sábado, 13 de setembro de 2014

DEPOIS DA MINHA MORTE


Amar o mundo é realmente uma loucura. Se o mundo se recordasse de mim depois da minha morte, se mostrasse algum pesar de me haver perdido, seria caso para eu sentir alguma pena ao ter de abandoná-lo. Mas, como me tratará o mundo, quando eu deixar de existir?

Fará comigo como tem feito com todos os outros: não se incomodará absolutamente com a minha sorte. Parece-me vê-lo a prosseguir o seu caminho, exatamente como faz agora, sem pensar sequer em que eu já estarei debaixo da terra. A cova, que há de acolher o meu cadáver, será comigo bem mais benévola que o mundo, porque, quando este já não conservar de mim a menor recordação, a cova conservará ainda os meus ossos... Coisa singular! O sepulcro causa-me agora horror, mas um dia será o único a ocupar-se de mim; e o mundo, que me fascina e tenta seduzir-me, dentro em breve me tratará como se eu nunca tivesse existido.

Como são bem punidos os idólatras do mundo! Este mundo, do qual tantos procuram as honras, o afeto e o reconhecimento, não lhes conservará no coração o mais pequenino posto; quando muito lhes inscreverá os nomes num registro, que abandonará depois à poeira dos arquivos. Não há um lugar onde se morra duma maneira tão perfeita, irrevogável e definitiva como na memória e no coração dos pândegos e senhores deste mundo. É positivo que naqueles cérebros e naqueles corações não se ressuscita jamais. E poderia eu, portanto, esperar depois da minha morte alguma coisa dum mundo que, por minha causa, não suspenderá um só minuto os seus costumes, não se privará do mais insignificante dos seus prazeres, não me conservará o mais exíguo dos seus afetos? Se ele esquece com tanta facilidade e com a mais abominável frieza os homens mais ilustres e benemerentes, que fará de mim, pobre grãozinho de areia?

E tu, ó meu Jesus, como me tratarás quando eu já não existir? Ah! Como és diverso do mundo! Como é diverso o teu Coração do coração dos homens! Tu me recordarás certamente e para sempre; recordarás que vim tantas vezes encontrar-te; recordarás as batalhas que travei comigo mesmo para dar-te um pouco de oração recolhida e um pouco de amor; recordarás a tua pobre criatura que, ignorada de todos, estava junto do Tabernáculo a chorar culpas em segredo, a esperar perdões e a invocar misericórdias; recordarás que terei consumado o meu longo sacrifício, sem dizer nada a ninguém, mas confiando a ti somente todas as minhas penas; recordarás toda a minha obscura existência, desde o primeiro instante em que saí das tuas mãos, até o último em que expirei sobre o teu Coração. E, recordando-me, continuarás a amar-me como antes, ou ainda mais; recordando-me, tomarás cuidado daqueles que ficarem chorando junto do meu cadáver e, pelas vias admiráveis da Providência, as conduzirás à salvação; recordando-me, ordenarás à Igreja que faça memória perene de mim no Santo Sacrifício da Missa, e que todos os dias recite uma oração pelo eterno descanso da minha alma.

A minha alma! Eis o que é mais importante! Que vale elevar monumentos e até pirâmides para honrar quatro ossos descarnados, se nada se faz em favor da alma? Que diferença entre mim e os grandes conquistadores e perturbadores do mundo! Aqueles terão os seus nomes esculpidos sobre o granito e o corpo deposto numa urna de pórfiro; e eu terei o meu nome escrito na memória de Jesus, e a minha alma repousará no seu Coração.

Portanto, a um mundo que fará comigo como tem feito e fará sempre com os outros; que continuará a rir, a gozar e a pecar, mesmo quando o meu esquife lhe passar vizinho a caminho do cemitério; que por mim não verterá uma lágrima, não terá uma palavra de compaixão, nem sequer a recordação de vinte e quatro horas; a este mundo com todas as suas lisonjas, com as suas efêmeras promessas, com todas as suas delícias e todas as suas culpas, a este mundo eu voto o meu desprezo mais profundo, o meu abandono mais resoluto, a minha mais cordial aversão! 

E a Jesus!... A Jesus eu consagro a minha fé mais viva na grandeza eterna e imensa da sua divindade, a minha esperança mais inabalável na fidelidade às suas promessas e na grandiosidade infinita das suas recompensas, a minha caridade mais ardente pela sua bondade tão grande e tão terna, que o fez descer à terra para unir-se a mim, e que me conduzirá um dia ao Paraíso para me ter sempre unido a Ele. Depois da morte, portanto, o mundo abandonará para sempre os seus adoradores; Jesus terá sempre no próprio coração os seus amantes. Portanto, ó mundo, adeus... ó Jesus, eis-me aqui, que estarei sempre contigo.

