segunda-feira, 29 de setembro de 2014

29 DE SETEMBRO - SÃO MIGUEL ARCANJO

(São Miguel com elmo e armadura medieval - Catedral de Bruxelas)

'Houve uma batalha no Céu: Miguel e os seus Anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com os seus Anjos, mas foi derrotado e não se encontrou mais um lugar para eles no Céu.' (Apoc. 12, 7-8).

'Naquele tempo, surgirá Miguel, o grande Príncipe, constituído defensor dos filhos do seu povo e será tempo de angústia como jamais houve.' (Dan. 12, 1).

Assim como Lúcifer é o chefe dos demônios, Miguel é o maior dentre os anjos, Príncipe das milícias celestes, protetor da Santa Igreja e da humanidade contra as forças do inferno. Assim, a designação de arcanjo (oitavo coro dos anjos) tem sentido genérico e nominativo, pois certamente São Miguel, sendo o primeiro dentre os Anjos, é o maior dos serafins. Dentre os vários santuários destinados ao Príncipe das milícias celestes, destaca-se aquele localizado no Monte Saint Michel na França, cuja foto constitui a abertura e o símbolo deste blog.

(Santuário de São Miguel - Monte Saint Michel/França)

São Miguel, rogai por nós!
Intercedei a Deus por nós!

domingo, 28 de setembro de 2014

OS HUMILDES E OS DUROS DE CORAÇÃO

Páginas do Evangelho - Vigésimo Sexto Domingo do Tempo Comum


No Evangelho deste domingo, encontramos Jesus após a sua entrada triunfal em Jerusalém, acossado pela malícia humana dos escribas, mestres da lei, anciãos e demais membros do Sinédrio. Tomados pela inveja e calúnia, queriam justificar publicamente a sentença de morte que já haviam imposto secretamente a Jesus nos seus corações e mentes. O júbilo messiânico daquele Domingo de Ramos selara em definitivo o destino e a morte de Jesus.

A missão do Senhor aproxima-se do final e impõe-se cumpri-la até o fim. Jesus contempla com enorme tristeza aqueles homens duros de coração que, cientes de todos os textos proféticos, não compreenderam ou não quiseram compreender os sinais da vinda do Messias ao mundo dos homens. Da mesma forma como negaram João Batista, era preciso agora, com muito mais vigor e malícia, negarem a Cristo; mais do que isso, precisavam tramar e manipular o povo para tornar natural e incontestável a condenação de Jesus à morte, a uma morte de cruz.  

Aos duros de coração, elabora, então, a parábola dos dois filhos que o pai ordena trabalharem na vinha: 'Filho, vai trabalhar hoje na vinha!’ (Mt 21, 28). O primeiro se nega a princípio e depois acata a ordem do pai e o segundo, que parecia acatar, não cumpre a ordem paterna. Filhos que são os filhos deste mundo, chamados por Deus, para serem operários nas vinhas do Senhor: os que ouvem o chamado à graça, pela manhã ou nas horas mais tardias da vida, e vão trabalhar na vinha e os que não vão, por desobediência explícita, por insensatez, por descuidado zelo. Ontem, os primeiros foram os gentios, publicanos e pecadores e os últimos, os escribas e os fariseus que tramaram contra Jesus; ontem e sempre, os primeiros foram aqueles que humildemente refletiram as palavras e os ensinamentos do Mestre no coração e os últimos, os duros de coração, que se ensoberbeceram no jogo das meras palavras e das promessas vazias.

O caminho da salvação perpassa pelo coração. 'Então Jesus lhes disse: Em verdade vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus' (Mt 21, 31). Foram e são muitos os pecadores que aceitaram o firme propósito do arrependimento sincero e de conversão; infelizmente também são muitos os que se apegam aos valores humanos, à vanglória, à tibieza e à obstinação do orgulho desmedido. Nesta conduta de retidão, serão separados o joio e o trigo, os justos e os ímpios diante do tribunal de Deus, porque 'quando um justo se desvia da justiça, pratica o mal e morre ... quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida' (Ez 18, 26 - 27).

sábado, 27 de setembro de 2014

27 DE SETEMBRO - SÃO VICENTE DE PAULO


Filho de camponeses, Vicente de Paulo nasceu na pequena aldeia de Pay, região de Bordéus e dos Pirineus, em 24 de abril de 1575. Iniciou seus estudos com os franciscanos em Dax, formando-se mais tarde em teologia em Toulouse, onde tornou-se sacerdote em 23 de setembro de 1600. Forjava-se ali um dos maiores e mais belos exemplos da santificação e de apostolado missionário de toda a história da Igreja. 

