quarta-feira, 30 de março de 2022

SOMBRAS DA PAIXÃO (II): PRISÃO


Ó alma perturbada pelo delírio da iniquidade,
autor da obra mais vil da condição humana,
forjada pelo beijo de tão monstruosa traição.


'Judas, com um beijo entregas o Filho do Homem?'


Os soldados romanos e os guardas do Templo
irrompem das sombras e avançam sobre os discípulos,
tomados de fúria insana para prender Jesus.


Sob uma torrente de imprecações e de insultos,
empurram e agarram Jesus com violência
e atam-lhe as mãos como a um mísero malfeitor.


O temor se apodera dos discípulos que, assustados,
fogem em debandada pela noite escura.
Sobre o Senhor dos senhores adensam-se as sombras da Paixão.

terça-feira, 29 de março de 2022

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (XXII)

(Cristo com o braço direito desprendido - Igreja de San Xoán de Furelos/Espanha)

O CRISTO CRUCIFICADO DE FURELOS

Pe. Suarez estava particularmente cansado. Havia atendido quase uma centena de confissões naquela tarde escaldante; o ar parecia impregnado pelo calor de uma fornalha latente e nem mesmo uma leve brisa ousava empurrar os galhos do grande carvalho exposto pelas janelas totalmente abertas da igreja. Ainda no confessionário, reclinou-se um pouco e meditou vagamente sobre o tempo, enquanto esperava qualquer vivalma tardia para o sacramento. Restava apenas o silêncio, o calor, a tarde que se ia...

Levantou-se e ajoelhou-se aos pés do altar, fixando os seus olhos na imagem de Cristo Crucificado: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me a graça de santificar-me todo dia, no cumprimento de Vossa Santa vontade. Dai-me...' Interrompeu a oração de súbito ao ouvir os passos pesados de alguém entrando na igreja. Virou-se e viu o homem tardio, das horas passadas. Certamente não era de Furelos porque nunca o tinha visto. Trajava-se com esmero, embora com roupas simples. O dono de alguma taberna talvez? Um comerciante de fora? Um marino?

- Padre, eu queria me confessar...

O Pe. Suarez concordou com um leve suspiro e o encaminhou ao confessionário. Ouviu do homem uma confissão segura, contrita, demorada. Havia muito tempo que não se confessava e, naquele lugar remoto para ele, sentira a necessidade da fazer a confissão não feita. Após ouvir a sua confissão, com sólida convicção, o padre lhe deu as penitências devidas e o perdoou:

- Eu absolvo os teus pecados... 

O homem agradeceu e se foi e o Pe. Suarez retomou a sua lida, com e sem tardes calorentas. Cerca de um mês depois, a cena se repetiu quase como se repetem as horas de cada dia: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me a graça de santificar-me...'. De novo, a tarde sufocante de calor, de novo o homem tardio.

No mesmo confessionário, o sacerdote ouviu com certa apreensão a confissão dos mesmos pecados, repetidos, porém, na escala de um tempo do mês anterior. As penitências dadas foram agora mais severas e dadas sem a mesma convicção da primeira vez, pela negligência do pecador em se corrigir de suas tantas faltas rotineiras.  

- Eu absolvo os teus pecados... vá e procure não recair mais e mais nos teus pecados. 

E o homem tardio se foi como se vão os dias. E, tão certo como o calor abafado das tardes de verão, retornou à igreja de Furelos e ao confessionário conhecido. Nova confissão, novas admoestações de correção de vida, novas penitências.

- Eu absolvo os teus pecados... vá e procure não recair mais e mais nos teus pecados. Tenha em mente como os teus pecados ofendem a Bondade infinita...  
- Eu sei, padre, mas o meu arrependimento é sincero.
- É preciso mais que o arrependimento, meu filho, é preciso a mudança de vida. Não podemos fazer pouco caso da misericórdia de Deus. Vá e não peque mais...

E, ainda outra vez, um mês depois, o homem da confissão tardia buscou uma nova confissão. Mas, neste dia, investido de certo temor, antecipou-se à saída do sacerdote do confessionário, permanecendo como o último da fila dos pecadores. Ao iniciar, porém, a mesma ladainha dos seus pecados de sempre, o velho sacerdote o repreendeu severamente:

- Não vou mais absolver os teus pecados. Seu arrependimento e contrição não são sinceros. Eu não vou fazer mais esse teatro por você. 
- Mas, padre, eu venho me confessar porque sei que continuo pecando...
- Não absolvo mais os teus pecados! Vá até o altar, reze a Deus com contrição e peça o perdão dos seus pecados e da sua falta de persistência diretamente para o Cristo Crucificado... 

