quarta-feira, 8 de setembro de 2021

SOBRE OS QUE SERÃO JULGADOS COMO ANJOS


É uma verdade incontestável que a misericórdia e a justiça de Deus caminham juntas e ambas - como atributos infinitos da Providência Divina - hão de acompanhar os juízos particulares de todos os homens no plano da eternidade. Essa realidade por si só já é tremenda: 'Deus tem misericórdia de quem o teme, não de quem se usa dela para não o temer' (Santo Afonso Maria de Ligório).

Essa premissa fundamental tem um corolário muitíssimo mais inquietante para o espectro dos homens. A associação divina entre justiça e misericórdia tende a pender em favor da justiça divina, tanto mais intensamente, para quem mais usufruiu da abundância das graças divinas. O pecado dos anjos rebeldes, por exemplo, resumiu-se em um ato de soberba extrema contra a Providência Divina, que resultou num imediato e irrevogável veredito de danação eterna no momento seguinte.

Quais são os homens que, na terra, em termos do acesso e usufruto das graças divinas, mais se aproximam dos anjos? Os sacerdotes, sem dúvida alguma; os padres, bispos, cardeais e papas da Santa Igreja Católica. Para eles, especialmente, é de se esperar uma realidade de juízo particular muitíssimo diferenciada daquela que seria aplicada aos leigos, a não ser em casos muito excepcionais. Assim, todo homem ímpio deverá passar pelo crivo da justiça divina, mas os maus sacerdotes serão julgados pelo rigor divino da sua justiça em uma escala incomparavelmente maior.  

São Crisóstomo (conforme exposto por Santo Afonso de Ligório) tornou cristalina essa argumentação: 'A maior ciência dá lugar a um castigo mais severo; se o pastor cometer os mesmos pecados que as suas ovelhas, não receberá o mesmo castigo, mas uma pena muito mais dura'. E o seu testemunho adicional é avassalador para os maus sacerdotes: 'É o que a experiência deixa ver: um secular, depois de pecar, facilmente se arrepende. Se assiste a uma missa, se ouve um sermão enérgico sobre alguma verdade eterna - malícia do pecado, certeza da morte, rigor do juízo de Deus, penas do inferno -  entra facilmente em si e volta-se para Deus; porque estas verdades, como coisas novas, tocam-no e penetram-no de temor. Mas quando um padre há calcado aos pés a graça de Deus, com todas as luzes e conhecimentos recebidos, que impressão podem fazer ainda nele as verdades eternas e as ameaças das divinas Escrituras? Tudo quanto encerra a Escritura é para ele uma coisa sediça e de pouco valor; porque as coisas mais terríveis que lá se encontram, por muito lidas, já lhe não fazem impressão. Donde conclui que nada mais impossível que a emenda de quem sabe tudo e peca'.

'Quanto maior é a dignidade dos padres' - diz São Jerônimo - 'tanto maior é a sua ruína, se num tal estado chegam a abandonar a Deus'. São Bernardo afirma categoricamente que 'Quanto mais elevado é o posto em que Deus o colocou, tanto mais funesta será a sua queda', expressão similar ao pensamento de Santo Ambrósio: 'Quando se cai num plano, raro se experimenta grande mal; mas cair de um lugar alto não é só cair, é precipitar-se, e a queda será mortal'.

É o mesmo São Bernardo que afirmou: 'A ingratidão faz estancar a fonte da bondade divina'. Que ingratidão a Deus pode ser cometida pelos homens maior que a de um sacerdote que, desprezando os tesouros das graças da Igreja, abandona a sã doutrina e se vende, a preço vil, para os louros, afazeres e caprichos deste mundo? Achincalham a liturgia da Santa Missa, assumem a ideologia dos inimigos da Igreja, tornam-se vedetes da comunicação insossa, insuflam egos para se tornarem cegos, fazem todas as concessões possíveis ao ecumenismo, fecham todas as portas à sã doutrina. Abraçam a iniquidade com tal malícia e insensatez, que sobre eles São Jerônimo ousou dizer: 'Nenhuma besta há no mundo mais feroz do que um mau padre'.