Foi o fundador da Companhia da Missão (padres lazaristas) devotada à evangelização dos pobres e co-fundador da Congregação das Filhas da Caridade, cuja primeira superiora foi Santa Luísa de Marillac. Inspirado por seu amor a Deus e aos homens, Vicente de Paulo foi o criador de muitas obras de caridade e de piedade cristãs, às quais devotou toda a sua vida, pautada na missão de levar e viver plenamente o Evangelho de Cristo junto aos pobres, aos doentes, aos renegados, aos presos, aos desvalidos do mundo. O seu exemplo e seus ensinamentos inspiraram, mais tarde, em 1833, a criação das chamadas Conferências Vicentinas, que projetaram o legado da ação e das obras de caridade do santo ao mundo inteiro.



Este grande amigo e benfeitor dos mais necessitados faleceu em 27 de setembro de 1660 e seu corpo foi sepultado na igreja de São Lázaro (ou capela dos Lazaristas) em Paris, sendo encontrado praticamente incorrupto, quando exumado 52 anos após a sua morte. O coração do santo é conservado em um relicário na Capela de Nossa Senhora Milagrosa, também em Paris. Foi canonizado em 1737 pelo Papa Clemente XII e declarado patrono de todas as obras de caridade da Santa Igreja, em 1885, pelo papa Leão XIII.

São Vicente de Paulo, rogai por nós!

CIÊNCIA DOS SANTOS E CIÊNCIA DOS HOMENS

Ao falar da ciência mundana, diz São Paulo: A ciência incha, a caridade porém edifica. O que julga saber muito, ainda ignora como deve saber. Quando a ciência mundana anda associada ao amor de Deus, é de grande vantagem para nós e para os outros; mas, quando se acha desacompanhada da caridade, causa-nos grande dano, tornando-nos orgulhosos e levando-nos a desprezar os outros; porque, tanto o Senhor é pródigo das suas graças com os humildes, como avaro com os orgulhosos.

Ditoso o homem a quem Deus dá a ciência dos santos, como a deu a Jacó: Dedit illi scientiam sanctorum (Sap. 10, 10)! Deste dom, como do maior de todos, fala a Escritura. Ó quantos homens vivem cheios de si mesmos, pelos conhecimentos que têm das matemáticas, belas letras, línguas estrangeiras e antiguidades, que nada aproveitam ao bem da religião, nem aumenta as vantagens espirituais! De que serve possuir uma tal ciência, saber tão belas coisas, se não se sabe amar a Deus e praticar a virtude? Os sábios do mundo, que só procuram adquirir um grande nome, estão privados das luzes celestes, que o Senhor dispensa aos simples: Abscondisti haec a sapientibus et prudentibus (sábios e prudentes do século), et revelasti eo parvulis (Matth.11, 25). Os Parvuli são os espíritos simples, que põem todo o seu cuidado em agradar a Deus.

Santo Agostinho proclama bem-aventurado o que conhece a grandeza e bondade de Deus embora ignore tudo o mais: Beatus, qui te scit, etiamsi illa nesciat (Conf. 1. 5. c. 4). Quem não conhece a Deus, não pode amá-lo; ora, quem ama a Deus é mais sábio que todos os literatos, que não sabem amá-lo. Hão de levantar-se os ignorantes e arrebatar o Céu, exclama o mesmo santo doutor! Quantos rústicos, quantos pobres camponeses, subirão à santidade e conseguirão a vida eterna, da qual quereriam gozar antes um só instante, do que adquirir todos os bens da terra! Aos Coríntios escrevia o Apóstolo: Não fiz profissão entre vós de saber outra coisa senão a Jesus Cristo, e Jesus Cristo Crucificado. Como seríamos felizes se chegássemos a conhecer a Jesus Crucificado, a conhecer o amor que ele nos testemunhou e o amor que mereceu da nossa parte, sacrificando por nós a sua vida na cruz, e se, estudando um livro tal, chegássemos a amá-lo com um amor ardente!

