quarta-feira, 22 de novembro de 2017

DIÁLOGO SOBRE OS ESCRÚPULOS DA CONSCIÊNCIA

Diretor: Conheço os males de que a vossa pobre alma sofre; compadeço-me deles do fundo de minhas entranhas; qui­sera curá-los; mas sabeis qual seria o meio disso, depois de tudo o que acabais de ler?

O escrupuloso: Não; ignoro-o e desejo vivamente que me ensineis.

Diretor: Tende uma confiança sem li­mites na misericórdia divina pela me­diação de Nosso Senhor Jesus Cristo, que derramou o seu sangue por vós, que vos procurou como uma ovelha desgarrada através das sarças e dos espinhos, e que quis expiar pessoalmente os vossos peca­dos para vos dar a paz e a salvação. Poderíeis desesperar e perder confiança à vista do que Deus fez por vós, dando-vos Seu Filho, que se fez a Si mesmo vítima por vós? Que há que não obtenhais pela mediação de Jesus Cristo? Que há que não acheis nEle? Força, luz, justiça, santidade, con­solação, perseverança; porquanto Jesus Cristo é um dom universal em quem estão encerrados todos os outros dons e todos os tesouros da graça. 'Dando-nos seu Filho', diz São Paulo, 'Deus não nos deu todas as coisas com Ele' (Rm 8, 33). Deu-no-lo para ser o suplemento universal de todas as nossas misérias, de toda a nossa in­dignidade. E que quereríamos que Deus fizesse a mais para nos inspirar sentimentos de confiança e de amor? Que pode Ele acres­centar a admirável economia da redenção, da religião, dos sacramentos, da mediação da Santíssima Virgem, de tantos caminhos abertas à vossa confiança?

O escrupuloso: Mas eu não mereço se­não os repúdios e a indignação de Deus; todas as minhas orações são más e Deus não pode escutar-me.

Diretor: Mas Jesus Cristo, o Filho úni­co do Pai, que intercede por nós, que por nós oferece o preço dos seus méritos, do seu sangue e dos seus trabalhos, não me­rece bem ser escutado em nosso favor? Poderíamos crer que tal Pai pudesse re­cusar alguma coisa a tal Filho que lhe oferece tal preço? Este pensamento não seria injurioso tanto ao Pai como ao Filho?

O escrupuloso: Os meus pecados passa­dos, que são tão numerosos, as minhas fraquezas presentes e futuras me assus­tam.

Diretor: E que são todos os vossos pe­cados comparados com a misericórdia de Deus e com os merecimentos de Jesus Cristo? Serão outra coisa a não ser como uma gota de água comparada com o ocea­no? Abri os livros santos, e vede a gran­de maravilha da misericórdia divina para com pecadores tais como Davi, Zaqueu, Saulo, inimigo declarado de Jesus Cristo, São Pedro perjuro, Madalena prostituída, o bom ladrão, etc. Que tendes a temer de­pois de tantos exemplos, após tantos san­tos que reinam no céu, e que, antes da sua conversão, foram mais culpados do que vós?

O escrupuloso: Mas esses eram santos e não miseráveis como eu, que estou tão longe de me aproximar das virtudes deles!

Diretor: Seria um erro crer que os santos não foram o que vós sois, e que vós não podeis ser o que eles são. Os san­tos tiveram as mesmas tentações, as mes­mas fraquezas, as mesmas dificuldades, as mesmas paixões, os mesmos inimigos que vós, e vós tendes as mesmas graças, os mesmos socorros, os mesmos meios, as mesmas esperanças que eles. É só, como eles, terdes plena confiança; tendes só que usar dos socorros que vos são oferecidos e chegareis à mesma felicidade que eles.

O escrupuloso: Longe estou de ousar es­perá-lo: estou sobejamente convencido da imensidade das minhas misérias para es­perar essa ventura.

Diretor: Permiti-me fazer-vos aqui uma observação que não vos será inútil, espero-o: é que devemos desconfiar dessa desconfiança que parece nascer do senti­mento das nossas misérias e que, muitas vezes, não passa de uma falsa humildade e de um verdadeiro orgulho. O bom es­pírito produz bons frutos e o mau espí­rito produz maus frutos; é por aí que se deve fazer o discernimento deles, e é por aí também que se deve distinguir a ver­dadeira da falsa humildade; uma e outra nascem da convicção das nossas misérias e da nossa indignidade; mas os frutos que uma e outra produzem são bem diferen­tes. 

