terça-feira, 24 de setembro de 2019

VERSUS: DISCERNIMENTO DOS ESPÍRITOS


OS SINAIS DO ESPÍRITO MAU

Ao contrário do espírito divino, o espírito diabólico conduz à exaltação do orgulho e, em seguida, lança a alma na confusão e no desespero, assim como ocorreu ao demônio, que pecou por orgulho e segue no desespero eterno e no ódio de Deus.

Para conhecer este espírito mal, é preciso portanto considerar sua influência no que diz respeito à mortificação, à humildade e à obediência e, em seguida, no que diz respeito às virtudes teologais. O espírito demoníaco não nos afasta sempre da mortificação; ele difere, assim, do espírito de natureza e, por vezes, até o contraria e conduz a uma mortificação exterior exagerada, visível a todos, que entretém o orgulho espiritual e enfraquece a saúde. Mas não inclina à mortificação interior da imaginação, do coração, da vontade própria e do julgamento próprio, ainda que estimule, por vezes, inspirando escrúpulos quanto à pequenos detalhes e laxismo quanto às coisas de maior importância, como os principais deveres de estado, por exemplo. Ele inspira assim a hipocrisia : 'jejuo duas vezes na semana' (Lc 18, 12).

Este espírito não nos conduz à humildade, mas nos engana pouco a pouco, para que nós nos estimemos mais do que devíamos, mais do que aos outros, com o objetivo de nos fazer rezar ao modo do fariseu: 'Graças te dou, ó Deus, porque não sou como os outros homens: ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano' (Lc 18, 11). Este orgulho espiritual é acompanhado de uma falsa humildade, do fato de confessarmos um pecado pessoal, para que os outros não nos acusem de uma falta ainda mais grave e nos considerem humildes. O espírito mal faz ainda com que confundamos a humildade com a timidez, que é filha do orgulho e teme o desprezo. Do mesmo modo, não engendra a obediência, mas a desobediência ou o espírito servil, conforme as circunstâncias.

Quanto à fé, o espírito mau não inclina nosso espírito a considerar no Evangelho o que é ao mesmo tempo mais simples e mais profundo, por exemplo, não nos faz dizer com atenção e devoção a oração dominical, meditar os mistérios do santo rosário, mas apenas nos interessa ao que é extraordinário e favorece a ostentação, como quando disse ao Salvador: 'Se és filho de Deus, lança-te daqui abaixo, porque está escrito que Deus mandou aos seus anjos que te guardem, e que te sustenham em suas mãos, para não magoares o teu pé em nenhuma pedra'. Ao que Jesus respondeu: 'Também foi dito: Não tentarás o Senhor teu Deus'.

O espírito mau, do mesmo modo, nos incita ao que é contrário à nossa vocação; por exemplo, leva um monge cartuxo a querer evangelizar os infiéis ou um missionário à vida solitária dos cartuxos. Ou ainda, no que diz respeito à devoção, inspira a rezar à revelia da liturgia, por exemplo, rezar a sexta-feira santa como se fosse Natal ou vice-versa. Do mesmo modo, nas coisas da fé, conduz a novidades dogmáticas, como, por exemplo, no tempo do modernismo, a ler os livros dos protestantes liberais sob pretexto de adaptar nossa fé ao pensamento moderno. 

Ou, ao contrário, se nossa inclinação natural está em sentido oposto, nos incita a um arcaísmo imoderado, para provocar o conflito entre católicos ; assim, levava os israelistas recém convertidos ao Cristianismo a voltar à lei mosaica; é contra esta tentação que foi escrita a Epístola aos Hebreus, onde está dito (Hb 3, 13): 'Exortai-vos uns aos outros todos os dias, para que nenhum de vós se endureça, seduzido pelo pecado'. Do mesmo modo, o espírito mau altera os dogmas: por exemplo, o da predestinação, quando surge no calvinismo; então se realiza o adágio: corruptio optimi pessima. A corrupção do melhor é a pior das coisas. 