Um grande servo de Deus, o Pe. Vicente Carafa, escrevendo a alguns jovens eclesiásticos, que estudavam para trabalharem na salvação das almas ,dizia-lhes: 'Para operar grandes conversões nas almas, mais vale ser homem de muita oração, que de muita eloquência; porque as verdades eternas, que convertem as almas, melhor se pregam pelo coração que pelos lábios somente'. Devem pois os ministros do Evangelho ter uma vida que se mostre de acordo com o que ensinam; devem, numa palavra, apresentar-se como homens que, desprendidos do mundo e da carne, só procuram a glória de Deus, e fazê-lo amar de todos. Por isso o Pe. Carafa ajuntava: 'Ponde todo o vosso cuidado em vos dardes ao exercício do amor divino; desde que o amor de Deus toma posse do nosso coração, só por si o desapega de todo o amor desordenado, e o torna puro, despojando-o dos afetos terrenos'. 'Um coração puro', diz Santo Agostinho, 'é um coração vazio de toda a cobiça: Cor purum est cor vacuum ab omni cupiditate'. Com efeito, ajunta São Bernardo, 'quem ama a Deus só pensa em o amar e não deseja outra coisa: Qui amat, amat, et aliud novit nihil' (In Cant. s. 83).

Dizia São Tomás de Vilanova: 'Para converter os pecadores, e fazê-los sair do atoleiro das suas iniquidades, são necessárias flechas de fogo; mas como podem elas provir dum coração gelado, que o amor de Deus não aquece?' A experiência mostra que um padre de ciência medíocre, mas abrasado no amor de Jesus Cristo, atrai mais almas a Deus, que muitos oradores sábios e eloquentes, que deleitam os ouvintes. Aqueles que, por seus conhecimentos raros, belos pensamentos e engenhosas reflexões, despedem os seus ouvintes muito satisfeitos, deixam-nos afinal com o coração desprovido do amor de Deus, e talvez mais frio que antes. Mas o que aproveita isso para o bem comum? E que fruto colhe o pregador, senão agravar mais a sua responsabilidade diante de Deus? Em vez dos bons frutos que podia produzir com o seu sermão, somente granjeia vãos aplausos. Ao contrário, quem de um modo simples prega a Jesus crucificado, não para ser louvado, mas só para o fazer amar, desce da cadeira enriquecido de merecimentos pelo bem que fez, ou que pelo menos desejava fazer nos seus ouvintes.O que acima fica dito tem aplicação, não só aos pregadores, mas também aos professores e confessores. Quanto bem pode fazer um professor de ciências, ensinando a seus discípulos as máximas da verdadeira piedade!O mesmo se pode dizer dos confessores.

Notem-se também os abundantes frutos que se podem produzir nas conversas com os outros. Pode-se pregar sempre; mas que bem um padre instruído e santo pode fazer na conversação, falando a propósito da vaidade das grandezas humanas, da conformidade com a vontade de Deus e da necessidade que temos de nos recomendarmos sem cessar à proteção do Céu, no meio de tantas tribulações que nos afligem e de tantas tentações que nos assaltam! Digne-se o Senhor dar-nos as luzes e forças de que necessitamos para empregarmos os restantes dias da nossa vida em O amar e fazer a sua vontade, pois que só isso nos aproveita e tudo o mais é perdido!

(Excertos da obra 'A Selva', de Santo Afonso Maria de Ligório)

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

SANTOS E MÁRTIRES (III)


SÃO COSME E SÃO DAMIÃO

Irmãos e especializados em Medicina, Cosme e Damião serviram por muitos anos os pobres da região da Síria, no início do Século IV, para a honra e glória de Deus. Com grande zelo apostólico, pregavam o Evangelho, convertendo muitas almas, sem pagamentos ou quaisquer honrarias, pelo que foram privilegiados pela Providência com muitas graças e curas milagrosas. Durante a perseguição do imperador Dioclesiano e enquanto desenvolviam suas atividades na Cilícia (ano 303), os irmãos foram trazidos à presença do governador Lísias, que exigiu deles uma pronta renúncia às pregações e à fé cristã. Ante a recusa destemida de ambos, o governador ordenou que fossem torturados e posteriormente decapitados. 