A verdadeira humildade vem de Deus e leva também a Deus. Como ela é um dom de Deus, fortalece a alma e dá-lhe um novo vigor, uma prontidão e uma liberdade santa para rogá-lo e servi-lo: o espírito de Deus não pode enfraquecer nem desanimar as almas, torná-las mais desconfiantes da bondade de Deus, mais pe­sadas, mais inquietas, mais covardes na oração e no cumprimento dos outros deveres da religião: esses maus frutos não po­dem, pois, vir senão da operação do espí­rito maligno. Tomai cuidado nisso, e des­confiai. Santa Teresa dizia às suas reli­giosas: 'Guardai-vos de certas humildades acompanhadas de inquietações que o de­mônio nos põe no espírito; elas causam à alma uma aflição que a confrange, que a agita, que a atormenta, e que lhe é inteira­mente difícil de suportar. Com isso, o de­mônio pretende persuadir-nos de que te­mos humildade, e ao mesmo tempo fazer-nos perder a confiança que devemos ter em Deus'... 'Quando, estiverdes neste es­tado', acrescenta ela, 'o mais que puderdes desviai o vosso pensamento da considera­ção da vossa miséria, e levai-o a consi­derar o quanto é grande a misericórdia de Deus, qual é o amor que Ele nos dedica, e o que Lhe aprouve sofrer por vós'.

Efetivamente, a desconfiança, embora se cubra com as aparências da humildade e da convicção da miséria, da fraqueza e da indignidade do homem, é realmente or­gulho. Senão, vede: Deus conhece infini­tamente melhor do que nós as nossas fra­quezas, a nossa malignidade, a nossa in­dignidade; mas, apesar disso, manda-nos esperar na sua misericórdia e nos mere­cimentos de Jesus Cristo; ordena-nos lançar fora as dúvidas, todos os pensa­mentos que atacam ou enfraquecem a es­perança, como os que atacam a fé, a cas­tidade; anima-nos por sua palavra e por suas promessas; e não é um grande orgulho não lhe obedecermos, não escutar­mos a sua palavra e rejeitarmos as suas consolações? Ele nos oferece suas graças, declara-nos que se considerará ofendido se dermos ouvido às nossas desconfianças; ameaça-nos se não esperarmos na sua bon­dade... Então não é orgulho pretender alguém desculpar-se com o fato de ser demasiado indigno e de haver abusado demais das suas graças e da sua paciência?

O escrupuloso: Mas então o que devo fa­zer? Dignai-vos traçar-me o caminho e eu o seguirei.

Diretor: Primeiramente, como já vos disse, deveis ter uma grande confiança em Deus, visto ser ela a fonte de toda sorte de bens, visto enraizar, nutrir e fortificar as virtudes, amenizar as penas, enfraquecer as tentações, duplicar a co­ragem, dar nascimento a todas as boas obras, e ser para a alma como um pa­raíso de bênção e uma espécie de felici­dade antecipada. Diz o profeta Jeremias: 'Feliz o homem que põe sua confiança no Senhor e de quem o Senhor é a espe­rança!' (Jer 17, 7).

A confiança fraca e tímida torna a piedade trêmula e vacilante; é sustada pe­los mais pequenos obstáculos, é retardada pelo menor contratempo, desalentada pe­las mais leves contradições. Ora, uma es­perança tímida e trêmula torna também hesitantes e tímidas as orações que dela nascem e, por conseguinte, incapazes de obter muito. Torna a gratidão menos viva, o amor menos ativo, abre a sua porta às tentações, rouba à alma a paz, enche-a do espírito das trevas, fortifica a oposi­ção natural às virtudes cristãs, serve aos desígnios pérfidos do demônio contra nos­sa alma. Não admitis estas verdades?

O escrupuloso: Admito-as perfeitamente.

Diretor: Penetrado de confiança em Deus, deveis ter uma grande confiança no vosso guia espiritual. Deveis abrir-lhe o vosso coração, e, uma vez que vos houver­des revelado a ele, ficai convencido de que ele só quer o bem e a salvação de vossa alma; que o lugar onde ele está, o minis­tério que ele desempenha, o Deus cujo lugar ele ocupa, a responsabilidade que ele assume sobre si, são garantias bastante poderosas de que ele cumpre o seu dever para conosco. Escutai-o em tudo; obede­cei às decisões dele, às suas prescrições, às suas proibições, aos seus conselhos, co­mo ao próprio Deus.

