sábado, 30 de abril de 2016

VERSUS: O MAIOR E O MENOR DO HOMEM

Nós somos muito e não somos nada. Não há nada que possa ser maior que o homem, e nada que lhe possa ser menor. Não há nada maior quando se olha a alma do homem e nada menor quando se olha o nosso corpo. E quantos se ocupam do corpo como se só tivessem isso do que cuidar. Saberão, por acaso, que é exatamente isso o que só têm a desprezar?

(Cura D'Ars)




sexta-feira, 29 de abril de 2016

29 DE ABRIL - SANTA CATARINA DE SENA


Santa Catarina de Sena nasceu Caterina di Giacomo di Benincasa na cidade de Sena / Itália, em 25 de março de 1347, de família humilde e numerosa. Desde tenra idade foi cumulada pela Providência Divina de visões místicas e dons sobrenaturais, que incluíram mais tarde a manifestação de estigmas semelhantes aos de Nosso Senhor. Ofereceu-se a Deus desde a infância e, ainda muito jovem, já havia recebido o hábito de penitente da Ordem Terceira de São Domingos.

Reclusa em sua cela, em orações e jejuns constantes, Catarina passou por inúmeras experiências sobrenaturais, que culminaram com a celebração de suas núpcias místicas com o Senhor, na cela de sua reclusão, nas vésperas da Quarta-Feira de Cinzas do ano de 1367. Acostumada a uma vida de rígida abstinência, a comunhão era, muitas vezes, o seu único alimento por vários dias. Mas, segundo o seu confessor e primeiro biógrafo, Raimundo de Cápua, Jesus vai demandá-la a abandonar a vida reclusa e a dedicar-se totalmente a uma missão pública em favor da Igreja.

A Europa à época de Santa Catarina estava marcada pela peste, pela violência e por uma grave crise da Igreja. O papado estava recolhido na cidade francesa de Avignon, sob influência política de diversos reinos e ducados. Catarina tornou-se, então, a servidora humilde de todos, cuidou dos doentes, pregou um apostolado intensivo e lutou incessantemente pelo restabelecimento da paz, mediante visitas pessoais ou envio de cartas a diferentes políticos e governantes, conclamando o próprio papa - Gregório XI - a retomar o seu pontificado a partir de Roma. 

E o retorno do papa a Roma ocorreu em janeiro de 1377. Neste período, tem início os primeiros registros das conversações entre a sua alma e Deus, mais tarde transcritas na obra hoje conhecida como 'Diálogo'. Mas a paz na Igreja não seria longa, sendo marcada por novas revoltas e a morte em seguida de Gregório XI. Em Roma, os cardeais elegem Urbano VI; em Avignon, alguns cardeais franceses dão origem ao Grande Cisma do Ocidente, não aceitando o novo papa de Roma e elegendo o antipapa Clemente VII. 

A angústia e aflição diante destes fatos e da incerteza sobre o futuro da Igreja a acompanhariam até à sua morte prematura, ocorrida em 29 de abril de 1380, aos 33 anos de idade. Sua cabeça foi separada do corpo e é venerada na Basílica de San Domenico em Siena e o corpo encontra-se na Igreja de Santa Maria Sopra Minerva, em Roma. Catarina foi canonizada em 1461 pelo papa Pio II e declarada 'doutora da Igreja' pelo papa Paulo VI em 1970, apenas alguns dias depois da concessão da primeira e igual honraria dada à Santa Teresa de Ávila.

(cabeça preservada e túmulo de Santa Catarina de Sena)

quarta-feira, 27 de abril de 2016

DA ESCRAVIDÃO DO AMOR À ESCRAVA DO SENHOR

Há três espécies de escravidão: por natureza, por constrangimento e por livre vontade. Por natureza, todas as criaturas são escravas de Deus: Domini est terra et plenitudo eius (Sl 23, 1). Os demônios e os réprobos são escravos por constrangimento; e os justos e os santos o são por livre e espontânea vontade. A escravidão voluntária é a mais perfeita, a mais gloriosa aos olhos de Deus, que olha o coração (1Rs 16, 7), que pede o coração (Prov 23, 26) e que é chamado o Deus do coração (Sl 72, 26) ou da vontade amorosa, porque, por esta escravidão, escolhe-se, sobre todas as coisas, a Deus e seu serviço, ainda quando não o obriga a natureza.

Só a escravidão, entre os homens, põe uma pessoa na posse e dependência completa de outra. Nada há, do mesmo modo, que mais absolutamente nos faça pertencer a Jesus Cristo e a sua Mãe Santíssima do que a escravidão voluntária, conforme o exemplo do próprio Jesus Cristo, que, por nosso amor, tomou a forma de escravo: Formam servi accipiens (Fp 2, 7), e da Santíssima Virgem, que se declarou a 'escrava do Senhor' (Lc 1, 38).

...

Digo que devemos pertencer a Jesus Cristo e servi-lo, não só como servos mercenários, mas como escravos amorosos, que, por efeito de um grande amor, se dedicam a servi-lo como escravos, pela honra exclusiva de lhe pertencer. Antes do batismo, éramos escravos do demônio; o batismo nos fez escravos de Jesus Cristo. Importa, pois, que os cristãos sejam escravos ou do demônio ou de Jesus Cristo.

...

O que digo absolutamente de Jesus Cristo, digo-o também da Virgem Maria, pois Jesus Cristo, escolhendo-a para sua companheira inseparável na vida, na morte, na glória, em seu poder no céu e na terra, deu-lhe pela graça, relativamente à sua majestade, os mesmos direitos e privilégios que ele possui por natureza. Quidquid Deo convenit per naturam, Mariae convenit per gratiam – 'Tudo que convém a Deus pela natureza, convém a Maria pela graça', dizem os santos. Assim, conforme este ensinamento, pois que ambos têm a mesma vontade e o mesmo poder, têm também os mesmos súditos, servos e escravos.


ORAÇÃO A MARIA
 (para seus fiéis escravos)

Ave, Maria, Filha bem-amada do Pai eterno; ave, Maria, Mãe admirável do Filho; ave, Maria, Esposa fidelíssima do Espírito Santo; ave, Maria, minha querida Mãe, minha amável Senhora e poderosa soberana; ave, minha alegria, minha glória, meu coração e minha alma! Vos me pertenceis toda por misericórdia, e eu vos pertença toda por justiça; mas não vos pertenço bastante ainda; de novo me dou a vós todo inteiro, na qualidade de escravo perpétuo, sem nada reservar para mim ou para outrem. 