Os corpos foram transportados e enterrados em Cira, na Síria, numa igreja que lhes recebeu o nome. Favorecido, mais tarde, pela cura de uma doença pela intercessão de Cosme e Damião, o imperador Justiniano construiu uma igreja em honra deles em Constantinopla, passando a promover publicamente o culto de ambos, que tornou-se, em pouco tempo, generalizado, inclusive no Ocidente, com a construção de muitas igrejas dedicadas aos mártires; partes de suas relíquias foram levadas no século VI para a Baviera, onde repousam no altar mor da igreja de São Miguel, em Munique. A partir de então, os nomes de São Cosme e São Damião foram incluídos nos cânones da Santa Missa, em destaque entre os grandes mártires da Igreja. A festa litúrgica dos dois mártires é celebrada no dia 26 de setembro, que são comumente representados com instrumentos médicos e com semblantes iguais, pois supostamente teriam sido gêmeos.



(martírio de São Cosme e São Damião)

(altar da Igreja de São Miguel com parte das relíquias dos santos)

São Cosme e São Damião, rogai por nós!

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

DAS CONTRADIÇÕES DO AMOR CRISTÃO


Digo muitas vezes que quero amar a Jesus, e realmente quero amá-lo; sei que o amor conduz necessariamente à imitação, e que não se pode amar a Jesus sem imitá-lo; mas, se se trata de eu sofrer um pouco por seu amor tornando-me deste modo semelhante a Ele, logo a coragem me falta e o desânimo se apodera de mim. Digo que o amo, mas se o sofrimento me assalta vou logo ter com Ele e peço-lhe que me alivie. Afigura-se-me ver a Jesus mostrando-me o coração todo inflamado em chamas de caridade, e peço-lhe... Peço-lhe que tenha compaixão de mim.

Eis a contradição! Tenho uma ferida no coração, e em vez de sofrê-la resignadamente por seu amor, peço-lhe que a cure. Não reparando que Ele tem uma mais profunda que a minha. Tenho espinhos agudos que me envolvem a alma e me fazem sofrer um martírio; mas em vez de sofrer-lhes a punção por seu amor, peço-lhe que os arranque para sempre, não pensando que os espinhos que cercam o seu coração são bem mais agudos e cruéis que os meus.

Tenho também eu que levar uma cruz, uma cruz que me parece tão pesada! Mas em vez de levá-la com coragem pelo caminho do meu calvário, peço-lhe com insistência cotidiana que me alivie, que me livre desse peso. E peço isto a Ele que tem uma cruz plantada no meio do coração, cruz que não tem semelhança em toda a série das dores humanas.

Jesus é tão bom que, para tornar-me semelhante a Ele e proporcionar-me o seu amor, faz-me participante dos sofrimentos do seu coração. E eu, eu que pretendo amá-lo, ouso desejar e pedir-lhe que Ele mesmo destrua em mim o traço de maior semelhança que tenho com Ele. E pensar eu que toda a minha devoção ao Sagrado Coração consiste quase inteiramente neste desejar as suas delícias e ser isento das minhas penas!

Agora compreendo a razão por que Jesus não me ouve; é porque me quer maior bem que o que merecem as minhas orações; é porque, se eu não sofro um pouco, em quase nada me torno semelhante a Ele. Portanto, terei bem fixo diante dos olhos a imagem do Sagrado Coração de Jesus... aquelas feridas... aqueles espinhos... aquela cruz... e, no futuro, serei mais cauteloso em pedir-lhe que me alivie das minhas dores.

Antes deveria pedir-lhe que me desse um pouco, não mais que um pouco, das suas penas. Mas devo confessá-lo para minha confusão, sinto que me falta a coragem. Contudo quantas almas fervorosas há que todos os dias pedem a Jesus que as torne participantes da sua Paixão? Quanto mais penso nisto, mais me sinto humilhado. É possível que eu, com esta estima que tenho de mim, não tenha a coragem de pedir um, ao menos um, dos espinhos da sua coroa? Que lugar me compete, pois, entre o número das almas devotas do Sagrado Coração? Poderei dizer que ocupo ao menos o último lugar?

