domingo, 28 de maio de 2023

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Enviai o vosso Espírito, Senhor, e da terra toda a face renovai!(Sl 103)

Primeira Leitura (At 2,1-11) - Segunda Leitura (1Cor 12,3b-7.12-13)  -  Evangelho (Jo 20, 19-23)

 28/05/2023 - Solenidade de Pentecostes

27. Solenidade de Pentecostes 


Emitte Spiritum tuum et creabuntur et renovabis faciem terrae

'Enviai, Senhor, o vosso espírito criador e será renovada toda a face da terra'

Originalmente, Pentecostes representava uma das festas judaicas mais tradicionais de 'peregrinação' (nas quais os israelitas deviam peregrinar até Jerusalém para adorar a Deus no Templo), sempre celebrada após 50 dias da Páscoa e na qual eram oferecidas a Deus as primícias das colheitas do campo. No Novo Pentecostes, a efusão do Espírito Santo torna-se agora o coroamento do mistério pascal de Jesus Cristo, na celebração da Nova Aliança entre Deus e a humanidade redimida.

Eis que os apóstolos encontravam-se reunidos, com Maria e em oração constante, quando 'todos ficaram cheios do Espírito Santo' (At 2, 4), manifestado sob a forma de línguas de fogo, vento impetuoso e ruídos estrondosos, sinais exteriores do poder e da grandeza da efusão do Novo Pentecostes. Luz e calor associados ao fogo restaurador da autêntica fé cristã; ventania que evoca o sopro da Verdade de Deus sobre os homens; reverberação que emana a força da missão confiada aos apóstolos reunidos no cenáculo e proclamada aos apóstolos de todos os tempos.

O Paráclito é derramado numa torrente de graças, distribuindo dons e talentos, porque 'Há diversidade de dons, mas um mesmo é o Espírito. Há diversidade de ministérios, mas um mesmo é o Senhor. Há diferentes atividades, mas um mesmo Deus que realiza todas as coisas em todos' (1 Cor 12, 4-6). Na simbologia dos vários membros de um mesmo corpo, somos mensageiros e testemunhas de Cristo no meio dos homens, na identidade comum de Filhos de Deus partícipes e continuadores da missão salvífica de Cristo: 'Como o Pai me enviou, também Eu vos envio' (Jo 20, 21).

No Espírito Consolador, não somos mais meros expectadores de uma efusão de graças e dons tão diversos, mas apóstolos e testemunhas, iluminados e portadores da Verdade, pela qual será renovada a face da terra e pelo qual será apagada a mancha do pecado no mundo: 'Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos' (Jo 20, 22-23).

sábado, 27 de maio de 2023

A DEMOCRACIA PODE SER CRISTÃ?


Para São Tomás, as formas possíveis de uma sociedade são três: monarquia, aristocracia e democracia. A monarquia é o governo exercido por uma única pessoa; a aristocracia é a administração da sociedade por um grupo limitado de pessoas e a democracia é o governo do Estado por uma classe numerosa de pessoas (que expressam a 'vontade soberana' de um povo). Qual seria a melhor forma de governo dentre estas três opções ou, em outras palavras, o que seria mais proveitoso para uma dada sociedade, submeter-se ao governo de um só ou ao governo de muitos?

Em primeiro lugar, há que se considerar que não existe um regime social perfeito pois estamos falando de homens e dos pecados dos homens, que tendem a corromper todas as coisas e todos os cenários possíveis. A monarquia pode se aviltar como tirania; a oligarquia seria a corrupção direta da aristocracia e a demagogia conspurca e envilece quaisquer espasmos de democracia. A tirania, porém, representa também o fruto mais podre da corrupção da aristocracia e da democracia e tende a ser mais dolorosa e brutal sob o regime de alguns ou de muitos. Em quaisquer circunstâncias, entretanto, a tirania - seja de um só, de poucos ou de muitos - é o arbítrio mais monstruoso e o cenário mais pervertido da opressão e de usurpação dos direitos e deveres de qualquer povo ou sociedade. 

