segunda-feira, 1 de setembro de 2014

BREVIÁRIO DIGITAL - ORAÇÕES E MEDITAÇÕES (II)

 
(Do original 'O Pequeno Missionário', P. Guilherme Vaessen, 1953, p. 50 - 54)

MODO BREVE DE MEDITAR A PAIXÃO DO SENHOR


Após a invocação do Espírito Santo, façamo-nos três perguntas: 

1.º Quem é que sofre? É um homem, um príncipe, um rei? É um anjo, um querubim, um serafim? Não, é mais ainda, é um Deus, o eterno, o infinito, o Criador de todas as coisas, o soberano do céu e da terra. Não nos é um estranho, pois que é nosso amigo, o nosso benfeitor, o nosso irmão, o nosso Pai por excelência. Que motivo para nos compadecermos de seus tormentos!

Detenhamo-nos em cada um destes pensamentos para melhor deles nos compenetrarmos.

2.º O que Ele sofre? No seu corpo: a flagelação, a coroação de espinhos, o esgotamento de suas forças no caminho do Calvário, na crucifixão. Na sua alma: temores, desgostos, tristeza no jardim das Oliveiras, angústias indizíveis até a morte por causa dos nossos pecados e da perdição das almas.

Figuremo-nos sofrer nós mesmos todos esses suplícios, e nos compadecermos melhor das dores do Redentor.

3.º Como Ele sofre? Com calma, paciência, submissão perfeita à vontade de seu Pai... Com o desejo de glorificá-lo e de salvar o gênero humano perdido... Praticando todas as virtudes num grau sublime e divino.

Consideremos pormenorizadamente essas virtudes; unamo-nos às intenções e disposições do Homem-Deus que as praticava nas mais difíceis circunstâncias.

(Excertos da obra 'Meditações para todos os dias do ano', de R.P. Bronchain, Tomo I, Ed. Vozes, 1949)

domingo, 31 de agosto de 2014

'TOME A SUA CRUZ E ME SIGA'

Páginas do Evangelho - Vigésimo Segundo Domingo do Tempo Comum


Jesus, a caminho da Cesareia de Felipe, vai fazer aos seu apóstolos neste dia, de forma explícita, o primeiro anúncio de sua Paixão e Ressurreição, que consubstanciarão os eventos culminantes de sua missão salvífica. Missão que Ele vai cumprir até o fim, até a plena consumação das grandes profecias, o Verbo encarnado entregue como cordeiro à morte de cruz, entre dois ladrões, para a redenção da humanidade pecadora.

Diante dos desígnios da Providência, irrompe as emoções e julgamentos humanos. Pedro, a mesma pedra que antes recebera a proclamação como fundamento da Igreja, vacila agora diante da incompreensão dos tributos extraordinários de Deus feito homem. Vacila e se confunde na fé, moldada apenas pelos rudimentos de sua vontade humana e que se recusa a aceitar as reverberações das palavras de Jesus, que acabara de revelar aos discípulos que iria 'sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia' (Mt 16, 21).

Jesus vai repreendê-lo duramente em seguida, nomeando-o como 'satanás' e como 'pedra de tropeço', designações que o tornam adversário das coisas do Alto, por limitar aos ditames da lógica humana os inescrutáveis desígnios da mente divina, por não pensar 'as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens!' (Mt 16, 23). De agora em diante, e com singular devoção, Jesus vai preparar os seus discípulos, e especialmente a Pedro, para os tempos já tão próximos de sua Paixão, Morte de Cruz e Ressurreição e também para o chamamento ao sacrifício e martírio de tantos.

No caminho da santidade, Deus não nos pede um pouco, ou quase tudo, pois cumprir a Vontade de Deus exige de nós a completa e absoluta disposição da alma. Não há meios termos, nem concessões de menos. Deus quer e espera tudo de nós, toda a nossa vida, todo o nosso tempo, toda palavra, pensamento e ação: 'Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois, quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua vida? ' (Mt 16, 24 - 26). E ao perguntar: 'O que poderá alguém dar em troca de sua vida?' (Mt 16, 26), responde com a promessa da verdadeira vida e da verdadeira felicidade no Céu, que hão de nos acompanhar como eleitos da graça nas planuras eternas da Casa do Pai.

sábado, 30 de agosto de 2014

SALMO 62

O profeta Jeremias já havia louvado o Senhor: 'Seduziste-me, Senhor, e deixei-me seduzir' (Jr 20, 7) e proclamado o Senhor como a 'fonte de água viva' (Jr 2, 13). O próprio Jesus prometera à mulher samaritana: 'Quem beber da água que Eu lhe der, jamais terá sede, porque a água que Eu lhe der se tornará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna' (Jo 4, 14). O Salmo 62 refere-se à contemplação mística da alma diante de Deus, alma sedenta do amor de Deus, alma tangida na graça da plenitude de Deus. 