Ó Jesus, tu bem o sabes: eu não ouso perguntar-te se sou uma alma afeiçoada ao teu Coração, pois tenho medo de uma resposta desanimadora. Mas, vejas em mim o que vires, seja qual for o grau de imperfeição a que tenha descido, peço-te que tenhas de mim piedade. Encontro-me sem coragem, sem energia, porque me falta o verdadeiro amor. O sofrimento repugna-me, causa-me horror; não ouso já prometer-te coisa alguma, quase não ouso sequer dirigir-te uma súplica. Porém estou aqui diante de Ti: Tu me amas, queres santificar-me, queres salvar-me. Portanto, não olhes a minha pusilanimidade e a fraqueza do meu coração: prossegue a obra do teu amor sobre mim, faze de mim o que quiseres, contanto que me faças santo, contanto que meu lugar seja o Paraíso.

(Excertos da obra 'Centelhas Eucarísticas', de original italiano, 1906; trad. de Adolfo Tarroso Gomes, 1924)

terça-feira, 23 de setembro de 2014

RECOLHIMENTOS FORÇADOS


O recolhimento está mais espalhado do que se imagina. Está mais unido à vida humana do que se pensa. Senão olhemos para três espécies de recolhimento, aos quais, não diremos todos, mas grande parte, a maior parte dos homens, quer queiram quer não, se devem submeter. São os recolhimentos a que nós chamaremos de forçados ou impostos. E se estes recolhimentos não encontrarem as almas preparadas - ai! que martírio cruel! que sofrimento profundo!

Mas, se, pelo contrário, houver harmonia entre eles e o interior dos indivíduos, então podem-se transformar em estados de verdadeira paz e quietação, quando não de verdadeira e íntima felicidade - o que está, sem dúvida, dentro dos planos sapientíssimos de Deus. Consideremos, portanto, o recolhimento na pobreza, o recolhimento na doença, o recolhimento na velhice.

RECOLHIMENTO NA POBREZA

Bem-aventurado quem compreende a lição, talvez dolorosa, deste tríplice recolhimento e para ele se prepara e por ele se santifica, quando soar a hora da Providência. Uma das grandes chagas do mundo, talvez em todos os tempos, mas parece que, de modo especial, em os nossos dias, é a pobreza ambiciosa, a pobreza dissipada, a pobreza a sonhar - não com uma melhoria razoável na existência - mas com a ostentação e o luxo.

E quando estas tendências não ficam só em desejos, mas se transformam em realizações impossíveis ou ridículas, vemos, então, desgraças e desordens não poucas. Temos insistido que o recolhimento é salutar ou necessário para todos, ricos e pobres, grandes e pequenos, nas cidades e nos campos, mas estamos considerando, agora, o recolhimento que as circunstâncias nos impõem e para as quais seremos sábios, se soubermos recebê-lo de boa mente e dele nos aproveitar.

Não falamos da miséria, que esta é um estado anormal, que, a não ser muito de passagem, nos parece que nunca está nos planos sapientíssimos de Deus. Mas a pobreza, a vida modesta, em geral, é uma situação, de per si, recolhida. A ostentação não lhe fica bem. Ela, então, se fecha em sua casa, em seu quintal, em sua oficina ou escritório, e, fugindo de toda exibição, leva uma vida modesta, que, muita vez, é sinônimo de paz, de muita paz.

Se é explicável e desculpável, às vezes, a inveja neste mundo, um destes casos nos parece ser a inveja que desperta a casa pobre, asseada, onde, não havendo aspirações descabidas, existe um contentamento sadio, uma união edificante, uma força contagiosa. E quando esta pobreza vive na pureza dos campos, é ouro sobre azul. Não podemos conceber estado natural mais feliz. Feliz a pobreza que não somente conhece o seu lugar, mas que o ama e o zela com carinho, quer no lar, quer no trabalho.

Pode, então, o luxo enfatuar-se a seu lado e a ostentação do rico pavonear-se numa ostentação ruidosa, a alma do pobre conserva a paz do seu escondimento e goza os encantos do seu recolhimento, forçado talvez ou imposto, mas aceito com espírito de fé e com a razão esclarecida. O recolhimento da pobreza limpa, da pobreza que trabalha, da pobreza alegre, é uma das situações mais encantadoras da vida. Infelizmente, tão pouco compreendida.