Se vedes em mim qualquer coisa que não vos pertença, eu vos suplico de tirá-la agora, e de vos tornar Senhora absoluta de tudo o que possuo; de destruir e desarraigar e aniquilar tudo o que desagrada a Deus; e de plantar tudo e promover e operar tudo o que vos agradar. Que a luz de vossa fé dissipe as trevas de meu espírito; que vossa humildade profunda tome o lugar de meu orgulho; que vossa contemplação sublime suste as distrações de minha imaginação desregrada; que a vossa vista contínua de Deus encha a minha memória de sua presença; que o incêndio de vosso coração dilate e abrase a tibieza e frieza do meu; que vossas virtudes substituam os meus pecados; que vossos méritos sejam o meu ornamento e suplemento perante Deus. 

Enfim, minha querida e bem-amada Mãe, fazei, se possível for, que não tenha outro espírito senão o vosso, para conhecer Jesus Cristo e suas divinas vontades; que não tenha outra alma senão a vossa, para louvar e glorificar o Senhor; que não tenha outro coração senão o vosso, para amar a Deus com um amor puro e ardente como vós. Não vos peço visões ou revelações ou gozos ou prazeres, nem mesmo espirituais. E' privilégio vosso ver claramente, sem trevas; gozar plenamente, sem amargor; triunfar gloriosamente à direita de vosso Filho, no céu, sem humilhação alguma; dominar absolutamente sobre os anjos, os homens e os demônios, sem resistência, e, enfim, de dispor de todos os bens de Deus, sem restrição alguma. 

Eis, Maria, Mãe de Deus, a melhor parte que o Senhor vos deu e que não vos será tirada; e isto me deleita sobremaneira. Por minha parte, não quero nesta terra senão o que vós tivestes, a saber: crer puramente, sem nada gozar ou ver; sofrer alegremente, sem consolação de criaturas; morrer continuamente a mim mesmo, sem relaxamento; e trabalhar resolutamente, até à morte, por vós, sem interesse algum, como o mais vil dos escravos. A única graça que vos peço, por pura misericórdia, é que, a todos os dias e momentos de minha vida, eu diga três vezes Amém. Assim seja, a tudo que fizestes na terra, enquanto nela vivestes. Assim seja, a tudo que fazeis agora no céu. Assim seja, a tudo que operais em minha alma, a fim de que nela só vós estejais para glorificar plenamente a Jesus em mim, no tempo e na eternidade. Assim seja.

(Excertos da obra 'Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem Maria', de São Luís Maria Grignion de Montfort)

terça-feira, 26 de abril de 2016

15 DITOS ESPIRITUAIS DE SÃO JOÃO CRISÓSTOMO


1. O homem é mais precioso aos olhos de Deus do que a criação inteira: é para ele que existem o céu e a terra e o mar e a totalidade da criação, e é à salvação dele que Deus atribuiu tanta importância que nem sequer poupou seu Filho único em seu favor. Pois Deus não cessou de tudo empreender para fazer o homem subir até Ele e fazê-lo sentar-se à sua direita.

2. Não te afaste da Igreja: nada é mais forte do que ela. Ela é a tua esperança, o teu refúgio. Ela é mais alta que o céu e mais vasta que a terra. Ela nunca envelhece.

3. Pedro, na verdade, ficou para nós como a pedra sólida sobre a qual se apoia a fé e sobre a qual está edificada a Igreja. Tendo confessado ser Cristo o Filho de Deus vivo, foi-lhe dado ouvir: 'Sobre esta pedra – a da sólida fé – edificarei a minha Igreja' (Mt 16,18). Tornou-se, enfim, Pedro, o alicerce firme e fundamento da Casa de Deus, quando, após negar a Cristo e cair em si, foi buscado pelo Senhor e por ele honrado com as palavras: 'apascenta as minhas ovelhas'(Jo 21,15). Dizendo isto, o Senhor nos estimulou à conversão, e também a que de novo se edificasse solidamente sobre Pedro aquela fé, a de que ninguém perde a vida e a salvação, neste mundo, quando faz penitência sincera e se corrige de seus pecados.

4. Vais participar da eucaristia? Então, não humilhes teu irmão. Não desprezes o faminto. Tu fazes memória de Cristo e desprezas o pobre? Tu não ficas horrorizado? Bebeste o Sangue do Senhor e não reconheces teu irmão? Ainda que o tenhas desconhecido antes, deves reconhecê-lo nesta mesa. Tu, que recebeste o pão da vida, não faças obra de morte.

5. A ajuda aos pobres é mais importante que o jejum e a virgindade, pois nos torna a todos o povo de Jesus Cristo.

6. Onde existe a cólera aí não habita o Espírito Santo.

7. Não é absurdo pores tanto cuidado nas coisas do corpo, a ponto de já desde muitos dias antes da festa preparares uma roupa belíssima, e te adornares e embelezares de todas as maneiras possíveis, e, no entanto, não tomares nenhum cuidado com a tua alma, abandonada, suja, esquálida, consumida de fome?

8. Nada vale tanto como a oração. Ela torna possível aquilo que é impossível, fácil o que é difícil. É impossível que o homem que reza continue pecando.

9. Nada te pode fazer tão imitador de Cristo como a preocupação pelos outros. Mesmo que jejues, mesmo que durmas no chão, mesmo que, por assim dizer, te mates, se não te preocupas com o próximo, pouca coisa fizeste, muito ainda distas da imagem do Senhor.

10. Qual proveito pode ter Jesus, se o seu altar está coberto de vasos de ouro, enquanto ele próprio morre de fome nas pessoas dos pobres?

11. Não há diferença alguma em dar ao Senhor e dar ao pobre, pois Ele mesmo disse: ‘quem dá a estes pequenos é a mim que dá'.

12. O homem mais poderoso é o que reza, porque se faz participante do poder de Deus.

13. A oração nos acostuma a falar com Deus.

14. Quando o espiritual nos chama, não há ocupação alguma que seja necessária.

15. Quem é humilde é útil a si e aos outros.

domingo, 24 de abril de 2016

O NOVO MANDAMENTO

Páginas do Evangelho - Quinto Domingo da Páscoa


Deus, em sua infinita misericórdia, destinou ao homem, não apenas a plenitude de uma felicidade puramente natural mas, muito mais que isso, por desígnios imensuráveis à condição humana, a plenitude da eterna felicidade com Ele. E, para nos tornar co-participantes de sua glória, nos escolheu, um a um, desde toda a eternidade, como criaturas humanas privilegiadas e especiais, moldadas pelo infinito amor do divino intelecto. Glória aos homens bem-aventurados que, nascidos e criados pelo infinito amor, foram e serão redimidos pelo amor de Cristo para toda a eternidade!

Neste Quinto Domingo da Páscoa, somos chamados a vivenciar este amor de Deus em plenitude. Jesus encontra-se no Cenáculo, pouco antes de sua ida ao Horto das Oliveiras e da sua prisão e morte na cruz. E acaba de revelar aos seus discípulos amados, mais uma vez, a identidade do amor divino entre Pai e Filho, regida pelo Espírito Santo: 'Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele' (Jo 13, 31). Do amor intrínseco à Santíssima Trindade, medida infinita do amor sem medidas, Jesus vai nos dar o princípio do amor humano verdadeiro e recíproco ao amor divino: 'Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros' (Jo 13, 34). 