O escrupuloso: Sinto que é esse o caminho mais curto; mas como obedecer contra a própria consciência?

Diretor: A vossa consciência pode en­ganar-vos; a vossa obediência nunca vos enganará. A vossa consciência pode ser trevosa e Jesus Cristo, falando pelo seu ministro, é a luz e a Verdade; foi ele quem nos disse que escutássemos aquele que ocupa o seu lugar. E foi ele quem advertiu o seu ministro de contar com o seu di­reito, dizendo-lhe: 'Quem vos escuta a mim escuta'.

O escrupuloso: Sou presa de mil tenta­ções.

Diretor: Deveis convencer-vos bem de que, se sois tentado, é porque o Senhor vos ama, é por que sois agradável aos olhos dEle, é porque Ele quer purificar-vos ca­da vez mais, aumentar os vossos merecimentos, experimentar a vossa fidelidade, e tornar mais brilhante a vossa coroa. 'Deixai correr o vento das tentações', diz São Francisco de Sales, 'e não penseis que o cicio das folhas seja o tilintar das ar­mas. Ficai bem persuadido de que todas as tentações do inferno não poderiam man­char um espírito que não gosta delas'. Pensai que Deus é um pai terno e que Ele não permitirá a provação senão na medida em que ela vos for útil. 

Pensai ainda em que os maiores santos, como Santo Antão, São Jerônimo e vários outros, foram mais tentados do que vós, e que saíram vitoriosos; não vos deixeis abater pelo te­mor; lembrai-vos de que para um pecado mortal é preciso que a matéria seja gra­ve, o conhecimento pleno e inteiro, a von­tade expressa. Nas tentações contra a pu­reza ou contra a fé, não vos detenhais a produzir com esforço atos dessas virtudes: volvei-vos para Deus por um terno olhar de confiança: invocai a Santíssima Virgem, tão boa, tão misericordiosa para conosco; en­tregai-vos a alguma ocupação exterior, e ficai em paz, aguardando que Jesus Cristo mande a tempestade e o mar se acal­marem.

O escrupuloso: Mas estou sempre distraí­do diante de Deus; não posso fazer oração; daí vem que não faço nenhum progresso.

Diretor: Não vos perturbeis com isso; quanto mais penosa é a oração, tanto mais meritória. Retiramos dela menos satisfa­ção, é verdade; mas é por isso mesmo que ela é mais agradável a Deus. Lembrai-vos de que Jesus Cristo orou sem consolação durante a sua dolorosa agonia. 

Quanto às distrações, quando não vos houverdes prestado a elas consciente e voluntariamente, não vos detenhais a procu­rar qual lhes possa ser a causa, nem se de algum modo destes lugar a elas; lançai-vos nos braços de Jesus Cristo e con­vertei em merecimentos o que é uma fon­te de apreensões. Fazei uso frequente das orações jacula­tórias; estes dardos inflamados têm a vir­tude de elevar depressa o coração para Deus e de abrir o coração de Deus às nossas necessidades. Elas são curtas, fá­ceis, podem ser feitas em toda parte e em todo tempo e sem direções, visto que mui­tas vezes é só uma palavra. Não vos entregueis a mortificações ex­cessivas. 

São Jerônimo nos ensina que, quando o demônio não consegue desviar uma alma do amor do bem, trata de im­peli-la a mortificações de um rigor exces­sivo, a fim de que ela fique esmagada por elas, e assim perca o vigor necessário ao seu adiantamento espiritual. Várias almas piedosas caem nesta armadilha; e eis aí por que São Francisco de Sales, que soube guardar um meio termo tão sensato entre o relaxamento e o rigorismo, e cujos con­selhos fazem autoridade, disse: 'Concito-vos a conservardes cuidadosamente a vos­sa saúde, pois Deus exige de vós esse cui­dado, e a poupardes vossas forças para empregá-las melhor no seu serviço; de feito, é melhor conservar mais forças corporais do que é preciso, do que arruiná-las mais do que é preciso; porquanto po­de-se sempre enfraquecê-las quando se quiser, mas nem sempre se pode repará-las quando se quer'. Concedei-vos, pois, as cuidados necessários para poderdes servir melhor a Deus. Não debiliteis demasiadamente o vosso espírito pelo jejum: porquanto não faríeis com isso senão torná-lo mais fraco e, assim, mais exposto aos ataques do inimigo.

