domingo, 19 de janeiro de 2014

JESUS CRISTO É O CORDEIRO DE DEUS

Páginas do Evangelho - Segundo Domingo do Tempo Comum

 

Neste segundo domingo do tempo comum, a mensagem profética que ressoa pelos tempos vem da boca de João Batista: 'Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo' (Jo 1, 29). E complementa: 'Dele é que eu disse: Depois de mim vem um homem que passou à minha frente, porque existia antes de mim' (Jo 1, 30). Eis o primado de João, o Precursor do Messias: Jesus veio ao mundo para resgatar e levar à salvação toda a humanidade e fazer novas todas as coisas.

Diante de Jesus, que viera pela segunda vez até ele às margens do Jordão, assim como foi Maria que visitou a sua prima Santa Isabel, João Batista reconhece no Senhor a glória e a eternidade de Deus 'porque existia antes de mim' (Jo 1, 30). Nas margens do Jordão, uma vez mais, no mistério da Encarnação, os desígnios de Deus são revelados aos homens por meio de João Batista.

Em seguida, reafirma a manifestação da Santíssima Trindade na pomba que desceu do céu, símbolo exposto em dimensão humana para o mistério insondável do Filho na intimidade com o Pai: 'Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele' (Jo 1, 32). O maior profeta de Deus, enviado para batizar com água, declara, então, de forma clara e incisiva, Jesus como Filho de Deus Vivo: 'Eu vi e dou testemunho: Este é o Filho de Deus!' (Jo 1, 34).

Eis aí a figura singular do Batista, de quem o próprio Cristo revelou: 'Na verdade vos digo que, entre os nascidos de mulher, não veio ao mundo outro maior que João Batista' (Mt 11, 11). A grandeza do Precursor é enfatizada por Jesus naquele que recebeu privilégios tão extraordinários para ser o profeta da revelação de tão grandes mistérios de Deus à toda a humanidade: Jesus Cristo é o Unigênito do Pai, o Filho de Deus Vivo, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

sábado, 18 de janeiro de 2014

EXORCISMO É 'CONVERSAR COM O DEMÔNIO'?

Os Evangelhos registram vários casos em que o Senhor interagiu com os demônios em estados de possessão, mandando-os se calarem e os expulsando das pessoas de pronto:

Ora, na sinagoga deles achava-se um homem possesso de um espírito imundo, que gritou: "Que tens tu conosco, Jesus de Nazaré? Vieste perder-nos? Sei quem és: o Santo de Deus!" Mas Jesus intimou-o, dizendo: "Cala-te, sai deste homem!" (Mc 1, 23 - 25).

O demônio lançou-o por terra no meio de todos e saiu dele, sem lhe fazer mal algum. Todos ficaram cheios de pavor e falavam uns com os outros: Que significa isso? Manda com poder e autoridade aos espíritos imundos, e eles saem? (Lc 4, 33 - 35).

Mal saltou em terra, veio-lhe ao encontro um homem dessa região, possuído de muitos demônios; há muito tempo não se vestia nem parava em casa, mas habitava no cemitério. Ao ver Jesus, prostrou-se diante dele e gritou em alta voz: Por que te ocupas de mim, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Rogo-te, não me atormentes! Porque Jesus ordenara ao espírito imundo que saísse do homem. Pois há muito tempo que se apoderara dele, e guardavam-no preso em cadeias e com grilhões nos pés, mas ele rompia as cadeias e era impelido pelo demônio para os desertos. Jesus perguntou-lhe: Qual é o teu nome? Ele respondeu: Legião! (Porque eram muitos os demônios que nele se ocultavam.) E pediam-lhe que não os mandasse ir para o abismo. Ora, andava ali pastando no monte uma grande manada de porcos; rogaram-lhe os demônios que lhes permitisse entrar neles. Ele permitiu. Saíram, pois, os demônios do homem e entraram nos porcos; e a manada de porcos precipitou-se, pelo despenhadeiro, impetuosamente no lago e afogou-se (Lc 8, 27 - 33).