Sois vós, ó Senhor, o meu Deus! 
Desde a aurora ansioso vos busco! 
A minh'alma tem sede de vós,
minha carne também vos deseja,
como terra sedenta e sem água!

Venho, assim, contemplar-vos no templo,
para ver vossa glória e poder.
Vosso amor vale mais do que a vida:
e por isso meus lábios vos louvam.

Quero, pois, vos louvar pela vida,
e elevar para vós minhas mãos!
A minh'alma será saciada,
como em grande banquete de festa;
 cantará a alegria em meus lábios,
ao cantar para vós meu louvor!

Penso em vós no meu leito, de noite,
nas vigílias suspiro por vós!
Para mim fostes sempre um socorro;
de vossas asas à sombra eu exulto!
Minha alma se agarra em vós;
com poder vossa mão me sustenta.

COMO RESISTIR ÀS TENTAÇÕES

Há duas maneiras de resistir aos vícios e adquirir as virtudes. Existe uma maneira mais comum e não tão perfeita que consiste em procurar resistir a algum vício por meio de atos de virtude que se lhe opõe e que destrói tal vício, pecado ou tentação. Como se ao vício ou tentação de impaciência ou de espírito de vingança que sinto em minha alma, por algum dano recebido, ou por palavras injuriosas, ou quisesse resistir lançando mão de considerações apropriadas, por exemplo, considerando a paixão do Senhor: 'Era maltratado e ele sofria, não abria a boca' (Is 53,7); ou trazendo à lembrança os bens que se adquirem com o sofrimento e com o vencer-se a si mesmo, ou ainda, pensando que Deus nos ordenou que sofrêssemos por advir daí o nosso aproveitamento. Por meio dessas considerações, consinto em sofrer, querer e aceitar a citada injúria, afronta ou dano, e isso, visando a glória e a honra de Deus. Esta maneira de resistir e de se opor à tentação, vício ou pecado em apreço, dá ocasião ao exercício da paciência e é um bom modo de resistir, ainda que árduo e menos perfeito.

Há outra maneira mais fácil, proveitosa e perfeita de vencer vícios e tentações e adquirir e conquistar virtudes. Consiste no seguinte: a alma deve aplicar-se apenas nos atos e movimentos anagógicos e amorosos, prescindindo de outros exercícios estranhos; por este meio, consegue opor resistência e vencer todas as tentações do nosso adversário, alcançando assim as virtudes, em grau eminente.

Ao sentirmos o primeiro movimento ou investida de algum vício, como a luxúria, a ira, impaciência, espírito de vingança por uma ofensa recebida, não procuremos resistir opondo um ato da virtude contrária, segundo ficou dito, mas desde os primeiros assaltos, façamos logo um ato ou movimento de amor anagógico contra o vício em questão, elevando nosso afeto a Deus, porque com essa diligência já a alma foge da ocasião e se apresenta a seu Deus e se une com ele. Ora, desse modo, consegue vencer a tentação e o inimigo não pode executar o seu plano, pois não encontra a quem ferir, uma vez que a alma, por estar mais onde ama do que onde anima, subtraiu divinamente o corpo à tentação. Portanto, não acha o adversário por onde atacar e dominar a alma; ela já não se encontra ali onde ele a queria ferir e lhe causar dano.

E então, ó maravilha! a alma como esquecida do movimento vicioso e unida ao seu Amado, nenhum movimento sente do tal vício com que o demônio pretendia tentá-la, tendo mesmo, para isso, arremessado seus dardos contra ela; primeiramente, porque subtraiu o corpo, como ficou dito, e, portanto, já não se encontra ali; assim, se me permitem a expressão, seria quase como tentar um corpo morto, pelejar com o que não é, com o que não está, com o que não sente, nem é capaz de ser tentado, naquela ocasião.

Desta maneira vai-se formando na alma uma virtude heroica e admirável, que o Doutor Angélico, Santo Tomás, denomina virtude da alma perfeitamente purificada. Esta virtude, diz o Santo, é a que vem a ter a alma quando Deus a eleva a tal estado que ela já não sente as solicitações dos vícios, nem seus assaltos, nem arremetidas ou tentações, pelo elevado grau de virtude a que chegou. E daqui lhe nasce e advém uma tão sublime perfeição que já nada se lhe dá que a injuriem ou que a louvem e enalteçam; que a humilhem, que digam mal dela ou que digam bem. Porque, como os citados movimentos anagógicos e amorosos conduzem a alma a tão elevado e sublime estado, o efeito mais próprio deles com relação a ela é fazê-la esquecer todas as coisas que estão fora de seu Amado, que é Jesus Cristo. E daqui lhe vem, segundo referimos, que estando a alma unida a seu Deus e entretida com ele, as tentações não encontram a quem ferir, pois não podem elevar-se ao nível a que a alma subiu, ou até onde foi elevada por Deus: 'Nenhum mal te atingirá' (Sl 90,10)

