domingo, 21 de maio de 2023

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Por entre aclamações Deus se elevou, o Senhor subiu ao toque da trombeta(Sl 46)

Primeira Leitura (At 1,1-11) - Segunda Leitura (Ef 1,17-23)  -  Evangelho (Mt 28,16-20)

 21/05/2023 - Ascensão do Senhor

26. 'IDE E FAZEI DISCÍPULOS MEUS TODOS OS POVOS'


Antes de subir aos Céus, Jesus manifesta a seus discípulos (de ontem e de sempre) as bases do verdadeiro apostolado cristão, a ser levado a todos os povos e nações: 'Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!' (Mt 28, 18 - 20). Ratificando as mensagens proféticas do Antigo Testamento, Nosso Senhor imprime diretamente no coração humano os sinais da fé sobrenatural e da esperança definitiva na Boa Nova do Evangelho, que nasce, se transcende e se propaga com a Igreja de Cristo na terra.

Antes de subir aos Céus, Jesus nos fez testemunhas da esperança: 'Vós sereis testemunhas de tudo isso' (Lc 24, 48). Pela ação de Pentecostes, pela efusão do Espírito Santo, pela manifestação da 'Força do Alto', os apóstolos tornar-se-iam instrumentos da graça e da conversão de muitos povos e nações. Na mesma certeza, somos continuadores dessa aliança de Deus com os homens, na missão de semear a Boa Nova do Evangelho nos terrenos áridos da humanidade pecadora para depois colher, a cem por um, os frutos da redenção nos campos eternos da glória. Como missionários da graça, 'Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos' (Ef 1, 18).

E a sua derradeira proclamação aos discípulos é a sua promessa de estar sempre junto aos homens de todos os tempos, até a consumação dos séculos: 'Eis que estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo' (Mt 28, 20). Promessa que tem, para nós, membros do seu Corpo Vivo, que é a Santa Igreja, a dimensão de uma vitória antecipada, na feliz esperança de sermos partícipes de sua glória.

E Jesus se eleva diante dos seus discípulos e sobe para os Céus. Jesus vai primeiro porque é o Caminho e para preparar para cada um de nós 'as muitas moradas da casa do Pai'. Na solenidade da Ascensão do Senhor, a Igreja comemora a glorificação final de Jesus Cristo na terra, como o Filho de Deus Vivo e, ao mesmo tempo, imprime na nossa alma o legado cristão que nos tornou, neste dia, testemunhas da esperança eterna em Cristo e herdeiros dos Céus.

sábado, 20 de maio de 2023

OS GRANDES SINAIS PRECURSORES DO JUÍZO FINAL (III)

 

Erunt sigma in sole et luna et stellis 

'Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas' (Lc 21, 25)

Introdução

Esses sinais serão para os iníquos uma fonte de medo, angústia e pavor; mas, para os bons, uma fonte de alegria e exultação. Todos os cristãos católicos acreditam que, em seu segundo advento, Jesus Cristo virá como o Juiz dos vivos e dos mortos a este mundo; mas ninguém sabe o dia de sua vinda. No entanto, o mundo poderá aprender que o dia do julgamento está próximo pelos sinais que o próprio Cristo anunciou como precursores do último dia. O primeiro sinal, ou seja, o reinado do Anticristo, e o que temos a aprender com isso, já foi explanado. Passo agora a falar dos outros sinais.

Plano de Discurso

Haverá sinais terríveis nos céus e em todos os elementos. Estas e suas causas explicarei na primeira parte. Esses sinais serão para os iníquos uma fonte de medo, angústia e pavor; mas para os bons, uma fonte de alegria e exultação. Isso eu mostrarei na segunda parte. Pecadores, se desejais que o último dia não seja motivo de pavor para vós, convertei-vos! Cristãos fieis! Regozijai-vos se agora tiverdes que passar pelos tempos de tribulação! Esta deverá ser a conclusão. Ajudai-nos, ó justo Juiz, a cumpri-la pela vossa graça, que Vos pedimos pela intercessão de Maria e dos nossos santos anjos da guarda.

Primeira Parte

Quando aqueles três anos e meio do reinado do terrível perseguidor Anticristo tiverem expirado, então, diz Nosso Senhor no Evangelho de São Mateus - 'Imediatamente após a tribulação daqueles dias, o sol escurecerá e a lua não dará a sua luz, e as estrelas cairão do céu, e os poderes do céu serão abalados'¹. Assinale a palavra 'imediatamente'. Não devemos entender por isso que, no momento em que o Anticristo for precipitado no abismo, esses sinais serão visíveis. Não; pois, de acordo com os exegetas, a misericórdia de Deus concederá uma pausa de alguns meses, ou, como dizem alguns, de alguns anos, para que aqueles que foram pervertidos pelo Anticristo tenham tempo de se arrepender, pois será um tempo em que quase o mundo inteiro retornará a Cristo após a terrível apostasia. 

Mas, quando finalmente chegar a hora do julgamento geral, 'Haverá sinais no sol, e na lua e nas estrelas e, sobre a terra, angústia das nações, por causa da confusão do bramido do mar e das ondas'². O sol será privado do seu brilho e o dia tornar-se-á noite, tal como a escuridão se apossou do Egito: 'Houve uma escuridão terrível em toda a terra do Egito por três dias. Ninguém via um ao outro; e ninguém se levantou do lugar onde estava'³. A lua, de cor vermelho-sangue, aparecerá como um fantasma pavoroso à noite e as estrelas cairão do céu; não, rigorosamente falando, em termos das estrelas que Deus colocou no firmamento, pois onde poderiam cair? Não na Terra, porque, segundo os astrônomos, a menor estrela é muito maior que a Terra. Mas as estrelas esconder-se-ão como se tivessem realmente caído do firmamento e, ao mesmo tempo, um vapor incandescente de estrelas precipitar-se-á sobre o globo terrestre, como se o quisesse incendiar totalmente.

Todos os elementos serão perturbados; o ar ressoará com terríveis tempestades e trovões; o mar e todas as águas serão movimentadas por ondas poderosas subindo e descendo; a terra será abalada e quase dilacerada por terremotos que engolirão cidades inteiras, enquanto o fogo explodirá com grande estrondo nas montanhas e cavernas. Em uma palavra, as engrenagens do grande relógio do mundo estarão todas quebradas e desconjuntadas, como nos fala Luis de la Puente [teólogo espanhol - 1554/1624], como sinal de que a última hora do julgamento está próxima, e tal será o medo, a angústia, a aflição e o pavor dos homens, e o rugido e estertor das feras, que ninguém saberá para onde se virar ou o que fazer. Daí aquela velha expressão para distinguir o mau tempo: 'é como se fosse o último dia'.

