sábado, 13 de novembro de 2021

VERSUS: VONTADE DIVINA X VONTADE HUMANA

Santo Agostinho afirmou a verdade absoluta da visão humana de Deus: 'Se Deus fosse compreensível, não seria Deus'. Assim, é absolutamente inútil tentar estabelecer premissas para a ação da Providência Divina sob o viés dos pensamentos humanos. É algo incomensuravelmente vão: Deus age sob atributos infinitos, que não podem ser, nem tangencialmente, apreendidos, compilados ou interpretados sob os limites anêmicos da inteligência humana. A compreensão de Deus é um exercício de fé e nada mais, absolutamente nada mais, do que isso.

Quando se desconsidera ou se exclui essa verdade absoluta, o relativismo pondera sobre questões sem respostas, acondicionadas aos pendores e elucubrações humanas. Neste contexto, por exemplo, o inferno parece algo inconcebível para muitos frente ao princípio da misericórdia infinita de Deus; ou, por exemplo, uma pessoa que se esmerou na caridade nesta vida mas que não professou a verdadeira Igreja de Cristo, não teria, por merecimento próprio, a glória celeste?; ou ainda, como que uma mãe que perdeu um filho ainda pequeno e não batizado poderia alcançar o Céu e, ao seu filho falecido em tenra idade, o Céu lhe seria negado*?

Nenhum ser humano tem a mínima noção dos limites que separam a justiça e a misericórdia de Deus. Mas, como todos os atributos divinos, a Vontade de Deus é infinita e imutável. E a doutrina de Cristo é absolutamente clara: há um só batismo, há uma só Igreja, há um único caminho da salvação, fora do qual todos se perdem. Quem não pertence a Cristo nessa terra, não terá lugar com Cristo no Céu. Em inúmeras ocasiões, Jesus deixou muito claro que a porta é estreita, assinalou com absoluta clareza os mandamentos da lei divina, estabeleceu de forma inequívoca os sacramentos da salvação e os pilares de sua Igreja. O que está fora, não é de Cristo.


'Mas quem és tu, ó homem, para contestar a Deus? Porventura o vaso de barro diz ao oleiro: 'Por que me fizeste assim?' Ou não tem o oleiro poder sobre o barro para fazer da mesma massa um vaso de uso nobre e outro de uso vulgar? (Rm 9, 20-21)

O relativismo humano, na sua expressão de anemia de ousar cobrar contas a Deus, busca impor concessões impossíveis à soberana liberdade de Deus no plano da salvação. Deus quer que todos os homens se salvem, mas serão salvos somente os que Deus quiser e estes serão aqueles que, dentre todos acondicionados à Vontade de Deus, foram os que utilizaram eficazmente as graças recebidas para serem merecedores de testemunhas vivas da redenção de Cristo. E a nenhum homem foi concedido o privilégio de conhecer aqui o epicentro dos mistérios divinos: Deus não reparte igualmente as suas graças e assim o faz porque assim o quer.

Na realidade, Deus não tem 'obrigação' de salvar ninguém. Ele não 'deve' nada a homem algum. Ainda que não existissem os anjos e os homens - ainda que Nossa Senhora não tivesse existido - Deus seria ainda Deus em plenitude. Ninguém tem 'direito' ao Céu, à salvação, à glória, à visão beatífica. Tudo isso é dom gratuito de Deus para a obra prima de sua criação. E, na eternidade, não estarão automaticamente juntos os que porventura viveram juntos nesta terra porque no Céu estarão apenas os que Deus quiser e os que quiseram assim como Deus.