'Tudo para nós mesmos e nada para os demais parece ter sido, sempre e em qualquer lugar, a máxima vil dos seres humanos'

(Adam Smith)

Neste contexto, a premissa de refrear mais sólida e efetivamente a viabilização ou a implantação de um regime tirânico deveria constituir as bases e diretrizes de qualquer forma de governo. No altar das oferendas democráticas, vende-se o oráculo de que o equilíbrio entre os três poderes - executivo, legislativo e judiciário - modelados por princípios constitucionais de autonomia, independência e harmonia - garantem plenamente a sanidade e o livre exercício do regime. É bastante estúpido acreditar em quaisquer oráculos, mormente um de tal solicitude: se a tirania é, nesse caso, propiciada por muitos, é evidente que a mesma somente poderia ser exercida pelo conluio de muitos, engajados e aliciados pela mesma causa comum, com origens e atuações específicas nos três poderes constitucionalmente instituídos.

Quando este cenário se impõe, a corrupção da sociedade tende a ser sistêmica. E a decantada democracia das falsas liberdades e dos direitos ilimitados - seja qual for o seu apelido ou o seu engodo - mostra a real expressão da sua mímica brutal: uma sociedade em que alguns se governam sem restrição alguma; governam para si, para outros iguais, para a manutenção de um sistema completamente dominado pela imposição sem tréguas de suas ideias, interesses e perspectivas. E o povo, amordaçado e passivamente controlado, é um tributo sem vez e sem voz.

'O poder do homem para fazer de si mesmo o que bem quiser significa o poder de alguns homens para fazer dos outros o que bem quiserem'

(C. S. Lewis)

E dois elementos - siameses em sua gestação - alimentam e reforçam esse estado de coisas. O primeiro resulta da ideia de que a 'soberania popular' (?) é concretizada pelo sufrágio universal e pelo voto direto para a escolha dos seus governantes e representantes. Qualquer princípio de avaliação segura é baseada no critério inconteste de mérito: quem decide e delibera é o mais capaz. É a competência do cidadão comum que molda a escolha pelo voto? São os mais qualificados que assumem os cargos mais relevantes de governo? Na hierarquia dos poderes, são os mais preparados que ditam as normas e as prescrições aos demais? Na maioria das vezes, estes valores de referência tendem a ser exatamente o oposto, ditados por imposições de ordem econômica, ideológica ou corporativista e, quase sempre, pela associação extrema de todas elas.
  
'O que nós devemos respeitar é a vontade do povo e não os votos do povo; dar a um homem o direito de voto contra a sua vontade é fazer do direito de voto uma coisa mais valiosa do que a democracia que esse direito expressa'

(G.K.Chesterton)

O segundo elemento é traduzido pelo solapamento das instituições e pelo adensamento crônico do modelo que é sempre repetido, cada vez mais corrompido e corruptor. O sistema é sempre gerido pelo domínio da maioria sob quaisquer preços e medidas. As forças econômicas e ideológicas impõem toda sorte de tributos ou serventias aos poderes vigentes, dependendo do interesses imediatos. O que era apanágio, vira direito pronto e estabelecido. A reação intempestiva passa a ser refém do indiferentismo. O odor de esgoto se espalha e, de repente, torna-se tolerável. As regras e as leis, infringidas e conspurcadas, são meros fetiches de uma realidade que tende a se tornar extrema e tenebrosa. Os que a dominam, a exaltam como democracia. E ai de quem ousar confrontar suas sequelas e infortúnios... 

A democracia [este modelo falacioso de liberdade plena e do progresso do relativismo como forma de conduta permissiva e generalizada] não tem nada de cristã; não pode ser cristã alguma coisa que, irremediavelmente sujeita às vicissitudes humanas, tende a descambar em tirania [uma democracia cristã somente seria possível se fosse um regime de todos governado, em caráter irrevogável, exclusivamente pela Lei de Deus; fora isso, seria meramente mais um lugar comum das democracias de fachada]. Tais modelos de democracia não podem nunca fomentar a paz e a concórdia porque resultam sempre na imposição de ideologias, a ferro e a fogo, de muitos homens sobre outros tantos. Nenhuma democracia assim pode prosperar. Nenhuma democracia assim pode acabar bem. 