E o pecador, pesaroso, dirigiu-se ao altar. O Pe. Suarez foi em seguida também ao altar, ajoelhando-se num banco lateral ao homem que não havia confessado: 'Senhor, derramastes o vosso preciosíssimo sangue também por mim. Dai-me...' De repente, o braço direito do Crucificado desprendeu-se da cruz e a mão ensanguentada do Senhor foi estendida na direção do pecador, fazendo sobre a sua cabeça o sinal de absolvição de todos os seus pecados. E, volvendo o rosto ferido e ensanguentado na direção do Pe. Suarez, o Crucificado lhe falou ao coração:

- Não fostes tu que derramastes o Sangue por ele...

('Histórias que Ouvi Contar' são crônicas do autor deste blog)

segunda-feira, 28 de março de 2022

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'A fé verdadeira consiste em que acreditemos e confessemos que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é Deus e homem. É Deus gerado da substância do Pai antes do início dos tempos; é homem nascido da substância de sua Mãe no tempo. Perfeito Deus e perfeito homem, que subsiste com alma racional e carne humana, igual ao Pai segundo a divindade, menor que o Pai segundo a humanidade. E embora seja Deus e homem, não há dois cristos, mas um único Cristo; um, não porque a divindade se tenha dissolvido na carne, mas porque a humanidade foi assumida por Deus. Absolutamente uno, não por confusão das substâncias, mas pela unidade da Pessoa. Pois assim como a alma racional e o corpo constituem um só homem, assim também Deus e homem constituem um só Cristo: que padeceu pela nossa salvação, desceu à mansão dos mortos e ao terceiro dia ressuscitou; subiu aos céus, onde está sentado à direita de Deus Pai omnipotente, e de onde há de vir a julgar os vivos e os mortos'.
(Santo Atanásio)

domingo, 27 de março de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Provai e vede quão suave é o Senhor!' (Sl 33)

 27/03/2022 - Quarto Domingo da Quaresma 

18. PAI DE MISERICÓRDIA 


Neste Quarto Domingo da Quaresma, São Lucas nos mostra uma das páginas mais belas dos Evangelhos, que é a parábola do filho pródigo. Que poderia muito bem ser a parábola da verdadeira conversão. Ou, com muito mais correção e sentido espiritual, a parábola do pai de misericórdia. Três personagens: o filho mais velho e o filho mais novo que, em meio às dolorosas experiências da vida humana, se reencontram no grande abraço da misericórdia do pai.

Com a parte da herança que lhe cabe, o 'filho mais novo' opta pelo caminho fácil e tortuoso dos prazeres e vícios humanos, dos instintos insaciados, do vazio do mal. E esbanja, na via dolorosa do pecado, os bens que possuía: a alma pura, o coração sincero, os nobres sentimentos, a fortuna da graça. E, a cada passo, se afunda mais e mais no lodo das paixões humanas desregradas, da vida consumida no nada. Mas, eis que chega o tempo da reflexão madura, da conversão sincera, do caminho de volta ao Pai: 'Pequei contra ti; já não mereço ser chamado teu filho' (Lc 15, 18-19).

O pai nem ouve as palavras do filho pródigo; no abraço da volta, somente ecoa pelos tempos a misericórdia de Deus: 'Haverá maior alegria no Céu por um pecador que fizer penitência que por noventa e nove justos que não necessitem de arrependimento' (Lc 15, 7). Diante do filho que volta, um coração de misericórdia aniquila a justiça da razão: 'Trazei depressa a melhor túnica para vestir o meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés' (Lc, 15, 22). Como as talhas de água que se tornam vinho, a conversão verdadeira apaga e aniquila o mal desejado e consumido outrora: na reconciliação de agora desfaz-se em pó as misérias passadas de uma vida de pecado.

