segunda-feira, 19 de novembro de 2012

AS BEM-AVENTURANÇAS DAS INDULGÊNCIAS

EXCERTO DA OBRA 'O PROGRESSO NA VIDA ESPIRITUAL' 
                                                                                            Pe. Frederick William Faber (1814-1863) 


Em primeiro lugar, por terem relação com o pecado, com a Justiça de Deus e com a pena temporal devida ao pecado, as indulgências conservam em nós certos pensamentos que pertencem à fase da purificação, o que para nós é salutar, embora desejemos com impaciência ir adiante e livrar-nos deles.

Em segundo lugar, produzirão em nós a feliz disposição de nos afastar deste mundo: conduzem-nos a um mundo invisível; cercam-nos de imagens sobrenaturais; infundem em nosso espírito uma ordem de idéias que nos desapega das coisas mundanas e exprobra os prazeres terrestres. 

Em terceiro lugar, guardam continuamente diante de nós a doutrina do Purgatório, e assim nos obrigam ao constante exercício da fé e ao mesmo tempo nos sugerem motivos de um santo temor. 

Em quarto lugar, fazem-nos praticar para com os fiéis falecidos o exercício da caridade, que facilmente chegará ao heroísmo, estando assim ao alcance dos que não podem fazer outras esmolas, e produz deste modo em nossa alma os efeitos que acompanham as obras de misericórdia. 

Em quinto lugar, a glória de Deus tem muito interesse nas indulgências, por uma dupla razão: porque libertam as almas do Purgatório, apressando a sua entrada na corte celestial, e porque patenteiam especialmente algumas das perfeições divinas, tais como Sua infinita pureza, Seu ódio ao pecado ainda mesmo ínfimo, e o rigor da Sua justiça, aliada à mais engenhosa misericórdia. 

Em sexto lugar, elas prestam homenagem às satisfações que Jesus ofereceu por nós. São para estas satisfações o que para os Seus méritos é a doutrina de que todo pecado não é perdoado senão devido a Ele. Portanto podemos dizer que, aproveitando d’Ele e dos Seus méritos o mais possível, as indulgências realçam a copiosidade da Redenção. Honram também as satisfações da Virgem Maria e dos Santos, de modo a honrar mais ainda a Jesus. 

Em sétimo lugar, elas nos dão uma idéia mais séria do pecado e aumentam o horror que lhe temos. Com efeito, as indulgências lembram-nos constantemente a verdade de que o castigo é devido mesmo ao pecado perdoado, que este castigo é terrível ainda mesmo que seja apenas por algum tempo, e que só é possível livrar-nos dele pelas satisfações de Jesus. 

Em oitavo lugar, elas nos mantêm em harmonia com o espírito da Igreja, o que é de suma importância para os que se esforçam por levar uma vida devota e caminham entre as dificuldades do ascetismo e da santidade interior. Depreciar as indulgências é um sinal de heresia, e o ódio que esta lhes vota é um indício de que o demônio as detesta, e isto mostra o valor do poder delas diante de Deus e da sua aceitação por parte d’Ele. Elas estão envolvidas em tantas particularidades da Igreja, desde a jurisdição da Santa Sé até à crença no Purgatório, nas boas obras, nos santos e na satisfação [das penas devidas ao pecado], que são, de certo modo, o sinal inconfundível da nossa ortodoxia [isto é, da nossa catolicidade]. A infeliz história dos erros que a Igreja sofreu a respeito da vida espiritual nos mostra que, para sermos verdadeiramente santos, devemos ser verdadeiramente católicos e católicos romanos, pois fora de Roma não pode haver nem catolicismo, nem santidade alguma. 

