérigos em meu auxílio e disse-lhes que se mesclassem entre os jovens e se organizassem de maneira que ninguém comesse aquela carne. Minha ordem não teve o efeito desejado, pois alguns dos clérigos começaram também a comer as carnes da serpente, caindo ao chão como os outros. Eu estava fora de mim quando vi a meu redor um grande número de moços estendidos pelo chão no mais miserável dos estados. Voltei-me, então, para desconhecido e disse-lhe:

— 'Mas o que quer dizer isto? Estes jovens sabem que esta carne ocasiona-lhes a morte e, contudo, a comem. Qual é a causa?'

Ele respondeu-me: ' Já sabes que animalis homo non percipit ea quae Dei sunt: Alguns homens não percebem as coisas que são de Deus'.

— 'Mas não há remédio para que estes jovens voltem em si?'

— 'Sim, há'.

— 'E qual seria?'

— 'Não há outro que não seja pela bigorna e pelo martelo'.

— 'Bigorna? Martelo? E como terei que empregá-los?'

— 'Terás que submeter os jovens à ação de ambos estes instrumentos'.

— 'Como? Acaso devo colocá-los sobre a bigorna e golpeá-los com o martelo?'

Então meu companheiro me esclareceu, dizendo:

— 'O martelo significa a Confissão e a bigorna, a Comunhão; é necessário fazer uso destes dois meios'.