Portanto, Jesus Cristo revela à Santa Igreja como lidar com o demônio diante de suas manifestações: manter distância, restringir às questões básicas (nome e quantidade dos demônios presentes, antecedentes da possessão) e evitar perguntas desnecessárias, particularmente emanadas pela curiosidade e pela vanglória humana, impelir a expulsão imediata e completa das forças diabólicas da pessoa possuída). Tudo o mais é contrário ao exemplo de Cristo e à doutrina católica. É absolutamente despropositado e perigoso estabelecer longos diálogos (em alguns casos, verdadeiras entrevistas) com o demônio durante rituais exorcistas. Nenhum fruto bom pode advir de revelações do pai da mentira, como o próprio Jesus nos alertou:

Vós tendes como pai o demônio e quereis fazer os desejos de vosso pai. Ele era homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade, porque a verdade não está nele. Quando diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira (Jo 8, 44)

As possessões são fatos permitidos por Deus para revelar a tantos incautos a assustadora realidade do demônio e das suas manifestações. Entretanto, que os cristãos tenham todas as ressalvas possíveis com obras ou textos pseudo-católicos baseados em 'revelações' diabólicas. As palavras de salvação são as de Cristo e, para conhecer a verdade, nos basta o catecismo. Nem por um minuto podem vir da falsidade bestial dos espíritos malignos, paridos pela malícia e capachos da mentira.

PALAVRAS DA SALVAÇÃO





'É um erro crer que muitos caminhos conduzem a Deus, depois que os cristãos receberam a verdade da boca do próprio Deus'

(Santo Ambrósio)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A MORTE DE SANTO ANTÃO

Embora seja muito difícil assinalar as origens precisas do movimento monástico, Santo Antão foi tão extraordinário que é considerado como sendo o pai da vida monástica e, especialmente, o modelo perfeito da vida solitária. Recluso por vinte anos, abandonou  este  isolamento absoluto para se tornar o pai e mestre de outros homens que queriam imitá-lo. E assim o fez por muitos anos, até se solidificar uma pequena colônia de ascetas. Sentindo-a muito povoada (na chamada 'montanha exterior'), recolhe-se novamente ao isolamento, na sua chamada 'montanha interior', vivendo os últimos anos de sua vida em companhia de apenas dois discípulos. Vaticina sua morte, faz legado de suas pobres roupas e roga a seus acompanhantes que não revelem a ninguém o lugar de sua sepultura. Faleceu em 17 de janeiro de 356. O conhecimento da vida de Santo Antão se deve fundamentalmente aos escritos em grego de Santo Atanásio, o insigne patriarca de Alexandria. O texto abaixo - da morte de Santo Antão - constitui um excerto desta obra. 


Recebendo, da Providência, uma premonição de sua morte, falou aos irmãos: 'Esta é a última visita que lhes faço e me admiraria se nos voltássemos a ver nesta vida. Já é tempo de morrer, pois tenho quase cento e cinco anos'. Ao ouvir isto, puseram-se a chorar, abraçando e beijando o ancião. Ele porém, como se tivesse de partir de uma cidade estranha à sua própria, continuou falando alegremente. Exortava-os a 'não se relaxarem em seus esforços nem a se desalentarem na prática da vida ascética, mas a viver como se tivessem de morrer cada dia e, como disse antes, a trabalhar duramente, a fim de guardar a alma limpa de pensamentos impuros, e a imitar os homens santos. Não se aproximem dos cismáticos melecianos, pois já conhecem seu ensinamento ímpio e perverso. Não se metam para nada com os arianos, pois sua irreligião é clara para todos. E se vêem que os juízes os apóiam, não se deixem confundir: isto se acabará, é um fenômeno mortal, destinado a seu fim em pouco tempo. Por isso, mantenham-se limpos de tudo isto e observem a tradição dos Padres e, sobretudo, a fé ortodoxa em nosso Senhor Jesus Cristo, como aprenderam das Escrituras e eu tão frequentemente o recordei'.

Quando os irmãos instaram pra que ficasse com eles, até morrer ali, recusou-se a isto por muitas razões, segundo disse, embora sem indicar nenhuma. Especialmente era por isto: os egípcios têm o costume de honrar com ritos funerários e envolver em sudários de linho os corpos dos homens santos e particularmente dos santos mártires; mas não os enterram: colocam-nos sobre divãs e os guardam em suas casas, pensando honrar o defunto deste modo. Antão pediu muitas vezes, inclusive aos bispos, que dessem instruções ao povo sobre esse assunto. Ao mesmo tempo envergonhou os leigos e reprovou as mulheres, dizendo que 'isto não era correto nem reverente, em absoluto. Os corpos dos patriarcas e dos profetas se guardam em túmulos até estes dias; e o corpo do Senhor também foi depositado num túmulo e puseram uma pedra sobre ele (Mt 27,60) até que ressuscitou ao terceiro dia'. Ao expor assim as coisas, demonstrava que cometiam erro os que não davam sepultura aos corpos dos defuntos, por santos que fossem. E em verdade, quem maior ou mais santo que o corpo do Senhor? Como resultado, muitos que o ouviram começaram desde então a sepultar seus mortos, e deram graças ao Senhor pelo bom ensinamento recebido.