Além do que, as devoções indulgenciadas oferecem em si a seguinte vantagem: temos certeza de que são mais que aprovadas pela Igreja. Sabemos que no mundo numerosas almas piedosas as empregam todos os dias, e unindo-nos a elas participamos mais inteiramente da Comunhão dos Santos e da vida da Igreja, que constitui sua unidade. Por todas as razões que enunciei, o emprego das indulgências espiritualiza cada vez mais a nossa alma a aviva a nossa fé. Elas nos levam a rezar como quer a Igreja e sobre assuntos por ela indicados, e assim podemos alcançar muitos fins ao mesmo tempo. Pois pelo mesmo ato não somente rezamos, como fazemos ato de veneração às chaves da Igreja, honramos a Jesus, Sua Mãe e os Santos, evitamos o castigo temporal que nos é devido, ou, o que é ainda melhor, libertamos os mortos [do Purgatório] e assim glorificamos a Deus. Podemos ainda verificar que, ao percorrermos as devoções indulgenciadas, transferimos para o nosso espírito muita doutrina tocante, que serve de alimento à oração mental e a um amor cheio de reverência. 

Tomemos um exemplo. Não posso conceber que um homem seja espiritual se não tem o hábito de rezar o terço, que pode ser chamado a rainha das devoções indulgenciadas. Em primeiro lugar, considerai a importância do Rosário como sendo uma devoção própria da Igreja, imprimindo em nossa alma um caráter particularmente católico, conservando perpetuamente em nosso espírito a lembrança de Jesus e de Maria, e como sendo um precioso auxílio para alcançarmos a perseverança final, se o recitarmos com fidelidade, como no-lo provam diversas revelações. Considerai, em seguida, que São Domingos o instituiu em 1214, inspirado por uma visão, com o fim de combater a heresia, e considerai o êxito que o consagrou. (...) 

Nada desejaria dizer que pudesse restringir qualquer devoção. Todavia, considerando bem todas as coisas, quando a Igreja indulgenciou um tão grande número de orações e devoções, por que recorrer a outras orações vocais em vez de procurar as indulgenciadas?”

sábado, 17 de novembro de 2012

OS INDIFERENTES

Eis como dizia Corção*, face ao indiferente: 'o homem para quem o sim e o não tanto fazem, que se equilibra onde parecia impossível o equilíbrio, esse assombro enfim, tornou-se a coisa mais banal do universo. Está em todos os lugares e seu nome é legião. Para encontrá-lo basta abrir uma porta, atravessar uma rua, debruçar-se numa janela, atender um telefone'. Conceituação lapidar, definitiva. O indiferente é um assombro espantosamente banal nos tempos finais.

Da essência do ato de pensar, dos privilégios da reflexão e do discernimento, bastaria o bem e o mal, um caminho para Deus e o caminho para o nada, a opção entre a luz e as trevas, a busca da Verdade ou a imersão nas crenças mais bisonhas. Mas não. Os indiferentes conspurcam a ideia tão simples da dicotomia tão fácil: entre o bem e o mal, existe o mal no bem e o bem no mal. Entre o sim e o não, há o sim que aparenta ser o não e o não com a solicitude de um sim. Para que o mais ou o menos, se existe o mais ou menos? Entre o Céu e o Inferno, há que existir 'o bom lugar', o paraíso dos indolentes, o nirvana dos trôpegos,  o éden das almas tíbias e indiferentes.

O indiferente se extasia de um céu de brigadeiro. E se locupleta no inferno da música ou dos costumes profanos com a mesma volúpia e servidão. Tudo é perfeitamente admissível e igualmente passível de prosa e verso. Ecumenismo, direitos humanos, liberdade, democracia, livre pensar, tolerância, respeito às minorias são as salvaguardas e os dogmas a serem venerados, porque absolutamente dóceis e intercambiáveis como moeda universal, instrumentos de fácil percussão na retórica mundana, palavras de ordem cujo nome é legião. Nada de extremos, nada de rigidez de convicções, nada de regras e tradições utópicas, nada de se vangloriar de possuir 'a verdade', nada de sofrimentos inúteis e desgastes perfeitamente evitáveis, nada de posar de mártir de causas perdidas, nada de tudo, nada de nada. 