* limbo, lugar onde, segundo a tradição católica, repousarão eternamente as almas daqueles que morreram somente com o pecado original

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

O PURO AMOR DE DEUS

Meus cibus est, ut faciam voluntatem eius qui misit me, ut perficiam opus eius 

'O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou, 
para consumar a sua obra' (Jo 4, 34)

I. Em todas as nossas ações não devemos ter outro fim senão o de agradar a Deus, e não aos parentes, nem aos amigos, nem aos poderosos, nem a nós mesmos; pois que está perdido tudo o que não se faz para Deus. Muitas coisas se fazem a fim de agradar e não desagradar aos homens; mas São Paulo diz: Si adhuc hominibus placerem, Christi servus non essem (Gl 1, 10) — 'Se eu ainda agradasse aos homens, não seria servo de Cristo'. Deus deve ser o nosso único fim em tudo o que fazemos, de modo que com Jesus Cristo possamos dizer: 'Faço sempre aquilo que lhe agrada' (Jo 8, 29). Foi Deus quem nos deu tudo que possuímos, de nosso temos somente o nada e o pecado. Foi só Deus quem nos amou deveras; amou-nos desde a eternidade, e amou-nos a ponto de dar-nos a sua própria pessoa sobre a cruz e no sacramento do Altar. Só Deus, portanto, merece todo o nosso amor.

Pobre da alma que guarda afeto a algum bem terrestre, com desagrado de Deus! Nunca gozará paz na vida presente e corre grande risco de nem na outra a gozar jamais. Bem-aventurado, ao contrário, ó Deus, aquele que só a Vós busca, e pelo vosso amor renuncia a todas as coisas! Ele achará a joia do vosso puro amor, joia mais preciosa que todos os tesouros e reinos da terra; alcançará a liberdade verdadeira dos filhos de Deus, porquanto está livre de todos os laços que o atraem à terra e o impedem de se abraçar com Deus.

Ah! Deus se deixa achar por todo aquele que, para achá-lo, se desprende das criaturas! Bonus est Dominus animae quaerenti illum (Lm 3, 25) — 'O Senhor é bom para a alma que o busca'. Escreve São Francisco de Sales: 'O puro amor de Deus consome tudo que não é Deus, para transformar todas as coisas em si'. Devemo-nos, pois, tornar hortos fechados, assim como Deus chama a Esposa sagrada dos Cânticos: Hortus conclusus soror mea Sponsa (Ct 4, 12). Horto fechado chama-se a alma que fecha a porta aos afetos terrenos e obra com o único intuito de agradar a Deus.

II. Ó homens, desiludamo-nos: todo o bem que nos vem das criaturas é lodo, fumo e ilusão. Só Deus nos sabe contentar. Mas na vida presente não se deixa gozar plenamente, dá-nos somente algum antegozo dos bens que nos promete no céu; é ali que nos aguarda para nos saciar do seu próprio gozo. O Senhor dá as consolações celestiais aos seus servos, unicamente a fim de os fazer anelar pela felicidade que lhes prepara no paraíso.

Quidmihi est in coelo et a te quid volui super terram? (Sl 72, 25) — 'Que tenho eu no céu? E fora de ti que desejei eu sobre a terra?'. Ó Senhor, busquem os outros o que desejarem; eu não quero nem desejo senão a Vós, meu Deus, meu amor, minha esperança, meu tudo. Anteponho-Vos a todas às riquezas, às honras, às ciências, às glórias, às esperanças e a todos os bens que me podeis dar. Vós sois todo o meu bem; só a Vós quero e nada mais; porque só Vós sois a infinita beleza, a infinita bondade, a infinita amabilidade; Vós, numa palavra, sois o único bem. Portanto nenhum dom que não sejais Vós mesmo, me pode contentar. Repito-o e repeti-lo-ei sempre: só a Vós quero, e nada mais; o que não é de Vós mesmo, digo-Vos que não me pode contentar: Deus cordis mei, et pars mea Deus in aeternum (Sl 72, 26) — 'Deus do meu coração, e minha porção é Deus para sempre'.