'É mais que evidente que o povo não pode conferir a outro um poder que ele próprio não possui; o verdadeiro poder só pode vir do alto, e é por isso que só pode ser legitimado pela sanção de alguma coisa superior à ordem social, ou seja, uma autoridade espiritual. Se for de outra maneira, será apenas uma contrafação de poder, um estado de fato que é injustificável por defeito de princípio, e em que não pode haver senão desordem e confusão'.
(René Guénon)

Mas, seria realmente a democracia um sistema assim tão intrinsecamente mau, a ponto de não constituir uma alternativa cristã de regramento social? É relevante destacar, nesse contexto, que a única manifestação democrática inserida nas Sagradas Escrituras refere-se a uma escolha, por parte da turba ensandecida, pela libertação de um certo Barrabás. Isso diz muito sobre 'democracia' e a civilização cristã, como abismos intransponíveis, mesmo porque a barbárie da democracia é o comunismo:

'O comunismo precisa da democracia
como o corpo humano precisa de oxigênio'

(Leon Trotsky)

sexta-feira, 26 de maio de 2023

OS GRANDES SINAIS PRECURSORES DO JUÍZO FINAL (IV)

  

Erunt sigma in sole et luna et stellis 

'Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas' (Lc 21, 25)

Segunda Parte

Suponha que uma cidade turca - digamos, Constantinopla - na qual muitos cristãos são mantidos cativos e gemem acorrentados, seja sitiada por um potentado cristão; o rugido e o estrondo da artilharia ressoam o dia inteiro de modo que mal se ouve a própria voz; as paredes e as torres são atacadas e derrubadas pelas balas de canhão; bombas e granadas com estilhaços de fogo estão voando incessantemente no ar, queimando e destruindo tudo em todas as direções e, por toda a cidade, nada se ouve a não ser o rugido da artilharia, o estrondo das paredes caindo e uivos e lamentações terríveis. 

Os homens rastejam e se escondem nos porões mais escuros para evitar as balas de canhão; os soldados em desespero gritam: 'Ai de nós, temos que nos render, a cidade foi sitiada!' O que vocês acham, meus queridos irmãos, que seriam os sentimentos dos cristãos cativos nesta ocasião? Verdadeiramente, no que diz respeito à visão e à audição, eles estão tão mal quanto os turcos; eles também devem se esconder para evitar as bombas e as granadas; mas como eles se sentem no coração? Não há dúvida de que eles se regozijam e exultam quanto mais vigorosamente o cerco prossegue. Quanto maior o desespero dos soldados engajados na defesa, maior a alegria e a esperança dos cristãos. Por que? Ó, eles pensam, agora é chegada a hora em que a cidade deve se render a um poder cristão e seremos libertados do cativeiro e da escravidão. Aí, meus queridos irmãos, vocês têm, em algum grau, uma caricatura e uma imagem do estado de espírito dos justos e dos ímpios ao verem os terríveis portentos que anunciarão o fim do mundo. Os ímpios, aqueles que têm um má consciência, de fato murcharão de medo e consternação e procurarão se esconder sob a terra; eles vão uivar e gemer e lamentar como os turcos sitiados.

Dirão então: 'Ai de nós, estamos perdidos! Devemos agora nos render; eis o fim de todos os prazeres e delícias que desfrutamos na terra; honra e cargos importantes não mais existem; devemos deixar nossa riqueza para trás pois o último dia está próximo; em pouco tempo a terrível trombeta soará em nossos ouvidos as palavras: levantai-vos, mortos, eis o dia do juízo! Em breve compareceremos diante de nosso irado Juiz, a quem desprezamos e tornamos nosso inimigo por causa dos nossos pecados! Agora se aproxima o tempo em que as coisas vergonhosas que escondemos dos homens e não ousamos mencionar nem mesmo no tribunal da penitência serão declaradas abertamente perante todo o mundo! Em breve ouviremos as terríveis palavras: 'Afastem-se de mim, malditos, para o fogo eterno'¹⁵. E teremos que nos despedir eternamente de Deus, nosso bem supremo; de Maria, a Mãe de Deus, de todos os anjos e eleitos, e descer ao inferno com os demônios! Ai de nós!' Quão grande será o terror e a angústia dos ímpios ao verem os sinais e portentos do último dia!