Existem, entretanto, almas assim. São os gozadores da paz e os distribuidores da paz. Passam pelo mundo assim como os santos. E sem deixarem de ter o seu ideal, pelo contrário, pelo fato mesmo de terem o seu ideal bem firmado, é que, por nada do mundo, abandonariam a clausura de sua pobreza feliz. 

Lembremo-nos da pobreza beatifica da casa de Nazaré. Lembremo-nos do lar humilde, sofredor, mas feliz, de uma bem-aventurada Ana Maria Taigi. Não conhecemos a pobreza edificante e, ainda por cima, dadivosa do operário irlandês Matt Talbot? A pobreza destes, como de tantos outros, era a cela misteriosa de sua felicidade, em intima união com seu Deus, que sempre se manifestou entre os pobres, de um modo humilde e nos lugares mais simples. São José, amante da pobreza e modelo do recolhimento, rogai por nós!

RECOLHIMENTO NA DOENÇA

O homem se agita. Anda por toda parte, em uma eterna dissipação. Quer saber tudo, tudo ver, ouvir tudo. Preocupa-se com bagatelas e ninharias. Fala a todo propósito. Só se aquieta quando dorme. Mas, até ao último momento do dia ou já nos primeiros instantes da manhã, está em atividade a sua língua, sem um instante de repouso, ou de concentração. Enquanto espera o sono, já deitado, ou sem a coragem para se levantar, quanta fantasia, que é um modo de falar também!

De repente, é uma febre, um desastre, uma doença qualquer (há tantas) e eis o homem dissipado preso a um quarto, a uma cama, ao sofrimento, em um recolhimento, exterior ao menos, forçado. Infeliz, muito infeliz, o pobre acidentado ou doente (não, pelo sofrimento físico), se este recolhimento representar uma novidade cruel em sua vida, se for um estado, do qual, o pobre homem sempre fugiu, consciente ou inconscientemente.

'Padre - dizia-me uma senhora enferma, proibida de ler e de receber visitas. - que horror esta solidão! Ao menos, povoe-me a cabeça de bons pensamentos!' Entretanto, era uma senhora distintíssima, de vida exemplar. Mas, é que, nestas circunstâncias, todas as reservas são poucas. Só mesmo uma vida de preparação, pela oração e reflexão, pelo recolhimento voluntário, pode tornar suportável o isolamento doloroso da doença.

Doente, em um sanatório, uma jovem religiosa holandesa, de vida contemplativa, sozinha ali, sem parentes ou conhecidos, era vista, enquanto podia, caminhar ou arrastar-se de seu quarto à capelinha, sem olhar e sem falar com ninguém no trajeto. Diante do sacrário tornava-se ela a imagem do recolhimento e da devoção. Poucos dias antes de sua morte, passando pelo seu corredor, em visita aos doentes, tivemos a tentação de penetrar naquele ambiente singular. Batemos à porta, com receio. Uma voz sumida deu-nos licença de entrar. Quase nos arrependemos: era tudo tão branco, ali dentro, e tão silencioso. Solidão completa. A freira sozinha, deitada, talvez já sem movimentos, olhava para um grande crucifixo, aos pés de sua cama. De mansinho, lhe perguntamos: 'Irmã, deseja alguma coisa?'

'Nada, Padre. Só a bênção de Deus'. Demos-lhe a bênção e saímos com receio de ter violado um santuário. Sempre nos ficou a lembrança daquele recolhimento doloroso, heróico. Mas que nos pareceu um recolhimento cheio de paz. Aprendamos a necessidade de praticar o recolhimento voluntário na saúde, para que, quando a doença nos amarrar em um ambiente fechado, não seja brusca demais a mudança. Deveríamos entrar, então, em uma atmosfera com a qual já estivéssemos familiarizados de há muito.

Foi no recolhimento forçado de longa convalescença que Inácio de Loiola, o cavaleiro mundano de Pamplona, sentiu o desejo da leitura, e, pela leitura, naquela atmosfera silenciosa do castelo, entrou em si mesmo e converteu-se. Mas foi um caso raro, pois não ama nem procura o livro na doença quem não aprendeu a procurá-lo na saúde. O livro é um ótimo companheiro desses recolhimentos forçados pois enche o vazio, povoa a solidão, e constrói dentro do doente essas celas misteriosas, onde é possível uma elevação verdadeira.