Sim, como Cristo nos amou. Na nossa impossibilidade humana de amar como Cristo nos ama, isso significa amar sem rodeios, amar sem vanglória, amar sem zelos de gratidão, amar de forma despojada e sincera aos que nos amam e aos que não nos amam, a quem não conhecemos, a quem apenas tangenciamos por um momento na vida, a todos os homem criados pelos desígnios imensuráveis do intelecto divino, à sombra e imersos na dimensão do infinito amor de Cristo por nós.

Nesta proposição distorcida e acanhada do amor divino, o amor humano se projeta a alturas inimagináveis de santificação, e expressa a sua identificação incisiva no projeto de redenção de Cristo: 'Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros' (Jo 13, 35). Eis aí a essência do novo mandamento: amar, com igual despojamento, toda a dimensão da humanidade pecadora, a exemplo de um Deus que se entregou à morte de cruz para nos redimir da morte e mostrar que o verdadeiro amor não tem limites nem medida alguma. 

sábado, 23 de abril de 2016

OS FRUTOS DA GRAÇA

Tudo se renova em nós desde que encontremos no Filho de Deus uma juventude eterna. São João dá-nos a certeza: com o seu olhar de águia, olha para a fonte de toda a luz e diz-nos: 'A vida manifestou-se e nós vimo-la, e damos dela testemunho, e vos anunciamos esta vida eterna, que estava no Pai e nos aparecem' (I Jo 1 ,2). O discípulo amado comunica-nos o que viu com palavras simples e transparentes: dá-nos parte da verdade essencial, e todo aquele que vive dela vê abrir-se o caminho que leva às profundidades de Deus. 

As circunstâncias deste mundo só nos fazem parar se deixarmos de atentar no essencial. A razão humana, incapaz de se concentrar no único bem necessário às nossas almas resgatadas, não pode iluminar os caminhos interiores: só a fé os descobre, numa confissão sincera da nossa total impotência. A humildade fiel faz brotar todas as fontes da graça. Desde o momento em que deixamos de lhe vedar a entrada na nossa alma pelo pecado, a claridade divina irrompe por todo o nosso ser: a sua medida não é a mesma que a nossa, e a sua liberdade infinitamente generosa é o segredo de Deus. 'Eu terei misericórdia com quem me aprouver ter misericórdia; e terei piedade de quem me aprouver ter piedade' (Rm 9, 15) e 'Deixei que me encontrassem os que não me procuravam; mostrei-me aos que não me buscavam' (Rm 9, 20).

Porque foi que Ele nos escolheu, porque foi que nos preferiu a milhões de outras pessoas? Esta graça só pode ser o sinal de um amor imenso: 'Foi por amor que ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, por sua livre vontade' (Ef 1, 5). Este Pai que nos deu o Seu Filho poderá na verdade recusar-nos alguma coisa? 'O que não poupou nem o seu próprio Filho, mas por nós todos o entregou à morte; como não nos dará também com ele todas as coisas?' (Rm 8, 32).

O Filho ofereceu o seu sangue e a sua vida: poderia porventura dar-nos prova mais perfeita do seu amor? E entre os bens do seu próprio coração deu-nos a sua Mãe bem-amada, aquela que o anjo louvou pela sua fé, para que ela nos transmitisse todas as riquezas da graça. E apenas nos pede em troca que acreditemos nEle e no Pai, que acreditemos na virtude do seu preciosíssimo sangue derramado por nós, no valor dos seus sacramentos, na vida da Igreja, sua esposa, e no poder da oração: 'Se pedirdes a meu Pai alguma coisa, em meu nome, Ele vo-la dará; pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja perfeita' (Jo 16, 23-24).

Por mais fracos e miseráveis que sejamos, temos um caminho aberto e seguro; para curar a nossa alma, é-nos oferecido um remédio sempre eficaz: a oração. Deus conhece as nossas necessidades, mas espera de nós o pedido humilde e a imploração do seu socorro. Precisamos de orar! Não como uma torrente de palavras, mas com o mais simples impulso interior: invocar o nome de Deus com confiança durante o trabalho cotidiano pode ser o suficiente. O que importa é a vontade filial de nos apoiarmos no Pai e o esforço suavemente insistente para elevar para Ele uma oração cheia de fé: esta perseverança toca infalivelmente o coração de Deus: 'Pedi e recebereis procurai e encontrareis; batei e abrir-se-vos-á' (Mt 7, 8). 

Nada resiste à alma que confia no amor do Pai: Ele próprio deve ceder à esperança fiel, ao abandono que invoca a sua bondade infinita. O próprio Espírito nos inspira esta conduta e nos revela estes segredos de poder e de amor: 'É Deus que opera tudo em todos: é um só e o mesmo Espírito que opera estes dons, repartindo a cada um como quer' (I Cor 12, 6-11). Ele não fala em feitos sobre-humanos nem em cuidados torturantes, mas em recolhimento, em verdade interior, em humildade e doçura, e principalmente em confiança e abandono filial: 'Não vos aflijais, pois... o vosso Pai celeste conhece as vossas necessidades. Buscai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o resto vos será dado por acréscimo' (Mt 6, 31-33).

A timidez espiritual, forma insidiosa e disfarçada do amor-próprio, só é desmascarada e repelida pela luz da graça. O despeito de nada poder nem valer coisa nenhuma transforma-se em gratidão: torna-se evidente que devemos entregar-nos ao próprio Deus. Entramos assim nas relações perfeitas que devem unir a criatura perdida e o Salvador que a encontra e a resgata: somos beneficiários sem mérito nenhum da nossa parte, enquanto Ele é o doador e o dom inestimável: 'Que tens tu que não recebesses? E se o recebeste, porque te glorias como se o não tiveras recebido?' (I Cor 4, 7).

O nosso vil ardor em procurar a consideração e as boas graças dos homens tem como fonte a nossa falta de interesse pelas maravilhas que a graça quer operar em nós e a nossa cegueira perante a dignidade de filhos de Deus. O ciúme e a ambição que envenenam a vida do homem não têm outra raiz senão o desconhecimento dos seus privilégios divinos: o orgulho e a vaidade não se apoiam num apreço exagerado, mas num apreço irrisoriamente insuficiente por aquilo que é nosso, se o quisermos aceitar. Há um sentimento de inferioridade que é um insulto para Deus e um grave perigo para a alma. 

A psicanálise fala do recalcamento dos instintos mas desconhece a recusa das inspirações divinas, cujos efeitos são infinitamente mais nocivos para o ser racional. É este complexo que leva a alma a dobrar-se sobre o mundo material, depois sobre si mesma e, por fim, a atrofiar-se. Urge arrancar esse germe da morte que é o desprezo do nosso verdadeiro destino e do dom de Deus: 'Despojai-vos sem demora da vossa vida passada, do homem velho corrompido pelas paixões enganadoras; renovai-vos no espírito do vosso entendimento: revesti-vos do homem novo, criado segundo Deus na justiça e na santidade verdadeiras' (Ef 4, 22-24).