Mas quais serão os sentimentos daqueles justos servos de Deus que mantiveram inviolável fidelidade ao seu Criador ou que, por um verdadeiro arrependimento, lavaram seus pecados, e que viveram, neste vale de lágrimas, em meio a tantos perigos da alma e do corpo, suspirando como prisioneiros por seu lar e lugar de descanso eterno? Como, eu pergunto, será com eles? Ouvi o que Cristo lhes diria, depois de ter falado dos terríveis sinais precursores do último dia: 'quando estas coisas começarem a acontecer, olhai para cima e levantai as vossas cabeças, porque a vossa redenção está próxima'¹⁶. 'Estar de cabeça baixa é um sinal de tristeza e de medo que, meus queridos filhos, não é para vós, mas para os ímpios que se recusaram a amar-me e a honrar-me. Deixai-os definhar de medo, porque não têm parte no meu Reino eterno; mas vós, almas justas que guardastes a minha Lei e em tudo tentastes fazer a minha vontade, 'olhai para cima e levantai as vossas cabeças'; regozijai-vos e alegrai-vos 'porque a vossa redenção está próxima!'. Este é o tempo pelo qual tendes suspirado durante tanto tempo; o tempo para a vossa libertação do cativeiro, de todos os perigos e aflições; o tempo para entrardes no repouso eterno dos filhos de Deus. Este é o dia em que os meus e os vossos inimigos, que vos perseguiram e oprimiram de tantas maneiras - este é o dia em que eles ficarão tremendo e gemendo sob os vossos pés. Este é o dia em que Eu darei a conhecer ao mundo a vossa humildade e vossas virtudes que os homens desconheciam e que os mundanos vaidosos desprezavam! Alegrai-vos, meus filhos! A vossa redenção está próxima; o Reino dos Céus abrir-se-á em breve para vós. Vinde, ó bem-aventurados, possuí o Reino que meu Pai e vós mesmos preparastes para vós! Vinde comigo para as alegrias eternas!'

'Olhai para a figueira e para todas as árvores' - continuaria a falar Nosso Senhor - 'quando agora brotam os seus frutos, sabeis que o verão está próximo e que o frio do inverno já passou. Assim também vós, quando virdes sucederem estas coisas, sabereis que está próximo o reino de Deus'¹⁷. O que Ele quer dizer é que, no inverno, as árvores estão nuas, sem folhas e nem frutos, e cobertas de neve como por um manto de luto; mas quando chega a bela primavera, que mudança ocorre nelas! Adornam-se com os botões frescos, com folhas verdes e frutos, e os pássaros cantam melodias alegres nos seus ramos. 'Assim é também convosco, servos fieis. Até aqui passastes pelo frio do inverno; fostes odiados e desprezados pelo mundo, que desprezastes em favor do meu nome; muitas vezes tivestes de gemer sob a pressão da adversidade mas, quando virdes os sinais da primavera e do verão eterno, 'olhai para cima e levantai as vossas cabeças, porque a vossa redenção está próxima'. Ficai atentos! Levantai os vossos corações e mentes para o alto! A vossa redenção está próxima; as obras de virtude que realizastes para mim estão agora prestes a dar frutos, e sereis coroados com uma coroa de alegrias eternas'.

Foi este pensamento que trouxe tanta consolação de espírito a São Paulo nas suas múltiplas provações e perseguições, como escreve ao seu discípulo Timóteo: 'Quanto a mim, estou a ponto de ser imolado e o instante da minha libertação se aproxima. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia, e não somente a mim, mas a todos aqueles que aguardam com amor a sua vinda'¹⁸. É por isso que devemos ansiar incessantemente, como o próprio Nosso Senhor nos ensinou a rezar diariamente: 'Pai nosso, que estais no céu, venha a nós o vosso reino!' Ou, como nos diz São Pedro: 'Uma vez que todas essas coisas se hão de desagregar, considerai qual deve ser a santidade de vossa vida e de vossa piedade, enquanto esperais e apressais o dia do Senhor, esse dia em que se hão de dissolver os céus inflamados e se hão de fundir os elementos abrasados! Nós, porém, segundo sua promessa, esperamos novos céus e uma nova terra, nos quais habitará a justiça. Portanto, caríssimos, espe­rando essas coisas, esforçai-vos em ser por ele achados sem mácula e irrepreensíveis na paz''¹⁹. Apressai-vos em vossos desejos, com alegria, para encontrar o dia do Senhor.