O escrupuloso: O que mais aflição me causa é aproximar-me do tribunal sagrado.

Diretor: Esse tribunal que temeis é, no entanto, o tribunal da misericórdia, e não deveríeis aproximar-vos dele senão com confiança e serenidade. Aquele que ocupa o lugar de Jesus Cristo tem ordem de receber-vos, de perdoar-vos, de conso­lar-vos, de misturar suas lágrimas às vos­sas, de vos abrir enfim as portas do céu. Ah! não façais desse sacramento de amor e de remissão um sacramento de tortura e de angústias; ah! que quer o Senhor senão quebrar os nossos grilhões, restituir à nossa alma a sua liberdade, a sua paz, a sua doce alegria, para com nova cora­gem trilharmos os caminhos da salvação? É preciso arrepender-se dos próprios pe­cados, mas não se perturbar com eles; é preciso ser humilhado, mas não desespe­rado. 

Depois da confissão, conservai-vos, pois, calmo, e gozai do fruto do sacramento; não deis acesso a mil temores so­bre a validade do sacramento, sobre o vos­so exame, sobre a vossa contrição; a verdadeira contrição é obra do amor, e o amor age na calma: reinem, pois, no vosso coração o amor e a confiança. Agradecei a Deus, prometei-lhe emendar-vos. Espe­rai que, por sua graça, cumprireis as vos­sas resoluções, e, ainda que devêsseis re­cair cem vezes, não cesseis de prometer e de esperar. Se Deus não vos dá o senti­mento da vossa contrição, é para provar o mérito da obediência, que deve bastar para vos tranquilizar sobre a vossa recon­ciliação perfeita. Diz São Francisco de Sales: 'Grande poder é diante de Deus o poder querer, e vós tendes a contrição pelo sim­ples fato de desejardes tê-la. Não a sentis? Não importa! o fogo que está sob a cinza não se vê, não se sente; e, no en­tanto, esse fogo existe. Crede, pois, com humildade, obedecei com coragem, e tereis uma dupla recompensa'.

O escrupuloso: Eu bem teria necessidade dos vossos conselhos, pois tremo sempre e estou sempre prestes a abandonar a co­munhão.

Diretor: São Francisco de Sales diz que há duas espécies de pessoas que devem comungar com frequência: os perfeitos, pa­ra se unirem mais intimamente à fonte de toda perfeição e os imperfeitos, para tra­balhar por atingi-la; os fortes, para não se tornarem fracos e os fracos para se tornarem fortes; os doentes, para se­rem curados; e os que estão com saúde, para não caírem em doença. Dizeis que as vossas imperfeições, a vossa fra­queza, as vossas misérias, vos tornam in­digno de comungar com frequência, e eu vos digo que justamente por essa razão é que deveis comungar amiúde, a fim de que Aquele que possui tudo vos dê o que vos falta. Tomai, pois, o vosso quinhão nos conselhos desse grande diretor.

E não creiais que não colheríeis nenhum fruto da comunhão porque não vedes crescerem as vossas virtudes; basta que Deus o veja, e nem é mesmo bom que o vejais. Contentai-vos com saber que ela produz sempre um grande fruto, que é o de manter-vos em estado de graça. Precavei-vos de atormentar-vos, acredi­tando que estais mal preparado e que abu­sais de tão grande sacramento, porque vos sentis frio e indiferente e como que sem nenhum sentimento; isso são provações que Deus vos envia para exercitardes a vossa fé e aumentardes os vossos méritos. Sucede com as securas na comunhão como sucede com as que experimentamos na oração. Tende sempre o desejo; o desejo, diz São Gregório, diante de Deus equivale à obra.