Devemos obedecer e submeter-nos: é a lei de toda a criatura enquanto não está incluída na ordem da graça, mas a mensagem de salvação que nos é dirigida é o remédio para todas as formas de miséria. Aprendamos a viver segundo o exemplo do Espírito: se isso parece uma escravatura aos homens que não conhecem a chave do seu ser, nós sabemos que é nisso que consiste a mais pura liberdade: 'Não recebais em vão a graça de Deus, pois Ele diz: Eu te ouvi no tempo aceitável e te ajudei no dia da salvação' (II Cor 6, 2).

(Excertos da obra 'Intimidade com Deus', de um cartuxo anônimo)

sexta-feira, 22 de abril de 2016

SERMÕES DO CURA D'ARS (V)

SOBRE O AMOR DE DEUS

O nosso corpo é um vaso de corrupção; é para a morte e para os vermes, tão só... E, entretanto nós nos aplicamos a satisfazê-lo antes que a enriquecer a nossa alma, que é tão grande que nada se pode imaginar de maior: não, nada, nada. Porquanto vemos que Deus, premido pelo ardor de sua caridade, não nos quis criar semelhantes aos animais; criou-nos à sua imagem e semelhança, vedes! Ó como o homem é grande!

O homem criado por amor não pode viver sem amor: ou ama a Deus, ou se ama e ama o mundo. Vede, meus filhos é a fé que falta. Quando o homem não tem fé, é cego. Aquele que não vê não conhece; o que não conhece não ama; o que não ama a Deus ama-se a si próprio e ao mesmo tempo ama os seus prazeres. Apega o coração a coisas que passam como fumo. Não pode conhecer nem a verdade nem bem algum; só pode conhecer a mentira porque não tem a luz; está na névoa. Se tivesse a luz, veria bem que tudo o que ele ama só lhe pode dar a morte eterna; é um antegozo do inferno.

Fora de Deus, como vedes, meus filhos, nada é sólido, nada, nada! Se é a vida, passa; se é a fortuna, desmorona-se; se é a família, é destruída; se é a reputação, é atacada. Nós vamos como o vento. Tudo passa com velocidade, tudo se precipita. Ah! Meu Deus, meu Deus! Como são, pois, para lastimar esses que põem o seu afeto em todas essas coisas! Põem-no, porque se amam demasiado; mas não se amam com amor razoável; amam-se com o amor de si mesmos e do mundo, procurando-se e procurando as criaturas mais do que a Deus. É por isto que nunca estão contentes, nunca tranquilos; estão sempre transtornados.

Vedes, meus filhos, o bom cristão percorre o caminho deste mundo montado num belo carro de triunfo; esse carro é puxado pelos anjos, e é Nosso Senhor quem o conduz; ao passo que o pobre pecador é atrelado ao carro da vida, e o demônio, que está na direção, o força a avançar a largas chicotadas.

Meus filhos, os três atos de fé, de esperança e de caridade encerram toda a felicidade do homem na terra. Pela fé nós cremos aquilo que Deus nos prometeu, cremos que o havemos de ver um dia, que o possuiremos, que estaremos eternamente com ele no Céu. Pela esperança guardamos o efeito dessas promessas: esperamos que seremos recompensados de todas as nossas boas ações, de todos os nossos bons pensamentos, de todos os nossos bons desejos; pois Deus leva em conta mesmo os bons desejos. Que mais é preciso para ser feliz?

No Céu, a fé e a esperança não existirão mais; porquanto as névoas que nos obscurecem a razão serão dissipadas. O nosso espírito terá a inteligência das coisas que lhe são ocultas neste mundo. Não esperaremos mais nada, visto que teremos tudo. Ninguém espera adquirir um tesouro que possui. Mas o amor! Ó seremos inebriados dele, seremos afogados, perdidos nesse oceano de amor divino, aniquilados nessa imensa caridade do Coração de Jesus! Por isto a caridade é um antegozo do Céu. Se soubéssemos compreendê-la, senti-la, saboreá-la, como seríamos felizes! O que faz que sejamos infelizes é não amarmos a Deus.

Quando dizemos: 'Meu Deus, eu creio! Creio firmemente, isto é, sem a menor dúvida, sem a menor hesitação...' Se nos compenetrássemos destas palavras: 'Creio firmemente que estais presente em toda parte, que me vedes, que estou debaixo dos Vossos olhos, que um dia Vos verei claramente eu próprio, que gozarei de todos os bens que me haveis prometido! Meu Deus, espero que me recompenseis de tudo o que eu tiver feito para Vos agradar! Meu Deus, eu Vos amo! Tenho um coração para vos amar!" Como este ato de fé, que é também um ato de amor, bastaria para tudo! Se compreendêssemos a ventura que temos de poder amar a Deus, ficaríamos imóveis no êxtase...

Se um príncipe, um imperador, fizesse comparecer perante si um de seus súditos e lhe dissesse: 'Quero fazer a tua felicidade; fica comigo, goza de todos os meus bens; mas cuida de não me desagradares em tudo o que for justo': que cuidado, que ardor esse súdito não poria em satisfazer o seu príncipe! Pois bem! Deus faz-nos os mesmos oferecimentos e nós não nos preocupamos com a sua amizade e não fazemos nenhum caso das suas promessas... Como é possível?

(Excertos da obra 'Pequeno Catecismo', do Cura D'Ars)

quinta-feira, 21 de abril de 2016

DOZE GRAUS DE HUMILDADE, DOZE GRAUS DE SOBERBA...

Os Doze Graus da Humildade

I - Abster-se por temor a Deus a todo o momento de qualquer pecado.

II - Não amar a própria vontade.

III - Submeter-se aos superiores com toda a obediência.

IV - Abraçar por obediência e pacientemente as coisas ásperas e duras.

V - Confessar os seus pecados.

VI - Julgar-se indigno e inútil para tudo.

VII - Reconhecer-se como o mais humilde de todos.

VIII - Não sair da norma comum do mosteiro.

IX - Esperar ser questionado para falar.

X - Não ser de riso fácil.

XI - Expressar-se com parcimônia e judiciosamente sem erguer a voz.

XII - Mostrar sempre humildade no coração e no corpo, com os olhos no chão.


Os Doze Graus da Soberba

I - A curiosidade que lança os olhos e demais sentidos a coisas que não lhe interessam.

II - A ligeireza de espírito que se manifesta na indiscrição de palavras, ora tristes, ora alegres.

III - A alegria tonta que estala em riso ligeiro.

IV - A jactância que se torna patente ao muito falar.

V - A singularidade que tudo procura para a sua própria glória.

VI - A arrogância pelo que um se crê mais santo que os outros.