E qual é o significado de tudo isso, meus queridos irmãos? Para 'que fim essa grande perturbação e consternação de todas as criaturas?' Primeiro, diz Abulensis [Alonso Tostado, bispo de Ávila, 1410/1455], é um sinal de compaixão, como se fosse um desmaio e agonia de toda a natureza às vésperas da destruição do mundo. Quando o chefe de família está à beira da morte, toda a família fica perturbada e confusa; a esposa chora e arranca os cabelos em agonia de dor; as crianças dão vazão à sua tristeza em gritos ruidosos; os parentes choram; os servos correm de um lado para o outro suspirando e gemendo; o dobre de finados toca as suas tristes notas na torre da igreja; amigos e vizinhos vestidos de luto chegam para o funeral. Tudo se consome em dor e lamentação. Assim será quando o fim do mundo se aproximar e a raça humana - o chefe desta família deste mundo - estiver dando os seus últimos suspiros; toda a natureza será tomada de medo e consternação; o céu perderá seus luminares e se revestirá com o traje negro da noite; os elementos devem, por assim dizer, chorar e ficar desorientados enquanto a atmosfera ressoando com trovões e furacões violentos será analogamente como o dobre de finados pelo mundo moribundo.

Além disso, esses sinais mostrarão a grande ira e o desagrado de Deus Todo Poderoso em relação aos homens pecadores. Os céus agora anunciam a glória de Deus, como diz o Profeta Davi: 'Os céus manifestam a glória de Deus, e o firmamento declara a obra de suas mãos'⁴. 'E então' - diz Barradius [Sebastião Barradas, teólogo português, 1543/1615] - 'eles declaram a ira de Deus contra os ímpios'⁵. Pois Deus fará com que todas as criaturas se levantem contra os pecadores; fazendo com que as estrelas percam a sua luz, Ele irá, por assim dizer, fechar as janelas pelas quais qualquer luz poderia penetrar na terra, para que Ele possa ferir o homem no escuro e sem misericórdia, como Isaías profetiza: 'Eis que virá o dia do Senhor, dia implacável, de furor e de cólera ardente, para reduzir a terra a um deserto, e dela exterminar os pecadores. Nem as estrelas do céu, nem suas constelações brilhantes, farão resplandecer sua luz; o sol se obscurecerá desde o nascer, e a lua já não enviará sua luz'. Punirei o mundo por seus crimes, e os pecadores por suas maldades. Abaterei o orgulho dos arrogantes e humilharei a arrogância dos poderosos'⁶.  'A lua vai corar de vergonha e o sol vai se empalidecer'⁷ 'porque' - acrescenta o Cardeal Hugo [cardeal dominicano francês, Hugo de Saint-Cher, 1200/1263]- 'eles serviram a tais mestres'⁸, mestres que foram tão ingratos ao seu Criador. Ora, segundo São Paulo, as criaturas servem aos pecadores contra a sua vontade e como que por força e necessidade: 'Porque a criatura foi sujeita à vaidade, não voluntariamente'; portanto, gemem sob o jugo de sua escravidão e suspiram pelo dia em que serão libertados dela, 'pois sabemos que toda criatura não para de gemer e dar à luz até hoje'⁹. O sol, a lua e as estrelas gemem e lastimam por ter que dar a sua luz aos homens para ser utilizada indevidamente por eles para ofender e insultar a Deus; a terra, o fogo, a água e o ar imploram, por assim dizer, ao Deus Todo Poderoso que os libertem da servidão aos homens pecadores. 

Isso acontecerá no fim do mundo, quando todas as criaturas serão elevadas e libertadas da escravidão, e então, como um único e poderoso exército, avançarão em bloco contra os ímpios para envergonhá-los, como lemos no Livro da Sabedoria: 'E seu zelo vai armá-los, cada criatura empunhará uma armadura para enfrentar os seus inimigos ... e o mundo inteiro lutará com Ele contra os insensatos'¹⁰. O sol declarará guerra, como Tamerlão [conquistador mongol do século XIV, 1336 /1405] fazia antigamente, com uma bandeira negra estendida; a lua tingida de sangue e as estrelas desordenadas e fora do seu curso começarão a batalha. Elas dirão que deram a sua bela luz gratuitamente e por tanto tempo aos pecadores que não eram dignos dela; que marcaram para eles as horas, dias, semanas, meses e anos; pela regularidade dos seus movimentos, foram exemplos da constância e obediência que deviam a Deus, mas que os homens pecadores preferiram seguir as sugestões do demônio, os prazeres da carne, os costumes e as regras de um mundo pervertido, em vez de obedecer à lei do seu Criador e também porque amaram mais as trevas do que a luz; e que, portanto, eis chegado o tempo do fim do servilismo em que, de agora em diante, serão para as infelizes criaturas apenas uma fonte de medo e de terror.

Da mesma forma, os quatro elementos reunidos entrarão em batalha contra os pecadores. O ar - que lhes deu fôlego e voz, para que pudessem respirar e falar; que permitiram as chuvas benéficas; no qual as aves cruzavam para seu deleite e nutrição - vai se projetar sobre eles por todos os lados, destruindo as construções pela violência de ventos contrários, arrancando as árvores pela raiz, explodindo em tempestades de granizo para matar os animais do campo, infestadas de trovões e relâmpagos e cenário de terríveis aparições, como nunca foram vistas nem mesmo no Egito no tempo do faraó perseguidor e nem em Jerusalém quando foi destruída, que encherão de pavor e consternação aos pecadores, com uma palavra de condenação: 'pois estenderam a mão contra Deus e desafiaram o Todo Poderoso'¹¹. 

A água que fornecia aos pecadores bebida, sal e peixes para a sua alimentação e que os servia como via de transporte de um país para outro na exploração dos seus negócios, ultrapassaria então os seus limites e inundaria a terra adjacente por toda parte; cheia de furor e em vergalhões contra os ímpios, pronto para engoli-los como fez com Jonas: 'Tenha vergonha, ó Sidon, pois o mar fala'¹². Os mares e as águas, vergados por ondas impetuosas, então dirão: 'Tenha vergonha, ó cristão, envergonhe-se de que nós, que não temos o entendimento de você, por quem Deus não morreu como morreu por você; que não temos castigo eterno a temer nem recompensas eternas a esperar como você - envergonhe-se de que ficamos por seis mil anos obedientes ao Criador e não nos movemos nem por um grão de areia além dos limites que Ele traçou para nós, mas sempre permanecemos nos domínios dos seus desígnios; enquanto você, ao contrário, dotado de razão e benefícios incontáveis, seduzido pela esperança do céu e pleno do temor de se perder no inferno, muitas vezes e deliberadamente transgrediu os mandamentos de Deus e chafurdou em um mar de vícios! Tenha vergonha de ser superado por uma coisa tão menor quanto nós, na obediência a Deus!'. Ó Deus Todo-Poderoso, as ondas clamarão ao subirem em direção ao céu, para mostrar a vossa justiça contra os pecadores e, como eles desprezaram viver no oceano da vossa misericórdia e buscar a vossa salvação! Deixai-os agora afundar no profundo abismo da vossa justiça e sentir o peso do vosso braço vingador! 