Meus queridos irmãos, qual deve ser o nosso pensamento sobre este assunto? Se esses horríveis presságios fossem visíveis nos céus, no dia de hoje, para nos anunciar o fim do mundo, teríamos todos ocasião de erguer a cabeça e de esperar a vinda do nosso Juiz com alegria e exultação? Alegrar-te-ias, ó homem ambicioso, que agora valorizas mais a estima dos homens do que a graça e o favor do teu Deus? Alegrar-te-ias, ó homem avarento, cuja maior e única preocupação todos os dias da tua vida é acumular riquezas de todas as maneiras possíveis; cujas mãos e cofres ainda estão fechados em bens mal adquiridos? Alegrar-te-ias, ó homem sem valor, que até agora te entregaste às tuas paixões imundas e, com as tuas importunações perversas, seduziste muitas almas inocentes ou que ainda continuas a viver em intimidade ilegal com alguém que cativou o teu coração nas malhas do amor impuro? Alegrar-te-ias, ó homem vingativo, que ainda alimentas a ira contra o teu próximo e te entregas a sonhos de vingança? Alegrar-te-ias, ó bêbado, que em todas as ocasiões que se apresentam te roubas a razão e te arruínas a ti e aos que te cercam? Alegrar-te-ias, ó vaidoso filho do mundo, que ainda estás tão apegado ao mundo e não conheces outra lei senão as suas falsas máximas, levando uma vida ociosa e morna? Em suma, todos vós que tendes um pecado mortal na consciência, exultaríeis com a vinda do vosso Juiz? Haveria motivo para vos animar com as palavras de Nosso Senhor: 'Olhai e levantai a cabeça, porque a vossa redenção está próxima', quando se vissem no céu estes sinais terríveis? Ai de vós! É fácil falar-vos de alegria! O medo, a angústia, o terror, o definhamento por medo, eis os tristes efeitos que esses sinais terão sobre vós. Ah, então por que não tememos ofender a Deus? Como ousar passar uma hora sequer em estado de pecado mortal, pois se a morte nos surpreendesse então, nada mais teríamos a esperar senão um julgamento sem misericórdia e um inferno sem fim?

Ó almas justas que têm uma boa consciência! Para vós seria tudo alegria, uma esperança exultante! Permanecei firmes em apenas servir ao vosso Deus com fidelidade e zelo! 'Vivemos sóbria, justa e piedosamente neste mundo' - eis a exortação que nos dá São Paulo - 'aguardando a bem-aventurada esperança e a vinda da glória do grande Deus e Nosso Salvador Jesus Cristo'²⁰. Cristãos aflitos, que tendes de sofrer toda a espécie de provações e contradições, o que pensais? Tremendos serão os sinais que então vereis, impostos tão severamente pela mão de Deus; quão tremendos serão! Mas consolai-vos! Porque, assim como os sinais terríveis que anunciam o fim do mundo são precursores da redenção próxima para os justos e, portanto, fonte de alegria e consolação para eles, assim também as dores, por maiores que sejam, que agora vos afligem, se as suportardes com boa consciência e resignação à vontade divina, são para vós sinais infalíveis da glória futura no céu, como vos mostrarei em ocasião futura. 

Para vos consolardes e aliviardes de vossas penas, dizei a vós mesmos: o que agora sofro há de acabar; não durará muito; cada dia me aproxima mais da minha libertação. Se sou pobre e destituído por pouco tempo, essa pobreza é um sinal seguro de futuras riquezas no céu. Se eu for desprezado, perseguido pelo mundo e abandonado pelos homens, essa humilhação é um sinal da minha próxima glória e honra na sociedade dos eleitos no céu. Se agora sofro danos e perdas nos meus bens terrenos, essa perda é um sinal do meu ganho futuro, de um tesouro que me espera no céu. Se agora choro de tristeza e angústia, é sinal da minha futura alegria no Céu. Se agora estou doente e fraco, é sinal do futuro bem estar eterno no Céu. Se agora sou obrigado a trabalhar arduamente todos os dias para me sustentar e aos que dependem de mim, é sinal e precursor do futuro repouso eterno no reino dos céus. Por isso, meu Deus, resigno-me à vossa vontade e à vossa providência: com a ajuda da vossa graça, sofrerei tanto tempo, quanto e como quiseres que eu sofra! Por maiores que sejam as minhas tribulações, elas não serão nada em relação às alegrias do céu que me prometeste, 'aguardando a bem-aventurada esperança e a vinda da glória do grande Deus e Nosso Salvador Jesus Cristo'²⁰. Com esta consolação, regozijar-me-ei em todas as minhas provações, esperando o cumprimento dessa bem venturada esperança e a vinda do dia da grande glória do meu Deus e Salvador. 'Eu sei' - direi como Jó - 'que o meu Redentor vive, e que no último dia ressuscitarei da terra... e que na minha carne verei o meu Deus; eu mesmo o contemplarei, meus olhos o verão e esta esperança está guardada em meu peito'²¹. Esta única esperança é o único conforto suficiente para mim. Amém.