(Excertos da obra 'Centelhas Eucarísticas', de original italiano, 1906; trad. de Adolfo Tarroso Gomes, 1924)

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

AS DOZE CONSOLAÇÕES DO PURGATÓRIO


1 - As almas estão em uma contínua união com Deus.

2 - Estão perfeitamente submissas à sua vontade, ou para melhor dizer, a sua vontade está por tal forma transformada na de Deus, que só podem querer o que Deus quer; de forma que, se o paraíso lhes estivesse aberto, antes quereriam precipitar-se no inferno do que aparecer diante de Deus com as manchas que ainda notam em si.

3 - Purificam-se aí, voluntária e amorosamente, porque tal é o agrado divino. As almas que estão no purgatório, estão aí, sem dúvida, pelos seus pecados, pecados que detestaram e detestam soberanamente; mas, quanto à objeção e pena que lhes fica de estarem postas neste lugar e privadas por algum tempo do gozo do bem aventurado amor do paraíso, sofrem-no amorosamente e pronunciam com devoção o cântico da justiça divina: 'Vós sois justo, Senhor, e os vossos juízos são cheios de equidade'.

4 - Querem permanecer da forma que agradar a Deus e por todo o tempo que Ele quiser.

5 - São invencíveis e não podem ter o menor movimento de impaciência, nem cometer a menor imperfeição.

6 - Amam a Deus mais do que a si mesmas e que tudo, com um amor completo, puro e desinteressado.

7 - São consoladas pelos anjos.

8 - Estão certas de sua salvação com uma esperança que as não pode enganar.

9 - A sua penosa amargura tempera-se com uma profunda paz.

10 - Se é uma espécie de inferno, quanto a dor, é um paraíso, quanto a doçura que derrama a caridade mais forte do que a morte, mais poderosa do que o inferno e cujas lâmpadas são fogo e chamas.

11 - Feliz estado, mais desejável do que temível, pois que as suas chamas são chamas de amor.

12 - Temíveis no entanto, porque retardam o termo de toda a consumação, que consiste em ver a Deus e amá-lo, e, por esta vida e amor, louvá-lo e glorificá-lo por toda a duração da Eternidade. 

(...) Apesar destas vantagens, o estado destas almas é muito doloroso e em verdade digno de compaixão, e além disso, retardam a glória que renderão a Deus no céu. Estes dois motivos devem mover-nos a procurar-lhes um pronto livramento, por nossas orações, jejuns, esmolas e toda espécie de boas obras, mas particularmente pela oferta do sacrifício da Santa Missa.

(Pensamentos Consoladores, de São Francisco de Sales)

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

LADAINHA PELAS ALMAS DO PURGATÓRIO


Senhor, tende piedade de nós! Senhor, tende piedade de nós!
Cristo, tende piedade de nós! Cristo, tende piedade de nós!
Senhor, tende piedade de nós! Senhor, tende piedade de nós!

Jesus Cristo, ouvi-nos! Jesus Cristo, ouvi-nos!
Jesus Cristo, atendei-nos! Jesus Cristo, atendei-nos!

Pai Celeste, verdadeiro Deus, tende piedade das almas do purgatório!
Filho, Redentor do mundo, verdadeiro Deus, tende piedade das almas do purgatório!
Espírito Santo, verdadeiro Deus, tende piedade das almas do purgatório!
Santíssima Trindade, que sois um só Deus, tende piedade das almas do purgatório!
Santa Maria, rogai pelas almas do purgatório!
Santa Mãe de Deus,  rogai pelas almas do purgatório!
Santa Virgem das virgens,  rogai pelas almas do purgatório!
São Miguel, rogai pelas almas do purgatório!
Santos Anjos e Arcanjos, rogai pelas almas do purgatório!
Coro dos Espíritos Bem-Aventurados,  rogai pelas almas do purgatório!
São João Batista,  rogai pelas almas do purgatório!
São José,  rogai pelas almas do purgatório!
Santos Patriarcas e santos Profetas,  rogai pelas almas do purgatório!
São Pedro,  rogai pelas almas do purgatório!
São Paulo, rogai pelas almas do purgatório!
São João, rogai pelas almas do purgatório!
Santos Apóstolos e santos Evangelistas,  rogai pelas almas do purgatório!
Santo Estevão,  rogai pelas almas do purgatório!
São Lourenço, rogai pelas almas do purgatório!
Santos Mártires,  rogai pelas almas do purgatório!
São Gregório,  rogai pelas almas do purgatório!
Santo Ambrósio,  rogai pelas almas do purgatório!
Santo Agostinho,  rogai pelas almas do purgatório!
São Jerônimo,  rogai pelas almas do purgatório!
Santos Pontífices e santos Confessores, rogai pelas almas do purgatório!
Santos Doutores, rogai pelas almas do purgatório!
Santos Sacerdotes e santos Levitas, rogai pelas almas do purgatório!
Santos Frades e santos Eremitas, rogai pelas almas do purgatório!
Santas Virgens e santas Viúvas, rogai pelas almas do purgatório!
Vós todos, santos amigos de Deus,  rogai pelas almas do purgatório!