A terra que por tanto tempo serviu aos homens perversos para sua nutrição, roupas, moradia, remédios e prazer, suprindo-os com frutas, árvores, ervas e flores que produziu em abundância - a terra então se abrirá em mil estertores, clamando por vingança contra os pecadores por terem abusado de seus dons de maneira tão ingrata e indiferente. As feras sairão de suas cavernas e de suas tocas com uivos horríveis para perseguir estes infelizes por toda parte, enchendo-os de terror. O mundo inteiro lutará com Ele contra os insensatos; o universo pegará em armas movido pela ira de Deus contra os ímpios e os pecadores e, por meio de sua fúria, anunciará a todos o quão próximos está o dia terrível no qual o Juiz se vingará de todos os seus inimigos; aquele dia que o profeta Sofonias chama de 'o grande dia do Senhor': 'Terrível é o ruído que faz o dia do Senhor; o mais forte soltará gritos de amargura nesse dia; um dia de ira, dia de angústia e de aflição, dia de ruína e de devastação; dia de trevas e escuridão, dia de nuvens e de névoas espessas'¹³. Onde se esconderão, para encontrar conforto e consolação, quando o céu e a terra estiverem em tal desordem e unirem todas as suas forças para os atacar? Nosso Senhor já nos disse como os homens se sentirão nesse dia: 'Os homens definha­rão de medo, na expectativa dos males que devem sobrevir a toda a terra. As próprias forças dos céus serão abaladas'¹⁴. Mas isso só acontecerá com os pecadores pois, por mais terríveis que sejam os sinais que precederão o último dia, os servos de Deus encontrarão neles uma ocasião de júbilo e exultação, como veremos na Segunda Parte deste discurso.

1. Statim autem post tribulationem dierum illorum sol obscurabitur, et luna non dabit lumen suum, et stellae cadent de caelo, et virtutes caelorum commovebuntur (Mt 24,29).
2. Erunt signa in sole, et luna, et stellis, et in terris pressura gentium prae confusoe sonitus maris et fluctuum (Lc 21,25).
3. Factae sunt tenebrae horribiles in universa terra Egypti tribus diebus. Nemo vidit fratrem suum, nec movit se de loco in quo erat (Ex 10, 22-23).
4. Caeli enarrant gloriam Dei, et opera manuum ejus annuntiat firmamentum (Sl 17,2).
5. Tunc vero iram Dei, impiis annuntiabunt.
6. Ecce dies Domini veniet, crudelis, et indignationis plenus, et irae, furorisque, ad ponendam terram in solitudinem, et peccatores ejus contendondos de ea. Quoniam stellae caeli, et splendor earum, lumen suum não expansivo; obtenebratus est sol in ortu suo, et luna non splendebit in lumine suo. Et visitabo super orbis mala, et contra impios iniquitatem eorum; et quescere faciam superbian infidelium, et arrogantian fortium humiliabo (Is 8, 9-11).
7. Erubescet luna, et confundetur sol (Is 24, 23).
8. Quod talibus dominis servierunt.
9. Vanitati enim creatura subjecta est non volens. Scimus enim quod omnis creatura ingemiscit, et parturit usque adhuc (Rm 7, 20.22).
10. Accipiet armaturam zelus illius, et armabit creaturam ad ultionem inimicorum,….et pugnabit cum illo orbis terrarum contra insensatos (Sb 5, 18.21).
11. Tetendit adversus Deum manum suam, et contra Omnipotentem roboratus est (Jó 15, 25).
12. Erubesce Sidon; ait enim mare (Is 23,4).
13. Dies irae dies illa, dies tribulationis et angustiae, dies calamitatis et miseriae, dies tenebrarum et caliginis, dies nebulae et turbinis; vox diei Domini amara, tribulabitur ibi fortis (Sf  1, 14-15).
14. Arescentibus hominibus prae timore, et exspectatione, quae supervenient universo orbi (Lc 21,26).

(Excertos da obra 'Sermons on the Four Last Things' - Sermon 27, do Rev. Francis Hunolt /1694 -1746/, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 19 de maio de 2023

PALAVRAS DA SALVAÇÃO


A Deus pertenceis vós nesta vida mortal, servindo-o fielmente no meio dos trabalhos que tiverdes, levando a cruz, acompanhando-o na vida imortal, bendizendo-o eternamente com toda a corte celeste. O grande bem das nossas almas é o estar com Deus; nosso maior bem é pertencer só a Deus. Quem só pertence a Deus apenas se entristece por ter ofendido a Deus e a sua tristeza neste ponto consiste num profundo ato de humildade e submissão, sereno e pacífico, que então se eleva e é oferecido à bondade divina, com uma confiança doce e perfeita e sem qualquer temor ou despeito.

(São Francisco de Sales)

quinta-feira, 18 de maio de 2023

SOBRE COMO LEVAR AS NOSSAS CRUZES

Alegro-me do que padeço por vós, diz São Paulo, e estou cumprindo em minha carne o que resta de padecimentos a Cristo em seus membros, sofrendo trabalhos em prol de seu Corpo Místico, que é a Igreja: Gaudeo in passionibus, et adimpleo e aquae desunt passionum Christi, in carne mea, pro corpore ejus, quod est Ecclesia (Col 1, 24). A paixão de Jesus Cristo é completa e perfeita em si mesma. Sendo de um mérito infinito, ela é mais que suficiente para resgatar-nos. Contudo, falta-lhe algo que deve proceder de vós; falamos da parte que devemos tomar nos sofrimentos e méritos de Jesus Cristo, em uma palavra, de nossa cooperação. Não somente Jesus Cristo devia sofrer em si mesmo; deve também sofrer em seus membros; e, por esta comunidade de sofrimentos, seu Corpo, que é a Igreja, engrandece-se e aperfeiçoa- se.

Aceitando as penas e as dores da vida, os fieis participam dos méritos da Paixão, tornam-se semelhantes a Jesus Cristo Crucificado. Isto é o que quer dizer São Paulo com aquelas palavras: 'Estou cumprindo em minha carne o que resta de padecimentos a Cristo em seus membros, sofrendo trabalhos em prol de seu Corpo Místico, que é a Igreja'. Com a aceitação das cruzes, os fieis fazem-se participantes da natureza divina, como disse o Apóstolo São Pedro: Divinae consortes naturae (2 Pd 1, 4). Fazem-se também partícipes da glória de Jesus Cristo pela eternidade, diz São Paulo: Si tamen compatimur, ut et conglorificemur (Rm 8, 17). Aqui devemos observar com Santo Ambrósio, São João Crisóstomo e outros Doutores:

I – Que, como a Igreja é um corpo místico, animado de uma só e mesma alma, tendo uma mesma vida com Jesus Cristo, deve sofrer uma só e mesma paixão com Ele; da mesma maneira que, no corpo do homem, o sofrimento é comum à cabeça e aos membros. São Paulo é quem faz esta admirável comparação: Se um membro padece, todos os demais se compadecem; e, se um membro é honrado, todo os membros alegram-se com ele. Vós, pois, sois o Corpo Místico de Cristo e membros unidos a outros membros: Se quid patitur unum membrum, compatiuntur omnia membra; sive gloriatur unum membrum, congaudent omnia membra. Vos estis corpus Christi, em membra de membro (1 Cor 12, 26-27). Isso explica por que que Jesus Cristo não dizia a Saulo que perseguia a sua Igreja: 'Por que persegues a minha Igreja?', senão: 'Por que me persegues?' Quid me persequeris? (At 26, 14). Assim, como Jesus Cristo comunica sua graça e sua paciência, comunica também seus sofrimentos, e compadece-se dos que sofrem.