Os indiferentes dominam o mundo. E convertem a graça da vida na banalidade do viver. Estão nos carros, metrôs, e nos trens e aviões. Nas terras e mares, nas praças e ruas, nos mercados e nas confrarias. E vivem muito bem, e isso basta. Não há modo mais fácil e simples de servir ao mundo. E nem meio mais propício de atrair a cólera divina, pois se há uma coisa que causa repugnância ao Pai são as almas tíbias. Por que não há indiferentismo nenhum por trás do resfriamento espiritual das almas; muito pelo contrário, estão presentes, em todos os graus, as obsessões satânicas do inimigo da nossa salvação. Os indiferentes são apenas os (muitos) filhos bastardos de Caim.

* Gustavo Corção: 'Os indiferentes'.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

PORQUE É PRECISO JULGAR

É quase uma verdade de fé, para a esmagadora maioria dos católicos, que não devemos julgar nenhum dos nossos semelhantes, pois tal julgamento seria premissa absoluta de Deus. Baseados na citação bíblica do Evangelho de Mateus: ‘Não julgueis e não sereis julgados’ (Mt 7,1), torna-se verdade de fé o que não passa de um corolário da iniquidade. Pois, então, como considerar estes outros preceitos bíblicos:

‘Não sabeis que julgaremos os anjos? Quanto mais as pequenas questões desta vida!’ (I Cor 6,3).

‘O Senhor dizia: julgai segundo a verdadeira justiça; cada um de vós tenha bom coração e seja compassivo para com o seu irmão’ (Zc 7,9).

“Eles julgarão o povo todo o tempo.’ (Ex 18, 22).

‘Abre tua boca para pronunciar sentenças justas, faze justiça ao aflito e ao indigente.’ (Prov 31,9)

‘Não julgueis pela aparência, mas julgai conforme a justiça.’ (Jo 7,24)

Em primeiro lugar, a citação evangélica de Mateus tem endereço claro e definido: ‘não julgar’ implica essencialmente não formular julgamentos injustos, desonestos, parciais, temerários, maliciosos, covardes, mentirosos, simulados, tendenciosos,  manipulados. Mas qual a lupa protestante da livre interpretação, descontextualiza-se a mensagem e impõe-se a versão falsificada de que não se pode julgar os homens e suas ações.

Isto deveria ser evidente por princípio, uma vez que é obra de misericórdia corrigir quem se locupleta no erro e uma vez que tal correção exige a formulação de um julgamento de pessoas e de ações destas pessoas, pelo que se torna intrínseco a todo católico a prerrogativa de ‘julgar todas as coisas todo o tempo’, não em função do arbítrio ou do respeito humano, mas sob a única acepção de servir a Cristo e salvar as almas para Cristo. Armados de caridade fraterna, escudados nas palavras de vida eterna de Jesus Ressuscitado, no amor ao próximo e no amor ainda maior à Verdade de Deus, devemos julgar sempre e muito, pois o erro e a iniquidade se espalham como erva daninha na humanidade atual.

Deus nos deu, junto com o livre arbítrio, a graça de julgar e classificar, com zelo e clara distinção, o bem do mal, a virtude do pecado, a santificação da impiedade. E a ensinar e a difundir os ensinamentos de Cristo entre os homens, no mundo dos homens, de forma a corrigir os erros, impedir as injustiças, coibir o mal e combater a iniquidade em todos os nossos caminhos, a qualquer hora. Ai do católico que não o fizer, ai do católico que se calar diante do mal e da injustiça dos homens. Julgar, pois, com o santo julgamento dos justos, não é tarefa insensata à natureza humana, mas obra definitiva de misericórdia e de salvação.

DA VIDA ESPIRITUAL (34)



Não sei porque, Senhor, a morte deste quase desconhecido passou de repente pela minha vida. Quantas e quantas vezes, isto acontece por acaso, uma circunstância muito especial, um fio de conversa, uma coincidência qualquer... Se passou, Senhor, não foi em vão e é obra de Tua Vontade e, sendo assim, eu coloco no Coração de Vossa Infinita Misericórdia a salvação desta alma.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A BÍBLIA EXPLICADA (II)

O que são e quantos são os evangelhos canônicos e apócrifos?