Não sois digno! Mas, propriamente fa­lando, quem é que é digno, e quem o será jamais? Então seria preciso renunciar à comunhão, e renunciar também a todos os exercícios de piedade; é justamente o que o inimigo da salvação pede; mas Jesus Cristo, ao contrário, convida-nos a re­cebê-lo amiúde, e faz do seu corpo um pão de cada dia. Um justo pavor não é censurável, bem longe disto; mas é pre­ciso ter o cuidado de temperá-lo pela con­sideração da misericórdia de Deus. No Evangelho, Jesus Cristo não disse: 'Vinde a mim vós que sois perfeitos'; disse: 'Vin­de a mim vós todos que estais trabalha­dos pela angústia e carregados do fardo das vossas penas, e eu vos aliviarei'.

E, se tiverdes de aproximar-vos da mesa sagrada, apesar do sentimento da vossa indignidade, sem outro apoio nem garan­tia senão a vossa obediência, não temais: porquanto essa disposição é uma das mais agradáveis a Deus. Se vierdes a ser assediado de tentações, não vos afasteis por isso da divina Euca­ristia; seria cederdes sem resistência à vi­tória ao inimigo. Quanto mais combates tiverdes a sustentar, tanto mais deveis munir-vos de meios de defesa. Ide, pois, ousadamente restaurar-vos com o alimen­to dos fortes, e saireis vitorioso.

O escrupuloso: Dou-vos graças por estes preciosos conselhos, sinto toda a sabedoria deles e esforçar-me-ei por fazer deles a regra da minha conduta. Se não receasse tornar-me indiscreto, quereria mesmo pedir-vos alguns outros, como sobre a resig­nação, de que tenho grande necessidade, sobre a pressa e a inquietação, e sobre uma multidão de coisas que me faltam.

Diretor:. Já que vossa alma o deseja, vou responder em poucas palavras às vos­sas questões. Primeiramente falemos da resignação. Em tudo o que vos acontece, reconhecei e adorai sempre a santa von­tade de Deus. Toda a malícia dos homens e do próprio demônio não pode produzir contra nós coisa alguma que Deus não haja permitido. O Salvador declarou que não cairia um só cabelo da nossa cabeça sem a vontade de nosso Pai celeste. As­sim, em toda situação penosa para a na­tureza, quando fordes afligido por doenças, assaltado por tentações, atormentado pe­la injustiça dos homens, elevai vossa al­ma à consideração divina e dizei a Deus com coração afetuoso e submisso: Fiat voluntas tua, seja feita a vossa vontade; faça o Senhor de mim o que quiser, como quiser e quando quiser.

É assim que tornamos fáceis de supor­tar as penas mais sensíveis e as situações mais aflitivas. Dizia Santa Maria Madale­na de Pazzi: 'Não sentis que doçura in­finita encerra esta só palavra: 'vontade de Deus'? Semelhante àquele pau mostra­do a Moisés, o qual tirava às águas o seu amargor, ela adoça tudo o que é amargo na vida'. Não somente é Deus quem nos envia as nossas penas; mas é para o bem da nossa alma e para nossa vantagem especial que Ele no-las envia: não façais, pois, objeto de queixa daquilo que deve ser um moti­vo de gratidão. Um aviso bem importante a vos dar é o de vos pordes em guarda contra a inquie­tação e contra a pressa. Só agindo tran­quilamente é que podemos servir ao Deus de paz de uma maneira que lhe seja agra­dável. Ora, esses defeitos fazem-nos per­der o pensamento de Deus em nossas ações, preocupam-nos, embaraçam-nos, fazem-nos cair na impaciência, e é por isto que São Francisco de Sales era inimigo declarado deles.

Açodando-se e agitando-se, a gente não faz mais, e faz pior. Por isto, vemos que Jesus Cristo repreendeu Marta pela sua demasiada solicitude. Quando nós fazemos as coisas bem, fazemo-las sempre bastante depressa. Contende, pois, a vossa viva­cidade, moderai-vos, fazei bem o que esti­verdes fazendo, não empreendais de mais, a fim de poderdes executar tudo. Não caiais entretanto na trilha contrária, que é a lentidão e a indolência, pois todos os ex­tremos são maus; tende, diz ainda o pio autor supracitado, tende uma atividade tranquila e uma ativa tranquilidade. São Francisco de Sales, que primava nisso, di­zia, atribuindo a pressa ao amor-próprio: 'O nosso amor-próprio é um grande tra­palhão, que quer empreender tudo e não acaba nada'. Velai, pois, sobre este ponto.