O demônio conhece muito bem este provérbio e trabalha para a perversão da fé sobrenatural. Ele sabe, com efeito, que não há nada pior, nada de mais perigoso que o cristianismo falseado, que conserva uma certa aparência de verdade, e ele age, por vezes, como um falso Cristo antes de aparecer como Anticristo. Tal como existiu no pensamento de Lutero e Calvino (não nos protestantes de boa fé), o protestantismo é então alguma coisa de pior e de mais perigoso que o naturalismo, pois é mais sedutor e abusa ainda mais da sagrada Escritura. É verdade que aceita a Escritura, mas para um uso depravado.

O naturalismo prático e, em seguida, teórico, provém muitas vezes do espírito da natureza decaído, mas a pervertíssima corrupção dos dogmas sobrenaturais, como no calvinismo, vem do espírito do demônio. Alterar a fé divina é, portanto, podemos dizê-lo, utilizar-se de uma arma de grande precisão, não contra os inimigos, mas contra os próprios irmãos e contra si próprio – é um fratricídio e um suicídio. Assim se explica, em grande parte, a história da pseudo-Reforma quanto ao seu espírito, ainda que muitos protestantes estejam de boa fé, pelo fato de ignorarem o verdadeiro espírito do protestantismo.

Quanto à esperança, o espírito mau trabalha para fazer com que nossa esperança degenere em presunção; por exemplo, quer-se chegar rápido demais à santidade e não pouco a pouco subindo os degraus necessários, nem pela via da humildade e nem da abnegação. Ele inspira igualmente uma certa impaciência quanto à nós mesmos, uma vez que nossos defeitos parecem grandes demais. Por consequência, produz em nós a indignação no lugar da contrição, uma indignação que é filha do orgulho e contrária à contrição. Ora, a presunção conduz ao desespero, quando se verifica a impossibilidade de chegar por suas próprias forças ao fim visado: o bem árduo parece então quase inacessível – é a desesperança.

Quanto à caridade, o espírito mau favorece os simulacros que são como um falso diamante; assim, conforme as inclinações variadas e opostas de nossa natureza, ele inclina algumas a esta falsa caridade para com o próximo que é o sentimentalismo, com uma indulgência excessiva sob pretexto de misericórdia e de generosidade. Em outros engendra um falso zelo: queremos sempre corrigir os outros, mas não a nós mesmos e, vendo a aresta no olho de nosso irmão, não vemos a trave no nosso olho.

De tudo isto resulta o contrário da paz, ou seja, a discórdia. O homem conduzido por este espírito não pode suportar a contradição, não vê senão a si mesmo em sua ofuscante personalidade, e se coloca, inconscientemente, acima de todos os demais, como uma estátua sobre o seu pedestal. Se este homem cai em um pecado grave e manifesto que não pode esconder, ele se deixará vencer pela confusão, indignação, desespero e, enfim, pela cegueira do espírito e pelo endurecimento do coração. Antes desta falta, o demônio escondia as consequências desencorajantes do pecado e inspirava o relaxamento; agora, após a falta, fala da justiça inexorável de Deus, para nos conduzir ao desespero. É assim que forma as almas à sua imagem: após o arrebatamento do orgulho, vem o desespero.

Portanto, se alguém tem uma grande devoção sensível na oração, mas sai dela com maior amor próprio, julgando-se acima dos outros, sem obediência aos superiores, desprovido de simplicidade no que toca seu diretor espiritual, isto é sinal da presença do espírito mau na sua devoção sensível. A falta de humildade, obediência e caridade fraterna é o indício de que se está privado do espírito de Deus.


OS SINAIS DO ESPÍRITO DE DEUS

Estes sinais opõem-se aos do espírito da natureza e do espírito demoníaco. O espírito de Deus inclina à mortificação exterior, no que difere do espírito de natureza, mas à mortificação exterior regrada pela prudência cristã e pela obediência, e que não atrai a atenção para nós nem enfraquece a saúde. Este espírito nos ensina, por outro lado, que a mortificação exterior é coisa pequena, se não há, ao mesmo tempo, a mortificação da imaginação, da memória (lembrança dos erros que cometemos), do coração, da vontade própria e do julgamento próprio. Inspira igualmente a verdadeira humildade, que dispõe à perfeita obediência, nos impede preferirmos a nós mesmos que aos outros, não teme o menosprezo, guarda silêncio sobre nossas qualidades; no entanto, ela não os nega, se existem, mas rende glória a Deus por elas.