II – Cumpro em minha carne o que resta de padecimentos a Jesus Cristo, isto é, convém que anuncie o Evangelho e dê a conhecer Jesus Cristo às nações, a fim de que a Igreja cresça, aperfeiçoe-se e participe plenamente da paixão e redenção do Salvador.

III – Cumpro em minha carne o que resta de padecimentos a Jesus Cristo. Isto significa também que o fiel, com suas boas obras, aplica-se a participar da expiação operada por Jesus Cristo, e satisfaz, sofrendo a pena temporal devida ao pecado.

O fiel deve saber que toda a vida do cristão é de sofrimento interior ou exterior, enviado ou buscado voluntariamente. Deve aguardá-lo todos os dias e até desejá-lo. Porque, todos os dias, lançam-lhe flechas ou Deus, ou o demônio, o mundo, a carne, os amigos, os inimigos, ou as más línguas. 'Retesou seu arco, e fez de mim alvo de suas flechas' - Tetendit arcum suum, et possuir me quasi signum (soopum) as sagittam (Lm 3, 12). As enfermidades, os contratempos e as provações são flechas enviadas por Deus. O cristão também deve saber que estas flechas, de qualquer parte donde venham, são flechas de amor, e nunca de ódio.

Deus nos fere com flechas para abater a nossa desobediência e o nosso orgulho; para castigar nossos pecados e fazer-nos expiar como castigou os judeus; para destruir e, sobretudo, debilitar em nós a concupiscência da carne. Ele lança contra nós flechas como enfermidades, contradições, decepções e remorsos, obrigando-nos deste modo a combater e vencer estas inclinações; para guiar o homem pelo caminho da paciência, da santidade e da perfeição; assim feriu Deus a Jó e a Tobias; para aproximar o homem a Jesus Cristo, e fazer-lhe semelhante a Ele.

Deus resolveu manifestar, com a admirável paciência dos santos, a virtude de sua Cruz. Ele mesmo, ao vir ao mundo, não escolheu outros bens senão os sofrimentos e o Calvário. Quereis encontrar a Deus? Buscai a Cruz, pois nela Ele está pregado; ali, tão somente ali, achá-lo-eis. Se vos encontrais sobrecarregado de pesares, alegrai-vos; encontrastes a Jesus Cristo, e agora estais com Ele. 'Bem aventurados aqueles que padecem perseguições por causa da justiça, pois deles é o Reino dos Céus' - Beati qui persecutionem patiuntur propter justitiam, quoniam ipsorum est regnum coelorum (Mt 5, 10). 'Ditosos sereis quando os homens, por minha causa, vos amaldiçoarem, e vos perseguirem, e disserem com mentira toda sorte de males contra vós. Alegrai-vos, então, e regozijai-vos, porque é muito grande a recompensa que vos aguarda nos Céus' (Mt 5, 11-12).

Quando sofreis, Deus está convosco. O próprio Deus o diz pela boca do Profeta: 'Estarei com ele em suas tribulações, salvar-lhe-ei e o cumularei de glória. Eu o saciarei com uma vida muito longa, e lhe farei ver o Salvador que enviarei' - Cum ipso sum in tribulatione, eripiam eum et glorificabo eum. Longitudine dierum replebo eum, et ostendam illi salutare meum (Sl 90, 15-16). Quando Santo Antônio, depois dos terríveis combates que tinha de sustentar contra os demônios, dizia a Jesus Cristo: 'Onde estavas, ó bom Jesus? - Ubi eras, bone Jesu?. 'Antônio, eu estava contigo' - respondia-lhe Jesus - 'pois queria te ver combater' (Vit. Patr.).

Deus fere ao homem a flechadas para matar nele os desejos e os pensamentos mundanos, e fazer entrar em sua alma os pensamentos e desejos do Céu. Assim é como o Senhor prepara o homem para entrar na cidade dos eleitos, segundo aquelas palavras da Escritura: 'É preciso passar por muitas tribulações para entrar no Reino de Deus' - Peer multas tribulationes oportet nos intrate in regnum Dei (At 14, 12); e aquelas outras palavras de Jesus Cristo: 'o Reino dos Céus alcança-se à viva força, e somente aqueles que fazem violência a si mesmos são os que se apoderam dele' - Regnum coelorum vim patibur, et violenti rapiunt illud (Mt 11, 12).

Saiba bem o cristão que deve sofrer todos os dias de sua vida, e estar constantemente estendido sobre a Cruz, para ser alvo das flechas de Deus. Ainda mais: não deve cessar de pedir a Deus alguma aflição, como fazia São Francisco Xavier que, em seus contínuos e penosos trabalhos, em suas provações e perseguições sem número, rogava a Deus que não lhe privasse das cruzes que detinha; e que estas fossem sempre em maior número (In ejus vita).

Para levar com resignação as cruzes e triunfar das provações, pensemos que nós nos encontramos colocados na terra como um alvo para as flechas de Deus, e achemo-nos dispostos a receber com paciência e valor todas as tribulações que, vindas do Céu, tendem à glória de Deus e à nossa salvação. Tenhamos nossa alma unida a Deus pela fé, a esperança e o amor. Aquele que vive com o pensamento e, sobretudo, com os desejos dos bem aventurados, olha os bens e os males deste mundo como pouca coisa. Elevemos, pois, nossa alma sobre as coisas da terra, façamo-la sair, de certo modo, de nosso corpo para colocá-la entre os anjos: Nostra conversatio in coelis est (Fl 3, 20).

Quando assim acontecer, a nossa alma tornar-se-á mais forte que as cruzes, com resignação e paciência, e já não as sentirá e nem as consentirá. Então, exclamava São Paulo: 'Estou inundado de consolo; transbordo de gozo em meio de todas as minhas tribulações' - repletus sum consolatione; superabundo gaudio in omni tribulatione nostra (2 Cor 8, 4). Sigamos Jesus Cristo ao Calvário. Verifiquemos quantos milhares de cristãos, crianças, mulheres, anciãos e de todas as condições, de geração em geração, desde tantos séculos, dirigem-se até aquela montanha de salvação eterna e sobem até o seu cume, levando a Cruz sobre os ombros. Sigamos todos eles no caminho do Céu.

(Dos Tesouros de Cornélio à Lápide)

quarta-feira, 17 de maio de 2023

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (XIX)

Constituição Apostólica DEI FILIUS [24 de abril de 1870]

Concílio Vaticano I (1869 - 1870) - Papa Pio IX (1846 - 1878)

sobre a fé católica
 

Agora, nós, juntamente com todos os bispos do mundo que conosco governam a Igreja, congregados no Espírito Santo neste Concílio Ecumênico, sob a nossa autoridade e apoiados na palavra de Deus, quer escrita quer transmitida por Tradição, conforme a recebemos santamente conservada e genuinamente exposta pela Igreja Católica, resolvemos professar e declarar, desta cátedra de Pedro, diante de todos, a salutar doutrina de Cristo, proscrevendo e condenando, com o poder divino a nós confiado, os erros contrários.