Sede-nos propício, perdoai-lhes, Senhor!
Sede-nos propício, ouvi-nos, Senhor!
De seus sofrimentos, livrai-as, Senhor!
Da vossa cólera,  livrai-as, Senhor!
Da severidade da vossa justiça,  livrai-as, Senhor!
Do remorso da consciência, livrai-as, Senhor!
Das tristes trevas que as cercam, livrai-as, Senhor!
Dos prantos e gemidos, livrai-as, Senhor!
Pela vossa encarnação, livrai-as, Senhor!
Pelo vosso nascimento,  livrai-as, Senhor!
Pelo vosso doce Nome,  livrai-as, Senhor!
Pela vossa profunda humildade, livrai-as, Senhor!
Pela vossa obediência,  livrai-as, Senhor!
Pelo vosso infinito amor, livrai-as, Senhor!
Pela vossa agonia e vossos sofrimentos,  livrai-as, Senhor!
Pela vossa paixão e vossa santa cruz,  livrai-as, Senhor!
Pela vossa santa ressurreição, livrai-as, Senhor!
Pela vossa admirável ascensão, livrai-as, Senhor!
Pela vinda do Espírito Santo consolador,  livrai-as, Senhor!
No dia do julgamento,  livrai-as, Senhor!



Ainda que sejamos pecadores, nós vos pedimos, ouvi-nos!
Vós que perdoastes aos pecadores e salvastes o bom ladrão,  nós vos pedimos, ouvi-nos!
Vós que nos salvais por misericórdia,  nós vos pedimos, ouvi-nos!
Vós que tendes as chaves da morte e do inferno,  nós vos pedimos, ouvi-nos!
Dignai-vos livrar das chamas nossos parentes, amigos e benfeitores, nós vos pedimos, ouvi-nos!
Dignai-vos salvar todas as almas que gemem longe de vós, nós vos pedimos, ouvi-nos!
Dignai-vos ter piedade daqueles que não têm intercessores neste mundo,  nós vos pedimos, ouvi-nos!
Dignai-vos admiti-las no número de vossos eleitos,  nós vos pedimos, ouvi-nos!

Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo, dai-lhes o descanso eterno! (3 vezes)



Oremos

Ó Deus, Criador e Redentor de todos os fiéis, concedei às almas de vossos servos e de vossas servas, a remissão de todos os pecados, a fim de que, pelas humildes orações da vossa Igreja, eles obtenham o perdão que sempre desejaram. É o que vos pedimos por elas, ó Jesus, que viveis e reinais por todos os séculos. Amém.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

O RECOLHIMENTO NA ORAÇÃO


A terceira belíssima atividade do homem é a oração. Dizer que, sem recolhimento, não pode haver verdadeira oração, é o mesmo que dizer que, sem câmara escura, não se podem revelar chapas fotográficas.

Se Alexis Carrel chama a oração 'a forma de energia mais poderosa que o homem é capaz de gerar', não é para admirar que esta energia só se possa produzir dos grandes reservatórios do recolhimento, escuros, silenciosos, assim como a força e a luz, frutos desses outros reservatórios gigantescos, que quanto mais profundos e silenciosos, tanto mais energias podem desenvolver.

Já na Escritura é tão clara esta verdade, que oração e recolhimento sempre se acompanham, e, não raras vezes, se confundem, como se fôra uma coisa só. Não é sem razão. Pois, em geral, é a dissipação que impede a oração. Almas, mesmo que puras e humildes, mas distraídas (o que raramente acontece, pois a pureza e humildade são ótimos materiais para o recolhimento) como poderão rezar?

E, até mesmo o pecador, no recolhimento, dobra o joelho e fala com seu Deus. Quantas vezes o vimos, na modelar Penitenciária de São Paulo, onde a prisão celular absoluta, num regime perfeito de trabalho e de silêncio, isto é, regime de concentração, ao menos exterior, é o mais importante fator de regeneração, pois faz o sentenciado entrar em si mesmo e começar sua vida de oração.