Ó! Quando poderei ocupar-me unicamente em Vos louvar, amar e agradar, de tal forma que não cuide mais nas criaturas, nem em mim mesmo? Ah, meu Senhor, fazei com que de hoje em diante e em todas as coisas, não tenha em mira nem busque senão o vosso agrado. Fazei que sejais todo o meu único amor, visto que tanto por justiça como por gratidão sois digno de todos os meus afetos. E quando me virdes resfriado no vosso amor, com risco de me afeiçoar às criaturas e aos prazeres terrestres, estendei-me a vossa mão lá do alto, e salvai-me (Sl 143, 7).

O que mais me aflige é o pensar que pelo passado amei tão pouco a vossa infinita bondade. Mas, ó meu Jesus, desejo e com o vosso auxílio proponho amar-Vos, para o futuro, com todas as minhas forças; e assim espero morrer amando só a Vós, ó meu supremo Bem. Ó Mãe de Deus, Maria, rogai por mim, que sou miserável. As vossas orações nunca sofrem repulsa; pedi a Jesus que me faça todo seu.

(Excertos da obra 'Meditações para Todos os Dias e Festas do Ano', Tomo II, Santo Afonso Maria de Ligório)

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

TESOURO DE EXEMPLOS (110/112)


110. FIRMEZA NA FÉ

Naquele tempo perdia-se em todas as libertinagens e fazia-se réu de todas as crueldades um dos reis mais perversos da história: Henrique VIII da Inglaterra. Era chanceler de seus reinos um homem de conduta irrepreensível: Tomás Moro. Quis o rei arrastá-lo pelos mesmos caminhos de dissolução e impiedade que seguia. O magnânimo chanceler, que era um católico de grande envergadura, resistiu com enérgica heroicidade. Por fim, o rei o depôs de seu cargo e o condenou à morte.

Com a coragem e a intrepidez dos mártires caminhava ele para o patíbulo, sereno e majestoso. Foi quando saiu ao seu encontro sua mulher, que, com lágrimas nos olhos, lhe pedia que renegasse a fé católica ou ao menos a dissimulasse. Respondeu-lhe o santo esposo:
➖ Luísa (assim se chamava a sua mulher), nem tu nem eu somos moços. Quantos anos pensas tu que ainda posso viver?
➖ Ao menos vinte anos, Tomás.
➖ Vinte anos! Vinte anos! Mulher estulta, por vinte anos de vida neste mundo, queres que eu perca a vida eterna e seja condenado eternamente?

Assim falou Tomás Moro, hoje canonizado e venerado sobre os altares. Está no céu, onde recebe e receberá por toda a eternidade a recompensa de sua firmeza na fé. E onde estará Henrique VIII, aquele rei crudelíssimo, que antes era católico e, depois, apostatou vergonhosamente, abraçando o protestantismo para viver na devassidão?

Santo Atanásio diz: 'Os santos que praticaram a virtude irão para a vida eterna; os pecadores, os que obraram mal, baixarão ao fogo eterno. Esta é a fé católica, e não poderá salvar-se quem não a guardar com fidelidade e firmeza até à morte'.

111. DESFILE DE PRESOS

Narram as crônicas do tempo que um vice-rei de Nápoles foi certo dia visitar uma prisão. Ordenou que, em um grande pátio, ficassem perfilados todos os presos. Momentos após ali estavam alinhados, como soldados, todos os reclusos daquele presídio. Que tipos! que caras! que olhares! que atitudes! Somente ver aquela gente impressionava. Quase todos levavam na fronte a marca dos crimes cometidos.

Apresentou-se o prudente e discreto vice-rei e começou a passá-los em revista. Um após outro todos tinham que desfilar diante dele. Passou o primeiro preso.
➖ Por que estás aqui? - perguntou o vice-rei.
➖ Senhor - respondeu o presidiário - por nada, por uma calúnia.
Passou o segundo preso.
➖ E tu, por que estás aqui? Que crime cometeste?
➖ Eu, crime? Não cometi crime nenhum.
Passou o terceiro preso.
➖ Vamos ver se encontro algum criminoso. Dize-me: por que estás aqui?
➖ Eu, senhor, porque me trouxeram, mas não fiz mal a ninguém.
E assim passaram quatro, vinte, cinquenta. Todos eram bons, inocentes. Cada um dizia mais ou menos o mesmo: não matei, não roubei, não desonrei, não fiz mal a ninguém. Estavam presos apesar de serem todos bons e virtuosos. A justiça humana era a única culpada.