I. – Deus, Criador de todas as coisas

A Santa Igreja Católica Apostólica Romana crê e confessa que há um [só] Deus verdadeiro e vivo, Criador e Senhor do céu e da terra, onipotente, eterno, imenso, incompreensível, infinito em intelecto, vontade e toda a perfeição; o qual, sendo uma substância espiritual una e singular, inteiramente simples e incomunicável, é real e essencialmente distinto do mundo, sumamente feliz em si e por si mesmo, e está inefavelmente acima de tudo o que existe ou fora dele se possa conceber (cân. 1-4).

Este único e verdadeiro Deus, por sua bondade e por sua virtude onipotente, não para adquirir nova felicidade ou para aumentá-la, mas a fim de manifestar a sua perfeição pelos bens que prodigaliza às criaturas, com vontade plenamente livre, criou simultaneamente no início do tempo ambas as criaturas do nada: a espiritual e a corporal, ou seja, os anjos e o mundo; e em seguida a humana, constituída de espírito e corpo (IV Concílio de Latrão).

Tudo o que Deus criou, conserva-o e governa-o com a sua providência, atingindo fortemente desde uma extremidade a outra, e dispondo de todas as coisas com suavidade (cf Sb 8,1). Pois tudo está nu e descoberto aos seus olhos (Hb 4,13), mesmo os atos dependentes da ação livre das criaturas.

II – A Revelação

A mesma Santa Igreja crê e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas; pois as perfeições invisíveis tornaram-se visíveis depois da criação do mundo, pelo conhecimento que as suas obras nos dão dele (Rm 1,20); Mas que aprouve à sua misericórdia e bondade revelar-se a si e os eternos decretos da sua vontade ao gênero humano por outra via, e esta sobrenatural, conforme testemunha o Apóstolo: 'Havendo Deus outrora falado aos pais pelos profetas, muitas vezes e de muitos modos, ultimamente, nestes dias, falou-nos pelo Filho' (Hb 1,1- ; cân. 1).

A esta revelação divina deve-se certamente atribuir o poder em todos, mesmo nas condições atuais do gênero humano, conhecer expeditamente, com firme certeza e sem mistura de erro, aquilo que nas coisas divinas não é de per si inacessível à razão humana. Contudo, não se deve dizer que a revelação é absolutamente necessária por este motivo, mas porque Deus, em sua infinita bondade, ordenou o homem para o fim sobrenatural, isto é, para participar dos bens divinos, que estão inteiramente acima da compreensão humana; pois 'nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem penetrou no coração do homem, o que Deus preparou para aqueles que o amam' (1Cor 2,9 ; cân. 2 e 3).

Esta revelação sobrenatural, porém, segundo a doutrina da Igreja universal, definida pelo Concílio Tridentino, está contida nos livros e nas tradições não escritas que, recebidas pelos Apóstolos da boca do próprio Cristo, ou que transmitidas como que mão em mão pelos próprios Apóstolos sob a inspiração do Espírito Santo, chegaram até nós (Concílio Tridentino). E estes livros do Antigo e do Novo Testamento, inteiros e com todas as suas partes, conforme vêm enumerados no decreto do mesmo Concílio e se encontram na antiga edição latina da Vulgata, devem ser aceitos como sagrados e canônicos. E a Santa Igreja os tem como tais, não por terem sido redigidos somente por obra humana e em seguida aprovados pela sua autoridade, nem somente por conterem a revelação isenta de erro, mas porque, escritos sob a inspiração do Espírito Santo, têm a Deus por autor, e como tais foram confiados à mesma Igreja (cân. 4).

Todavia, já que o salutar decreto dado pelo Concílio Tridentino sobre a interpretação da Sagrada Escritura, para corrigir espíritos petulantes, é erradamente exposto por alguns, nós, renovando o mesmo decreto, declaramos que o seu sentido é que, nas coisas da fé e da moral, pertencentes à estrutura da doutrina cristã, deve-se ter por verdadeiro sentido da Sagrada Escritura aquele que foi e é mantido pela Santa Madre Igreja, a quem compete decidir do verdadeiro sentido e da interpretação da Sagrada Escritura; e que, por conseguinte, a ninguém é permitido interpretar a mesma Sagrada Escritura contrariamente a este sentido ou também contra o consenso unânime dos Santos Padres.

III – A fé

Visto que o homem depende inteiramente de Deus como seu Criador e Senhor, e que a razão criada está inteiramente sujeita à Verdade incriada, somos obrigados a prestar, pela fé, à revelação de Deus, plena adesão do intelecto e da vontade (cân. 1). Esta fé, porém, que é o início da salvação humana, a Igreja a define como uma virtude sobrenatural pela qual, inspirados e ajudados pela graça, cremos ser verdade o que Deus revelou, não devido à verdade intrínseca das coisas, conhecida pela luz natural da razão, mas em virtude da autoridade do próprio Deus, autor da revelação, que não pode enganar-se nem enganar (cân.2). Pois, segundo o testemunho do Apóstolo, 'a fé é o fundamento firme das coisas esperadas, uma prova das coisas que não se vê' (Hb 11,1).

Não obstante, para que a homenagem de nossa fé estivesse em conformidade com a razão (cf Rm 12,1), quis Deus ajuntar ao auxílio interno do Espírito Santo os argumentos externos da sua revelação, isto é, os fatos divinos, e sobretudo os milagres e as profecias, que, por demonstrarem abundantemente a onipotência e a ciência infinita de Deus, são sinais certíssimos as revelação divina, acomodados que são à inteligência de todos (cân. 3 e 4). Foi por isso que Moisés, os profetas e principalmente o próprio Jesus Cristo fizeram muitos e manifestíssimos sinais e profecias; e dos Apóstolos lemos: 'Eles, porém, partiram e pregaram em toda a parte, cooperando com eles o Senhor e confirmando a sua palavra com os sinais que a acompanhavam' (Mc 16,20). E em outro texto se lê: 'E temos ainda mais firme a palavra dos profetas, à qual fazeis bem de atender, como a uma candeia que alumia em um lugar tenebroso (2Pd 1,19).

Embora, porém, a adesão da fé não seja de modo algum um movimento cego do espírito, ninguém, contudo, pode crer na pregação evangélica, como se exige para conseguir a salvação, sem a iluminação e a inspiração do Espírito Santo, que a todos faz encontrar doçura em consentir e crer na verdade (Concílio II Arausicano). Pelo que, a própria fé em si, embora não opere pela caridade (cf Gl 5,6 ), é um dom de Deus, e o seu exercício é um ato salutar, pelo qual o homem presta livre obediência ao próprio Deus, prestando consentimento e cooperação à sua graça, à qual poderia resistir (cân. 5). Deve-se, pois, crer com fé divina e católica, tudo o que está contido na palavra divina escrita ou transmitida pela Tradição, bem como tudo o que a Igreja, quer em declaração solene, quer pelo Magistério ordinário e universal, nos propõe a crer como revelado por Deus.

Como, porém, sem a fé é impossível agradar a Deus (Hb 11,6) e chegar ao consórcio dos seus filhos, ninguém jamais pode ser justificado sem ela, nem conseguir a vida eterna se nela não permanecer até o fim (Mt 10,22;24,13). E para que pudéssemos cumprir o dever de abraçar a verdadeira fé e nela perseverar constantemente, Deus instituiu, por meio de seu Filho Unigênito, a Igreja, e a muniu com os sinais manifestos da sua instituição, para que pudesse ser por todos reconhecida como guarda e mestra da palavra revelada.