E, quanto mais este infeliz se afunda num abismo de insanidades, mais nele se regala pela sensação de tranquilidade e de confraternizações mundanas cada vez maiores. A insensatez se ensoberbece pela insanidade. Quem mais perto esteve do Céu, mais dele se afasta numa desembestada correria. O sacerdote perde a sua condição divina e torna-se, cada vez mais, um homem comum. E nada pode ser mais trágico na história humana da salvação do que um homem comum ser julgado por Deus um dia como se fosse um anjo. 

terça-feira, 7 de setembro de 2021

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'A Sagrada Escritura nos adverte que até o justo cai sete vezes. Sempre que leio estas palavras, a minha alma estremece com um forte abalo de amor e de dor. Uma vez mais, vem o Senhor ao nosso encontro, com essa advertência divina, para nos falar da sua misericórdia, da sua ternura, da sua clemência, que nunca acabam. Estai seguros: Deus não quer as nossas misérias, mas não as desconhece e conta precisamente com essas debilidades para que nos façamos santos. Um abalo de amor, dizia-vos. Considero a minha vida e, com sinceridade, vejo que não sou nada, que não valho nada, que não tenho nada, que não posso nada; mais: que sou o nada! Mas Ele é o tudo e, ao mesmo tempo, é meu, e eu sou dEle, porque não me repele, porque se entregou por mim. Contemplastes amor maior?... Deus não se cansa de nos amar. A esperança demonstra-nos que, sem Ele, não conseguimos realizar nem o mais pequeno dever; e com Ele, com a sua graça, cicatrizam-se as nossas feridas; revestimo-nos da sua fortaleza para resistir aos ataques do inimigo e nos tornamos melhores. Em resumo: a consciência de que somos feitos de barro ordinário nos há de servir, sobretudo, para reafirmarmos a nossa esperança somente em Jesus Cristo'.

(São Josemaria Escrivá)

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

UM LUGAR MUITO ESPECIAL

Muitos, muitos homens estavam reunidos e sentados em torno da mesa oval e imensa. A luz que os envolvia era de um brilho e de uma transparência insondáveis. Eles estavam mergulhados na luz de Deus. Todos podiam ver, embora de forma imprecisa e algo indefinida, os que ali também se encontravam e, particularmente, e de forma estranhamente bela, o único lugar vazio em torno da mesa. E nada mais, embora fossem capazes de pressentir a presença do Anjo de Deus em algum ponto às suas costas, em algum lugar indefinido em torno da mesa. E cada um podia ouvir a voz do Anjo, tão clara e tão potente, como se fosse soprada em seus próprios ouvidos.

E o Anjo de Deus chamou primeiro o homem que estava à esquerda do único lugar vazio da mesa, e sua voz ressoou como os grandes címbalos de bronze:

'Quem és tu, ó homem mortal, para ousares chamar o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó de meu Senhor e meu Deus?'

O homem, preso à mesa como por enormes correntes de chumbo, assim respondeu (e o que falou veio como um frêmito nascido no mais íntimo de sua alma, sem distorção alguma pelos espasmos instáveis e sombrios das palavras humanas):

'Sou luterano e professo a religião que me foi outorgada pelos ensinamentos e doutrina de Martinho Lutero, um ex-monge da Igreja...'

'A tua igreja nasceu em 1517... como bem o disseste, é a igreja de Lutero, e não é a Igreja de Cristo. Afasta-te, pois, da luz da glória de Deus!'

E o Anjo de Deus baixou a sua espada de luz e criou um segundo lugar vazio à mesa.

E o Anjo de Deus chamou em seguida o homem que estava à esquerda do segundo lugar vazio da mesa, e sua voz ressoou como os grandes címbalos de bronze:

'Quem és tu, ó homem mortal, para ousares chamar o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó de meu Senhor e meu Deus?'

O segundo homem, tal como o primeiro, de forma igual e por igual impulso espiritual, assim respondeu:

'Sou presbiteriano e minha religião foi fundada por John Knox no ano de 1560...'

'A tua igreja nasceu em 1560... é a igreja de um homem e não a Igreja de Cristo. Afasta-te também, pois, da luz da glória de Deus!'

E o Anjo de Deus baixou a sua espada de luz e criou um terceiro lugar vazio à mesa.

