quarta-feira, 3 de julho de 2019

DA VIDA ESPIRITUAL (100)

Sentimo-nos tranquilos quando sabemos que somos tangidos pela infinita misericórdia do Pai; assola-nos o santo temor de Deus quando sabemos que a sua justiça é também infinita. Como, então, viver uma autêntica vida cristã, moldada entre os limites infinitos da misericórdia e da justiça divinas? Vivendo cada dia como se cada dia fosse ser medido pela justiça infinita de Deus; morrendo a cada dia, como se cada dia fosse o último dia de nossas vidas, na esperança de cada dia ser medido pela infinita misericórdia do Pai.

terça-feira, 2 de julho de 2019

GALERIA DE ARTE SACRA (XXVI)


ICHTUS, que significa peixe, foi um dos primeiros e mais proeminentes símbolos do Cristianismo e sua provável origem deriva do fato de que pelo menos quatro dos Apóstolos teriam sido pescadores. A palavra original em grego é ΙΧΘΥΣ (Ἰησοῦς Χριστός, Θεοῦ ͑Υιός, Σωτήρ) que forma o acróstico Iēsous [I], Christos (X]; Theou [Θ]; Yois [Y]; Sōtēr [∑], que significa Jesus Cristo, Filho de Deus, o Salvador.




Há registros da presença deste símbolo desde os primórdios do Cristianismo, como marcador ou sinalizador de catacumbas cristãs (comumente associado a âncoras, outro importante símbolo cristão dos primórdios da fé cristã). 



Na arte cristã ao longo dos tempos, o símbolo aparece diretamente ou modificado na forma de uma pseudo-elipse ou pela superposição de duas elipses ou círculos iguais, que envolvem a figura de Jesus Cristo.


segunda-feira, 1 de julho de 2019

COMPÊNDIO DE SÃO JOSÉ (XV)


71. Sendo São José particularmente o modelo para o caminho da santidade, qual é o tipo de espiritualidade que ele nos apresenta? 

Ele nos apresenta uma espiritualidade acessível a todos porque supõe a grandeza da vida cotidiana enquanto tal; de maneira mais ou menos extraordinária, com a qual cada um saberá viver a sua vida comum no exercício constante das mais variadas virtudes. Sua espiritualidade é feita de coisas simples e por isso é que ele é indicado como ponto ideal de referência para todas as categorias de pessoas: sacerdotes, religiosos, pais de família, esposos, virgens, ricos, operários, pobres… Ele nos ensina que 'para ser bons e autênticos seguidores de Cristo, não são necessárias coisas grandiosas, mas são suficientes virtudes humanas comuns, simples, mas verdadeiras e autênticas', como nos afirmou o Papa Paulo VI. 

72. Por que São José não mereceu a atenção da Igreja em suas reflexões logo nos primeiros séculos? 

Porque a preocupação da Igreja era toda voltada para a pessoa de Jesus Cristo, nascido de uma Virgem; portanto, concentrava suas atenções na proclamação da divindade de Jesus e, consequentemente, também desenvolvia uma reflexão sobre Maria, a Mãe de Jesus. Desta forma, São José foi apenas tratado de maneira ocasional quando se analisava o texto evangélico, sobretudo do evangelho da infância. 

73. Podemos colher algumas referências desta maneira ocasional com que São José foi lembrado nos escritos e reflexões dos primeiros séculos? 

Sem dúvida, alguns escritores, como Santo Ambrósio (+397), consideraram verdadeiro o matrimônio de José e Maria. São Jerônimo (+420) sustentou a sua virgindade. Santo Agostinho (+ 430), além da sua virgindade e de seu verdadeiro matrimônio, defendeu também a sua verdadeira paternidade. Assim como inúmeros outros padres da Igreja e teólogos de então fizeram referência a José. 