Sabendo disto, Antão teve medo de que fizessem o mesmo com seu próprio corpo. Por isso, despedindo-se dos monges da Montanha Exterior, apressou-se para a Montanha Interior, onde costumava viver. Depois de poucos meses, caiu doente. Chamou os que o acompanhavam - havia dois que levavam vida ascética havia quinze anos e se preocupavam com ele devido a sua idade avançada e lhes disse: 

'Vou-me pelo caminho de meus pais', como diz a Escritura (1 Rs 2,2; Jos 23,14), pois me vejo chamado pelo Senhor. Quanto a vocês, estejam vigilantes e não façam tábula rasa da vida ascética que tanto tempo praticaram. Esforcem-se por manter seu entusiasmo como se estivessem começando agora. Já conhecem os demônios e seus desígnios; conhecem também sua fúria e também sua incapacidade. Assim, pois, não os temam; deixem antes que Cristo seja o alento de sua vida e ponham nele sua confiança. Vivam como se cada dia tivessem de morrer, fazendo atenção a si mesmos e recordando tudo o que ouviram de mim. Não tenham nenhuma comunhão com os cismáticos e absolutamente nada com os hereges arianos. Sabem como eu mesmo me guardei deles devido à sua pertinaz heresia contra Cristo. Sejam ansiosos em manifestar sua lealdade primeiro a Cristo e depois a seus santos, 'para que depois de sua morte eles os recebam nas moradas eternas' (Lc 16,9), como a amigos familiares. Gravem este pensamento, tenham-no como propósito. Se vocês realmente se preocupam comigo e me consideram como pai, não permitam que ninguém leve meu corpo para o Egito, não aconteça que me guardem em suas casas. Foi esta a razão que me trouxe para cá, à montanha. Sabem como sempre confundi os que fazem isto e os intimei a deixar tal costume. Por isso, façam-me vocês mesmos os funerais e sepultem meu corpo na terra, e respeitem de tal modo o que lhes disse, que ninguém senão vocês saiba o lugar. Na ressurreição dos mortos, o Salvador me devolverá incorruptível. Distribuam minha roupa. Ao bispo Atanásio deem uma túnica e o manto em que estou, e que ele mesmo me deu, mas que se gastou em meu poder; ao bispo Serapião deem a outra túnica, e vocês podem ficar com a camisa de pelo (47,2). E agora, meus filhos, Deus os abençoe. Antão parte e não está mais com vocês'.

Depois de dizer isto e de que eles o houvessem beijado, estendeu os pés, seus rosto estava transfigurado de alegria e seus olhos brilhavam de regozijo como se visse amigos vindo a seu encontro; e assim faleceu e foi reunir-se a seus pais. Eles então, seguindo as ordens que lhes havia dado, prepararam e envolveram o corpo e o sepultaram aí na terra. E até o dia de hoje ninguém, exceto esses dois, sabe onde está sepultado. Quanto aos que receberam as túnicas e o manto usados pelo bem-aventurado Antão, cada um guarda seu presente como grande tesouro. Olhá-los é ver Antão e pô-los é como revestir-se de suas exortações com alegria.

Este foi o fim da vida de Antão no corpo, como antes tivemos o começo de sua vida ascética. E ainda que seja um pobre relato comparado com a virtude do homem, recebam-no, entretanto, e reflitam que classe de homem foi Antão; o varão de Deus. Desde sua juventude até uma idade tão avançada conservou uma devoção inalterável à vida ascética. Nunca tomou a velhice como desculpa para ceder ao desejo de abundante alimentação, nem mudou sua forma de vestir, pela debilidade de seu corpo, nem tampouco lavou seus pés com água. E no entanto sua saúde se manteve totalmente sem prejuízo. Por exemplo, mesmo seus olhos eram perfeitamente normais, de modo que sua vista era excelente; não havia perdido nem um só dente; só se haviam gasto até as gengivas pela grande idade do ancião. Manteve mãos e pés sãos, e em tudo aparecia com melhores cores e mais fortes do que os que têm uma dieta diversificada, banhos e variedade de roupas.