Mas pobre do doente que, para passar o tempo, se vê obrigado a contar as tábuas do forro ou a seguir o tic-tac do relógio ou a desfiar a franja da coberta. Pior ainda a sorte daquele que se distrai pensando em tolices, construindo castelos no ar, sonhando coisas impossíveis. Pobre doente! Como o recolhimento o castiga com severidade! Não vale a pena prepararmo-nos para essa situação tão comum na vida de cada cristão? Pensemos.

Entrando em um hospital, o problema é tão claro a quem quer ver, que a resolução deve ser imediata. Santa Clara, doente, sofrendo muito, não queria perder seu tempo precioso, e, enquanto o seu corpo penitente, preso em sua cela franciscana, se entregava à santa e forçada ociosidade, trabalhavam suas mãos, com diligência, costurando e bordando toalhas e corporais para o culto do seu Jesus Sacramentado. Que beleza encontra-se em um recolhimento, assim, tão rico de atividade!

Afinal, é preciso convencermo-nos: temos que tomar uma atitude, em face do possível, melhor, do provável, ou do quase certo recolhimento doloroso que, mais cedo ou mais tarde, por menos ou mais tempo, nos envolverá. Queremos, então, vivê-lo, estupidamente, como um gato velho debaixo do fogão, sem proveito, sem um pensamento superior, quem sabe, até, com pavores e revoltas íntimas? Ou queremos aproveitá-lo para nosso aperfeiçoamento e elevação? Depende de nós.

Pode ser um tempo de paz interior muito grande, apesar dos sofrimentos, até de certo gozo em Deus e, sem dúvida, de merecimentos para nós e para o mundo. Depende de nós. Exemplos lindos e fortes não nos faltam. Saibamos preparar a nossa obra prima.

Lidvina de Schiedam foi mestra neste recolhimento imposto, durante mais de 30 anos, por uma doença que estragou a beleza de seu semblante, mas que aformoseou a sua alma, que, cheia de luz, de força e de sabedoria, transformou a humildade de seu quarto, em uma sala de audiência, onde toda classe de pessoas vinha pedir as suas luzes e conselhos, o seu consolo, o seu amor e alegrias de Deus. 

O recolhimento doloroso, dolorosíssimo e, às vezes até, heroico, da enfermidade, tem, como melhores companheiros, a limpeza, as flores, os livros, as santas conversações, os bons pensamentos, as jaculatórias, o querido rosário. E, sobretudo, Jesus na santíssima eucaristia, que, justamente, nessas ocasiões, mostra toda a força de sua presença, de sua graça, toda a misericórdia e doçura de seu coração. Mas, com Jesus, vem Maria, vem São José, vêm os Santos Anjos. Compreende-se, então, o que é a comunhão dos santos. Se nós soubéssemos viver a nossa fé!

RECOLHIMENTO NA VELHICE

Há uma terceira espécie de recolhimento forçado, que, infelizmente, vai-se tornando cada vez mais raro, é o recolhimento da idade, ou a velhice. Pronunciamos com respeito esta palavra, que a própria Sagrada Escritura glorifica e promete aos homens, como uma recompensa. A velhice é sempre um dom de Deus, pois que a vida é um dom de Deus. Ora, quanto mais larga for esta, maior é o presente do céu; é verdade que, muitas vezes, mal aproveitado.

Não importam os achaques, os trabalhos, os aborrecimentos, àquele que se preparou para a velhice; pela vitória de suas paixões, e más inclinações, goza a suavidade e a paz dos últimos anos. E tanto mais insistimos sobre isso, quanto mais sabemos como se despreza a velhice e como se relega ao abandono de um quarto ou de horas e horas de solidão, um ente que deveria ser cercado de todo carinho. Infeliz de quem, então, só souber queixar- se e lamentar-se: é o estribilho monótono da velhice desaproveitada e irritada.

Mas aquele que, iluminado pela fé, sabe o que significa esta idade - quanto de merecimentos e de santas alegrias não recolhe? As pernas já se negam a grandes passeios e longas caminhadas, para que o pequeno quintal ou jardim, a varanda florida e a casa sejam o seu pequeno mundo de paz e de meditação. A vista torna-se sempre mais fraca, para que o olhar da alma, mais forte, alcance distâncias eternas. Os ouvidos vão perdendo a sua argúcia, para que melhor ouça a alma as vozes de Deus e da consciência. A língua perde, pouco a pouco, a sua agilidade, para que o silêncio envolva aquela vida que se transforma. A alimentação se torna cada vez mais parca e mais leve, para que o corpo, por assim dizer, se vá espiritualizando, e mais se deseje outra comida: a vontade de Deus, a graça, a santa comunhão.