VII - A presunção de quem se intromete em tudo.

VIII - A desculpa para os pecados.

IX - A confissão fingida, que se descobre quando se lhe manda fazer coisas ásperas e duras.

X - A rebelião contra o Mestre e os Irmãos.

XI - A liberdade de pecar.

XII - O costume de pecar.

(São Bernardo de Claraval)

terça-feira, 19 de abril de 2016

ORAÇÃO DE SÃO PATRÍCIO


Levanto-me, neste dia que amanhece,
Por uma grande força, pela invocação da Trindade,
Pela fé na Tríade,
Pela afirmação da unidade
Do Criador da Criação.

Levanto-me neste dia que amanhece,
Pela força do nascimento de Cristo em Seu batismo,
Pela força da crucificação e do sepultamento,
Pela força da ressurreição e ascensão,
Pela força da descida para o Julgamento Final.

Levanto-me, neste dia que amanhece,
Pela força do amor dos Querubins,
Em obediência aos Anjos,
A serviço dos Arcanjos,
Pela esperança da ressurreição e da recompensa,
Pelas orações dos Patriarcas,
Pelas previsões dos Profetas,
Pela pregação dos Apóstolos
Pela fé dos Confessores, 
Pela inocência das Virgens santas,
Pelos atos dos Bem-aventurados.

Levanto-me neste dia que amanhece,
Pela força do céu:
Luz do sol,
Clarão da lua,
Esplendor do fogo,
Pressa do relâmpago,
Presteza do vento,
Profundeza dos mares,
Firmeza da terra,
Solidez da rocha.

Levanto-me neste dia que amanhece,
Pela força de Deus a me empurrar,
Pela força de Deus a me amparar,
Pela sabedoria de Deus a me guiar,
Pelo olhar de Deus a vigiar meu caminho,
Pelo ouvido de Deus a me escutar,
Pela palavra de Deus em mim falar,
Pela mão de Deus a me guardar,
Pelo caminho de Deus à minha frente,
Pelo escudo de Deus que me protege,
Pela hóstia de Deus que me salva,
Das armadilhas do demônio,
Das tentações do vício,
De todos que me desejam mal,
Longe e perto de mim,
Agindo só ou em grupo.

Conclamo, hoje, tais forças a me protegerem contra o mal,
Contra qualquer força cruel que ameace meu corpo e minha alma,
Contra a encantação de falsos profetas,
Contra as leis negras do paganismo,
Contra as leis falsas dos hereges,
Contra a arte da idolatria,
Contra feitiços de bruxas e magos,
Contra saberes que corrompem o corpo e a alma.

Cristo guarde-me hoje,
Contra veneno, contra fogo,
Contra afogamento, contra ferimento,
Para que eu possa receber e desfrutar a recompensa.
Cristo comigo, Cristo à minha frente, Cristo atrás de mim,
Cristo em mim, Cristo embaixo de mim, Cristo acima de mim,
Cristo à minha direita, Cristo à minha esquerda,
Cristo ao me deitar,
Cristo ao me sentar,
Cristo ao me levantar,
Cristo no coração de todos os que pensarem em mim,
Cristo na boca de todos que falarem em mim,
Cristo em todos os olhos que me virem,
Cristo em todos os ouvidos que me ouvirem.

Levanto-me, neste dia que amanhece,
Por uma grande força, pela invocação da Trindade,
Pela fé na Tríade,
Pela afirmação da Unidade,
Pelo Criador da Criação.

(a ser rezada pela manhã)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

DO SANGUE E DA ÁGUA DO LADO DE CRISTO

Se quisermos entender o poder do sangue de Cristo, devemos voltar à antiga narração da sua prefiguração no Egito: 'Sacrifica um cordeiro sem mancha', ordenou Moisés, 'e asperge tuas portas com o seu sangue'. Se lhe perguntássemos o que ele quis dizer, e como o sangue de um ser irracional poderia possivelmente salvar os homens providos de razão, sua resposta seria que o poder de salvar não reside no sangue em si, mas no fato de que ele é um sinal do sangue do Senhor. 

Naqueles dias, quando o anjo destruidor viu o sangue nas portas, ele não ousou entrar, então quanto menos o demônio se aproximará agora quando ele vê, não o sangue figurativo nas portas, mas o verdadeiro sangue nos lábios dos crentes, as portas do templo de Cristo. Se desejas mais provas do poder deste sangue, lembra donde veio ele, como verteu da cruz, fluindo do lado do Mestre. 

O evangelho lembra que, quando Cristo estava morto, mas ainda pendendo da Cruz, um soldado veio e transpassou o seu lado com uma lança e, imediatamente, saíram sangue e água. Então a água foi um símbolo do batismo, e o sangue, da santa Eucaristia. O soldado transpassou o lado do Senhor, rompeu o muro do templo sagrado, e eu encontrei o tesouro e apossei-me dele. O mesmo com o cordeiro: os judeus sacrificaram a vítima e eu fui salvo por ela.

'Saíram do seu lado água e sangue'. Amado, não passes ao largo desse mistério sem refletir; ele tem ainda mais um sentido oculto, que te explicarei. Eu disse que água e sangue simbolizavam o batismo e a santa Eucaristia. Desses dois sacramentos, a Igreja nasceu: do batismo, 'a água purificadora que faz renascer e renovar pelo Espírito Santo', e da santa Eucaristia. Já que os símbolos do batismo e da Eucaristia fluíram do seu lado, foi do seu lado que Cristo formou a Igreja, como formara Eva do lado de Adão. 

Moisés dá uma ideia disso quando conta a história do primeiro homem e fá-lo exclamar: 'Osso dos meus ossos e carne da minha carne!'. Como Deus tomou uma costela do lado de Adão para formar uma mulher, assim Cristo deu-nos sangue e água do seu lado para formar a Igreja. Deus tirou a costela quando Adão estava num sono profundo, e, do mesmo modo, Cristo deu-nos o sangue e a água após a sua própria morte.

Entendes, então, como Cristo uniu sua esposa a si mesmo, e que alimento ele nos dá a todos para comer? Por um e o mesmo alimento nós somos trazidos à existência e nutridos. Como uma mulher nutre seu filho com seu próprio sangue e leite, assim Cristo incessantemente nutre com seu próprio sangue aqueles a quem ele mesmo deu a própria vida.

(Das catequeses de São João Crisóstomo)

domingo, 17 de abril de 2016

O BOM PASTOR

Páginas do Evangelho - Quarto Domingo da Páscoa


No Quarto Domingo da Páscoa, ressoa pela cristandade a imagem e a missão do Bom Pastor: 'As minhas ovelhas escutam a minha voz; eu as conheço e elas me seguem. Eu dou-lhes a vida eterna e elas jamais se perderão. E ninguém vai arrancá-las de minha mão' (Jo 10, 27-28). Jesus, o Bom Pastor, conhece e ama, com profunda misericórdia, cada uma de suas ovelhas desde toda a eternidade. 