O fato de chegar a ser famoso em todas as partes, de ter encontrado admiração universal e de que sua perda foi sentida por pessoas que nunca o viram, sublinha sua virtude e o amor que Deus lhe tinha. Antão ganhou renome, não por seus escritos nem por sabedoria de palavras nem por nenhuma outra coisa, senão só por seu serviço a Deus.

E ninguém pode negar que isto é dom de Deus. Como explicar, efetivamente, que este homem, que viveu escondido em uma montanha, fosse conhecido em Espanha e Gália, em Roma e África, senão por Deus, que em toda parte faz conhecidos os seus, que, mais ainda, havia dito isto a Antão em seus começos. Pois ainda que façam suas obras em segredo e desejem permanecer na obscuridade, o Senhor os mostra publicamente como lâmpadas a todos os homens (Mt 5,16), e assim, os que ouvem falar deles podem aperceber-se de que os mandamentos levam à perfeição, e então se encorajam pela senda que conduz à virtude.

Agora, pois, leiam isto aos demais irmãos, para que também eles aprendam como deve ser a vida dos monges, e se convençam de que nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo glorifica aos que o glorificam. Ele não só conduz ao Reino dos Céus os que o servem até o fim, mas, ainda que se escondam e façam o possível por viver fora do mundo, faz com que em toda parte sejam conhecidos e se fale deles, por sua própria santidade e pela ajuda que dão a outros. Se a ocasião se apresenta, leiam-no também aos pagãos, para que ao menos deste modo possam aprender que nosso Senhor Jesus Cristo é Deus e Filho de Deus, e que os cristãos, que o servem fielmente e mantêm sua fé ortodoxa nele, demonstram que os demônios, considerados deuses pelos pagãos, não o são, mas antes os calcam aos pés e afugentam pelo que são: enganadores e corruptores de homens. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem seja dada a glória pelos séculos. Amém.

(Excertos da obra 'Vida de São Antão', por Santo Atanásio)

Santo Antão, rogai por nós!

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A DIREÇÃO DA ALMA E A VIDA PERFEITA

I

Antes de tudo, minha alma, é necessário que do bom Deus faças uma ideia altíssima, piíssima e santíssima. A isto chegarás por meio de fé inabalável, meditação atenta e lúcida intuição repassada de admiração.

1. Altíssima será a ideia que fazes de Deus se fiel, piedosa e claramente crês, admiras e louvas seu poder imenso, que do nada criou tudo e tudo sustenta; sua sabedoria infinita que tudo dispõe e governa; sua justiça ilimitada que tudo julga e recompensa; e se, saindo de ti e voltando de novo e elevando-te acima de ti, com todas as veras cantas com o profeta: 'Regozijaram-se as filhas de Judá pelos teus juízos, Senhor, porque tu és Senhor altíssimo sobre toda a terra, tu és sobremaneira exaltado sobre todos os deuses' (Sl 96, 8-9).

2. A ideia que fazes de Deus será piíssima se admiras, abraças e bendizes a sua imensa misericórdia que se mostrou sumamente benigna em tomar a nossa natureza humana e mortalidade, sumamente terna em suportar a cruz e a morte, sumamente liberal em mandar o Espírito Santo e instituir os Sacramentos, principalmente comunicando-se a si mesmo liberalissimamente no Sacramento do altar, para que de coração possas cantar as palavras do salmo: 'Suave é o Senhor para com todos e as suas misericórdias são sobre todas as suas obras' (Sl 144, 9).

3. A ideia que fazes de Deus será santíssima se consideras, admiras e louvas a sua inefável santidade e o proclamas, com os bem-aventurados serafins: Santo, santo, santo! Santo quer dizer, em primeiro lugar, que possui Ele a santidade em grau tão elevado e com tanta pureza que Lhe é impossível querer ou aprovar coisa alguma que não seja santa. Santo, em segundo lugar, por Ele amar a santidade nos outros, de forma que Lhe é impossível subtrair os dons da graça ou negar o prêmio da glória aos que na verdade conservam a santidade. Santo, em terceiro lugar, por Ele aborrecer tanto o contrário da santidade que Lhe é impossível não reprovar os pecados ou deixá-los impunes. Se desta forma pensas de Deus, cantarás com Moisés, o legislador da Antiga lei: 'Deus é fiel e sem nenhuma iniquidade, justo e reto' (V Moisés, 32, 4).