Pela terceira vez, o Anjo de Deus chamou o homem que estava à esquerda do terceiro lugar agora vazio da mesa, e sua voz ressoou como os grandes címbalos de bronze:

'Quem és tu, ó homem mortal, para ousares chamar o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó de meu Senhor e meu Deus?'

O homem, impelido pelo sopro da Verdade de Deus, assim respondeu:

'Sou um membro das Testemunhas de Jeová, e professei com fidelidade extrema os princípios expostos e ensinados por Carlos Taze Russel em 1870, e modificados por seu discípulo Rutherforf em 1918...'

'É essa a idade da tua igreja? Viveste imerso entre trevas e anseias buscar nas trevas de tuas crenças a Igreja de Cristo? Afasta-te também, pois, da luz da glória de Deus!'

E o Anjo de Deus baixou a sua espada de luz e criou mais um lugar vazio à mesa.

E o Anjo de Deus chamou todos os homens reunidos, um a um, sempre chamados à esquerda dos lugares que ficavam vazios de uma mesa cada vez mais vazia. E todos responderam ao Anjo, com um uníssono grito da alma, única Verdade que professaram em vida: 'professamos e vivemos uma religião que foi uma farsa criada pelos próprios homens e que nunca foi a Verdadeira Esposa de Cristo'. E, sob o golpe da espada do Anjo de Deus, foram todos expulsos da mesa e da luz da glória de Deus: batista, anglicano, mórmon, espírita, metodista, adventista...

A enorme mesa oval e iluminada pela luz de Deus era agora um ambiente de lugares vazios. O Anjo de Deus a percorreu mais uma vez e, agora, silenciosamente. Não havia ninguém mais para ouvir a sua voz e responder à sua pergunta. Chegou, então, ao primeiro lugar vazio da mesa, aquele que, em dado momento, havia sido o único lugar vazio à mesa. E, ali, como aprisionado por pesadas correntes à mesa, ouviu uma voz humana, nascida do mais íntimo da alma:

'És tu o Anjo do Senhor que Deus me deu como guardião eterno para me conduzir ao lugar da mesa gloriosa do meu Senhor e meu Deus, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó?'

O Anjo do Senhor, volvendo o olhar de Deus no homem que assim falava, perguntou:

'Quem és tu, ó homem mortal, para ousares chamar o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó de meu Senhor e meu Deus?'

'Eu sou católico apostólico romano, nascido nos primórdios da era cristã, entre umas certas bodas de Caná, um Evangelho, um Calvário e a ressurreição de Jesus Cristo, meu Senhor e meu Deus. Eu professei e vivi em plenitude a doutrina da Santa Igreja Católica'.

O Anjo de Deus guardou, enfim, a sua espada de luz e conduziu o último homem ao primeiro lugar vazio da grande mesa que passou a ter, então, as próprias medidas da eternidade de Deus.

(Arcos de Pilares)

Princípio Teológico do Ecumenismo Zero 
ou 
Princípio Geral do Apostolado Católico pela Conversão de Todos os Homens:

Extra Ecclesiam nulla salus - 'Fora da Igreja não há salvação' 
(Concílio de Florença, por exemplo) 

domingo, 5 de setembro de 2021

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Bendize, ó minha alma, ao Senhor. Bendirei ao Senhor toda a vida!' 
(Sl 145)

 05/09/2021 - Vigésimo Terceiro Domingo do Tempo Comum

41. EFATÁ!' 


No Evangelho deste domingo, Jesus em pregação encontra-se em terras estrangeiras, em meio aos pagãos, depois de passar pela Sidônia e atravessar 'a região da Decápole' (Mc 7, 31). Mas, mesmo ali, já eram conhecidos o seu poder e as curas milagrosas que realizava. E, assim, alguns daquela região, inclinados a receber com alegria a doutrina do Mestre, trouxeram à sua presença um homem surdo e que balbuciava palavras com grande dificuldade para que Jesus 'lhe impusesse a mão' (Mc 7, 32), gesto que traduzia concretamente o poder de cura de um grande profeta.