15. Discedite a me, maledicti, in ignem aeternum (Mt 25,41).
16. His antem fieri incipientibus, repicite, et levate capita vestra, quoniam appropinquat redemptio vestra (Lc 21,28).
17. Videte ficulneam, et omnes arbores. Cum producunt jam ex se fructum, scitis quoniam prope est aestas. Ita et vos cum videritis haec fieri, scitote quoniam prope est regnum Dei (Lc 29, 30-31).
18. A resolução do Tempus é meae instantânea. Bonum certamen certavi, cursum consummavi, fidem servavi. In reliquo reposita est mihi corona justitiae, quam reddet mihi Dominus in illa die justus judex; non solum autum mihi, sed et iis qui diligunt adventum ejus (2Tm 4, 6-8).
19. Cum igitur haec omnia dissolvenda sint, quales oportet vose esse in sanctis conversationibus et pietatibus, exspectantes et properantes in adventum diei Domini. Novus vero caelos, et novam terram secundum promissa ipsius expectamus. Propter quod, carissimi, haec exspectantes, satagite immaculati et inviolati ei inveniri in pace (2 Pd 3, 11-14).
20. Sobrie, et juste, et pie vivamus in hoc saeculo; expectantes beatam spem, et adventum gloriae magni dei, et Salvatoris nostri Jesu Christi (Tt 2, 12-13).
21. Scio enim quod Redemptor meus vivit, et in novissima die de terra surrecturs sum….et in carne mea videbo Deum meum. Quem visurus sum ego ipse, et oculi mei conspecturi sunt; reposita est haec spes mea in sinu meo (Jó 19, 24-25).

(Excertos da obra 'Sermons on the Four Last Things' - Sermon 27, do Rev. Francis Hunolt /1694 -1746/, tradução do autor do blog)

quinta-feira, 25 de maio de 2023

DOUTORES DA IGREJA (XI)

   11Santo Anselmo, Bispo (†1109)

Doutor Magnífico
Concessão do título: 1720 - Papa Clemente XI

Celebração: 21 de abril (Memória Facultativa)

 Obras e Escritos 

  • De Grammatico - O Gramático
  • De Veritate - A Verdade
  • De Libertate Arbitrii - Sobre a Liberdade de Arbítrio
  • De Casu Diaboli - Sobre a Queda do Demônio
  • De Incarnatione Verbi - Sobre a Encarnação do Verbo
  • Cur Deus Homo - Por que Deus feito Homem
  • De Conceptu Virginali et de Originali Peccato  - Sobre a Imaculada Conceição e o Pecado Original
  • De Processione Spiritus Sancti - Sobre a Processão do Espírito Santo
  • De Sacrificio Azymi et Fermentati - Sobre o Sacrifício Ázimo e o Fermentado
  • De Sacramentis Ecclesiae - Sobre os Sacramentos da Igreja
  • De Concordia
  • Monologion ou Monologium - Monológio
  • Proslogion ou Proslogium - Proslógio

quarta-feira, 24 de maio de 2023

VERSUS: ORAÇÃO PELO CÉU X ORAÇÃO CONTRA O INFERNO


Oração para obter o paraíso 

Meu Jesus Crucificado, fazei-me conhecer as magníficas recompensas que tendes preparadas para as almas que Vos amam. Dai-me tal desejo do paraíso que, esquecendo a terra, faça nele a minha morada contínua e, pelo resto da minha vida, não aspire senão a sair deste exílio, para ir Vos ver face a face e Vos amar perfeitamente no Vosso reino eterno. Não mereço esta felicidade, sei até que o meu nome esteve outrora escrito no livro dos condenados ao inferno; mas hoje, porque nutro a confiança de estar em graça, Vos conjuro, pelo sangue que derramastes por mim na cruz, inscrevei-me no Livro da Vida. Morrestes para me fazer adquirir o paraíso; eu o quero, ardentemente o desejo, e espero obtê-lo pelos Vossos merecimentos, ó meu Salvador; sim, espero Vos amar um dia com todas as minhas forças e consumir-me todo de amor para convosco; lá, esquecendo-me de mim mesmo e esquecendo-me de tudo o que não é vosso, pensarei somente em Vos amar, só Vos desejarei amar, e nada mais farei do que amar-Vos. Ó meu Jesus, quando chegará esse dia feliz? Ó Maria, Mãe de Deus, as vossas orações devem-me abrir o paraíso: já que sois a minha advogada, cumpri o vosso ofício, tirai-me deste exílio e conduzi-me a Jesus, fruto bendito do vosso ventre. Amém.


