sexta-feira, 28 de junho de 2019

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

O ateu moderno não descrê por causa do seu intelecto, mas por causa da sua vontade. Não é o conhecimento que o torna um ateu, mas a perversidade. A negação de Deus brota de um desejo do homem de não ter um Deus – da sua vontade de que não haja justiça por trás do universo, de modo que as suas injustiças não receiem retribuição; do seu desejo de que não haja lei, de modo que não possa ser julgado por ela; do seu querer que não haja bondade absoluta, para que ele possa continuar a pecar com impunidade. É por isso que o ateu moderno se mostra sempre encolerizado quando ouve dizer alguma coisa a respeito de Deus e da religião. Seria incapaz de tal ressentimento se Deus fosse apenas um mito. O seu sentimento para com Deus é o mesmo que um homem mau tem para com alguém a que ele fez um mal. Desejaria que estivesse morto de modo que nada pudesse fazer para vingar o mal. O que atraiçoa a amizade sabe que o seu amigo existe mas deseja que ele não existisse. O ateu pós-cristão sabe que Deus existe mas deseja que Ele não existisse.

(Mons. Fulton Sheen)

quinta-feira, 27 de junho de 2019

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (IX)


Na nona parte do Sermão da Sexagésima, o Pe. Antônio Vieira define finalmente a causa primária do pouco fruto de tantas pregações ineficazes: o pregador se fia em pregar as suas próprias palavras em desfavor de pregar a Santa Palavra de Deus.

IX

As palavras que tomei por tema o dizem: semen est Verbum Dei [a semente é a Palavra de Deus]. Sabeis, cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são as palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus - como dizia - é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas, se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, porque muito se espantem que não tenham a eficácia e os efeitos da Palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: 'quem semeia ventos, colhe tempestades' (Os 8,7). Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade e se não se prega a Palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de padecer tormenta em vez de colher fruto?

Mas dir-me-eis: 'padre, os pregadores de hoje não pregam o Evangelho, não pregam as Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus?' Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a Palavra de Deus: qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere [quem detém a minha palavra, professe minha palavra na verdade (Jr 23, 26)], disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do demônio. 

Tentou o demônio a Cristo que das pedras fizesse pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei [não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus (Mt 4,4)]. Esta sentença foi tirada do capítulo VIII do Deuteronômio (Dt 8,3). Vendo o demônio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo e, alegando o exposto no Salmo 90, diz-lhe desta maneira: mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: 'deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal'. De sorte que Cristo defendeu-se do diabo com a Escritura e o diabo tentou a Cristo com a Escritura. 

Todas as Escrituras são palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do diabo, como toma o diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido e o diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido, são palavras de Deus, mas tomadas em sentido alheio, são armas do diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa; tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o diabo derrubar a Cristo e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o púlpito porque é o lugar mais alto dele. O diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja e que, em muitas partes, tem derrubado nela senão a Cristo, pelo menos a sua fé.

Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis, que tantas vezes levantais ou esses empreendimentos ao vosso parecer agudos que proferis, achaste-os alguma vez nos Profetas do Velho Testamento ou nos Apóstolos e Evangelistas do Novo Testamento ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira palavra do Gênesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que entoam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que entoam. 

Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, porque nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que as palavras de Deus sejam ditas pelo que nós queremos dizer para que não possamos dizer o que elas dizem! E ainda constatar a aprovação do auditório a estas coisas quando se devia dar com a cabeça pelas paredes só de as ouvir! Verdadeiramente não sei do que mais me espanta: se dos nossos conceitos ou se dos vossos aplausos... 'Ó como bem argumentou o pregador!' Assim é; mas o que argumentou? Um falso testemunho do texto, outro falso testemunho do santo, outro do entendimento e do sentido de ambos. Então espera-se que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me.

Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista São Mateus que, por fim, vieram duas testemunhas falsas: novissime venerunt duo falsi testes [por fim, apresentaram-se duas falsas testemunhas (Mt 26, 60)]. Estas testemunhas disseram que ouviram Cristo dizer que, se os judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista São João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em três dias e foi isto mesmo que disseram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista de testemunhas falsas: duo falsi testes [duas testemunhas falsas]? O mesmo São João deu a explicação: loquebatur de templo corporis sui [referia-se ao templo do seu corpo (Jo 2,21)].