Jesus, entretanto, não vai fazer tal gesto, segundo o costume antigo. Afastando-o da multidão que os cercava, Jesus vai manifestar a sua condição humana e divina como médico do corpo físico mas, e principalmente, de almas. Fisicamente, vai usar o tato para acessar o doente: 'colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele' (Mc, 7,33). E, para confirmar que a cura dos males humanos, físicos ou espirituais, procede apenas de Deus, Jesus, em unidade com o Pai 'olhando para o céu' (Mc 7, 34), vai dizer: 'Abre-te!' (Mc 7, 34) e, somente então, o homem curado passa a falar e ouvir sem quaisquer dificuldades. Jesus recomenda a todos para que não se servissem do fato como história a ser contada, para nos advertir que ninguém nunca se ufane pessoalmente pela realização de uma obra ou de uma cura, que nasce e se dá exclusivamente pela graça de Deus.

De forma muito semelhante, Jesus curou o cego de nascença moldando o barro do chão (Jo 9, 1 - 7); Jesus nos cura dos males físicos e espirituais moldando a argila frágil da natureza humana, pelo cinzel da graça e do amor de Deus. Ao se debruçar até o pó, nos dá ciência de que conhece a nossa imensa fragilidade; ao proclamar sua divindade, nos conforta de que somos os herdeiros da divina misericórdia: 'Criai ânimo, não tenhais medo! Vede, é vosso Deus, é a vingança que vem, é a recompensa de Deus; é Ele que vem para vos salvar' (Is 35, 4).

O 'Efatá' pronunciado por Jesus junto aos ouvidos e à boca do surdo-mudo, deve ressoar, com amplitude crescente, no coração de cada homem, para que todos se abram às palavras de salvação, para que a nossa voz não se quede silenciosa diante da verdade ultrajada, para que corações e mentes não se cauterizem insensíveis aos apelos da graça! Como sal da terra e luz do mundo, somos destinados a sermos reflexos diretos da Luz de Cristo no mundo para a cura de muitos homens e para honra e glória de Deus.

sábado, 4 de setembro de 2021

AS TRÊS VIAS TORTAS DA VIDA INTERIOR

1. O diletantismo espiritual

A vida interior não é uma fonte de emoções religiosas que se basta em si mesma. Muitos cristãos, ansiosos de perfeição, dão muita importância a tais gozos, como se eles mostrassem o nível ou traduzissem o desenvolvimento de nosso progresso espiritual.

A emoção sensível - segundo eles pensam - em nossas relações com Deus, seria o testemunho, a prova de intimidade, tal como se nas relações humanas o verdadeiro afeto fosse medido pelas efusões sentimentais que pode provocar. Seguindo o paralelo entre o amor humano e o amor divino, tendo por base perspectivas, em geral, falsas, não é raro pensar-se que é impossível que haja obstáculos na procura, na busca de Deus, como se na vida não víssemos surgir a cada passo coisas temíveis e inesperadas no arroubo das paixões mais nobres e mais desinteressadas. 

E já que Deus está presente em todas as partes e que, ininterruptamente, estão em tudo a Beleza infinita e a Bondade ilimitada, nossa sensibilidade deveria sentir sempre a embriaguez dessa presença e a sedução de tantos esplendores. Daí o fato de muitos se afastarem, abandonarem a vida interior, porque não encontraram a exaltação sensível que se haviam prometido, ou que lhes fora prometido. É comum vermos novelistas e até autores de obras espirituais, apresentarem a união com Deus como um perene festim de bodas. A decepção que experimentam transtorna muito àqueles que, confiados, atenderam ao convite. A ascese e a mística falam outro idioma. Sem a renúncia não há vida interior. Digo 'vida interior' porque não é preciso muita renúncia para que nos emocionemos com a simplicidade de Belém ou para que nos alegremos com os cantos e as luzes de uma missa pascal. 

Santo lnácio de Loiola nos dá duas séries de regras para o discernimento do espírito, para adorar o que, na consolação (a expressão já está consagrada) vem de Deus, e o que, pelo contrário, não é mais que ilusão. Ora, nunca se pode exprobrar a Santo Inácio porque, em sua espiritualidade, tenha deixado à parte o esforço pessoal. Santa Teresa de Ávila considera a mortificação como uma condição indispensável da oração. E a renúncia das 'noites' de São João da Cruz alcança proporções aterradoras.