Oração para evitar o inferno 

Amadíssimo Jesus, meu Salvador e Juiz, quando vierdes a me julgar, por piedade não me condeneis ao inferno. Nessa negra prisão, não vos poderia amar, mas odiar-vos sempre; como, porém, odiar-vos, se sois tão amável e tanto me haveis amado? Se quereis condenar-me ao inferno, concedei-me ao menos a graça de vos amar de todo o meu coração. Não mereço esta graça por causa dos meus pecados; mas, se não a mereço, para mim a merecestes pelo sangue que derramastes com tanta dor na cruz. Numa palavra, ó meu divino Juiz, infligi-me todas as penas que quiserdes, mas não me priveis da faculdade de vos amar. Mãe do meu Deus, vede o perigo que corro de ser condenado e não poder mais amar o vosso Filho adorável que merece um amor infinito. Vinde em meu socorro e tende compaixão de mim. Amém.

(Excertos da obra 'As Mais Belas Orações de Santo Afonso', do Pe. Saint-Omer)

terça-feira, 23 de maio de 2023

BREVIÁRIO DIGITAL - LEGENDA ÁUREA (VII)


Certa vez, ao cair do dia, quando Jerônimo estava sentado com seus irmãos para escutar a leitura sagrada, entrou de repente no mosteiro um leão que mancava. Vendo-o, todos os irmãos fugiram, mas Jerônimo foi ao seu encontro como se ele fosse um hóspede. O leão mostrou que estava ferido na pata e Jerônimo chamou os irmãos, ordenando-lhes que lavassem a sua pata e procurassem atentamente o lugar da ferida. Assim fazendo, descobriram que espinhos haviam machucado a planta da pata. Todo cuidado foi dedicado ao leão, que, curado, passou a morar com eles quase como um animal doméstico.

Então Jerônimo percebeu que não era tanto para curar a pata do leão, quanto pela utilidade que disso se poderia tirar, que o Senhor o enviara. A conselho dos irmãos, decidiu confiar-lhe a tarefa de conduzir ao pasto e proteger o asno que a comunidade empregava para trazer lenha da floresta. Assim foi feito. O leão cuidava do asno como um hábil pastor, servia de companheiro que todos os dias ia aos campos com ele e era seu vigilante defensor enquanto ele pastava. Só o deixava um pouco para procurar seu próprio alimento, e todos os dias na mesma hora voltava com ele para casa. 

Um dia, porém, o asno estava pastando e o leão adormeceu profundamente, quando passaram por ali mercadores com camelos, que viram o asno sozinho e o raptaram. Ao acordar, não achando seu companheiro, o leão pôs-se a correr aqui e ali, rugindo. Enfim, não o encontrando, voltou muito triste para as portas do mosteiro, e cheio de vergonha não teve coragem de entrar como fazia habitualmente. Os irmãos, vendo-o voltar mais tarde que de costume e sem o asno, acharam que, levado pela fome, ele comera o animal e não quiseram lhe dar sua ração costumeira, dizendo-lhe: 'Vá comer o que sobrou do burrico, vá saciar a sua gula'. Entretanto, como não estavam certos de que ele tivesse cometido essa má ação, foram ao pasto ver se encontravam um indício de que o asno estava morto. Não encontraram nada e foram relatar tudo a Jerônimo, que impôs ao leão a função do asno: trazer nas costas a lenha cortada. O leão suportou isso com paciência. 

Um dia, depois de cumprida sua tarefa, foi ao campo e pôs-se a correr aqui e ali desejando saber o que fora feito de seu companheiro, quando viu ao longe chegar negociantes conduzindo camelos carregados, tendo um asno na frente. O hábito nessa região é que quando se percorre uma longa distância com camelos, estes, para seguir um caminho mais direto, são precedidos por um asno que os conduz por meio de uma corda presa ao pescoço. O leão reconheceu o asno, lançou-se com terríveis rugidos sobre os negociantes e pôs todos os homens em fuga... [Após o retorno do asno], o leão começou a correr pelo mosteiro, cheio de alegria, como fazia antigamente, prostrando-se aos pés de cada irmão. Parecia, brincando com a cauda, pedir perdão por uma falta que não cometera.