74. Quando afinal começou a difusão da Doutrina Josefina de uma maneira mais organizada? 

A partir do início do século XIII. Como exemplo, temos São Boaventura que coloca em luz a presença de José através de seu 'comentário sobre São Lucas' e, depois, em diversos outros seus sermões. Também São Bernardino de Sena em seu 'Sermão sobre São José, esposo da Bem-aventurada Virgem', onde admite a ressurreição de São José e sua assunção ao céu. Outro grande difusor da Doutrina Josefina foi Jean Charlier (+1419), chanceler da Universidade de Paris, mais conhecido como Gerson, o qual escreveu uma obra denominada: 'Considerações sobre São José' e outra denominada 'Josefina', assim com um 'Sermão sobre a gloriosa natividade da Virgem Maria e sobre a recomendação de seu esposo virginal José'. Outro grande Josefólogo foi Isidoro Isolani (+1528) que escreveu um verdadeiro tratado teológico sobre São José em sua obra 'Suma dos dons de São José'. Francisco Suarez (+1617) revolucionou o pensamento sobre São José colocando-o como membro da ordem da união hipostática. Enfim, é impossível enumerar as centenas de teólogos que escreveram sobre São José e defenderam os seus privilégios. 

75. Existem algumas figuras mais eminentes que se destacaram na promoção da devoção e culto a São José? 

São inúmeras estas figuras, apenas mencionamos Santa Tereza d’Ávila (+1582) que promoveu o seu culto em toda a Espanha e dedicou onze mosteiros de sua Ordem a São José, os quais foram verdadeiros centros de irradiação da devoção ao nosso santo. São Francisco de Sales (+1622) contribuiu muito na difusão da Devoção Josefina com seu 'Tratado do amor de Deus' e suas 'Conferências Espirituais'. Destacamos também o Cardeal Alexi Henri – Marie Lepicier (+1936) que escreveu o Tractatus de S. Joseph e recebeu a incumbência de Pio X de compor a ladainha de São José. Enfim, o culto e a devoção ao pai nutrício do Redentor conheceu um verdadeiro florescimento com o empenho de grandes devotos do nosso santo. Desta forma, muitos fundadores e fundadoras de congregações religiosas difundiram a devoção a São José, a exemplo do Bem-aventurado José Marello (+1894), fundador da Congregação dos Oblatos de São José, assim como Gaspar Bertoni (+1853).

('100 Questões sobre a Teologia de São José', do Pe. José Antonio Bertolin, adaptado)

domingo, 30 de junho de 2019

AS COLUNAS DA IGREJA

Páginas do Evangelho - Solenidade de São Pedro e São Paulo

Neste domingo, a liturgia católica celebra a Solenidade dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, primícias da fé, fundamentos da Igreja. De toda a fundamentação bíblica do primado de Pedro, é em Mt 16, 18-19 que aflora, mais cristalina do que nunca, a água viva que brota e transborda das Palavras Divinas as primícias do papado e da Igreja, nascidos juntos com São Pedro: 'Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la' (Mt 16, 18). Esta será a Igreja Militante, a Igreja Temporal, A Igreja da terra, obra temporária a caminho da Igreja Eterna do Céu. Mas ligada a Pedro e aos sucessores de Pedro, sumos pontífices herdeiros da glória, poder e realeza de Cristo.

(Cristo entrega as chaves a São Pedro - Basílica de Paray-le-Monial, França)

E Jesus vai declarar, em seguida e sem condicionantes, o poder universal e sobrenatural da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana: 'Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus' (Mt 16, 19). Ligado ou desligado. Poder absoluto, domínio universal, primado da verdade, Cátedra de Pedro. Na terra árida de algum ermo qualquer da 'Cesareia de Felipe', erigiu-se naquele dia, pela Vontade Divina, nas sementeiras da humanidade pecadora, a Santa Igreja, a Videira Eterna.

Com São Paulo, a Igreja que nasce, nasce com um gigante do apostolado e se afirma como escola de salvação universal. Eis aí a síntese do espírito cristão levado à plenitude da graça: Paulo se fez 'outro Cristo' em Roma, na Grécia, entre os gentios do mundo. No apostolado cristão de São Paulo, está o apostolado cristão de todos os tempos; a síntese da cristandade nasceu, cresceu e se moldou nos acordes pautados em suas epístolas singulares proferidas aos Tessalonicenses, em Éfeso ou em Corinto. Síntese de fé, que será expressa pelas próprias palavras de São Paulo: 'Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé' (2Tm 4,7).

(São Paulo Apóstolo - Basílica de Alba, Itália)

São Pedro foi o patriarca dos bispos de Roma, São Paulo foi o patriarca do apostolado cristão. Homens de fé e coragem extremadas, foram as colunas da Igreja. São Pedro morreu na cruz, São Paulo morreu por decapitação pela espada. Mártires, percorreram ambos os mesmos passos da Paixão do Senhor. E se ergueram juntos na Glória de Deus pela Ressurreição de Cristo.

sábado, 29 de junho de 2019

29 DE JUNHO - FESTA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO

FUNDAMENTOS DA IGREJA

São Pedro e São Paulo - Jusepe de Ribera (1591 - 1652)

"Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16,16).

“Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé” (II Tm 4,7).

Excertos da Homilia do Papa João Paulo II, na Solenidade de São Pedro e São Paulo, em 29/06/2000


Jesus dirige aos discípulos esta pergunta acerca da sua identidade, enquanto se encontra com eles na Alta Galileia. Muitas vezes acontecera que foram eles a interrogar Jesus; agora é Ele quem os interpela. A sua pergunta é específica e espera uma resposta. Simão Pedro toma a palavra em nome de todos:  "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo" (Mt 16, 16). A resposta é extraordinariamente lúcida. Nela se reflete de modo perfeito a fé da Igreja. Nela nos refletimos também nós. De modo particular, reflete-se nas palavras de Pedro o Bispo de Roma, por vontade divina, seu indigno sucessor.

2. "Tu és o Cristo!". À confissão de Pedro, Jesus replica:  "És feliz, Simão, filho  de  Jonas,  porque  não  foram  a carne nem o sangue quem to revelou, mas  o  Meu  Pai  que  está  nos  céus" (Mt 16, 17).

És feliz, Pedro! Feliz, porque esta verdade, que é central na fé da Igreja, não podia emergir na tua consciência de homem, senão por obra de Deus. "Ninguém, disse Jesus, conhece o Filho senão o Pai, como ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar" (Mt 11, 27). Reflitamos sobre esta página evangélica particularmente densa:  o Verbo encarnado revelara o Pai aos seus discípulos; agora é o momento em que o próprio Pai lhes revela o seu Filho unigênito. Pedro acolhe a iluminação interior e proclama com coragem:  "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo"!

Estas palavras nos lábios de Pedro provêm do profundo do mistério de Deus. Revelam a verdade íntima, a própria vida de Deus. E Pedro, sob a ação do Espírito divino, torna-se testemunha e confessor desta soberana verdade. A sua profissão de fé constitui assim a sólida base da fé da Igreja:  "Sobre ti edificarei a minha Igreja" (Mt 16, 18). Sobre a fé e a fidelidade de Pedro está edificada a Igreja de Cristo.

3. "O Senhor assistiu-me e deu-me forças a fim de que a palavra fosse anunciada por mim e os gentios a ouvissem" (2 Tm 4, 17). São palavras de Paulo ao fiel discípulo Timóteo:  escutamo-las na Segunda Leitura. Elas dão testemunho da obra nele realizada pelo Senhor, que o tinha escolhido como ministro do Evangelho, "alcançando-o" na via de Damasco (cf. Fl 3, 12). Envolvido numa luz fulgurante, o Senhor se lhe havia apresentado, dizendo:  "Saulo, Saulo, por que Me persegues?" (Act 9, 4), enquanto uma força misteriosa o lançava por terra (cf. ibid., v. 5).

"Quem és Tu, Senhor?", perguntara Saulo. "Eu sou Jesus, a quem tu persegues!" (ibid.). Foi esta a resposta de Cristo. Saulo perseguia os seguidores de Jesus e Jesus fez-lhe tomar consciência de que era Ele mesmo a ser perseguido neles. Ele, Jesus de Nazaré, o Crucificado, que os cristãos afirmavam ter ressuscitado. De Damasco, Paulo iniciará o seu itinerário apostólico, que o levará a defender o Evangelho em tantas partes do mundo então conhecido. O seu impulso missionário contribuirá assim para a realização do mandato de Cristo aos Apóstolos:  "Ide, pois, ensinai todas as nações..." (Mt 28, 19).

4. Caríssimos Irmãos no Episcopado vindos para receber o Pálio, a vossa presença põe em eloquente ressalto a dimensão universal da Igreja, que derivou do mandato do Senhor:  "Ide... ensinai todas as nações" (Mt 28, 19). Todas as vezes que vestirdes estes Pálios, recordai, Irmãos caríssimos que, como Pastores, somos chamados a salvaguardar a pureza do Evangelho e a unidade da Igreja de Cristo, fundada sobre a "rocha" da fé de Pedro. A isto nos chama o Senhor; esta é a nossa irrenunciável missão de guias previdentes do rebanho que o Senhor nos confiou.