Essa renúncia impõe-se tanto na oração e na sua preparação imediata como no comportamento geral da vida. Renúncia do espírito na atenção, do coração nos afetos, do corpo nos prazeres e comodidades. Não existe vida interior sem uma ascese do coração, da inteligência, dos sentidos. O diletantismo intelectual ou sentimental nada tem a ver com a vida interior. Que as emoções religiosas constituem manifestações acessórias da vida interior, nada mais exato; porém a realidade espiritual excede-os em todos os sentidos.

2. A pontualidade

No polo oposto ao dos diletantes em religião que andam à cata de emoções, e para se preservarem da ilusão das consolações sensíveis, encontram-se outros que colocaram a vida interior na regulamentação dos atos cotidianos. A fidelidade em praticá-los constitui para eles a essência da vida espiritual. Considerar, antes de tudo, a religião como um dever que se tem de cumprir é, sem dúvida, algo de prudente e vantajoso. Este método evita o capricho e insiste sobre as verdades austeras do cristianismo. Mesmo sendo rígida, tal firmeza não está isenta de elevação.

Mas pode-se cumprir a lei com toda fidelidade sem por isso gozar de vida interior. O soldado que obedece ao regulamento cumpre com seu ofício; mas isso não implica necessariamente que a execução de tais ordens enriqueça muito, digamos, nem seu coração, nem sua inteligência. A execução pontual não é a vida interior; mas pode e deve normalmente conduzir a ela. Não é raro encontrar homens abnegados, de um desprendimento fora do comum, mas que não possuem nenhuma vida interior, ao menos conscientemente. Nem por isso deveríamos desprezar ou subestimar seu espírito de sacrifício ou sua santidade. No sentido em que estamos falando, vida interior e santidade não são a mesma coisa.

Nos vales e planícies por onde correm os rios que deságuam no Mediterrâneo, desde a província até as costas litorâneas, encontramos, a miúdo, leitos de rios obstruídos por penhascos e pedras, arrastados até ali pelas torrentes invernais, e que permanecem secos, desnudos e áridos durante quase todo o ano. Ora aqui, ora ali, uma vegetação rasteira ou uma touceira de juncos, ou ainda alguns louros-rosa atestam a presença de vestígios de umidade. Vários metros abaixo do solo, no entanto, correm lençóis de água abundante e fresca. Muitos viajantes, e até os próprios moradores do lugar nunca suspeitaram dessa efervescência interna e das reservas de fertilidade que se escondem sob aquele árido caos; da existência dessas águas que cruzam aquelas terras sem enriquecê-las e que os habitantes deixam perder-se sem aproveitá-las.

O mesmo ocorre com as virtudes de que acabamos de falar. Uma aridez exterior recobre essa riqueza e essa efervescência que passam despercebidas aos íntimos e até aos próprios olhos dos que a possuem. O evangelho não nos mostra o reino de Deus como um conjunto de regras a seguir. Nosso Senhor compara o reino com uma semente, com uma levedura, com uma realidade que se alimenta e cresce, não por justaposição externa, mas por uma assimilação interna. A primeira imagem que apresenta aos que o interrogam sobre a sua doutrina - alguns dos quais até então não a haviam encontrado, como os judeus de Cafarnaum, Nicodemos e a Samaritana - é a da vida. Aos fariseus, aos quais amaldiçoou, jamais Jesus admoestou por suas irregularidades ou infrações ao código religioso. E até aqueles que não haviam sido corrompidos pelo orgulho farisaico, nem sempre estavam ao abrigo da aridez provocada por uma regularidade que havia mecanizado em excesso sua atividade espiritual.

Somos verdadeiramente os filhos da casa. De modo que nos portamos menos como servos, aos quais o Senhor dá as suas ordens, do que como filhos e filhas que se empenham em compreender o pensamento do seu amantíssimo Pai. A vida interior nos leva a viver como filhos de Deus. No cristianismo, trata-se menos de reconstruir um mosaico de acordo com o modelo do que desenvolver, graças a uma tarefa constante e quase sempre dolorosa, o germe que trazemos conosco, e deixar irradiar em nós 'a luz verdadeira que ilumina a todo o homem'. A regularidade pura e simples em si mesma não dá a ideia da riqueza de nossas relações de filhos com 'nosso Pai que está nos céus'.