Por que é que o mar nos convida tanto a rezar? Assim como a floresta e o campo? E podemos também perguntar, por que é que a cabine de um avião é tão propícia para uma boa meditação? Erraria quem dissesse que é o medo que leva a alma a orar. De modo nenhum. O medo pode produzir, quando muito, uma oração vocal precipitada, não, porém, a oração calma, interior. Esta é fruto do recolhimento, da solidão, ao menos interior.

Com gratidão nos lembramos de nossas frequentes travessias pelas caatingas requeimadas do nordeste baiano, montado em modesta cavalgadura, longe de toda a comitiva - solidão perfeita, silêncio impressionante - só quebrado às vezes pelo chocalho das cabras peregrinas - não sei se em um claustro se poderá rezar com tanta facilidade assim.

A vida de Carlos de Foucauld, o extraordinário ermitão dos nossos dias no Saara, figura singular de visconde, de oficial, de explorador e escritor, de Marrocos, irmão trapista, servidor desconhecido de convento, e, finalmente, sacerdote de Deus, no deserto sem limites, é um tratado completo, vivo, do que se pode dizer sobre a oração e o recolhimento.

A heróica carmelita de Dijon, Irmã Isabel da Trindade, nas suas notas, cartas e meditações, parece que esgota o assunto - recolhimento - que tem como a mais bela floração, a sua profunda e admirável oração: 'Ó meu Deus, Trindade que eu adoro' - obra prima de nossa época, no que concerne à nossa conversação com Deus. Teólogos de renome comentaram largamente esta oração sublime, deixando ainda muito que se escrever. Foi uma alma que compreendeu a fundo o recolhimento teresiano, exterior e interior; essas cavernas silenciosas de abnegação e de gozo.

Santa Teresinha, ainda muito pequena, já compreendia a necessidade de recolhimento para a oração. Muita vez, escondia-se atrás de, um móvel ou de uma porta, e quando lhe perguntavam o que estava ali a fazer sozinha, respondia uma grande lição, cheia de candura: 'Estava a pensar'. E todos sabiam que era em Deus e nas coisas de Deus que ela estava pensando.

A oração, todos o sabem, ao menos teoricamente, é uma conversação com Deus - a quem nos dirigimos, a quem ouvimos. Ora, para falarmos, para ouvirmos, necessário é que se faça um tal ou qual silêncio, uma tal ou qual solidão - e esse silêncio e solidão, ainda que mínimos, se chama recolhimento, naturalmente mínimo também. Por isso; diz a Escritura que o Espírito Santo fala em nós com gemidos inenarráveis, para nos mostrar a atenção e delicadeza com que o devemos escutar.

Carrel diz que 'a oração é o esforço do homem para chegar até Deus, para pôr-se em comunhão com um Ser invisível, criador de todas as coisas, suprema sabedoria, verdade, beleza e força, pai e redentor da humanidade'. Ora, para tudo isso, quem não vê que um trabalho sério é necessário, que consiste, em primeiro lugar, em criar o ambiente quer interior, quer exterior - que se chama recolhimento ou concentração - para que haja perseverança neste 'esforço' e ele alcance o seu resultado.

É verdade que aqui dizemos o que dissemos sobre o estudo, isto é, que este ambiente interior pode ser tão forte e profundo que mesmo no meio de muito movimento e barulho, ele se conserve imperturbável e fecundo. Quantas vezes, vemos edificado, um sacerdote rezando atentamente, o seu breviário, em um bonde ou trem. Não sei que missionário dizia, com graça, que nunca rezava melhor o seu breviário do que em uma movimentada estação de estrada de ferro. E nós o cremos, sem dificuldade. Porque onde o esforço deve ser maior, também maior será a comunicação de Deus Nosso Senhor.

Lembramo-nos, com veneração, de uma cena edificante na grande Catedral de Buenos Aires, por ocasião do Congresso Eucarístico, de 34. Centenas de bispos, sacerdotes, autoridades, esperavam a entrada solene do Sr. Cardeal Pacelli. De repente, um zum-zum passa pelo grande templo. Era o Legado Pontifício que chegava. Todos se levantaram, viraram-se para trás, alguns até subiram nos bancos. Diante de mim, um venerando velhinho rezava imperturbável, de joelhos, o seu terço, alheio a toda curiosidade. Ali estava a imagem perfeita do recolhimento na oração. Depois o soubemos: era o presidente das Conferências Vicentinas de todo o mundo.