Criadas para o deleite eterno das bem-aventuranças, redimidas pelo sacrifício do calvário e alimentadas pela sagrada eucaristia, Jesus acolhe as suas ovelhas com doçura extrema e infinita misericórdia. E com ânsias de posse calorosa e zelo desmedido: 'Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai. Eu e o Pai somos um' (Jo 10, 29-30). 

Nada, nem coisa, nem homem, nem demônio algum, poderá nos apartar do amor de Deus. Porque este amor, sendo infinito, extrapola a nossa condição humana e assume dimensões imensuráveis. Ainda que todos os homens perecessem e a humanidade inteira ficasse reduzida a um único homem, Deus não poderia amá-lo mais do que já o ama agora, porque todos nós fomos criados, por um ato sublime e extraordinariamente particular da Sua Santa Vontade, como herdeiros dos céus e para a glória de Deus: 'Dele, por Ele e para Ele são todas as coisas. A Ele a glória por toda a eternidade!' (Rm 11, 36).

Jesus toma sobre os ombros a ovelha de sua predileção, cada um de nós, a humanidade inteira, para a conduzir com segurança às fontes da água da vida (Ap 7, 17), onde Deus enxugará as lágrimas dos nossos olhos. Reconhecer-nos como ovelhas do rebanho do Bom Pastor é manifestar em plenitude a nossa fé e esperança em Jesus Cristo, Deus Único e Verdadeiro, cuja bondade perdura para sempre e cujo amor é fiel eternamente (Sl 99,5). Como ovelhas do Bom Pastor, não nos basta ouvir somente a voz da salvação; é preciso segui-Lo em meio às provações da nossa humanidade corrompida, confiantes e perseverantes na fé, até o dia dos tempos em que estaremos abrigados eternamente na tenda do Pai, lavados e alvejados no sangue do cordeiro (Ap 7, 14b).  

sábado, 16 de abril de 2016

A MEDIDA DO PERDÃO


Mamãe, me falaram que não nasci porque você fez as suas escolhas.
Que você tinha o direito de decidir, de escolher.
De não me escolher.
E decidiu assim porque era o melhor a fazer.
Que não era a hora.
Que eu seria um peso enorme, uma alternativa errada, uma coisa indesejada.
Uma coisa que deveria ser abortada.

Mamãe, me falaram que eu não tenho direito nenhum,
que, na verdade, eu não sou nada.
Apenas um feto desprovido de emoções, de sensações, de reações.
Mas, isso não é verdade, mamãe, eles estão errados,
eu era com você dois corações. Dois corações.
Senti o seu calor. Senti o seu desconforto. E senti dor, muita dor.

Mamãe, me falaram para que não falasse por mim.
Que eu fosse apenas o que todos imaginam o que eu fui: um nada.
E que eu sou apenas mais uma pessoa que não existiu
porque alguém decidiu isso por mim.
E esse alguém foi você, que eu chamo de mamãe.
Eu não tenho nem um nome,
você sabe como teria me chamado, mamãe?

Mas eu quis voltar para você ainda que apenas em pensamento
para murmurar carinho e afeição ao seu ouvido,
para acalentar a sua aflição,
para estancar a sua dor.
Porque eu não entendo nada de escolhas, mamãe, nada mesmo,
mas aprendi aqui, do outro lado,
o que significa o perdão
e a medida do amor sem medidas.

(Arcos de Pilares)

sexta-feira, 15 de abril de 2016

TANTUM QUANTUM

Eu não existia... Deus me criou; não podia continuar a existir por mim mesmo. Deus me tem conservado: logo sou todo seu. Entregar-me-ei em suas mãos sem reservas. 'Entrego-me nas vossas mãos, com confiança, como um pouco de barro, fazei de mim um homem novo!' Que fim nobre é o meu! A felicidade de Deus consiste em amar a si mesmo e este amor é também um objeto de minha felicidade. Ó liberalidade infinita de Deus: a alma no céu ficará saturada de gozo, não pode imaginar um prazer que não possua. Para um fim sobrenatural, é necessário viver uma vida sobrenatural; todas as minhas ações, palavras e pensamentos devem ser dirigidos pelo sobrenatural: ser o homem sobrenatural. 

Eis o ideal! Mas se o homem não alcançar o seu fim será lançado no inferno por toda a eternidade... desespero eterno; sem um momento de descanso, de felicidade. E eu me salvarei? Com tantos pecados? Que dúvida terrível! No entanto, posso assegurar a minha salvação e nela cuido tão pouco. A minha vocação à Companhia é uma prova não só de que Deus quer me salvar, mas que quer me salvar com perfeição. Se queres entrar na vida observa os mandamentos: os mandamentos, os votos, as regras, as ordens dos superiores, eis como posso assegurar a minha salvação: na sua perfeita observância. Ânimo e coragem! Um fim tão nobre merece que se empreguem todos os meios. E todas as mais criaturas Deus criou para a consecução do meu fim e para que eu O glorifique por meio delas. As criaturas me ajudarão: i) buscando nelas o seu Criador pela contemplação; ii) usando delas moderadamente; iii) abstendo-me daquelas que prejudicam a minha salvação. Reta intenção antes de usar qualquer criatura. 

Para observar a lei do uso das criaturas necesse est facere nos indifferentes. Durante a explicação dos pontos, parece-me que compreendi a necessidade e os bens desta indiferença. Na vida prática e cotidiana como tem lugar a aplicação deste facere indifferentes. É uma conclusão lógica do que ficou atrás: fui criado por Deus, devo servi-lo e para este fim usar das criaturas tantum quantum. Ora, a respeito do uso de algumas, não sei quanto e quando me ajudam à consecução do meu fim. Logo, devo estar indiferente. É necessário. Sem esta indiferença, a vida religiosa toma-se pesada, custe embora à natureza nada lhe devo conceder. Tempo livre, trabalhos manuais, ofício, mudança de horário, em tudo a aplicação prática do necesse est facere nos indifferentes. Não só nisto mas também nas coisas espirituais, na oração, facere nos indifferentes, quanto à consolação ou à desolação. 

Persuadi-me intimamente que não devo servir a Deus como eu quero, mas como Ele quer, e a Sua vontade se manifesta pelo superior, qualquer que seja ele. Esta indiferença pode ser matéria de meditações e reformas com muita aplicação na vida prática, desejando e escolhendo aquilo que mais conduz ao fim. Em geral são as coisas da natureza que mais nos ajudam à consecução do nosso fim; estas, é lícito desejar a procurar não tendo nada em contrário manifestado pela obediência. Eis o ideal do jesuíta: homens crucificados para o mundo e para os quais o mundo seja também crucificado, tais devemos ser por obrigação do nosso estado. Que perfeição exige de mim a Companhia! Como tenho me ocupado pouco em alcançar as sólidas e verdadeiras virtudes! Determinei usar dos meios que a Companhia me oferece: oração, exame geral e particular, leituras, exercícios espirituais, renovação semestral, reforma mensal, sacramentos etc. e com tantos meios não chegarei à perfeição de meu estado? Um jesuíta perfeito, igual em tudo a si mesmo! 