E desse recolhimento sublime, ele sai, de vez em quando, para nos falar da fugacidade de tudo o que nos rodeia e nos aponta para a eternidade. São esses quadros lindos que, de vez em quando, se encontram: velhices resignadas e pacificas, velhices alegres e ocupadas. Velhices, nas quais a alma boa se vai, pouco a pouco, desprendendo dos laços da carne, para que, em chegando a hora, desfira, livremente, o voo para as alturas.

Visitamos, certa vez, três ou quatro sacerdotes jesuítas de 70 a 80 anos, na Vila Gonzaga de São Leopoldo: cada um em seu quarto, bem arranjado e limpo, entregue ao seu estudo, leitura ou oração. Com que prazer nos receberam! E nós, com que receio de perturbarmos o seu recolhimento. Velhice abençoada! Como ela sabe aproveitar-se do seu recolhimento forçado, mas bem compreendido!

E essas matronas e chefes de família, que souberam envelhecer com fé e dignidade, que lição! Vede-as em sua cadeira de braços ou recostadas em sua cama, ou repousando sob uma árvore do quintal, com seu tricô ou seu jornal ou sua leitura espiritual ou seu terço, ou rodeados pelos netinhos ou filhos: são as despedidas tranquilas desta terra; são os preparativos e acenos para a eternidade.

E' verdade que muita velhice não se aproveita, não só por culpa da própria pessoa, cuja vida desorganizada ou desregrada não foi uma preparação para esta idade importante, mas, muitas vezes, também, porque o ambiente, as coisas, as pessoas que a rodeiam, são mais de molde a irritar e aborrecer ou a dispersar, do que consolar, animar e recolher.

Pobres velhos, nas famílias ricas e pobres, que vivem, tanta vez, relegados ao esquecimento ou expostos ao ridículo ou tratados como pesos mortos, que já podiam desaparecer. Mas também para isso, nos devemos preparar, contando mais com nossos esforços e energias, do que com o auxílio dos outros. Construamos, desde já, o ambiente interior em que queremos passar a velhice, se Deus Nosso Senhor no-la der; ambiente interior forte e pacificador, capaz de transformar ou substituir os ambientes exteriores menos favoráveis.

Conheci um sacerdote jesuíta de 92 anos que ainda visitava os pobres doentes e os consolava, e que ainda, por escrito, preparava, cuidadosamente, a homília do domingo. Ó velhices lindas, velhices moças, que podem exclamar, todos os dias, com a liturgia, ainda que lhes tremam as mãos: 'Subirei ao altar de meu Senhor, do Senhor que alegra a minha juventude'.

Ai! os pecados contra a velhice! contra a velhice dos outros e contra a nossa própria possível velhice! não os cometamos. Cerquemos de amor, de veneração, a idade, que quase toca, com a mão fidalga (pois a velhice não parece privilégio da verdadeira nobreza?) os portais da eternidade.

Preparemos o nosso futuro feliz. E vós, queridos velhinhos, não vivais humilhados, de cabeça baixa. Erguei a vossa fronte. Não sois pesos mortos; sois reservatórios de vida, de energias, de valores morais. Que em vós, fontes de Nosso Senhor, se bebam as águas da prudência, da fé, da experiência, mas também de santas alegrias, de quem soube por que viveu e como viveu. 

Que o vosso recolhimento feliz, voluntário, espalhe notas de seriedade, de reflexão, no meio de leviandade e dissipação de um mundo louco, que mente a idade, que pinta os cabelos e os bigodes, que caminha com desenvoltura forçada, que não quer ter filhos e muito menos netos - mas que padece da velhice mais precoce, porque lhe falta a juventude perene de uma alma pura, humilde, boa. Povoai-vos, recolhimentos da velhice! Cantai, com melodia cristã, os formosos versos das 'Velhas Arvores' de Bilac.

(Excertos da obra 'Recolhimento', por Dom Henrique Golland Trindad, 1945)