O 'filho mais velho' não se move por igual misericórdia e se atém aos limites difusos da justiça humana. Na impossibilidade absoluta de compreender o júbilo do pai com o filho que volta, faz-se vítima e refém da soberba e do orgulho humano: 'tu nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos' (Lc, 15,29). O filho mais novo, que estava tão longe, está lá dentro outra vez. E o filho mais velho, que sempre lá esteve, recusa-se agora a entrar na casa do pai. Tal como no caso do primeiro filho, o pai de misericórdia vem, mais uma vez, buscar a ovelha desgarrada no filho mais velho que está fora e não quer entrar. Porque Deus, pura misericórdia, quer salvar a todos os seus pobres filhos afastados de casa e espera, com paciência e amor infinitos, a volta dos filhos pródigos e a volta dos seus filhos que creem apenas na justiça dos homens.

sábado, 26 de março de 2022

SOMBRAS DA PAIXÃO (I): MORTIFICAÇÃO


Jesus está só e tomado por uma tristeza extremada
prostrado sobre a rocha dura, persevera em oração, 
esmagado pelo insuportável peso dos pecados dos homens.


Chora, sofre, geme, sua e verte gotas de sangue,
pelos teus pecados miseráveis,
pelos meus, pelos pecados de todos os homens.


Ó intimidade infinita de Deus com Deus,
ó oração bendita que crucificou todos os séculos
nos mistérios insondáveis do Calvário.


'Pai, que seja feita a vossa vontade...'


Quanta dor, quanto sofrimento, que angústia mortal!
Eis entreaberto o mistério do Calvário,
e desveladas as primeiras sombras da Paixão.

sexta-feira, 25 de março de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: CHAGA DE AMOR


A dor que padece e que consome a alma que é Vossa é um doce mistério. Mas Vós sabeis, ó meu Deus, que ela é obra Vossa...  No começo, era uma ferida tão pequena que somente a alma podia pressenti-la; depois, aos poucos, vai crescendo e envolvendo toda a alma até se transformar em uma chaga incurável que tudo sensibiliza e vivifica.  A dor que emana dessa chaga aberta, embora envolta em delícias, torna-se intolerável. A alma geme, protesta, esbraveja. Ela sabe muito bem que só existe um remédio para o seu mal: um amor maior capaz de libertá-la do seu corpo e que a faça morrer para, enfim, ser acolhida para sempre em Vossos braços. Ela quer ser tratada pelo único médico capaz de curá-la: Vós, ó meu Deus. Mas Vós não feristes essa alma amadíssima no mais íntimo senão para a possuir plenamente. Só Vós podeis alimentar nela a chama que foi acesa; alimentai-a então, pois ela já não pode mais viver sem a Vossa Presença.

Todas as almas, meu Deus, deveriam ser consumidas por essa dor misteriosa. Não sois Vós a Bondade perfeita e a Beleza infinita? O nosso coração, feito por Vós, não foi feito para Vós? Por que, então, existem tão poucas almas que Vos amam realmente?

Mas não há como nos volvermos contra Vós, ó meu Deus, mas contra nós mesmos. Porque Vós estais sempre à porta do nosso coração e clamas por ele de mil maneiras. Mas não ouvimos a Vossa voz, envolvido pelo barulho à nossa volta. E, se acaso a ouvimos, hesitamos em abrir o nosso coração e fazer Vossa por completo a nossa vontade. Na verdade, a nossa alma está doente e de um mal que a devora, que é o seu amor próprio, quando deveria estar consumida por uma dor que a faria viver em plenitude e para sempre: a dor do Vosso amor, ó meu Deus. Senhor, curai-nos dos males humanos! Fazei-nos enfermos das graças divinas e por elas morrer em Vosso amor! 

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte III - A União com Deus; tradução do autor do blog)

quinta-feira, 24 de março de 2022

SOBRE A DIGNIDADE SACERDOTAL


'Filha querida, ao manifestar-te a grande virtude daqueles pastores, quero colocar em evidência a dignidade dos meus ministros. Pelo pecado de Adão, as portas da eternidade fecharam-se, mas o meu Filho abriu-as com a chave do seu sangue. Ao sofrer a paixão e morte, ele destruiu vossa morte e vos lavou no sangue. Sim, foram seu sangue e sua morte que, em virtude da união da natureza divina com a humana, deram acesso ao céu. E a quem deixou Cristo tal chave? Ao apóstolo Pedro e aos seus sucessores, os que vieram e que virão depois dele até o dia do juízo final. Todos possuem a mesma autoridade de Pedro; nenhum pecado a diminui, do mesmo modo que não destrói a santidade do sangue de Cristo e dos Sacramentos. Já disse que o sol eucarístico não tem manchas e que o mal cometido por quem o administra ou recebe não apaga a sua luz. Não, o pecado não danifica os sacramentos da santa Igreja, não lhes diminui a força; prejudica a graça e aumenta a culpa somente em quem os ministra ou recebe indignamente.