5. A plena unidade da Igreja! Sinto ressoar em mim a recomendação de Cristo. Deus nos conceda chegarmos quanto antes à plena unidade de todos os crentes em Cristo. Obtenhamos este dom dos Apóstolos Pedro e Paulo, que a Igreja de Roma recorda neste dia, no qual se faz memória do seu martírio e, por isso, do seu nascimento para a vida em Deus. Por causa do Evangelho, eles aceitaram sofrer e morrer e se tornaram partícipes da ressurreição do Senhor. A sua fé, confirmada pelo martírio, é a mesma fé de Maria, a Mãe dos crentes, dos Apóstolos,  dos Santos  e Santas  de  todos  os séculos.

Hoje a Igreja proclama de novo a sua fé. É a nossa fé, a imutável fé da Igreja em Jesus, único Salvador do mundo; em Cristo, o Filho de Deus vivo, morto e ressuscitado por nós e para a humanidade inteira.


São Pedro e São Paulo, rogai por nós!

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (X)


Na décima e última parte do Sermão da Sexagésima, o Pe. Antônio Vieira conclui o seu sermão, com a seguinte recomendação final: a pregação que dá fruto à Santa Palavra de Deus é aquela que descontenta e traz inquietação aos ouvintes e não aquela que os tornam confortáveis e passivos às palavras do pregador e do sermão.

X

Dir-me-eis o que a mim me dizem e o que já tenho experimentado que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes e não gostam de ouvir. Ó boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar e, por isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais é mister. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demônios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: venit diabolus, et tollit verbum de corde ipsorum! [vem o demônio e lhes tira a palavra do coração! (Lc 8,12)]. 

Pois por que não comeu o diabo o trigo que caiu entre os espinhos ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho, conculcatum est ab hominibus - pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a que o diabo mais teme. De outros conceitos, de outros pensamentos, de outras sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se teme nem se acautela o diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: secus viam [ao lado do caminho]; daquela doutrina que parece comum: secus viam [ao lado do  caminho]; daquela doutrina que parece trivial: secus viam [ao lado do  caminho]; daquela doutrina que parece trilhada: secus viam [ao lado do caminho]; daquela doutrina que nos põe no caminho e na via da nossa salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa é a de que o demônio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do mundo e, por isso mesmo, essa é a que deviam pregar os pregadores e a que deviam buscar os ouvintes. 

Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam [por meio da boa e da má fama (II Cor 6,8)], dizia São Paulo: o pregador há de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo: há de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mundo: mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama, isso é ser pregador de Jesus Cristo.

Pois gostem ou não gostem os ouvintes! Ó que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum [são aqueles que com alegria recebem a palavra]. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras?! Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem. Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: et fructum afferunt in patientia [e produzem fruto pela paciência (Lc 8,15)] conclui Cristo. 

De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer; frutifiquemos nós e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte, a cada palavra do pregador, treme; quando cada palavra do pregador é um torcicolo para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atônito, sem conhecer parte de si, então esta é a preparação que convém e então se pode esperar que dê fruto: et fructum afferunt in patientia [e produzem fruto pela paciência (Lc 8,15)].

Enfim, para que os pregadores saibam como hão de pregar e os ouvintes a quem hão de ouvir, acabo com um exemplo do nosso reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os nomeio, porque os hei de desigualar. Altercou-se, entre alguns doutores da universidade, qual dos dois fosse maior pregador e como não há juízo sem inclinação, uns diziam este, outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: 'entre dois sujeitos tão grandes, não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim'.

Com isto concluo. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saísseis muito descontentes de vós. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, que se descontentem embora de nós. 

Si hominibus placerem, Christus servus non essem [se quisesse agradar aos homens, não seria servo de Cristo (Gl 1,10)], dizia o maior de todos os pregadores, São Paulo: se eu contentasse os homens, não seria servo de Deus. Ó contentemos a Deus e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus [fomos entregues em espetáculo a Deus, aos anjos e aos homens (cf I Cor 4,9)]. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há de julgar. Que conta há de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: não me disseram isso. E o pregador? Vae mihi, quia tacui [ai de mim, estou perdido (Is 6,5)]: ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós.

Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que se tem ainda na terra quem se põe da sua parte e saiba o inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus; e saiba a mesma terra, que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: et fecit fructum centuplum [e deu fruto cem por um].

(Sermão da Sexagésima - Parte X, Pe. Antônio Vieira)