Quando Cristo disse, que em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas se referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras fossem verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas porque Cristo as dissera em um sentido e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas aquilo que são apenas minhas imaginações, as quais não quero excluir deste número [apenas imaginações]! Porque desde logo há que se esperar que as nossas imaginações, as nossas vaidades e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!

Miseráveis de nós e miseráveis os nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de São Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt [pois haverá tempo em que (os homens) não suportarão a sã doutrina (2Tm 4,3)]: 'virá tempo', diz São Paulo, 'em que os homens não suportarão a sã doutrina'. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus [levados pelos pruridos dos sentidos, buscarão mestres para ouvir apenas o que desejam (2Tm 4,3)]. Mas, para seu apetite, terão grande número de pregadores feitos de montão e sem escolha, os quais não farão mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: 'fecharão os ouvidos à verdade e abri-los-ão às fábulas'. 

Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento porque são subtilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre aquelas do tempo presente era ter-se acabado as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano e gentio do que nas pregações de um orador cristão e, muitas vezes, mais que cristão, religioso!

Pouco disse São Paulo em lhes chamar comédia porque muitos sermões não são comédia, mas farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este [o sermão] se rompe, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajes e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. 

E nós, o que é que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajes, uma voz muito afetada e muito polida e logo começar com muito desgarro, para quê? Para motivar desvelos, para creditar empenhos, para requintar finezas, para lisonjear precipícios, para brilhar auroras, para derreter cristais, para desmaiar jasmins, para toucar primaveras e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa, a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia, o rei veste como rei e fala como rei; o lacaio, veste como lacaio e fala como lacaio; o rústico veste como rústico e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro e o sermão não é comédia sequer, como faremos bem a figura? Não servirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava São Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de ser seus filhos? Pois por que não os imitamos? Por que não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou São Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou São Francisco de Borja; e eu, que tenho este mesmo hábito, por que não pregarei a sua doutrina já que não me falta o seu espírito?

(Sermão da Sexagésima - Parte IX, Pe. Antônio Vieira)

quarta-feira, 26 de junho de 2019

26 DE JUNHO - SÃO JOSEMARIA ESCRIVÁ


São Josemaria Escrivá de Balaguer nasceu em 09 de janeiro de 1902 em Barbastro, Espanha. Em 02 de outubro de 1928, durante um retiro espiritual em Madrid, concebeu e fundou o OPUS DEI, atualmente prelazia pessoal da Igreja Católica. A missão específica do Opus Dei é promover, entre homens e mulheres de todo o âmbito da sociedade, um compromisso pessoal de seguir a Cristo, de amor a Deus e ao próximo e de procura da santidade na vida cotidiana. Faleceu em Roma em 26 de junho de 1975. Foi beatificado em 17 de maio de 1992 e canonizado, pelo Papa João Paulo II na Praça de São Pedro, em 06 de outubro de 2002. Sua obra mais conhecida é Caminho, escrita como orientações espirituais em diferentes parágrafos. Outras obras do autor são ForjaSulco e É Cristo que Passa.

A CRUZ NÃO É UM CONSOLO FÁCIL

'A doutrina cristã sobre a dor não é um programa de fáceis consolações. Começa logo por ser uma doutrina de aceitação do sofrimento, inseparável de toda a vida humana. Não vos posso esconder - e com alegria pois sempre preguei e procurei viver a verdade de que, onde está a Cruz, está Cristo, o Amor - que a dor apareceu muitas vezes na minha vida; e mais de uma vez tive vontade de chorar. Noutras ocasiões, senti crescer em mim o desgosto pela injustiça e pelo mal. E soube o que era a mágoa de ver que nada podia fazer, que, apesar dos meus desejos e dos meus esforços, não conseguia melhorar aquelas situações iníquas.

Quando vos falo de dor, não vos falo apenas de teorias. Nem me limito a recolher uma experiência de outros, quando vos confirmo que, se sentis, diante da realidade do sofrimento, que a vossa alma vacila algumas vezes, o remédio que tendes é olhar para Cristo. A cena do Calvário proclama a todos que as aflições hão-de ser santificadas, se vivermos unidos à Cruz.