De São João Berchmans se conta que rezava com tal recolhimento, principalmente depois da santa comunhão, que os seus confrades jovens e velhos o contemplavam de propósito, para se sentirem mais fervorosos, mais abrasados em devoção. É tal a união entre a oração e o recolhimento, que este, quando intenso e aquecido pelo amor, se transforma em oração elevada, a que os autores espirituais chamam de 'oração de recolhimento', isto é, um estado de quietação da alma na presença de Deus, sem grande esforço, mas com grande fruto para seu aperfeiçoamento e possível apostolado. A oração do recolhimento é a oração da presença por excelência: a alma olha, humildemente, para seu Senhor e o Senhor olha, misericordiosamente, para a alma.

E se há verdadeira pureza, humildade e perseverança, o recolhimento pode levar a alma a estes estados místicos, superiores que Santa Teresa, João da Cruz, Ruysbroek e tantos outros, descrevem com tanta profundeza. A doutrina do 'nada' tão corajosamente exposta pelo doutor carmelitano, não é outra coisa senão a doutrina do recolhimento mais completo e mais heroico; tanto exterior como interior. A alma não procura nada, nada, nada senão a Deus. Nada vê senão a Deus. Nada goza senão a Deus. E só em Deus, vê todas as criaturas.

E se não devemos desejar graças extraordinárias, por que não havemos de nos alegrar com graças que nos unem mais e mais a Deus Nosso Senhor e nEle nos transformam? 'Aspirai aos melhores dons', escreve São Paulo aos Coríntios. Não digamos que é difícil rezar. Não digamos que é difícil falar com o Rei. Talvez o que seja, deveras, difícil é entrar em Seu palácio, na sala de audiências. Ora, o palácio verdadeiro do Rei do céu é a alma humana, por mais modesta, que seja. Mas esta alma só se acha pelo recolhimento interior, garantido, quanto possível, pelo recolhimento exterior.

(Excertos da obra 'Recolhimento', por Dom Henrique Golland Trindad, 1945)

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

GLÓRIAS DE MARIA: FESTA DA NATIVIDADE DE MARIA


Com o nascimento de Maria, Deus dá ao mundo a aurora que anuncia a vinda do Messias, o início histórico da obra da Redenção. Maria, 'bendita entre todas as mulheres' e rainha dos anjos, foi privilegiada pelos desígnios da Providência com as graças mais sublimes para ser elevada à excelsa dignidade de Mãe do Nosso Salvador Jesus Cristo, Mãe de Deus. 

'Deus onipotente, antes que o homem caísse, previu a sua queda e decidiu, antes dos séculos, a redenção humana. Decidiu Ele encarnar-se em Maria... Hoje é o dia em que Deus começa a pôr em prática o seu plano eterno, pois era necessário que se construísse a casa, antes que o Rei descesse para habitá-la. Casa linda, porque, se a Sabedoria constrói uma casa com sete colunas trabalhadas, este palácio de Maria está alicerçado nos sete dons do Espírito Santo. Salomão celebrou de modo soleníssimo a inauguração de um templo de pedra. Como celebraremos o nascimento de Maria, templo do Verbo encarnado?'

(Homilia sobre a Natividade de Maria, de São Pedro Damião)

A Festa da Natividade de Maria (celebrada no dia 8 de Setembro, pelo calendário tridentino) era celebrada no Oriente Católico muito antes de ser instituída no Ocidente e tem sua origem provavelmente em Jerusalém, pelos meados do século V. De acordo com a Tradição, Maria nasceu de pais virtuosos e avançados em idade, Joaquim e Ana, que cumpriam fielmente os seus preceitos cristãos em Jerusalém, resignados e pacientes diante a esterilidade do casal. Contemplados com a gravidez tardia, nasceu-lhes pela Divina Providência a filha que seria a Mãe de Deus, evento singular da história da humanidade que não foi objeto nem de profecias e nem de sinais extraordinários antes, durante ou depois da natividade de Maria.

'Ó Joaquim e Ana, casal bem-aventurado e verdadeiramente sem mancha! Pelo fruto do vosso seio fostes reconhecidos, segundo a palavra do Senhor: 'Pelos seus frutos os reconhecereis'. A vossa conduta foi agradável a Deus e digna daquela que nasceu de vós. Tendo levado uma vida casta e santa, engendrastes a joia da virgindade, aquela que deveria permanecer Virgem antes, durante e depois do parto, a única sempre Virgem de espírito, de alma e de corpo. Convinha, de fato, que a virgindade saída da castidade produzisse a Luz única e monógena, corporalmente, pela benevolência d’Aquele que A gerou sem corpo – o Ser que não gera, mas que é eternamente gerado, para Quem ser gerado é a única qualidade própria da Sua Pessoa. Ó que maravilhas, e que alianças estão neste menino! Ó Filha da esterilidade, virgindade que engravida, nela se unirão divindade e humanidade, sofrimento e impassibilidade, vida e morte, para que em todas as coisas o menos perfeito seja vencido pelo melhor! E tudo isto para minha salvação, ó Mestre! Amas-me tanto que não realizaste esta salvação nem pelos anjos, nem por nenhuma outra criatura, mas tal como já a minha criação, também a minha regeneração foi Tua obra pessoal. Assim, eu exulto, faço despertar a minha alegria e o meu júbilo, volto à fonte das maravilhas, e embriagado de uma torrente de alegria, toco de novo a cítara do espírito e canto o hino divino da natividade'.