Na terra, quem possui a chave do sangue é o Cristo-na-terra. Certa vez eu te manifestei essa verdade numa visão, para indicar o grande respeito que os leigos devem ter pelos ministros, bons ou maus que eles sejam, e quanto me desagrada que alguém os ofenda. Pus diante de ti a hierarquia da Igreja sob a figura de uma dispensa contendo o sangue de meu Filho. No sangue estava a virtude de todos os sacramentos e a vida dos fiéis. À porta daquela despensa, vias o Cristo-na-terra, encarregado de distribuir o sangue e fazer-se ajudar por outros no serviço de toda a santa Igreja. Quem ele escolhia e ungia, logo se tornava ministro. Dele procedia toda a ordem clerical; ele dava a cada um sua função no ministério do glorioso sangue. E como dispunha dos seus auxiliares, possuía a força de corrigi-los nos seus defeitos.

De fato, é assim que eu quero que aconteça. Pela dignidade e autoridade confiada aos meus ministros, retirei-os de qualquer sujeição aos poderes civis. A lei civil não tem poder legal para puni-los; somente o possui aquele que foi posto como senhor e ministro da lei divina.

Os ministros são ungidos meus. A respeito deles diz a Escritura: 'Não toqueis nos meus cristos' (Sl 105, 15). Quem os punir cairá na maior infelicidade. Se me perguntares por que a culpa dos perseguidores da Santa Igreja é a maior de todas e, ainda, por que não se deve ter menor respeito pelos meus ministros por causa de seus defeitos, respondo-te: porque, em virtude do sangue por eles ministrado, toda reverência feita a eles, na realidade não atinge a eles, mas a mim. Não fosse assim, poderíeis ter para com eles o mesmo comportamento de praxe para com os demais homens. 

Quem vos obriga a respeitá-los é o ministério do sangue. Quando desejais receber os sacramentos, procurais meus ministros; não por eles mesmos, mas pelo poder que lhes dei. Se recusais fazê-lo, em caso de possibilidade, estais em perigo de condenação. A reverência é dada a mim e ao meu Filho encarnado, que somos uma só coisa pela união da natureza divina com a humana. Mas também o desrespeito. Afirmo-te que devem ser respeitados pela autoridade que lhes dei, e por isso mesmo não podem ser ofendidos. Quem os ofende, a mim ofende. Disto a proibição: 'Não quero que mãos humanas toquem nos meus cristos'!

Nem poderá alguém escusar-se, dizendo: 'Eu não ofendo a santa Igreja, nem me revolto contra ela; apenas sou contra os defeitos dos maus pastores! Tal pessoa mente sobre a própria cabeça. O egoísmo a cegou e não vê. Aliás, vê; mas finge não enxergar, para abafar a voz da consciência. Ela compreende muito bem que está perseguindo o sangue do meu Filho e não os pastores. Nestas coisas, injúria ou ato de reverência dirigem-se a mim. Qualquer injúria: caçoadas, traições, afrontas. Já disse e repito: não quero que meus cristos sejam ofendidos. Somente eu devo puni-los, não outros. 

No entanto, homens ímpios continuam a revelar a irreverência que têm pelo sangue de Cristo, o pouco apreço que possuem pelo amado tesouro que deixei para a vida e santificação de suas almas. Não poderíeis ter recebido maior presente que o todo-Deus e todo-Homem como alimento. Cada vez que o conceito relativo aos meus ministros não coloca em mim sua principal justificativa, torna-se inconsistente e a pessoa neles vê somente muitos defeitos e pecados. De tais defeitos falarei em outro lugar. Mas quando o respeito se fundamenta em mim, jamais desaparece, mesmo diante de defeitos nos ministros; como disse, a grandeza da eucaristia não é diminuída por causa dos pecados. A veneração pelos sacerdotes não pode cessar; se tal coisa acontecer, sinto-me ofendido.

(Excertos da obra 'O Diálogo', de Santa Catarina de Sena)