Todas as criaturas já estão no mundo. Deus forma o primeiro homem, dá-lhe uma alma racional e colocando-o no paraíso lhe diz: 'Tu me glorificarás, por meio destas criaturas; criei-as para te servirem de meio ao teu fim que é servir-me'. E o homem usa das criaturas para seu deleite e prazer, põe nelas o seu fim! Que loucura! O que não me conduz ao meu fim devo deixar, embora agrade à natureza. Se Deus não tivesse usado de misericórdia comigo eu estaria no inferno. Quantos pecados Deus suportou e não me castigou! 

Mas não só não estou no inferno. Estou na Companhia. Que ingratidão se não correspondo à minha vocação; uma vida de mediocridade não basta, é necessário ser santo. Devo trazer sempre à memória os meus pecados, como um estímulo e aguilhão para me levar à perfeição. Senti uma dor viva dos meus pecados. No colóquio me dava grande fervor e consolação imaginar-me aos pés de Jesus Crucificado, abraçando-o como Madalena e o seu sangue me lavara toda a alma. Senti vivamente a bondade divina. Que misericórdia! Jesus, meu Pai, meu amor! Será possível que Vós me não tivésseis perdoado depois de me fazer sentir o que senti? Jesus, continue a usar comigo a vossa misericórdia. Manda-me qualquer castigo, tudo é pouco em relação ao número e enormidade de meus pecados. Perdão, meu amado Jesus!

Impressionou-me nesta meditação, principalmente, os tormentos da vida e dos ouvidos. Milhões e milhões de condenados agitando-se em convulsões horrorosas, o desespero transparecendo no rosto, os cabelos eriçados como outras tantas víboras. Que espetáculo! Resolvi observar com rigor a regra da modéstia para de algum modo satisfazer os pecados que cometi com a vista. Os ouvidos são atormentados por uma gritaria de desespero, imprecações, injúrias e blasfêmias contra Jesus e Maria. Se Deus não houvesse usado de misericórdia para comigo, estaria agora ouvindo blasfêmias contra Jesus e contra minha boa mãe, Maria. Que gratidão não devo mostrar para com Deus. Ó pecado, como és um grande mal, pois mereces tamanho castigo. Um castigo eterno! Passam-se mil anos, um milhão de milhões de anos e ainda está no seu princípio. Como por um prazer instantâneo me hei de por em perigo de ir ao inferno. Ah, não, com o auxílio de Deus, não cometerei nunca um pecado mortal!

(Excertos da obra 'Exercícios Espirituais' do Pe. Leonel Franca)

quarta-feira, 13 de abril de 2016

NO LIMIAR DO SOBRENATURAL (III)

OS MANUSCRITOS QUE O INFERNO NÃO QUEIMOU


Santa Gemma Galgani sofreu, durante a sua curta vida, os incessantes ataques e tentações do demônio. Um dos fatos mais extraordinários destas investidas foi a tentativa diabólica da queima e destruição do diário escrito pela santa, sob voto de obediência e por intimação do seu confessor, o Pe. Germano de Santo Estanislau. Guardados em uma gaveta do quarto de Gemma, os manuscritos foram roubados pelo próprio demônio, que a fez conhecer do fato e se vangloriou da sua astúcia. Caracterizado o sumiço do diário e dado ciência disso ao Pe Germano, este pronunciou, junto ao túmulo de São Gabriel da Virgem Dolorosa, os procedimentos completos de exorcismo da Santa Igreja, invocando a Deus a plena recuperação dos manuscritos, o que ocorreu de imediato. Ao ser recuperado, ficou evidente a tentativa de queima do diário, pois várias páginas estavam como que chamuscadas e exalavam um forte cheiro de queimado. Mas, contra todos os esforços do demônio para a sua destruição, os manuscritos permaneceram incólumes à ação do fogo do inferno, constituindo, na verdade, mais um extraordinário testemunho da santidade de Gemma e da glória de Deus.

terça-feira, 12 de abril de 2016

FOTO DA SEMANA

Por cima de sua cabeça penduraram um escrito trazendo o motivo de sua crucificação: 'Este é Jesus, o rei dos judeus' (Mt 27, 37)

(Cristo na Cruz, de Diego Velázquez, 1632, Museu do Prado/Madrid)

segunda-feira, 11 de abril de 2016

11 DE ABRIL - SANTA GEMMA GALGANI



Mística, contemplativa, estigmatizada, Santa Gemma Galgani foi contemplada por Deus com um enorme acervo de privilégios, graças e carismas, como os estigmas da Paixão, a coroa de espinhos, a flagelação e o suor de sangue, êxtases frequentes, espírito de profecia, discernimento dos espíritos e visões de Nosso Senhor, de sua Mãe Santíssima, de São Gabriel e uma incrível familiaridade com o seu Anjo da Guarda. Nasceu em  12 de março de 1878 em Camigliano, um vilarejo situado perto de Lucca, na Itália, de família católica tradicional e faleceu, com apenas 25 anos, no Sábado Santo de 11 de Abril de 1903. Foi canonizada a 2 de março de 1940, apenas trinta e sete anos depois da sua morte.

Palavras do Anjo da Guarda à Santa Gemma:

'Lembra, filha, que aquele que ama verdadeiramente Jesus fala pouco e suporta muito. Eu te ordeno, em nome de Jesus, de nunca dar a tua opinião a menos que ela seja pedida; de nunca insistir na tua opinião, mas a ficar em silêncio imediatamente. Quando tiveres cometido qualquer erro, acusa-te a ti mesma dele imediatamente sem esperar que os outros o façam... Lembra-te de guardar os teus olhos e considera que os olhos mortificados possuirão as belezas do Céu.'

Santa Gemma Galgani, rogai por nós!

domingo, 10 de abril de 2016

TESTEMUNHAS DO AMOR

Páginas do Evangelho - Terceiro Domingo da Páscoa


Às margens do mar de Tiberíades, Jesus Ressuscitado aparece pela terceira vez a seus discípulos. E lhes aparece após uma longa noite de aparentes fracassos porque eles não haviam conseguido pescar peixe algum. Aqueles homens, pescadores exímios, bem o tentaram; sabedores dos humores e segredos do mar, bem o tentaram; sabedores das nuances dos ventos e das propícias condições noturnas, bem o tentaram. E tentaram em vão, porque são vãos todos os esforços quando não compartilhados pela graça de Deus.