O espírito de Deus alimenta nossa fé com o que há de mais simples e profundo no Evangelho como, por exemplo, o Pai Nosso, fazendo-nos fugir às novidades pela fidelidade à tradição. Esta verdadeira fé sobrenatural nos revela a presença de Deus nos nossos superiores; assim, aperfeiçoa-se o espírito de fé, porque tudo julgamos à luz dessa virtude. O espírito de Deus torna a esperança firme, preservando-a da presunção; diz-nos, por exemplo: é preciso desejar ardentemente a água viva da oração, que conseguimos pela via da humildade, da abnegação e da cruz. Por conseguinte, dá-nos uma santa indiferença pelo sucesso humano.

O espírito de Deus aumenta o fervor da caridade, dá o zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas, o esquecimento de si mesmo. Assim, pensamos antes de tudo em Deus, depois em nosso benefício. Inclina igualmente ao amor eficaz ao próximo; nos ensina que a caridade fraterna é o principal indício do progresso no amor de Deus. Impede o julgamento temerário, o escândalo sem motivo. Inspira o zelo, certamente, mas um zelo paciente, doce e prudente, que edifica pela oração e pelo exemplo e não se irrita pelas repreensões intempestivas. Produz uma grande paciência nas adversidades, o amor pela cruz, o amor pelos inimigos. Propicia a paz com Deus, com os outros, com nós mesmos e, frequentemente, a paz interior.

Se ocorre uma queda acidental, então o espírito de Deus nos fala em misericórdia. São Paulo diz (Gl 5, 22-23): 'O fruto do Espírito é a caridade, o gozo, a paz, a paciência, a benignidade, a bondade, a longanimidade, a mansidão, a fidelidade, a modéstia, a continência, a castidade', com a humildade e a obediência. Se se trata de um ato particular, é mais difícil discernir se provém ou não de Deus. No entanto, se, encontrando-se antes na tristeza, a alma reza e recebe uma consolação profunda, é o sinal da visita de Deus, se esta consolação incita à obediência humilde e à caridade fraterna. Mas é preciso distinguir o primeiro momento da consolação do tempo seguinte, onde, por vezes, a alma julga por si mesma sobre esta consolação e o pode fazer conforme seu amor próprio.

Haverá presunção se desejar graças propriamente extraordinárias, como visões ou palavras interiores; mas se a alma vive e persevera na humildade, abnegação e recolhimento quase contínuo, não é raro que, em virtude dos sete dons do Espírito Santo, ela receba inspirações pelas quais se conciliam a simplicidade e a prudência, a humildade e o zelo, a firmeza e a doçura. Esta conciliação e esta harmonia constituem sinal claríssimo do espírito de Deus. O segredo, o silêncio e a cruz são absolutamente necessários àqueles a quem Deus conduz verdadeiramente por vias extraordinárias e estes não as devem manifestar senão ao seu pai espiritual; caso contrário, há grande perigo de orgulho espiritual.

Particularmente perigosa é a disposição de se comprazer nas revelações, de forma dogmática ou profética; pois elas se acompanham facilmente de ilusões e, mesmo se a primeira inspiração vem de Deus, frequentemente vem a ela se acrescentar uma interpretação humana, mais ou menos errônea, geralmente compreendida de modo extremamente material. Enfim, o espírito que procura êxtases e revelações, se não aperfeiçoa os costumes e a vida e não faz o homem desconfiar-se de si mesmo, é um espírito de ilusão, sobretudo se tudo isto impede a realização do dever de estado e engendra discórdias. Os sinais do espírito de Deus são, portanto, a obediência humilde, a caridade fraterna, a paz e a alegria espiritual radiantes.

(Pe. Garrigou-Lagrange)