Porquanto somente à Igreja Católica pertencem todos os caracteres, tão numerosos e tão admiravelmente estabelecidos por Deus, para tornar evidente a credibilidade da fé cristã. Além disso, a Igreja em si mesma, pela sua admirável propagação, exímia santidade e inesgotável fecundidade em todos os bens, pela sua unidade católica e invicta estabilidade, é um grave e perpétuo motivo de credibilidade, e um testemunho irrefragável da sua missão divina. Donde resulta que a mesma Igreja, como um estandarte que se ergue no meio das nações (Is 11,12), não só convida os incrédulos a entrarem no seu grêmio, mas também garante a seus filhos que a fé que professam se baseia em fundamento firmíssimo. 

A este testemunho acresce o auxílio eficaz da virtude do alto. Porquanto o benigníssimo Senhor excita e ajuda com a sua graça os que vagueiam no erro, a fim de poderem chegar ao conhecimento da verdade (1Tm 2,4). E aos que chamou das trevas à luz maravilhosa (1Pd 2,9), confirma-os com sua graça, para que permaneçam nesta mesma luz, não os abandonando senão quando primeiro abandonado por eles. Pelo que, de maneira alguma é igual a condição daqueles que, pelo dom celeste da fé, abraçaram a verdade católica, e dos que, levados por opiniões humanas, seguem uma religião falsa; pois os que receberam a fé sob o Magistério da Igreja, jamais poderão ter justa razão de alterar ou por em dúvida esta mesma fé (cân. 6). E por isso, dando graças a Deus Pai, que nos fez idôneos de participar da sorte dos santos na luz (Cl 1,12), não menosprezemos tão grande vantagem, mas, pondo os olhos em Jesus, autor e consumador da fé (Hb 12,2), conservemos firme a profissão da nossa esperança (Hb 10,23).

IV – A fé e a razão

O consenso constante da Igreja Católica tem também crido e crê que há duas ordens de conhecimento, distintas não só por seu princípio, mas também por seu objeto; por seu princípio, visto que numa conhecemos pela razão natural, e na outra pela fé divina; e por seu objeto, porque, além daquilo que a razão natural pode atingir, propõe-nos a crer mistérios escondidos em Deus, que não podemos conhecer sem a revelação divina (cân. 1). E eis porque o Apóstolo, que assegura que os gentios conheceram a Deus por meio das suas obras (Rm 1,20), discorrendo, todavia, sobre a graça e verdade que foram anunciadas por Jesus Cristo (cf Jo 1,17), diz: 'Falamos da sabedoria de Deus em mistério, que fora descoberta e que Deus predestinou antes dos séculos, para nossa glória. A qual nenhum dos poderosos deste mundo conheceu… a nós, porém, o revelou Deus pelo seu Espírito; porque o Espírito tudo penetra, também as coisas profundas de Deus' (1Cor 7,8-10). E o próprio Unigênito glorifica ao Pai, porque escondeu essas coisas aos sábios e entendidos e as revelou aos pequeninos (cf Mt 11,25).

Em verdade, a razão, iluminada pela fé, quando investiga diligente, pia e sobriamente, consegue, com a ajuda de Deus, alguma compreensão dos mistérios e ser esta frutuosíssima, seja pela analogia das coisas conhecidas naturalmente ou seja pela conexão dos próprios mistérios entre si e com o fim último do homem; nunca, porém, se torna capaz de compreendê-los como compreende as verdades que constituem o seu objeto próprio, pois os mistérios divinos, por sua própria natureza, excedem de tal modo a inteligência criada, que, mesmo depois de revelados e aceitos pela fé, permanecem ainda encobertos com os véus da mesma fé, e como que envoltos em um nevoeiro, enquanto durante esta vida vivermos ausentes do Senhor; pois andamos guiados pela fé, e não pela contemplação (2Cor 5,6-).

Porém, ainda que a fé esteja acima da razão, jamais pode haver verdadeira desarmonia entre uma e outra, porquanto o mesmo Deus que revela os mistérios e infunde a fé, dotou o espírito humano da luz da razão; e Deus não pode negar-se a si mesmo, nem a verdade jamais contradizer à verdade. A vã aparência de tal contradição nasce principalmente ou de os dogmas da fé não terem sido entendidos e expostos segundo a mente da Igreja ou de se terem as simples opiniões em conta de axiomas certos da razão. Por conseguinte, definimos como inteiramente falsas qualquer asserção contrária a uma verdade de fé (V Concílio de Latrão).

Ademais a Igreja que, juntamente com o múnus apostólico de ensinar, recebeu o mandato de guardar o depósito da fé, tem também de Deus o direito e o dever de proscrever a ciência falsa (1Tm 6,20), a fim de que ninguém se deixe iludir pela filosofia ou por sofismas pagãos (cf Cl 2,8; cân 2). Eis por que não só é vedado a todos os cristãos defender como legítimas conclusões da ciência tais opiniões reconhecidamente contrárias à fé, máxime se tiverem sido reprovadas pela Igreja, mas ainda estão inteiramente obrigados a tê-las por conta de erros, revestidas de uma falsa aparência de verdade.

E não só não pode jamais haver desarmonia entre fé e a razão, mas uma serve de auxílio à outra, visto que a reta razão demonstra os fundamentos da fé, e cultiva, iluminada com a luz desta, a ciência das coisas divinas; e a fé livra e guarda a razão dos erros, enriquecendo-a de múltiplos conhecimentos. Por isso a Igreja, longe de se opor ao cultivo das artes e das ciências humanas, até as auxilia e promove de muitos modos. Porquanto não ignora nem despreza as vantagens que delas dimanam para a vida humana; pelo contrário, ensina que, derivando elas de Deus, o Senhor das ciências (1Rs 2,3), se forem bem empregadas, conduzem para Deus, com o auxílio de sua graça. Nem proíbe que tais disciplinas, dentro de seu respectivo âmbito, façam uso de seus princípios e métodos próprios; mas, reconhecendo embora esta justa liberdade, admoesta cuidadosamente que não admitam em si erros contrários à doutrina de Deus ou ultrapassem os próprios limites, invadindo e perturbando o que é do domínio da fé.

Pois a doutrina da fé, que Deus revelou, não foi proposta ao engenho humano como uma descoberta filosófica a ser por ele aperfeiçoada, mas foi entregue à Esposa de Cristo como um depósito divino, para ser por ela finalmente guardada e infalivelmente ensinada. Daí segue que sempre se deve ter por verdadeiro sentido dos dogmas aquele que a Santa Madre Igreja uma vez tenha declarado, não sendo jamais permitido, nem a título de uma inteligência mais elevada, afastar-se deste sentido (cân. 3). Cresçam, pois, e multipliquem-se abundantemente, tanto em cada um como em todos, tanto no homem individual como em toda a Igreja, segundo o progresso das idades e dos séculos, a inteligência, a ciência e a sabedoria, mas somente no seu gênero, isto é, na mesma doutrina, no mesmo sentido e no mesmo pensamento (Vicente de Lirino, Commonitorium, nº 28 - ML 50, 668 c. 23).