(Homilia sobre a Natividade de Maria, de São João Damasceno)

Nasce Maria, dádiva de Deus, santíssima em sua concepção, santíssima no seio de sua mãe, santíssima desde o primeiro instante de sua vida. Pois não convinha que o santuário de Deus, a mansão da sabedoria, o relicário do Espírito Santo, a urna do maná celestial, tivesse em si a menor mácula. Antes de receber sua alma santíssima, sua carne foi completamente purificada até do menor resíduo de toda mancha, sem a mais ínfima inclinação para o pecado.

'A gloriosa Virgem não apenas foi preservada do pecado original em sua concepção, como foi também adornada da justiça original e confirmada em graça desde o primeiro momento de sua vida, segundo muitos eminentes teólogos, a fim de ser mais digna de conceber e dar à luz o Salvador do mundo. Privilégio que jamais foi concedido à criatura alguma, nem humana nem angélica, pertencendo somente à Mãe do Santo dos Santos, depois de seu Filho Jesus ... Todas as virtudes, com todos os dons e frutos do Espírito Santo, e as oito bem-aventuranças evangélicas se encontram no coração de Maria desde o momento de sua concepção, tomando inteira posse e estabelecendo n'Ela seu trono num grau altíssimo e proporcionado à eminência de sua graça'.

(Homilia, São João Eudes)


Maria Santíssima é a nova Eva, a mãe espiritual dos homens; é Judite que será vitoriosa sobre o inimigo do povo de Deus; é Ester que alcançará misericórdia para o seu povo. Foi Maria que Adão entreviu quando Deus lhe disse que uma mulher esmagaria a cabeça da serpente. Deus a tinha em vista quando prometeu a Abraão, aos patriarcas e a Davi, que o Salvador brotaria da sua estirpe. Ela é o tronco de Jessé que havia de dar a flor escolhida, conforme a profecia de Isaías. 

Genealogia de Jesus Cristo, filho de David, filho de Abraão: 2Abraão gerou Isaac;Isaac gerou Jacob; Jacob gerou Judá e seus irmãos; 3Judá gerou, de Tamar, Peres e Zera; Peres gerou Hesron; Hesron gerou Rame; 4Rame gerou Aminadab; Aminadab gerou Nachon; Nachon gerou Salmon; 5Salmon gerou, de Raab, Booz; Booz gerou, de Rute, Obed; Obed gerou Jessé;6Jessé gerou o rei David. David, da mulher de Urias, gerou Salomão; 7Salomão gerou Roboão; Roboão gerou Abias; Abias gerou Asa; 8Asa gerou Josafat; Josafat gerou Jorão; Jorão gerou Uzias; 9Uzias gerou Jotam; Jotam gerou Acaz; Acaz gerou Ezequias; 10Ezequias gerou Manassés; Manassés gerou Amon; Amon gerou Josias; 11Josias gerou Jeconias e seus irmãos, na época da deportação para Babilónia.12Depois da deportação para Babilónia, Jeconias gerou Salatiel; Salatiel gerou Zorobabel;13Zorobabel gerou Abiud. Abiud gerou Eliaquim; Eliaquim gerou Azur; 14Azur gerou Sadoc; Sadoc gerou Aquim; Aquim gerou Eliud; 15Eliud gerou Eleázar; Eleázar gerou Matan; Matan gerou Jacob. 16Jacob gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo.18Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo.19José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la, resolveu deixá-la secretamente.20Andando ele a pensar nisto, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: 'José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. 21Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados'. 22Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: 23Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho; e hão-de chamá-lo Emanuel, que quer dizer: Deus conosco.


(Evangelho: Mateus, 1, 1-16.18-23)

domingo, 7 de setembro de 2014

A VIRTUDE DA CORREÇÃO FRATERNA

Páginas do Evangelho - Vigésimo Terceiro Domingo do Tempo Comum


O Evangelho deste domingo é um tributo sobre o dever da correção fraterna. Reconhecer o erro e assumir o ônus da responsabilidade pelo erro cometido, são os atributos básicos do perdão. Mas o erro reverbera além daquele que o pratica e é dever - dever cristão - a sua pronta caracterização, a sua expressa condenação, o seu combate efetivo, a sua oportuna ou inoportuna contenção. A correção do erro é uma virtude cristã por excelência, quando praticada e vivida sob os ditames do reto juízo, da prudência caritativa, do verdadeiro amor fraterno: 'Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, a sós contigo!' (Mt 18, 15).