Porque as nossas tribulações, cristãmente vividas, se convertem em reparação, em desagravo, em participação no destino e na vida de Jesus, que voluntariamente experimentou, por amor aos homens, toda a espécie de dores, todo o gênero de tormentos. Nasceu, viveu e morreu pobre; foi atacado, insultado, difamado, caluniado e condenado injustamente; conheceu a traição e o abandono dos discípulos; experimentou a solidão e as amarguras do suplício e da morte. Ainda agora, Cristo continua a sofrer nos seus membros, na Humanidade inteira que povoa a Terra e da qual Ele é Cabeça, Primogênito e Redentor'.
                                                                                                                      (É Cristo que Passa)

terça-feira, 25 de junho de 2019

ORAÇÃO DAS DOZE ESPERANÇAS EM MARIA


1. Ó Doce Virgem Maria, colocarei toda a minha esperança em vós e não serei confundido. 

2. Ó Doce Virgem Maria, creio tão firmemente que, do alto do Céu, velais dia e noite por mim e por todos os que esperam em vós, que não serei mais refém e prisioneiro de inquietação alguma;

3. Ó Doce Virgem Maria, habitarei na paz do vosso coração e não pensarei senão em vos amar e obedecer.

4. Ó Doce Virgem Maria, esperarei somente em Vós, depois de Deus, e todo fundamento de minha esperança será sempre minha confiança em vossa bondade maternal.

5. Ó Doce Virgem Maria, conservarei minha confiança em vós até o meu último suspiro e quero morrer repetindo mil vezes vosso nome, fazendo repousar em vosso coração toda a minha esperança.

6. Ó Doce Virgem Maria, vos invocarei sempre porque sempre me consolareis.
 
7. Ó Doce Virgem Maria, vos agradecerei sempre porque sempre me confortareis.
 
8. Ó Doce Virgem Maria, vos servirei sempre porque sempre me ajudareis.
 
9. Ó Doce Virgem Maria, vos amarei sempre porque sempre me amareis.

10. Ó Doce Virgem Maria, sempre hei de ter tudo de vós porque sempre o vosso amor será maior que a minha esperança.

11. Ó Doce Virgem Maria, por vós espero e aguardo o único bem que desejo, que é a união a Jesus no tempo e na eternidade. 

12. Ó Doce Virgem Maria, em vós confio e, após me terdes ensinado a compartilhar as humilhações e sofrimentos de vosso Divino Filho, creio firmemente que me introduzireis em sua glória para o louvar e bendizer, junto a Vós, pelos séculos dos séculos.

(São Bernardo de Claraval, texto adaptado)

segunda-feira, 24 de junho de 2019

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (VIII)


Nesta oitava parte do sermão, o Pe. Antônio Vieira constata que a voz, seja mais suave ou mais incisiva, não é também a causa do pouco fruto que hoje faz a Santa Palavra de Deus.

VIII

Será finalmente a causa, que tanto há buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. Boa era também esta, mas não a podemos provar com o semeador, porque já dissemos que não era ofício de boca. Porém o que nos negou o Evangelho no semeador metafórico, nos deu no semeador verdadeiro, que é Cristo. Tanto que Cristo, ao acabar a parábola, diz o Evangelho, começou a bradar: Haec dicens clamabat [(Jesus) disse elevando a voz (Lc 8,8)]. Bradou o Senhor e não arrazoou sobre a parábola porque era tal o auditório que fiou mais dos brados que da razão.

Perguntaram ao Batista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto [Eu sou a voz que clama no deserto (Jo 1,23)] - Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Batista. A definição do pregador, cuidava eu que era: voz que arrazoa e não voz que brada. Pois por que se definiu o Batista pelo bradar e não pelo arrazoar; não pela razão, senão pelos brados? Porque há muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razão, e tais eram aqueles a quem o Batista pregava. 

Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusações que contra ele se davam, lavou as mãos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto - nenhuma causa eu acho neste homem (Lc 23, 14). Neste tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: at illi magis clamabant, crucifigatur [porém, clamavam cada vez mais: sede crucificado! (Mt 27, 23)]. De maneira que Cristo tinha por si a razão e tinha contra si os brados. E qual pôde mais? Puderam mais os brados que a razão. A razão não valeu para o livrar, os brados bastaram para o pôr na Cruz. E como os brados no mundo podem tanto, bem é que bradem alguma vez os pregadores, bem é que gritem. Por isso Isaías chamou aos pregadores de 'nuvens': Qui sunt isti, qui ut nubes volant? [quem são estes que voam como as nuvens? (Is 60,8)]. A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração; com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos, o trovão a todos. Assim há de ser a voz do pregador, um trovão do Céu, que assombre e faça tremer o mundo.