3. O alheamento à realidade

Outro erro na vida interior seria o alheamento às realidades mundanas. Às vezes considera-se a vida interior como se se tratasse de uma evasão das nossas ocupações e dos nossos afetos. É uma tentação sedutora, não há que negar, a de abandonar esta intrincada trama dos nossos negócios humanos em procura de uma vida angélica, livre de todos os entraves materiais. Porém nós não somos anjos, e nem temos que chegar a sê-lo, Cristo é nosso modelo e Ele não foi anjo e sim um homem. Ele nos redimiu, encarnando-se, tornando-se um de nós e submetendo-se a todas as nossas debilidades, exceto o pecado.

Submergir-se em uma solidão interior ou exterior que afaste por completo dos semelhantes, dos trabalhos, isto só por uma vocação excepcional; não é o caminho normal pelo qual deve dirigir-se o conjunto dos cristãos. Para a grande maioria, a solidão - o retiro fechado, por exemplo - não deve ser mais que um recolhimento passageiro. Se a vida interior exigisse o afastamento de nossas ocupações e afetos, ela seria exclusivamente daqueles que se apartaram das complicações da existência, como os sacerdotes e religiosos.

Cristãos há que, às vezes, pensam dessa maneira; e por isso afastam-se da vida interior como de um terreno reservado e que jamais lhes seria franqueado. A negligência e a humildade mal entendida, produzem este resultado. Nosso medo ante o esforço acalma-se quando pensamos que, ao menos, isso não nos é exigido de vez que nossa própria vocação ou nossa qualidade de simples cristãos é um obstáculo, ou melhor, é incompatível com as exigências da vida interior. Uma humildade mal entendida espantando-se de ver abrir-se ante nós perspectivas até então ignoradas, pode também desviar-nos da vida interior; para os outros, as ambições heroicas; para nós, a modéstia dos caminhos já traçados.

É um erro evidente. Esta situação a que nos leva e que nos fomenta a preguiça não está dentro da linha cristã. E não aproveitar totalmente das riquezas espirituais oferecidas por Deus, porque desdenham-nas os que nos cercam, não é praticar a humildade. A humildade cristã recolhe avidamente as mais altas ambições; chega até a falar a Deus chamando-o de 'Pai nosso'. Ao nos colocar no mundo, Deus tem um plano do qual participamos. Nosso dever não está em evitá-lo, mas em cumpri-lo. Não estamos no mundo para fugir deste plano, mas para santificá-lo. Para o homem e a mulher casados, a família, os filhos, a profissão, não são obstáculos, muito ao contrário, devem constituir o caminho que leva a Cristo. Afastar-se deste caminho - a menos que se trate de um chamado especial - não é o meio adequado para realizar o cristianismo.

Procurar a Deus longe das condições em que Ele nos colocou é correr o risco de perdermo-nos em vãos esforços. As criaturas com as quais lidamos podem chegar a subjugar-nos; mas, por outro lado, afastando-nos delas podemos encontrar apenas o vácuo. O homem que não ama ao seu próximo ou cujo amor não se manifesta em serviços efetivos, bem pode crer que ama a Deus, mas corre o perigo de se deixar levar por quimeras e de esvair-se na sua própria ilusão. Os erros na vida interior são comuns. Naquele recinto recôndito, no qual só Deus pode penetrar com perfeição, não se encontra a solidez tranquilizadora dos quadros exteriores.

E apesar disso, para julgarmos o valor de nossa vida interior, devemos chegar a esse controle das nossas atitudes, servindo-nos das realidades de cada dia. Os grandes místicos nos recomendam que meçamos os mais extraordinários estados da alma de acordo com a maior ou menor fidelidade em cumprir os deveres de cada dia; a disposição de ânimo manifestada no seu comportamento é que indica se é bom o caminho seguido. O cumprimento fiel da vontade de Deus, eis o critério que devemos adotar para discernir o valor real de nosso interior. E este critério já nos ensinava o Mestre: 'Nem todo o que diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus; e sim o que faz a vontade de Meu Pai que está nos céus' (Jo 12,46).

(Excertos da obra 'Cristãos no Mundo', pelo Pe. E. Roche)