Aconteceu, porém, passar por ele um preso que respondeu de maneira diferente de todos os outros. Era um moço. Manifestava nas faces a vergonha que lhe causava o achar-se naquele lugar. Apresentou-se diante do vice-rei, que lhe perguntou como aos demais:
➖ Por que estás aqui? Que crime cometeste?
➖ Senhor, respondeu o infeliz, baixando a cabeça; senhor, tenho cometido muitos. Estou onde devo estar. A justiça humana teve razão de me condenar; espero que me salve a misericórdia divina.

E, após este, foram desfilando todos os restantes; todos uns verdadeiros santos, pois não tinham derramado nem uma gota de sangue. Terminou o desfile. O vice-rei chamou aquele que havia confessado seus crimes, e disse:
➖ Amigo, pelo que vejo tu és o único mau, e os outros são bons. Para não que não os contaminem, sai depressa, vai para a rua!
E, voltando-se para os outros, acrescentou:
➖ Vós, porém, continuai aqui. Na rua há muitos pecadores e não convém que eles tornem a perder-vos com seus maus exemplos.

112. HEROÍSMO DE UMA FAMÍLIA

Foi nos primeiros dias da luta contra o comunismo na Espanha. O Exército da África levantara-se para salvar a Espanha das garras mortais do terrível inimigo. Num vilarejo de Navarra vivia um homem já idoso, pai de três filhos robustos e sãos de corpo e alma, como seu pai.
➖ Vou - disse ele à mulher e aos filhos - vou lutar por Deus e pela Espanha.
E pôs na cabeça a boina vermelha.
➖ E eu vou com o senhor - disse o filho mais velho.
➖ E eu também - acrescentou o segundo.
Duas boinas mais que adornaram as cabeças de dois soldados da Pátria. E os três cheios de santo entusiasmo marcharam para a guerra.

Chegou a hora da refeição. Na mesa só havia um prato preparado. A mãe e esposa sentou-se diante dele serena e grave. O último filho, que mal teria dezesseis anos, olhou admirado para a mãe.
➖Mãe, eu não como?
➖ Em minha casa - respondeu laconicamente aquela verdadeira espartana - não comem os covardes.
E o rapaz colocou na cabeça outra boina vermelha e foi atrás de seus irmãos e de seu pai para lutar e morrer com eles.

Até aqui a história é autêntica. Entra agora a lenda. Meses mais tarde regressavam ao lar o pai e os três filhos; voltavam alegres, cantando canções guerreiras, voltavam com as condecorações dos heróis. Não regressavam sós: um grupo de soldados os acompanhava.
Falou o último dos filhos, o mais entusiasmado:
➖ Mãe, aqui estamos por poucos dias. Tornaremos à guerra que ainda será longa. Lutaremos até o fim. Como vês, seguem-nos estes amigos que ontem eram milicianos vermelhos e hoje combatem por Deus e pela Espanha ao nosso lado. Renderam-se ao nosso heroísmo. Falamos-lhes de Deus e da nossa querida Espanha e os conquistamos para a Espanha e para Deus. Por esse ideal querem lutar até à morte. 
E aquela mãe de três heróis e esposa de um gigante, abraça-os a todos e fá-los sentar à mesa para servir-lhes o melhor que possuía. E termina a lenda, afirmando que jamais uma mulher teve uma alegria tão grande como aquela.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

ORAÇÃO DO CURA D'ARS PELOS SACERDOTES


Onipotente e eterno Deus, dignai-Vos olhar a face do Vosso Divino Filho e, por amor a Ele, tende piedade de Vossos sacerdotes. Lembrai-Vos que são apenas frágeis e débeis criaturas. Conservai neles sempre vivo o fogo do Vosso amor e guardai-os de modo que o inimigo não possa prevalecer contra eles e que nunca se tornem indignos de sua santa vocação.