Os evangelhos canônicos são aqueles reconhecidos formalmente pela Igreja Católica como subordinados a uma autêntica tradição apostólica e diretamente inspirados por Deus. São os quatro evangelhos transcritos nas Sagradas Escrituras, conforme proposto por Santo Irineu de Leão no final do século II e expressos como dogma de fé pelo Concílio de Trento (1545-1563): Marcos, Mateus, Lucas e João. Os textos destes evangelhos traduzem a própria vivência pessoal dos apóstolos com Jesus, expondo por escrito as obras e os ensinamentos do senhor, já consolidados por uma sólida transmissão oral pregada pelos próprios apóstolos ou por seus discípulos diretos (Marcos foi discípulo de São Pedro e Lucas o foi de São Paulo).

Os evangelhos apócrifos, ao contrário, são aqueles que, embora apresentados sob a autoria de algum dos apóstolos, não são postulados pela Igreja como expressões diretas da autêntica tradição apostólica. Em geral, tratam de referências da vida de Jesus já expostas nos evangelhos canônicos associadas a outras claramente divergentes destes ensinamentos fundamentais (por exemplo, o evangelho apócrifo de Tomé). Em outros casos, estes textos introduzem eventos e fatos não descritos nos evangelhos canônicos (por exemplo, os evangelhos apócrifos sobre a infância de Jesus). Outros ainda são fartamente heréticos, com forte conotação gnóstica ou esotérica (por exemplo, os evangelhos apócrifos procedentes de Nag Hammadi no Egito). São conhecidos mais de 50 evangelhos apócrifos.


O que são os evangelhos apócrifos de Nag Hammadi?

A chamada 'biblioteca de Nag Hammadi' é constituída por uma coleção de doze códices de papiro  descobertos em 1945 nas proximidades da cidade de Nag Hammadi, no Egito e atualmente conservados  no Museu Copta do Cairo. Estes códices contêm cerca de cinquenta obras escritas na língua copta – a língua egípcia falada pelos cristãos do Egito e escrita com caracteres gregos, sendo todas obras francamente de caráter herético e gnóstico (doutrinas já descritas e intensamente combatidas pelos Padres da Igreja). 


A rigor, tais obras não têm nenhuma correlação com os evangelhos propriamente ditos, uma vez que não apresentam textos narrativos sobre a vida de Jesus, mas apenas pseudo-revelações que Jesus teria feito, em caráter sectário e absolutamente secreto, a seus discípulos. Tais revelações incluem inserções de puro misticismo, inclusive de origem essencialmente pagã, envolvendo crenças como a de um deus menor e vingativo chamado Demiurgo e a da figura de Hermes Trimegisto, detentor do conhecimentos de segredos extraordinários.

O que significa 'Gnose'?

O termo 'gnose' vem da palavra grega 'gnosis', que significa conhecimento. Assim, certas verdades mais elevadas não poderiam ser captadas meramente pela inteligência, pelo estudo, pela observação das coisas criadas e nem mesmo pela revelação divina, mas seriam passíveis de domínio apenas por meio de iniciações, e por mecanismos esotéricos (do grego 'interior, secreto'). A salvação, para a gnose, ocorre por meio deste conhecimento de doutrinas secretas, reservadas apenas aos iniciados e envolvendo cerimônias e rituais que permitem o espírito libertar-se da matéria.

Com efeito, para a doutrina gnóstica, a criação seria o resultado de um enorme erro e não de um ato livre de Deus, fruto do seu amor infinito, que desejou que outras criaturas participassem de sua felicidade e de sua glória. Deus teria 'implodido' em partículas divinas, que teriam sido aprisionados na matéria, por uma ação do demônio, inimigo de Deus. A matéria seria má, por princípio, e o homem seria um ser dotado de uma partícula divina, seu espírito, aprisionado em um corpo mau, porque material. A libertação final do homem seria, então, fruto de uma busca permanente deste auto-conhecimento espiritual. Eis aí a essência da gnose, a grande tentação do homem gnóstico: apagar a sua contingência de criatura e aspirar, com desmedido orgulho, ser a sua própria divindade.


(Da obra 'Jesus Cristo e a Igreja' - Universidade de Navarra)