Enfim, guardai-vos de um grande ini­migo, que é a tristeza. São Francisco de Sales não receou de dizer que, depois do pecado, nada é pior do que a tristeza. E acrescentava que todo pensamento que nos perturba e nos inquieta não pode vir do Deus de paz, que faz a sua morada nas almas pacíficas. 'Sim, minha filha, digo-vos por escrito tanto quanto de boca, alegrai-vos tanto quanto puderdes fazendo tudo bem; pois é uma dupla graça para as boas obras o serem bem feitas e o se­rem feitas alegremente; e, quando eu di­go: fazendo bem, não quero dizer que, se vos suceder algum defeito, vos deis por isso à tristeza, não, por Deus, pois seria juntar defeito a defeito; mas quero dizer que persevereis em querer fazer tudo bem, e que volteis sempre ao bem logo que conhecerdes haver-vos afastado dele; e que, mediante esta fidelidade, vivais alegre pa­ra o geral. Deus esteja no vosso coração, minha filha; vivei alegre e generosa'.

Errado andaríeis, pois, em vos entregar­des à tristeza, à melancolia, e em vos ve­dardes todo divertimento: o espírito fati­ga e sombreia-se ficando sempre do­brado sobre si mesmo e, com isso, torna-se mais acessível à tristeza. Os divertimentos e as distrações são, na vida da alma, o que o tempero é na comida do corpo: precisa­mos saber proporcionar-no-los segundo as nossas necessidades. Quando, pois, sentir­des no vosso coração a aproximação da tristeza, não percais um só momento para vos distrairdes dela; fazei visitas ou procu­rai um recurso em conversas interessan­tes, em leituras variadas; passeai, cantai, fazei seja lá o que for, contanto que fecheis a porta do coração a esse perigoso inimigo. Santo Agostinho dizia: 'Amai, e fazei o que quiserdes'.

Termino exortando-vos a agirdes com uma santa liberdade cristã nas ocasiões que o exigirem, a reprimirdes em vossa pessoa todo zelo amargo e em exercerdes um zelo cheio de humildade, de pureza de intenção, de oportunidade e de grande ca­ridade; depois, tornai a piedade amável pela vossa doçura, pela vossa afabilidade, pela vossa modéstia, pelos vossos olhares, sem respeito humano, no mundo. Assim fazendo, amareis a religião, fá-la-eis amar, e atraireis a Jesus Cristo numerosos adoradores.

(Excertos da obra 'Tratado dos Escrúpulos da Consciência', pelo Abade Grimes, 1854)

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

NO LIMIAR DO SOBRENATURAL (IX)


Igreja paroquial de Santo Antônio de Sokolka/ Polônia, 12 de outubro de 2008, domingo. Logo após a beatificação do servo de Deus Pe. Miguel Sopocko, durante a Santa Missa, uma hóstia consagrada caiu das mãos de um dos sacerdotes durante a distribuição da comunhão, junto ao altar. De acordo com as normas litúrgicas, a hóstia foi recolhida e depositada no vasculum, para se dissolver neste pequeno recipiente com água que foi, depois, repassado para um outro recipiente conservado num cofre na sacristia da igreja. Uma semana depois, o recipiente mantinha a água incolor e, no meio da hóstia em dissolução, uma mancha de sangue de vermelho vivo, como um coágulo recente. A hóstia foi, então, transportada para a capela da Misericórdia Divina e colocada no sacrário, onde foi conservada durante três anos até 2 de outubro de 2011. 

Neste período, fragmentos do coágulo foram recolhidos e submetidos a análises independentes por renomados especialistas, que chegaram à mesma conclusão: trata-se de parte do tecido do músculo cardíaco de uma pessoa viva e em estado de grande agonia, sendo que as fibras do tecido cardíaco na região do coágulo estavam intimamente associadas às fibras da própria hóstia ainda não dissolvida, num arranjo tão perfeito quanto absolutamente inexplicável (indicadas pela região circulada na foto acima).