Eu Vos rogo pelos Vossos sacerdotes fiéis e fervorosos, pelos que se empenham em missões próximas ou distantes, pelos que Vos tenham abandonado. Ó Jesus, eu vos rogo pelos sacerdotes jovens e anciãos, pelos que se encontram enfermos ou agonizantes e pelas almas daqueles que padecem no Purgatório.

Ó Jesus, Eu Vos rogo pelo sacerdote que me batizou, pelos sacerdotes que perdoaram os meus pecados, por aqueles que celebraram ou que celebram as missas a que eu assisto, pelos que me instruíram e pelos que me aconselharam, por todos os sacerdotes a quem devo algum motivo de gratidão.

Ó Jesus, guardai-os todos junto ao Vosso Sagrado Coração e concedei-lhes abundantes bênçãos desde agora e por toda a eternidade. Amém.

Sagrado Coração de Jesus, bendizei aos Vossos sacerdotes.

Sagrado Coração de Jesus, santificai os Vossos sacerdotes.

Sagrado Coração de Jesus, reinai pelos Vossos sacerdotes.

Maria, Mãe dos sacerdotes, rogai por todos eles.

Dai-nos, Senhor, vocações sacerdotais e religiosas.

Amém. 
(São João Maria Vianney, o Cura D'Ars)

terça-feira, 9 de novembro de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XIX)

 

Capítulo XIX

Dores do Purgatório - Santa Madalena de Pazzi e Irmã Benedita - Santa Gertrudes - Bem Aventurada Margarida Maria e Madre de Montoux

Lemos na Vida de Santa Madalena de Pazzi que uma de suas irmãs, chamada Maria-Benedita, religiosa de virtudes eminentes, morreu em seus braços. Durante a sua agonia, a santa viu uma multidão de anjos que a rodeavam com cânticos de alegria, esperando que ela exalasse a alma para então ser conduzida por eles até à Jerusalém Celestial. No momento em que a religiosa expirou, a santa viu os anjos recolhendo a sua alma sob a forma de uma pomba com cabeça ornada em tons dourados e então a visão desapareceu. Três horas mais tarde, velando junto aos seus restos mortais, Santa Madalena teve conhecimento que a alma da falecida não estava no Paraíso e nem no Purgatório, mas em um lugar particular onde, sem sofrer nenhuma dor sensível, havia sido privada da visão de Deus.

No dia seguinte, enquanto se celebrava a missa em intenção pela alma de Maria-Benedita, durante a recitação do Sanctus, Madalena foi tomada novamente em êxtase e Deus lhe permitiu ver a entrada daquela alma virtuosa na glória divina. A santa ousou então perguntar ao nosso Salvador por que Ele não havia permitido a entrada imediata dessa alma querida à sua sagrada presença. E recebeu como resposta que, na sua enfermidade derradeira, a religiosa se mostrara muito sensível aos cuidados que lhe eram dispensados, o que perturbava a sua união habitual com Deus e a perfeita conformidade de sua alma com a Divina Vontade.

Voltemos então às Revelações de Santa Gertrudes, como mencionado previamente. Ali encontramos outro exemplo que mostra como, pelo menos para algumas almas, o sol da glória é precedido por um amanhecer que se irrompe gradualmente. Uma religiosa morreu na flor de sua idade nos braços do Senhor. Ela havia sido notável por uma terna devoção ao Santíssimo Sacramento. Depois de sua morte, Santa Gertrudes a viu, resplandecente de luz celestial, ajoelhada diante do Divino Mestre, cujas feridas glorificadas pareciam tochas acesas, das quais emanavam cinco raios flamejantes que transpassavam os cinco sentidos da falecida. Entretanto, o semblante dela era como que obscurecido por uma expressão de profunda tristeza. 'Senhor Jesus' - exclamou a santa - 'como pode a vossa serva ser assim iluminada por Vós e não experimentar a alegria perfeita?'