Mas que diremos à oração de Moisés? Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ut ros eloquim meum [derrame-se como chuva a minha doutrina, espalhe-se como orvalho a minha palavra (Dt 32,1)] - desça minha doutrina como chuva do céu e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se destila brandamente e sem ruído. Que diremos ao exemplo ordinário de Cristo, tão celebrado por Isaías: non clamabit neque audietur vox ejus foris? [não grita e nunca eleva a voz aos outros (Is 42,2)] - não clamará, não bradará, mas falará com uma voz tão moderada que se não possa ouvir fora. E não há dúvida que o praticar familiarmente e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete na alma. 

Em conclusão: a causa de não fazerem hoje fruto os pregadores da palavra de Deus não é a circunstância da pessoa: qui seminat [quem semeia]; nem a do estilo: seminare [semear]; nem a da matéria: semen [semente]; nem a da ciência: suum [sua (semente)]; nem a da voz: clamabat [que brada]. Moisés tinha voz fraca (Ex 4,10); Amós tinha estilo grosseiro (Am 1,1); Salomão multiplicava e variava os assuntos (Ecl 1); Balaão não tinha exemplo de vida e o seu animal não tinha ciência (Nm 22) e, contudo, todos estes falando, persuadiam e convenciam. Pois se nenhuma destas razões que discorremos e nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que é a verdadeira causa?

(Sermão da Sexagésima- Parte VIII, Pe. Antônio Vieira)

domingo, 23 de junho de 2019

'E VÓS, QUEM DIZEIS QUE EU SOU?'

Páginas do Evangelho - Décimo Segundo Domingo do Tempo Comum


Jesus encontra-se em oração em um lugar retirado. O Filho de Deus, em sua condição humana, suplicando graças à Trindade Santa, da qual constitui a Segunda Pessoa, constitui um mistério insondável. E Jesus reza sozinho, em profunda meditação, como a indicar, com soberana clareza, que a revelação extraordinária que será dada a seguir - a identidade do Cristo - perpassa pela oração profunda e pelos mistérios da graça. E, neste espírito de profundo recolhimento interior, que antecede grandes revelações, Jesus indaga aos seus discípulos: 'Quem diz o povo que eu sou?' (Lc 9, 18).

Neste 'certo dia', as mensagens e as pregações públicas de Jesus estavam consolidadas; os milagres e os poderes sobrenaturais do Senhor eram de conhecimento generalizado no mundo hebraico; multidões acorriam para ver e ouvir o Mestre, dominados pela falsa expectativa de encontrar um personagem mítico e um Messias dominador do mundo. Na oração profunda, Jesus afasta-se do júbilo fácil do mundo e das multidões errantes, que O tomam por João Batista, por Elias, por um dos antigos profetas. E se aproxima intimamente daqueles que haverão de ser os primeiros apóstolos da Igreja nascente, compartilhando-lhes na pergunta do juízo de fé:  'E vós, quem dizeis que eu sou?' (Lc 9, 20), a resposta à sua identidade salvífica, saída da boca de Pedro: 'O Cristo de Deus' (Lc 9, 20).

Sim, Jesus é o Cristo de Deus e o seu reino não é deste mundo. Ante a confissão de Pedro, Jesus revela a sua origem e a sua missão e faz o primeiro anúncio de sua Paixão, Morte e Ressurreição: 'O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia' (Lc 9, 22). E, um passo além, faz o testemunho da cruz, pela privação do mundo: 'Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará (Lc 9, 33-24).

Eis aí o legado definitivo de Jesus aos homens de sempre: a Cruz de Cristo é o caminho da salvação e da vida eterna. Tomar esta cruz, não apenas hoje ou em momentos específicos de grandes sofrimentos em nossas vidas, mas sim, todos os dias, a cada passo, em cada caminho, é a certeza de encontrá-lO na glória e da plenitude das bem-aventuranças. A Cruz de Cristo é a Porta do Céu. 

sábado, 22 de junho de 2019

OS ESTIGMAS DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS

O santo não temia a morte. Tinha cortado, pelo seu despojamento total, os vínculos que o ligavam à terra; tinha, a exemplo do Apóstolo, conquistado o domínio sobre o seu corpo: a sua alma devia desprender-se sem dilacerações do seu invólucro físico. Se não tremia perante a aproximação do momento fatal, queria pelo menos preparar-se para comparecer diante do Soberano Juiz. Partiu, pois, rumo à solidão, para se recolher por algum tempo.