Cânones Sobre a Fé Católica

Sobre Deus - Criador de todas as coisas

Cân. 1 – Se alguém negar que há um só Deus verdadeiro, Criador e Senhor das coisas visíveis e invisíveis – seja excomungado [cf nº 1782].

Cân. 2 – Se alguém não envergonhar de afirmar que além da matéria nada existe – seja excomungado [cf nº 1783].

Cân. 3 – Se alguém disser que a substância ou essência de Deus é a mesma que a substância ou essência de todas as coisas – seja excomungado [cf nº 1782].

Cân. 4 – Se alguém disser que as coisas finitas tanto as corpóreas como as espirituais, ou ao menos as espirituais, emanaram da substância divina; ou que pela manifestação ou evolução da essência divina se originaram todas as coisas; ou, finalmente, que Deus é um ser universal ou indefinido, que, ao ir-se determinando, daria origem à universalidade das coisas, distinta em gênero, espécie e nos indivíduos – seja excomungado.

Cân. 5 – Se alguém não professar que o mundo e todas as coisas nele contidas, quer espirituais, quer materiais, foram por Deus tiradas do nada segundo toda a sua substância [cf nº 1783]; ou disser que Deus criou, não com vontade inteiramente livre, mas com a mesma necessidade com que se ama a si mesmo [cf. nº 1783]; ou negar que o mundo foi feito para a glória de Deus – seja excomungado.

Sobre a revelação

Cân.1 – Se alguém disser que o Deus uno e verdadeiro, Criador e Senhor nosso, não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas – seja excomungado [cf nº 1785].

Cân. 2 – Se alguém afirmar ser impossível ou ao menos inconveniente que o homem seja instruído por revelação divina sobre Deus e o culto a ele devido – seja excomungado [cf nº 1786].

Cân. 3 – Se alguém disser que o homem não pode ser por Deus guindado a um conhecimento e perfeição que excedam o natural, mas que ele se deve por si mesmo, progredindo sempre, chegar finalmente a possessão de toda a verdade e de todo o bem – seja excomungado.

Cân. 4 – Se alguém não admitir como sagrados e canônicos os livros da Sagrada Escritura, inteiros e com todas as suas partes, conforme foram enumerados pelo sacrossanto Concílio de Trento, ou lhes negar a inspiração divina – seja excomungado.

Sobre a fé

Cân. 1 – Se alguém afirmar que a razão humana é de tal modo independente, que Deus não possa impor-lhe a fé – seja excomungado [cf nº 1789]

Cân. 2 – Se alguém disser que a fé divina não se distingue do conhecimento natural de Deus e da moral, e que portanto para a fé divina não se requer que a verdade revelada seja crida por causa da autoridade de Deus que a revela – seja excomungado [cf nº 1789].

Cân. 3 – Se alguém disser que a revelação divina não pode tornar-se mais compreensível por meio de sinais externos, e que portanto os homens devem ser motivados à fé só, pela experiência interna individual ou por inspiração privada – seja excomungado [cf nº1790].

Se alguém disser que não pode haver milagres, e que portanto todas as narrações deles, também aquelas contidas na Sagrada Escritura, se devem relegar ao reino da fábula e do mito; ou disser que os milagres nunca podem ser conhecidos com certeza, nem se pode por eles provar a origem divina da religião cristã – seja excomungado [cf nº 1790].

Cân. 5 – Se alguém disser que o assentimento à fé cristã não é livre, mas resulta necessário dos argumentos da razão humana; ou disser que a graça de Deus só é necessária para a fé viva, que opera pela caridade [Gl 5,6 ] – seja excomungado [cf nº 1795-].

Cân. 6 – Se alguém afirmar ser idêntica a condição dos fiéis e a daqueles que ainda não chegaram a fé única e verdadeira, assim que os católicos possam ter justa razão para duvidar da fé que abraçaram sob o Magistério da Igreja, suspendendo o assentimento até terem concluído a demonstração científica da credibilidade e veracidade da sua fé – seja excomungado [cf. nº 1795 s].

Sobre a fé e a razão

Cân. 1 – Se alguém disser que na revelação divina não há nenhum mistério verdadeiro e propriamente dito, mas que todos os dogmas da fé podem ser compreendidos e demonstrados pela razão, devidamente cultivada, por meio dos princípios naturais – seja excomungado [cf nº 1795].

Cân. 2 – Se alguém disser que as ciências humanas devem ser tratadas com tal liberdade que as suas conclusões, embora contrárias à doutrina revelada, possam ser retidas como verdadeiras e não possam ser proscritas pela Igreja – seja excomungado [cf nº 1797-1799].

Cân. 3 – Se alguém disser que às vezes, conforme o progresso das ciências, se pode atribuir aos dogmas propostos pela Igreja um sentido diverso daquele que ensinou e ensina a Igreja – seja excomungado [cf nº 1800].

Por isso nós, cumprindo o supremo ofício pastoral que nos cabe exercer, pedimos insistentemente, na intimidade do coração de Jesus Cristo, a todos os fiéis cristãos, especialmente aos chefes e aos que exercem o ofício de ensinar, e mandamos, com a autoridade do mesmo Deus e Salvador nosso, que se esforcem por eliminar e afastar da Santa Igreja tais erros, e por difundir a luz da fé pura e verdadeira. Porém, já que não é possível evitar a heresia, a não ser fugindo também daqueles erros que se aproximam mais ou menos dela, lembramos a todos o dever de observar também as Constituições e os Decretos pelos quais esta Santa Sé proscreve e proíbe tais opiniões perversas, mas que não vêm aqui enumeradas.

terça-feira, 16 de maio de 2023

SOBRE A ORAÇÃO NOTURNA

 

A oração feita durante a noite tem um grande poder, maior do que aquela que é feita durante o dia. É por isso que todos os santos tinham o hábito de rezar à noite, combatendo a sonolência do corpo e o deleite do sono, vencendo a sua natureza física. O salmista assim se expressa: 'Estou exausto de tanto gemer: à noite choro na cama, rego o meu leito com lágrimas' (Sl 6,7), enquanto suspirava do fundo do coração com uma oração apaixonada. E em outro lugar ele diz: 'Levanto-me em meio à noite para agradecer os seus justos julgamentos' (Sl 118, 62). Para cada um dos pedidos que os santos queriam dirigir a Deus com confiança redobrada, eles se armavam da oração durante a noite e assim recebiam o que pediam.

O próprio Satanás nada teme tanto quanto a oração oferecida durante as vigílias. Embora sejam acompanhadas de distrações, não param de dar frutos, a menos que se peça o que não convém. Por isso, o diabo trava duras batalhas contra aqueles que fazem vigílias à noite, para fazê-los recuar desta prática, tanto quanto possível, principalmente se mostrarem ser nela perseverantes. Mas aqueles que combatem com fervor essas astúcias perniciosas e acolhem os dons de Deus concedidos nestas vigílias, experimentam pessoalmente grandes graças, desprezando e superando todas as investidas do mal e todos os seus estratagemas. 