'Até agora' - respondeu o bom Mestre - 'essa vossa irmã tem sido digna de contemplar apenas a minha humanidade glorificada e de se deleitar diante às minhas cinco chagas, como recompensa pela sua terna devoção ao mistério da Sagrada Eucaristia; mas, a menos que numerosos sufrágios sejam oferecidos em seu favor, ela ainda não pode ser admitida à visão beatífica, por causa de alguns pequenos desvios cometidos por ela na observação de suas regras sagradas'. 

Concluamos o que dissemos sobre a natureza dessas dores com alguns detalhes que encontramos na Vida da bem aventurada Margarida Maria da Visitação. São excertos retirados das Memórias da Madre Greffier que, sabiamente hesitante a respeito das graças extraordinárias concedidas à Beata Irmã Margarida, somente reconheceu estes fatos como verdadeiros depois de mil provações. Madre Philiberte Emmanuel de Montoux, Superiora de Annecy, faleceu em 2 de fevereiro de 1683, após uma vida dedicada à edificação da sua ordem religiosa. Madre Greffier recomendou particularmente à Irmã Margarida que orasse na intenção da alma da irmã falecida. Depois de algum tempo, a Irmã Margarida comunicou à sua superiora que Nosso Senhor lhe havia dado a conhecer que a alma da Madre Philiberte lhe era muito querida, pelo amor e fidelidade prestados aos seus serviços e que uma grande recompensa a esperava no Céu, mas que isso se daria somente após o cumprimento da sua purificação no Purgatório.

A bem aventurada Irmã Margarida pôde ver a alma da falecida em seu lugar de expiação. Nosso Senhor lhe mostrou os sofrimentos impostos à alma da falecida e como esta ficava muito aliviada com os sufrágios e as boas obras que diariamente eram oferecidas em sua intenção por todas as religiosas da Ordem da Visitação. Durante a noite da Quinta-Feira Santa para a Sexta-Feira Santa, enquanto a Irmã Margarida ainda rezava por sua alma, o Senhor fez ver a ela a alma da falecida exposta sob o cálice contendo a Hóstia Sagrada no altar, indicando, assim, que ela havia sido contemplada com os méritos da sua agonia no Horto das Oliveiras. No domingo de Páscoa, que naquele ano ocorreu no dia 18 de abril, a Irmã Margarida viu a alma desfrutando do limiar, por assim dizer, da felicidade eterna, aspirando ansiosamente para ser admitida à visão e à posse de Deus. Finalmente, quinze dias depois, no domingo, 2 de maio e dia da festa do Bom Pastor, ela teve a visão da alma da falecida elevando-se docemente à glória eterna, cantando melodiosamente o cântico do Amor Divino.

Vejamos como a própria Beata Margarida relata esta última aparição, em uma carta dirigida no mesmo dia, 2 de maio de 1623, à Madre de Saumaise em Dijon: 'Viva Jesus para sempre! A minha alma está tomada de uma alegria tão grande que mal consigo contê-la dentro de mim. Permita-me, querida mãe, comunicá-la ao seu coração, que é um com o meu no de Nosso Senhor. Esta manhã, domingo do Bom Pastor, ao meu despertar, duas das minhas boas irmãs sofredoras vieram despedir-se de mim. Hoje o Supremo Pastor as recebeu em seu aprisco eterno com um milhão de outras almas. 