(Excertos da obra 'Legenda Áurea - Vidas de Santos, de Jacopo de Varazze)

Legenda Áurea constitui meramente um livro de devoção católica, acessível às pessoas comuns de todas as épocas, sem nenhum propósito de abordagem biográfica da vida dos santos sob o escopo da veracidade ou da confiabilidade histórica. Trata-se, portanto, de uma coletânea de fatos ficcionais e inverídicos (lendários) que, uma vez associados às virtudes heroicas específicas dos diferentes santos da Igreja, tinha por objetivo incrementar a devoção católica do leitor pelos santos para a sua própria santificação pessoal. Alguns deles serão publicados no blog. A excelência dos objetivos e resultados alcançados pela obra pode ser aferida pelo enorme sucesso das muitas e diversas versões e traduções realizadas desde a sua publicação original no século XIII. 

segunda-feira, 22 de maio de 2023

TESOURO DE EXEMPLOS (223/225)

223. O TEMOR DO JUÍZO

Na manhã de 14 de setembro do ano de 258, no campo Sextio, ainda molhado pelo orvalho da noite, degolaram o bispo de Cartago. Prenderam-no os inimigos de Cristo e conduziram-no ao tribunal do procônsul Galério, que lhe fez esta pergunta: 'És tu Táscio Cipriano?'. Ao que Cipriano respondeu com firmeza: 'Sou'. Galério ordenou: 'Que Táscio Cipriano seja degolado'. E o mártir respondeu: 'Deo gratias'.

Mas, quando os soldados se dispunham a executar a sentença; quando, despidos os ornamentos episcopais, os fieis estendiam os seus lenços para recolher o sangue que ia jorrar, o santo tremeu e cobrindo as faces com as mãos exclamou: 'Vae mihi cum ad judicium venero' - ou seja - 'Ai de mim quando vier o Juízo! Foi só por um instante, pois logo inclinou a cabeça e ofereceu a Deus o sacrifício. Se a lembrança do Juízo fazia tremer os mártires, o que será de nós? O que iremos dizer ao divino Juiz?

224. A VITÓRIA SERÁ NOSSA!

Santa Joana d'Arc estava no sítio de Orleans. Combatera por sete horas, sempre calma e intrépida no meio dos soldados. Era chegado o momento de tomar ao inimigo a famosa fortaleza de Tourelles. De repente avançou e tomou a escada para subir impetuosamente até à torre. Feriu-a no peito uma flecha. Jorrou o sangue. Ela empalideceu e tremeu indecisa no meio da escada. Chorando de dor e de medo, desceu a escada e recolheu-se para se curar. Era a debilidade humana. Os ingleses animaram-se e os franceses atemorizados cederam o campo e iniciam a retirada. 

Mas ao primeiro toque de clarim, Joana levanta-se, recorda-se da visão que tivera, das vozes que ouvira e faz uma breve oração. Em seguida, de um golpe arranca a flecha e com o peito manchado de sangue gritou: 'Avante! Seremos os vencedores!' E venceu.

Cristãos, a vida é uma batalha pela conquista do reino de Deus. Se algum dia nos assaltarem o temor e a debilidade, recordemos nossa fé, avivemos nossas convicções e fortaleçamo-nos com a oração. Em seguida, como Santa Joana, sigamos avante, seguros de que a vitória será nossa.

225. ANIMA VESTRA IN MANIBUS VESTRIS

O Pe. Segneri costumava contar o seguinte episódio. Havia na praça de Atenas um famoso adivinho, que a todos dava prognósticos, predizia o futuro e descobria o passado. Um dia, querendo zombar dele, apresentou-se um homem astuto que tinha um pequeno passarinho fechado na mão.
➖ Sabes dizer-me - perguntou ao adivinho - se este passarinho está vivo ou morto?
O astuto pensava assim: se ele disser que está morto, eu o deixarei voar mas, se disser que está vivo, eu o apertarei com o polegar e o matarei.

O adivinho, porém, foi mais esperto e respondeu: 'Cavalheiro, esse passarinho está como o senhor quiser: se o quiser vivo, está vivo; se morto, morto'. Todos os espectadores aplaudiram o adivinho.

Amigos, aquela sagaz resposta nós a podemos dirigir também a vós. Vossa alma será qual a quiserdes: se salva, salva; se condenada, condenada.
Anima vestra... in manibus vestris (a sua alma está em suas mãos).

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)