Em seu comunicado oficial sobre estes eventos, a Cúria Metropolitana de Bialystok afirmou: 'O acontecimento de Sokolka não se opõe à fé da Igreja, mas a confirma. A Igreja professa que, após as palavras da consagração, pelo poder do Espírito Santo, o pão se transforma no Corpo de Cristo e o vinho no Seu Sangue. Além disso, trata-se de um chamamento para que os ministros da Eucaristia distribuam o Corpo do Senhor com fé e cuidado e que os fiéis O recebam com adoração'.

domingo, 19 de novembro de 2017

A PARÁBOLA DOS TALENTOS

Páginas do Evangelho - Trigésimo Terceiro Domingo do Tempo Comum


Como herdeiros das alegrias eternas, somos administradores e não proprietários dos bens recebidos nesta vida. Tudo vem de Deus e tudo há de voltar para Deus na medida em que cada um de nós deverá prestar as devidas contas da infinitude das graças recebidas por Deus para se cumprir o seu plano de nossa salvação. Como nada nos pertence, nem nosso corpo, nem os nossos pensamentos, viver a santidade consiste em fazer em tudo e por todos a Santa Vontade de Deus, colocando todos os nossos dons e talentos a serviço do Reino.

O 'homem (que) ia viajar para o estrangeiro' (Mt 25, 14) não é outro senão Jesus que subiu ao Céu  e que, chamando os seus empregados, 'lhes entregou seus bens' (ainda Mt 25, 14). Bens, portanto, que pertencem a Deus e que são distribuídos aos homens de forma diversa, por meio de um, de dois, de cinco talentos, de acordo com os desígnios da Providência e na medida certa para levar a todos ao cumprimento ideal da sua missão salvífica. Desta forma, a glória de Deus é fruto não da graça de se ter mais ou menos talentos, mas da resposta de cada um de nós, pela própria vocação, de cumprir santamente a Vontade de Deus na administração coerente dos bens recebidos em benefício próprio e dos nossos irmãos.

Mérito que tiveram os empregados que receberam cinco e dois talentos: bens que renderam outros bens, na medida do amor de ambos: 'servo bom e fiel' (Mt 25, 21.23); talentos que se multiplicaram e que se distribuíram fartamente, pela medida expressa por um rendimento em dobro: 'Senhor, tu me entregaste cinco talentos. Aqui estão mais cinco, que lucrei' (Mt 25, 20) e 'Senhor, tu me entregaste dois talentos. Aqui estão mais dois que lucrei' (Mt 25, 22). Quem se mostra fiel na administração dos bens recebidos, será merecedor de bens ainda maiores e herdeiro das alegrias eternas: 'Vem participar da minha alegria!’ (Mt 25, 21.23).

Glória que será tirada dos servos infiéis, dos empregados maus e preguiçosos que, diante os dons e talentos recebidos, os enterram nos buracos de sua insensatez, do egoísmo e da busca desenfreada por posses e bens materiais, aviltando a graça de Deus e se consumindo nos próprios interesses e mesquinhez. Ao prestar contas de sua má administração, o servo infiel busca em vão refúgio na tentativa de culpar o patrão, mediante a concepção desvairada de um Deus injusto e severo, para apenas se condenar pelas próprias palavras e pelos pecados de negligência e omissão. E, condenado, perde até o pouco que porventura tenha feito em favor de outros e ganha a perdição eterna: 'Porque a todo aquele que tem será dado mais, e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado. Quanto a este servo inútil, jogai-o lá fora, na escuridão. Aí haverá choro e ranger de dentes!’ (Mt 25, 29 - 30).

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

DA VIDA ESPIRITUAL (95)

Queres encontrar a Deus no torvelinho de suas atividades humanas, em meio ao redemoinho de suas emoções e no escarcéu do mundo? Crês que Deus se deixa realmente transparecer no meio de névoas, sombras, gritos, estertores, buzinas e aceleradores? Ele quer que o busques no silêncio, no comedimento, na ausência do mundo, para que o tesouro da graça seja verdadeiramente perfeição e santificação. A graça que te há de ser concedida é por inteira, sem sublimação ou atenuação alguma, pois Deus somente nos regala com frutos de infinita doçura e eterna concessão. Se a tua pobre alma não consegue se recolher dentro de tuas talhas vazias, como Deus poderá fazer transbordar nelas o vinho das graças? Foge do mundo enquanto podes fugir para ficar diante de Deus, pois serás mais cobrado pelas graças que desperdiçastes do que pelos percalços e limitações inerentes aos homens deste mundo, tão cheios de talhas vazias...