('Sermões Ascéticos', de Santo Isaac da Síria)

segunda-feira, 15 de maio de 2023

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LVI)

 

Capítulo LVI

Auxílio às Santas Almas - A Santa Missa - A Aparição de Eugenie Van de Kerchove - O Camponês e o Príncipe Polonês

Nada é mais conforme ao espírito cristão do que oferecer o Santo Sacrifício para o alívio das almas que partiram, e seria uma grande desgraça se o zelo dos fieis esfriasse a esse respeito. Deus parece multiplicar prodígios para nos impedir de cair em tão fatal relaxamento. O seguinte incidente é atestado por um digno padre da diocese de Bruges, que o recebeu de sua fonte primitiva, e cujo testemunho carrega toda a certeza de uma testemunha ocular sobre o fato. Em 13 de outubro de 1849, morreu com a idade de cinquenta e dois anos, na freguesia de Ardoye, na Flandres, uma mulher chamada Eugenie Van de Kerchove, cujo marido, John Wybo, era agricultor. Ela era uma mulher piedosa e caridosa, dando esmolas com uma generosidade proporcional aos seus meios.

Ela teve, até o fim de sua vida, uma grande devoção à Santíssima Virgem e, em sua honra, fazia abstinência nas sextas-feiras e nos sábados de cada semana. Embora sua conduta não fosse isenta de certas falhas domésticas, ela levou uma vida exemplar e edificante. Uma criada chamada Barbara Vennecke, de vinte e oito anos, uma jovem virtuosa e dedicada, e que havia ajudado sua patroa nos momentos finais de doença, continuou a servir a John Wybo, o viúvo de Eugenie.

Cerca de três semanas após a sua morte, a falecida apareceu à sua serva em circunstâncias que vamos relatar. Foi no meio da noite; Bárbara dormia profundamente, quando ouviu distintamente ser chamada três vezes pelo seu nome. Ela acordou sobressaltada e viu diante de si a sua patroa, sentada ao lado de sua cama, vestida em roupas de serviço, compostas por saia e jaqueta curta. Diante da visão, por estranho que pareça, Bárbara não se assustou nem um pouco e conservou a sua presença de espírito. A aparição falou com ela: 'Bárbara' - disse, simplesmente pronunciando seu nome.  'O que você deseja, Eugenie?' - respondeu a serva. 'Pegue o pequeno ancinho que muitas vezes lhe disse para colocar em seu lugar; remexa o monte de areia no quartinho; você sabe ao qual me refiro. Lá você encontrará uma certa quantia em dinheiro; use-a para rezar missas em minha intenção, dois francos para cada uma, pois ainda estou sofrendo'. 'Farei isso, Eugenie' - respondeu Bárbara, e no mesmo instante a aparição desapareceu. A serva, ainda bastante serena, adormeceu novamente e repousou tranquilamente até de manhã.

Ao acordar, Bárbara acreditou ter sido tudo um sonho, mas estava profundamente impressionada, pois tinha a impressão de ter ficado desperta e ter visto a sua velha patroa de forma tão distinta e tão cheia de vida, e da qual recebera instruções tão precisas, que não pôde deixar de pensar: 'Não é assim que sonhamos; vi a minha senhora pessoalmente; ela se apresentou diante dos meus olhos e falou comigo. Isto não é um sonho, mas uma realidade'. A seguir, ela pegou o ancinho conforme lhe fôra indicado, remexeu na areia e ali encontrou uma bolsa contendo a quantia de quinhentos francos.

Diante de circunstâncias tão estranhas e extraordinárias, a jovem julgou ser seu dever consultar o pastor e foi relatar-lhe tudo o que havia acontecido. O venerável Abade R., então pároco de Ardoye, respondeu que as missas pedidas pela falecida deviam ser celebradas mas, considerando a quantia em dinheiro, era necessário o consentimento prévio do marido. Este último consentiu de bom grado que o dinheiro fosse empregado para tão santo propósito, e as missas foram celebradas, sendo aplicados dois francos por cada missa. Chamamos a atenção para a circunstância da taxa, porque correspondia ao piedoso costume da falecida. A taxa para uma missa fixada pela tarifa diocesana à época era de cerca de um franco e meio, mas a esposa de Wybo, por consideração pessoal e ao clero, obrigado naquele momento de escassez a socorrer um grande número de pobres, concedia dois francos para cada missa que costumava celebrar.

Dois meses após a primeira aparição, Bárbara foi novamente acordada durante a noite. Desta vez, seu quarto foi iluminado por uma luz brilhante, e sua senhora revelou-se tão bela quanto nos seus dias de juventude, vestida com um manto de deslumbrante brancura, olhando-a com um sorriso amável. 'Bárbara' - disse com uma voz clara e audível - 'eu te agradeço; estou libertada'. Dizendo essas palavras, ela desapareceu e o quarto tornou-se escuro como antes. A serva, maravilhada com o que tinha visto, foi tomada de grande alegria. Essa aparição causou a impressão mais viva em sua mente, e ela preserva até hoje a lembrança mais consoladora de tudo. É dela que temos esses detalhes tão específicos, por especial concessão do venerável abade R., então pároco em Ardoye quando esses fatos ocorreram.

O célebre Padre Lacordaire, no início das conferências sobre a imortalidade da alma, que ministrou alguns anos antes de sua morte aos alunos de Soreze, relatou-lhes o seguinte incidente: o príncipe polonês de X., infiel e materialista declarado, acabara de compor uma obra contra a imortalidade da alma. Ele estava a ponto de enviá-la  à imprensa quando certo dia, passeando pelos seus parques, encontrou uma mulher que, em prantos, prostrou-se aos seus pés e tomada de profunda dor lhe disse: 'Meu bom príncipe, meu marido acaba de falecer. Neste momento, a sua alma talvez esteja sofrendo no Purgatório. Estou em estado de tal pobreza que não tenho nem mesmo a pequena quantia necessária para celebrar uma missa pelos defuntos. Por sua bondade, intervenha em meu auxílio em favor da alma do meu pobre marido'.

Embora o príncipe estivesse convencido da falsa credulidade daquela mulher, não teve coragem de recusar o seu pedido, dando-lhe então uma moeda de ouro. A pobre mulher correu em direção à igreja e fez a oferta ao sacerdote para oferecer algumas missas pelo repouso da alma do seu marido. Cinco dias depois, ao entardecer, o príncipe, no isolamento de seu escritório, estava lendo o manuscrito e retocando alguns detalhes do texto de sua autoria quando, erguendo os olhos, viu, diante de si, um homem vestido com trajes de camponês. 'Príncipe' - disse o visitante desconhecido - 'venho agradecer-lhe, pois sou o marido daquela pobre mulher que outro dia lhe implorou para lhe dar uma esmola, com a qual pudesse oferecer o Santo Sacrifício da Missa em intenção da minha alma. A tua caridade agradou a Deus: foi Ele quem me permitiu vir agradecer-te pessoalmente'. Ditas essas palavras, o camponês desapareceu como uma sombra. A emoção do príncipe foi indescritível e, de pronto, lançou os seus escritos às chamas, e se rendeu tão inteiramente à convicção da verdade que sua conversão foi imediata e completa, nela perseverando até a sua morte.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.