II

Depois, dirige o teu olhar sobre a lei de Deus que te manda oferecer ao Altíssimo um coração humilde, ao Piíssimo um coração devoto, ao Santíssimo um coração ilibado.

1. Um coração humilde, digo, deves oferecer ao Altíssimo pela reverência no Espírito, pela obediência nas obras, pela honra nas palavras e nos atos, observando a apostólica regra e doutrina: 'Faze tudo para a glória de Deus' (I Cor 10, 31).

2. Um coração devoto deves oferecer ao Piíssimo, invocando em orações fervorosas, saboreando doçuras espirituais, dando muitas graças para que tua alma sempre mais a Deus 'ascenda pelo deserto como uma varinha de fumo composto de aromas de mirra e de incenso' (Cântico dos Cânticos 3, 6).

3. Um coração ilibado deves oferecer ao Esposo santíssimo de maneira que não reine em ti, nem nos sentidos, nem na vontade, nem no afeto, algum prazer em deleites desordenados, desejo de coisas terrenas, nenhum movimento de maldade interna, e assim, livre de toda a mácula de pecado, possas cantar com o salmista: 'Seja imaculado o meu coração nas tuas justificações para que não seja confundido' (Sl 118, 80).

Reflete, pois, diligentemente e vê se tudo isto observaste desde a juventude. Se a consciência a ti o afirmar, não o atribuas a ti mesmo, mas à mercê de Deus e rende-lhe graças. Se, porém, achares que uma ou mais vezes, num ponto ou em alguns, ou talvez em todos eles, faltaste grave ou levemente, por fraqueza, por ignorância ou com pleno conhecimento, procura reconciliar-te com Deus com 'gemidos inexplicáveis' (Rom 8, 26) e, para Lhe mostrar a emenda, reveste-te do Espírito de penitência, para que possas cantar com o salmista penitente: 'Porque preparado estou para os açoites, e a minha dor está sempre diante de mim' (Sl 37, 18).

III

A dor da alma, porém, deve ter dois companheiros para que a purifiquem e aplaquem a Deus, a saber: o temor do juízo divino e o ardor de interno desejo, afim de que recuperes pelo temor um coração humilde, pelo desejo um coração devoto e pela contrição um coração ilibado.

1. Teme, pois, os juízos divinos que são 'um abismo profundo' (Sl 35, 7). Teme, repito, teme muito para que, embora de algum modo penitente, não desagrades ainda a Deus; teme mais, para que depois não recomeces a ofender a Deus; teme muitíssimo, para que no fim não te afastes de Deus, carecendo sempre de luz, ardendo sempre no fogo, jamais livre do verme. Somente uma vida de verdadeira penitência e uma morte na graça da perseverança pode preservar-te desta infelicidade. Canta, pois, com o profeta: 'Trespassa com o teu temor a minha carne, porque tememos os teus juízos' (Sl 118, 120).

2. Arrepende-te e tem cuidado por causa dos pecados cometidos. Arrepende-te, aconselho, arrepende-te muito, porque por eles aniquilaste todo o bem que de Deus recebeste (trata-se do pecado mortal que destrói todos os dons sobrenaturais); arrepende-te mais porque ofendeste a Cristo que por ti nasceu e foi crucificado; arrepende-te muitíssimo porque desprezaste a Deus, cuja majestade desonraste transgredindo as suas leis, cuja verdade negaste, cuja bondade afrontaste. Pelo pecado desonraste, desfiguraste e transtornaste toda a criação; porque pela rebeldia contra os divinos estatutos, mandamentos e juízos, abusaste de todas as coisas que, segundo a vontade de Deus, te deveriam servir: das criaturas, dos merecimentos alcançados, das misericórdias de Deus, os dons gratuitamente outorgados, e o prêmio prometido. Depois de atentamente considerar tudo isto, toma luto como por teu filho único, chora amargamente (Jer 6, 26); faze correr uma como que corrente de lágrimas de dia e de noite; não te dês descanso algum nem se cale a menina dos teus olhos (Lamentações 2, 18).