Jesus nos adverte sobre a insensatez da omissão, do menosprezo, da condenação exaltada e pública do pecador que nos ofendeu: 'a sós contigo!' é uma proposição enfática e contundente pela correção fraterna, emanada pelo zelo apostólico e pela prudência cristã. Corrigir o erro para não se omitir em defesa da verdade; corrigir o erro sem destruir as pontes e as passagens que possam fazer o pecador retomar o caminho da verdade: 'Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão' (Mt 18, 15). Benditos aqueles que levarem consigo para Deus os que puderam fazer o caminho de volta!

A correção fraterna é oportuna e inoportuna, porque a salvação de uma alma tem valor infinitamente maior que todos os nossos queixumes ou sentimentos desprezados. Não basta a correção, é preciso insistir nela mais uma vez, e outra vez, e outra ainda. A insistência moldada pelo zelo extremado na salvação da alma do próximo é o cimento que agrega as pedras frouxas de nossa própria caminhada para Deus. 

Esse ardor de correção perpassa por terceiros e se encerra na própria vida da Igreja, Corpo Místico de Cristo, pois a perseverança da graça atrai graças em profusão e frutos extremos de conversão, piedade e misericórdia: 'se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está nos céus. Pois, onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles' (Mt 18, 19 - 20). Porém, a obstinação determinada no erro tem natureza diabólica e, portanto, não é mais passível da graça. Aqueles que optam pelo desvario do mal e se afastam dos ensinamentos da Igreja, tornam-se, então, réus de delitos eternos: 'tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu' (Mt 18, 18).

sábado, 6 de setembro de 2014

O RECOLHIMENTO NO TRABALHO


Se o recolhimento é o habitat de Deus desde toda a eternidade, e se nos foi trazido a esta terra pelo Verbo encarnado, que nele viveu, durante 33 anos de Sua vida mortal e que, até aos fins dos tempos, permanecerá no mistério silencioso da eucaristia, é, sem dúvida, que ele é o sinal das almas grandes.

As almas pequenas, mesquinhas, têm medo de sua consciência, têm pavor do seu vazio. Eis por que procuram a companhia de outros para se distraírem, o barulho para se atordoarem. É verdade que o recolhimento é estar também com Deus; mas não quer estar com Deus quem não quer estar com sua consciência. Eis por que o recolhimento é sinal de grandeza verdadeira, a dissipação é sinal das almas vulgares.

Poderíamos, de vários modos, dividir os homens que vivem uma vida digna. Mas, para o fim que, temos em vista, dividi-los-emos em três grupos apenas: os que vivem do trabalho manual, os que se dedicam ao estudo, os que fazem profissão de vida perfeita. Em outras palavras: os trabalhadores, os sábios, os santos.

RECOLHIMENTO NO TRABALHO

Uma das mais belas imagens do trabalho no recolhimento e do recolhimento no trabalho é, de certo, os célebres entalhadores de Deus que vivem em suas poéticas oficinas, lá no Tirol, a criarem essas figuras admiráveis de Cristo crucificado, de madeira, que, depois, serão cobiçadas pelos que conhecem a arte profunda que elas revelam, apesar da simplicidade e quase ingenuidade de seus traços.

Contava-nos, em um retiro inesquecível, um pregador franciscano, a impressão que lhe causara, em uma das suas viagens ao Tirol, a atenção edificante destes artistas anônimos em cima de sua madeira bruta, dentro da qual parece que já divisavam alguma figura linda que eles carinhosamente, pacientemente, queriam dali desentranhar. E passam os forasteiros curiosos e espiam pela janela e ficam a contemplá-los, mas o escultor não se perturba, melhor, nada vê senão o seu trabalho e continua a esculpir.

Lembremo-nos, também, destes copistas da Idade Média, debruçados sobre o pergaminho a fazerem essas letras admiráveis que venceram séculos e que cada uma tem a sua história. Por que o recordamos? Exemplos do recolhimento no trabalho. E com que espírito sobrenatural preparavam os canteiros cristãos das grandes catedrais as pedras que iriam esconder-se lá em baixo, no fundamento, ou, lá em cima, nas torres entre as nuvens! Para eles, o trabalho era oração, era serviço de Deus. Com que elevação o faziam!