Ambas se uniram a essa multidão de almas bem aventuradas e partiram em meio a cânticos de alegria celestial. Uma é a boa Madre Philiberte Emmanuel de Montoux e a outra é a irmã Jeanne Catherine Gâcon. Uma repetia incessantemente estas palavras: 'O amor triunfa, o amor se alegra em Deus', enquanto a outra dizia: 'Bem aventurados os que morrem no Senhor e os religiosos que vivem e morrem na exata observância de suas regras'. Ambas queriam que eu dissesse a você que a morte pode separar as almas, mas nunca pode desuni-las. Se você soubesse como minha alma foi tomada de alegria! Enquanto eu falava com elas, eu as vi mergulhar suavemente na glória como alguém que submerge num vasto oceano. Elas pedem para você rezar, em ação de graças à Santíssima Trindade, um Laudate e três vezes Gloria Patri. Quando lhes pedi que intercedessem por nós, as suas últimas palavras foram que a ingratidão nunca entrou no Céu. 

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

ATÉ QUANDO SENHOR?


'Os adversários rugiam no local de vossas assembleias, 
como troféus hastearam suas bandeiras. 

Pareciam homens a vibrar o machado na floresta espessa. 

Rebentaram os portais do templo com malhos e martelos, 

atearam fogo ao vosso santuário, profanaram,
 arrasaram a morada do vosso nome. 

Disseram em seus corações:
 'Destruamo-los todos juntos; incendiai todos os lugares santos da terra'. 

Não vemos mais nossos emblemas, 
já não há nenhum profeta e ninguém entre nós que saiba até quando...

Ó Deus, até quando nos insultará o inimigo?'

(Salmo 73, 4 -10)

domingo, 7 de novembro de 2021

EVANGELHO DO DOMINGO

'É assim a geração dos que procuram o Senhor!' (Sl 23)

 07/11/2021 - Solenidade de Todos os Santos

50. AS BEM AVENTURANÇAS


Neste domingo da Solenidade de Todos os Santos, nós somos por inteiro a Santa Igreja de Deus, o Corpo Místico de Cristo: almas peregrinas do Céu da Igreja Militante, almas sob a justiça divina da Igreja Padecente, almas santificadas da Igreja Triunfante, testemunhas da Visão Beatífica e cidadãos eternos da Jerusalém Celeste, nem mais peregrinos e nem mais sujeitos à Santa Justiça, mas tornados eleitos do Pai e herdeiros da Glória de Deus.

Com efeito, Filhos de Deus já o somos desde agora, como peregrinos do Céu mergulhados nas penumbras da fé e nas vertigens das realidades humanas... 'mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é (1 Jo 3, 2). Filhos de Deus, gerados para a eternidade da glória de Deus, seremos os vestidos de roupas brancas, enquanto perseverantes na fé e revestidos da luz de Cristo: 'Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro' (Ap 7, 14).

Na solenidade de Todos os Santos, os que seremos santos amanhã se confortam dessa certeza nos que já são santos na Glória Celeste, vivendo a felicidade perfeita, e indescritível sob o ponto de vista das palavras e pensamentos humanos. Jesus nos fala dessa realidade transcendente na comunhão dos santos e na unidade da família de Deus: 'Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus' (Mt 5, 12). Em contraponto à fidelidade e à fé dos que almejaram ser santos, Deus os recompensará com limites insondáveis de graça, as chamadas bem-aventuranças de Deus (Mt 5, 3 - 11).

Bem-aventurados os pobres de espírito, os simples de coração. Bem-aventurados os aflitos que anseiam por consolação. Bem-aventurados os mansos que se espelham no Coração de Jesus. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça. Bem-aventurados os misericordiosos, filhos prediletos da caridade. Bem-aventurados os puros de coração, transformados em novas manjedouras do Sagrado Coração de Jesus. Bem-aventurados os que promovem a paz e os que são perseguidos por causa da justiça. E bem-aventurados os que foram injuriados e perseguidos em nome da Cruz, do Calvário, dos Evangelhos e de Jesus Cristo porque serão os santos dos santos de Deus!