3. Deseja, contudo, os dons divinos, elevando-te pela chama do divino amor, até Deus, o qual tão pacientemente te suportou nos teus pecados, tão longanimamente esperou, tão misericordiosamente te reconduziu à penitência, concedendo-te o perdão, infundindo-te a graça, prometendo-te a coroa, enquanto de tua parte Lhe ofertaste - ou antes d'Ele recebeste para Lhe ofertar - o sacrifício de um Espírito atribulado, de um coração contrito e humilhado (Sl 50, 19) por meio de sentida compunção, confissão sincera e satisfação condigna. Deseja, digo, muito a benevolência divina por uma larga comunicação do Espírito Santo, deseja mais a semelhança com Deus por uma imitação exata de Cristo crucificado, deseja muitíssimo a posse de Deus por uma visão clara do Eterno Padre, para que na verdade cantes com o Profeta: 'A minha alma arde em sede por Deus forte e vivo; quando irei e aparecerei diante da face de Deus?' (Sl 41, 3).

IV

Ora, para conservar em ti este espírito de temor, de dor e de desejo, exerce-te externamente numa perfeita modéstia, justiça e piedade, afim de que, segundo escreve o Apóstolo, 'renunciando à impiedade e às paixões mundanas, vivas sóbria, justa e piedosamente neste século' (Tito, 2, 12).

1. Exerce-te numa perfeita modéstia para que, segundo a doutrina do Apóstolo, 'a tua modéstia seja conhecida por todos os homens' (Fp 4, 5). Exerce-te primeiro na modéstia da parcimônia no comer e vestir, no dormir e vigiar, no recreio e no trabalho, não excedendo a medida em coisa alguma. Depois exerce-te na modéstia da disciplina, com moderação no silêncio e no falar, na tristeza e na alegria, na clemência e no rigor, conforme as circunstâncias o exigem e a sã razão o prescreve. Finalmente, exerce-te na modéstia da civilidade, regulando, ordenando e, compondo as ações, os movimentos, os gestos, as vestes, os membros e os sentidos, conforme o requer a educação moral e o costume na ordem, para que merecidamente pertenças ao número daqueles aos quais o Apóstolo diz: 'Faça-se tudo entre vós com decência e ordem' (I Cor 14, 40).

2. Exerce-te também na justiça para que te sejam aplicáveis as palavras do Profeta: 'Reina por meio da verdade, da mansidão e da justiça' (Sl 44, 5). Na justiça, afirmo, integra por zelo pela honra divina, por observância da lei de Deus e por desejo da salvação do próximo. Na justiça regulada pela obediência aos superiores, pela sociabilidade aos iguais, pela punição das faltas dos inferiores. Na justiça perfeita, de forma que aproves toda a verdade, favoreças a bondade, resistas à maldade tanto no Espírito, como nas palavras e obras, não fazendo a ninguém o que não queres que te façam, não negando a ninguém o que dos outros desejas, para que imites com perfeição aqueles a quem foi dito: 'Se a vossa justiça não for maior do que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus' (Mt 5, 20).

3. Finalmente, exerce-te na piedade, porque, como diz o Apóstolo, 'a piedade é útil para tudo, porque tem a promessa da vida presente e futura' (I Tim 4, 8). Exerce-te na piedade do culto divino recitando as horas canônicas atenta, devota e reverentemente, acusando e chorando as faltas quotidianas, recebendo a seu tempo o Santíssimo Sacramento e ouvindo todos os dias a santa missa. Na piedade, por meio da salvação das almas, auxiliando ora por frequentes orações, ora por instrutivas palavras, ora pelo estímulo do exemplo, para que quem ouve diga: 'Vem!' (Apoc 22, 17). Isto, porém, cumpre fazer com tanta prudência, que a própria alma não sofra prejuízo. 

Na piedade, por meio do alívio das necessidades corporais, suportando com paciência, consolando amigavelmente, ajudando com humildade, alegria e misericórdia, para desta forma: cumprires o mandamento divino enunciado pelo Apóstolo: 'Carregai os fardos uns dos outros, e desta maneira cumprireis a lei de Cristo' (Gal 6, 2). Para praticares tudo isto, o meio melhor, eu o creio, é a lembrança do Crucificado, a fim de que o teu Dileto, como um ramalhete de mirra (Cântico dos Cânticos 1, 12), descanse sempre junto ao teu coração. Isto te queira prestar Aquele que é bendito por todos os séculos dos séculos. Amém.