Quem já não contemplou, edificado, o exemplo destes trabalhadores dos campos, colonos humildes, em geral homens de fé, que com a enxada na mão, não desviam os olhos da terra, como se a todo momento fossem descobrir um tesouro. E passa o automóvel, passa o trem, e eles não levantam os olhos do seu trabalho árduo. É o trabalho no recolhimento e o recolhimento no trabalho.

No fim do século passado, faleceu na França, em odor de santidade, uma humilde costureira, Marie Eustelle. Um artista, querendo gravar em sua tela o característico de sua santidade, pintou a donzela com a costura na mão a contemplar uma custódia eucarística [gravura acima], brilhante como o sol. Que pensamento lindo: trabalho e oração confundem-se no recolhimento.

Aliás, era a grande preocupação dos padres do deserto: a oração como disposição para o trabalho bem feito, mas também o trabalho como preparação para a oração. Tanto assim que se faltava o vime para novas cestas, desmanchavam as já feitas, para as tornarem a fazer e assim não lhes faltasse o trabalho salutar. Toda a vida conventual, até mesmo nas ordens mais dadas ao estudo de ciência e de oração, se começa pelo trabalho manual ou nas oficinas, ou nos jardins, ou na cozinha, tudo como ótima disposição para a vida espiritual e intelectual.

E uma das facetas mais encantadoras da vida nos conventos é o trabalho humilde dos irmãos leigos ou conversos, que, por toda a vida, fazem o papel de Marta, mas sem deixarem de ser Maria. E quando dois ou três trabalham juntos, como na horta ou em alguma oficina, como é belo ouvir as orações que sobem o céu, em surdina, enquanto os dedos ou braços trabalham a valer. A influência que estes trabalhadores orantes exercem é salutar. Começa-se a amar o trabalho e a ver nele uma força de elevação para Deus.

Um diretor de grande tecelagem dizia-me que nas salas de trabalho onde se faziam irradiações de música, o resultado de serviço era maior em quantidade e em perfeição. Não seria porque a música, comunicando um certo bem-estar, estabelecia um ambiente natural de recolhimento, próprio para o desenvolvimento do trabalho? A oração consegue este resultado de modo muito mais eficiente.

É por isso que os servos de Deus fazem tudo com perfeição, porque se lembram no trabalho de que a terra que lavram ou o pano que tecem serão apresentados ao Pai do céu. E, justamente, onde há mais recolhimento há mais trabalho consciente e elevado e onde há mais trabalho sério há também mais recolhimento.

Olhemos para mais um exemplo. Os cartusianos de São Bruno e os trapistas do Abade Rancé, que transformaram a sua vida em um recolhimento imperturbável, contínuo, e que, com um heroísmo edificante, guardam, há séculos, um silêncio inviolável, são os que dão mais belo exemplo de trabalho. Cada filho de São Bruno, também os sacerdotes, ao lado de sua cela, onde rezam e estudam, tem a sua oficina, onde transmudam o trabalho no ferro, ou na madeira, em poemas que sobem ao céu. Os trapistas todos, sem excetuar o próprio Abade, se entregam, oito horas por dia, ao estudo e ao trabalho, sendo que boa parte ao trabalho do campo, fazendo coisas extraordinárias, como os importantes arrozais dos campos de Tremembé, em São Paulo.

Não há dúvida, a experiência no-lo diz, quando o homem está recolhido, o trabalho rende e é feito com inteligência e elevação, por mais modesto que seja. A reta intenção, tão recomendada pelos mestres de vida espiritual, antes das ações principais, forma o ambiente, onde se desenvolverá o trabalho com proveito.

Pregávamos retiro em uma grande casa do Bom Pastor, quando vimos sem sermos visto um quadro inesquecível: umas trinta e tantas madalenas (são verdadeiras penitentes voluntárias que levam vida rigorosa) sentadas em duas filas de bancos, entregues aos seus trabalhos de mão: bordados, costuras, tricô, desenhos. Todas silenciosas, olhares sobre o trabalho - era a imagem perfeita do trabalho e do recolhimento. Com respeito as contemplamos!

O santo Cura de Ars nos aconselha que só trabalhemos naquilo que pudermos oferecer a Deus Nosso Senhor; ora, isso é aconselhar a perfeição do trabalho, que se alcança pela concentração no que se está fazendo. O recolhimento, portanto, é a força espiritual para o trabalho manual. Por ele, o homem dá às suas atividades uma nobreza que lembra, na sua humildade embora, a nobreza sem ostentação da oficina de Nazaré.

(Excertos da obra 'Recolhimento', por Dom Henrique Golland Trindad, 1945)