Ao amanhecer, resignados e confusos, aqueles pescadores obedecem a recomendação de Jesus, embora  não O tivessem ainda em plenitude, pois 'os discípulos não sabiam que era Jesus' (Jo 21,4). Mas, ainda assim, lançam as redes à direita da barca, pois aqueles que estiverem à direita de Cristo não serão confundidos e verão as maravilhas de Deus (Mt 25, 33-34). E agora, não lhes é vã a tentativa; a rede se enche de 153 grandes peixes, símbolo de uma pesca extremada, milagrosa porque eivada da graça manifesta de Deus aos homens.

E, tomado de assombro, o discípulo a quem Jesus amava faz um imediato testemunho de amor: 'É o Senhor!' (Jo 21,4). É um testemunho de fé no Filho do Homem, testemunho de esperança, testemunho em Jesus Ressuscitado, condutor verdadeiro dessa barca, que representa a Santa Igreja, testemunho que perpassa os tempos e as gerações humanas dos bem-aventurados que haverão de crer como João. Sim, é o Senhor! O cordeiro imolado para a redenção do mundo, o Salvador, o Ungido do Pai. 

Mas é Pedro quem se arroja nas águas frias do mar naquele amanhecer de novos tempos ao encontro do Jesus amado e retorna, na mesma toada, para arrastar a rede cheia de grandes peixes até a margem. Mais uma vez, Jesus prepara-lhes o alimento e distribui o pão e os peixes entre eles. E é a Pedro quem Jesus pergunta por três vezes: 'Simão, filho de João, tu me amas?' (Jo 21, 15-17). E o sim de Pedro, por três vezes, é a prova manifesta universalmente do amor verdadeiro do homem em resposta ao infinito amor de Deus: 'Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te amo.' (Jo 21, 17). E ante a resposta firme e decidida de Pedro, Jesus o tornará o pastor de suas ovelhas e a pedra da Igreja: 'Segue-me' (Jo 21, 19).

sábado, 9 de abril de 2016

SOBRE A ORAÇÃO - 30 DITOS ESPIRITUAIS DOS PAIS DO DESERTO


1. Moisés, quando quis aproximar-se da sarça ardente, foi impedido de fazê-lo, até que tirasse os sapatos. E tu, que pretendes ver Aquele que ultrapassa todo pensamento e todo sentimento, como não te libertas de todo pensamento apaixonado?

2. Primeiramente, ora para obter o dom das lágrimas; assim, poderás suavizar, pela compunção, a dureza inerente à tua alma e, confessando tua iniquidade ao Senhor, obter dele o perdão.

3. Esforça-te por manter teu intelecto surdo e mudo durante a oração: assim poderás orar.

4. A oração é produto da doçura e da ausência de ira.

5. A oração é fruto da alegria e do reconhecimento.

6. A oração é exclusão da tristeza e do desalento.

7. Se queres orar dignamente, renuncia-te a todo instante; se suportas toda sorte de provações, resigna-te sabiamente por amor da oração.

8. Na hora de orar, encontrarás o fruto de todo sofrimento aceito com sabedoria.

9. O rancor cega a faculdade mestra de quem ora e derrama-lhe trevas sobre as orações.

10. Armado contra a ira, não admitirás jamais a cobiça, pois é a cobiça que alimenta a ira; esta por sua vez, turva os olhos da inteligência e destrói, assim, o estado de oração.

11. Não ores para que tuas vontades se cumpram: elas não concordam necessariamente com a vontade de Deus. Ora, sim, segundo o ensinamento recebido, dizendo: 'que vossa vontade se cumpra em mim'. Em tudo, pede-lhe que se faça a sua vontade, pois ele quer o bem e o benefício para tua alma; tu, porém, não é isso necessariamente que procuras.

12. Não te aflijas quando não receberes imediatamente, de Deus, o objeto de teu pedido: é que ele quer fazer-te ainda maior bem, por tua perseverança em permanecer com ele na oração. O que há de mais sublime, de fato, do que conversar com Deus e abstrair-se numa íntima comunicação com ele?

13. A oração sem distração é a intelecção mais alta da inteligência.

14. A oração é uma ascensão da inteligência para Deus.

15. Ora, em primeiro lugar, para te purificares das paixões; em segundo lugar, para te libertares da ignorância; em terceiro lugar, para te libertares de toda tentação e abandono.

16. Orando com teus irmãos ou orando só, esforça-te por orar, não por hábito, mas com sentimento.

17. Enquanto oras, vigia intensamente a tua memória, para que, ao invés de sugerir-te as suas lembranças, ela te leve à consciência da tua prática; pois, a inteligência tem uma perigosa tendência: deixar-se pilhar pela memória, no momento da criação.

18. Qual o objetivo dos demônios, quando excitam em nós a gula, a impudicícia, a cobiça, a ira, o rancor e as outras paixões? Querem que a nossa inteligência, estupidificada por elas, não possa orar convenientemente; pois, as paixões da parte irracional, vencedoras, impedem-na de mover-se de acordo com a razão (de acordo com as razões dos seres como objeto de contemplação) para procurar atingir a Razão (o Logos: o Verbo) de Deus.

19. O estado de oração é um 'hábito' impassível que, por um amor supremo, arrebata aos cimos intelectuais a inteligência possuída pela sabedoria.

20. Quem ama a Deus conversa incessantemente com ele, como com um Pai, despojando-se de todo pensamento apaixonado.

21. Quem ora em espírito e em verdade, não tira mais das criaturas os louvores que dá ao Criador: é do próprio Deus que ele louva Deus.

22. Sê prudente, protegendo tua inteligência de todo conceito, na hora da oração, para que ela seja firme na sua tranquilidade própria (de sua natureza original). Então, Aquele que tem piedade dos ignorantes virá também sobre ti e receberás um dom de oração muito glorioso.

23. Não poderias possuir a oração pura, estando perturbado com coisas materiais e agitado por inquietações contínuas, pois a oração é o abandono dos pensamentos.

24. A oração é atividade que mais convém à dignidade da inteligência.

25. O corpo tem o pão por alimento; a alma, a virtude; a inteligência, a oração espiritual.

26.  Não eleves os olhos enquanto oras; renuncia à carne e à alma e vive segundo a inteligência.

27. Um santo, cheio do amor de Deus e de zelo na oração, encontrou, quando andava pelo deserto, dois anjos que se puseram, um à sua direita, outro à sua esquerda, e caminharam juntos. Mas ele não lhes deu a mínima atenção, para não perder o melhor. Pois, lembrava-se da palavra do Apóstolo: 'Nem os anjos, nem os principados, nem os poderes, poderão separar-nos da caridade de Cristo' (Rm 8,38).

28. Bem-aventurada a inteligência que, no momento da oração, torna-se imaterial e despojada de tudo.

29. A visão é o melhor de todos os sentidos; a oração é a mais divina de todas as virtudes.

30. Quando, em tua oração, tiveres conseguido ultrapassar qualquer outra alegria, é que finalmente, em toda verdade, terás encontrado a oração.

(Ditos Espirituais dos Pais do Deserto, de Evágrio Pôntico - séc. IV)