(Excertos da obra 'A Direção da Alma e a Vida Perfeita', de São Boaventura)

DA VIDA ESPIRITUAL (65)



Que bom que visitastes hoje este doente e o ouvistes com atenção por alguns minutos... Que bom que ele seja alguém completamente desconhecido para você... Que bom que ninguém precisou saber do teu ato de amor e caridade... Que bom que você tenha visto neste homem desconhecido o próprio Jesus... Já aprendestes muito, meu filho, que a santidade é coisa própria dos homens e está tão perto de nós quanto a nossa sombra...

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

CARTAS A MEU PAI (II)

Pai:

o que está acontecendo com o tempo dos homens? Aqui e ali, faz um calor escaldante; acolá, chuvas que destroem tudo, com deslizamentos de encostas e inundações. A natureza parece estar estremecida, arfante, movendo-se em estertores com as variações climáticas tão violentas. A terra de tantas bênçãos e graças parece ter chegado a todos os limites possíveis diante da insensatez humana, da inconformidade das criaturas com o Criador, diante o pecado que é vendido livremente como se não fosse pecado. Onde isso tudo vai parar? Qual é o limite da Vossa misericórdia?

L. me aborreceu particularmente hoje. Um homem que não sabe usar as palavras viola a graça dos sentidos. Era uma frase e um palavrão, outra frase, outro palavrão... Seria vão tentar persuadi-lo a se conter, quantas vezes não tentei isso? É fácil constatar o óbvio: quem não consegue dominar suas palavras, não consegue dominar seu coração. E os erros se multiplicam, as ações se deterioram, a sensatez hiberna e a vulgaridade assome a predominância absoluta do ser, fazer, pensar, agir. Será que alguém ainda sabe hoje de vossas santas palavras, que nada, nada mesmo, nem mesmo a palavra mais vã, ficará órfã diante de Vós?

Meu Anjo da Guarda tomou jeito por estes tempos e tem me ouvido mais. Antes, falava sem parar, quase que num monólogo consigo mesmo, pois eu ficava mais mudo que uma pedra. Quanta preocupação, meu Deus! Dirija com cuidado! Não se deixe tomar pela preguiça! Por que já não fez o trabalho da escola de quinta-feira que vem! (e a gente ainda estava na segunda!). Agora, é bem mais silencioso e prestativo. Me ouve mais. E fica apenas assim, presente. Estou quase a fazer monólogos comigo diante dele. E me surpreendo como assim caminho a passos largos ao Vosso encontro!

Será que S. recebeu a minha mensagem? Pelo menos, não me respondeu. De qualquer forma, sua conversão não será fácil. Nada na sua casa favorece uma vida espiritual. Seus caminhos serão difíceis e vou precisar de muita paciência para guiá-lo na direção espiritual. Sinto que sua alma se abre para a verdade da graça, mas os seus instintos (instintos!) o mantém na vidinha comum dos jovens que vivem na monotonia das horas vividas para si mesmos, na dormência hipnótica de que o mundo e as coisas do mundo giram exatamente sobre as suas cabeças. Bom, já pedi ajuda ao meu anjo e ao dele. Que eles se entendam primeiro para que eu possa agir mais eficazmente no meu propósito.  

Por outro lado, G. tem feito avanços memoráveis. Sua devoção à Nossa Senhora me acalenta a ideia que ele vai ser um dínamo de espiritualidade cristã. Como são belos os pés do mensageiro que leva a tanta gente as palavras de Cristo e dos Evangelhos. Quantas graças e bênçãos não nascerão daquelas mãos tão prontas a rezar e a confortar! No meio dos tempos dos homens, do calor sufocante, das chuvas torrenciais, quanta alegria, meu Pai, de ver tantos dos vossos filhos na caminhada segura aos vossos braços. G. terá uma bela história de vida, com certeza, e serão longos os seus dias sobre a terra.

Ah, ia me esquecendo, mas estou firme nas caminhadas do fim de tarde. Meu Anjo da Guarda me deu um sério ultimato. Ou cuido realmente da minha saúde ou... Nem quis saber do ou... Meu triglicérides não andou meio elevado? Agora tudo está sob controle, não se preocupe. Faça sol, ou faça chuva, caminho para a saúde do corpo e da alma. Nos caminhos do mundo, e para o Vosso coração.

E isso é tudo por hoje, na vida de um filho vosso no meio do mundo. Boa tarde, pai. Com a vossa bênção, R.

('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).