Durante o verão de 1224, esteve no pequeno convento de Alverne. Era uma clausura rústica, construída precariamente no cimo de uma montanha escarpada. As grutas abertas nas rochas, os bosques povoados de pássaros e o afastamento dos centros habitados tornavam o sítio encantador e particularmente propício aos exercícios da contemplação.

O santo amava esta morada que outrora lhe tinha sido dada pelo Conde Orlando, senhor de Chiusi. Logo que chegou ao lugar do seu retiro, Francisco iniciou um jejum de 40 dias em honra de São Miguel. Consagrava o tempo à oração, que lhe propiciava delícias que nunca lhe pareceram tão saborosas.

Suplicou ao Senhor que lhe desse a conhecer as obras às quais deveria consagrar os últimos dias da vida. Como resposta, Deus cumulou-o com abundância de suavidades interiores. Então o santo recorreu ao seu procedimento habitual: abriu o Evangelho ao acaso, por diversas vezes, esperando encontrar ali uma indicação. Por diversas vezes caiu no relato da Paixão. Esta coincidência surpreendeu-o: concluiu que o Salvador queria uni-lo mais intimamente aos seus sofrimentos.

Os calores estivais declinavam; o Alverne já se revestia com os esplendores do outono. Debaixo das grandes árvores, cuja folhagem tornava-se dourada, Francisco pensava na adorável imolação de Cristo, quando subitamente lhe apareceu um serafim resplandecente de luz. O anjo aparentava uma semelhança admirável com o Salvador pregado no patíbulo.

O santo reconheceu estupefato os traços do divino Crucificado; a sua alma inflamou-se com amor tão ardente e tão doloroso, que o seu débil corpo não aguentou: caiu em profundo arrebatamento. Que aconteceu durante este êxtase? Os mistérios de amor não se divulgam: São Francisco guardou ciosamente este segredo. Confessou, no entanto, que recebera nessa altura revelações sublimes, mas nunca quis comunicá-las.

Quando a visão se desvaneceu, uma transformação tinha-se operado nele: na sua carne estavam gravados os sagrados estigmas da Paixão. Grandes feridas lhe rasgavam as mãos e os pés: nas cicatrizes percebiam-se nitidamente as cabeças negras dos pregos. Uma chaga mais larga abria o seu costado e deixava filtrar algumas gotas de sangue. Francisco tornara-se um crucificado vivo.

Um prodígio assim não podia passar inadvertidamente. Apesar de todos os esforços para afastar as curiosidades indiscretas, o santo não conseguiu esconder inteiramente os estigmas. O seu prestígio, já tão grande, aumentou ainda mais: a sua vida terminava numa espécie de apoteose. O serafim que imprimira no seu corpo as chagas de Cristo também as enterrara no seu coração. A partir daquele dia, Francisco não fez mais do que esmorecer lentamente no duplo martírio da dor e do amor.

Ainda percorria penosamente os caminhos da Úmbria, a pregar menos pela palavra do que pelo exemplo. Deixava, ao caminhar, irradiar da sua alma o imenso amor pelo divino Mestre; manifestava-o em termos tão veementes, que sentia por vezes a necessidade de se desculpar. 'Não fostes Vós que nos destes' – dizia ele ao Salvador – 'o exemplo desta sublime loucura? Vós vos lançastes à procura da ovelha desgarrada; caminhastes como um escravo, como um homem inebriado de amor'.

Para adornar a sua coroa, Deus mandava-lhe as últimas provações. O santo notava que alguns religiosos, embora poucos, desejavam restringir a pobreza da ordem: previa que os seus filhos atravessariam, depois da sua morte, uma crise perigosa. A esta tristeza, acrescentava-se o peso da doença. A saúde declinava, a vista apagava-se; os remédios mais fortes só lhe davam umas melhoras precárias.

São Francisco mantinha, apesar das dores, uma alegria apaziguadora. Mas o seu espírito desprendia-se cada vez mais das preocupações terrenas; o seu recolhimento tornava-se mais profundo. Os que estavam à sua volta percebiam a aproximação da hora da recompensa.

(Excertos da obra 'São Francisco de Assis', do Pe. Thomas de Saint-Laurent )