Deve-se prevenir aos principiantes, cujos atos de amor anagógicos não são ainda tão rápidos e instantâneos, nem tão fervorosos, para que consigam, de um salto, ausentar-se completamente dali e unir-se com o Esposo, que, se perceberem que apenas essa diligência não basta para esquecer por completo o movimento vicioso da tentação, não deixem de opor resistência, lançando mão de todas as armas e considerações que puderem, até que cheguem a vencê-la completamente. Devem proceder do seguinte modo: primeiramente, procurem resistir, opondo os mais fervorosos movimentos anagógicos que lhes for possível e os ponham em prática, exercitando-se neles muitas vezes; quando isso não for suficiente, porque a tentação é forte e eles são fracos, aproveitem-se, então, de todas as armas de piedosas meditações e exercícios que julgarem ser necessários para conseguir a vitória. Devem estar persuadidos de que este modo de resistir é excelente e eficaz, pois encerra em si todas as estratégias de guerra necessárias e de importância.

(Excertos a obra 'Ditames de Espírito', de São João da Cruz)

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

28 DE AGOSTO: SANTO AGOSTINHO DE HIPONA

"...Inquieto está o nosso coração enquanto não repousar em Ti."

Dia 28 de agosto é a festa de um dos grandes santos da Igreja, um dos fundadores da chamada Patrística (a fase inicial da formação da Teologia Cristã e seus dogmas). Santo Agostinho nasceu a 13 de novembro de 354, na pequena cidade de Tagaste, perto de Hipona, na Numídia (atual Argélia), filho de Patrício e Mônica (santa da Igreja Católica, cuja festa é celebrada em 27 de agosto). Da vida promíscua ao desvario da sua inclusão em seitas maniqueístas, Santo Agostinho experimentou desde a indiferença até a descrença completa nas coisas de Deus. A resposta da sua mãe, profundamente dolorosa diante a perspectiva da perda eterna da alma do filho amado, foi sempre a mesma: oração, oração, oração! E a conversão de Agostinho foi lenta e profunda: no ano de 382, em Milão, então com 32 anos de idade, o santo foi finalmente batizado, junto com um amigo e o seu filho Adeodato (que morreria pouco tempo depois) por Santo Ambrósio. E que conversão! Sobre o tapete dos pecados passados, da vida desregrada da juventude (que descreveria com imenso desgosto em sua obra máxima ‘Confissões’), nasceria um santo dedicado por inteiro à glória de Deus, pregando como sacerdote e, mais tarde, como bispo de Hipona, que a verdadeira fonte da santidade nasce, renasce e se fortalece na humildade. Combateu com tal veemência as diversas frentes de heresias do seu tempo, incluindo o arianismo e o maniqueísmo, que foi alcunhado de Escudo da Fé e Martelo dos Hereges. Santo Agostinho, Doutor da Igreja e Defensor da Graça, morreu em 28 de agosto de 430, aos 76 anos de idade.

Excertos da Obra: 'Confissões', de Santo Agostinho:

'Amo-te, Senhor, com uma consciência não vacilante, mas firme. Feriste o meu coração com a tua palavra, e eu amei-te. Mas eis que o céu, e a terra, e todas as coisas que neles existem me dizem a mim, por toda a parte, que te ame, e não cessam de o dizer a todos os homens, de tal modo que eles não têm desculpa. Tu, porém, compadecer-te-ás mais profundamente de quem te compadeceres,e concederás a tua misericórdia àquele para quem fores misericordioso: de outra forma, é para surdos que o céu e a terra entoam os teus louvores. Mas que amo eu, quando te amo? Não a beleza do corpo, nem a glória do tempo, nem esta claridade da luz, tão amável a meus olhos, não as doces melodias de todo o gênero de canções, não a fragrância das flores, e dos perfumes, e dos aromas, não o maná e o mel, não os membros agradáveis aos abraços da carne. Não é isto o que eu amo, quando amo o meu Deus, E, no entanto, amo uma certa luz, e uma certa voz, e um certo perfume, e um certo alimento, e um certo abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume, alimento, abraço do homem interior que há em mim, onde brilha para a minha alma o que não ocupa lugar, e onde ressoa o que o tempo não rouba, e onde exala perfume o que o vento não dissipa, e onde dá sabor o que a sofreguidão não diminui, e onde se une o que o que a saciedade não separa. Isto é o que eu amo, quando amo o meu Deus'.

'Aterrorizado com os meus pecados e com o peso da minha miséria, tinha considerado e meditado no meu coração fugir para a solidão, mas tu proibiste-me e encorajaste-me, dizendo: Cristo morreu por todos, a fim de que os que vivem já não vivam para si, mas para aquele que morreu por eles. Eis, Senhor, que eu lanço em ti a minha inquietação, a fim de que viva, e considerarei as maravilhas da tua Lei. Tu conheces a minha incapacidade e a minha fragilidade: ensina-me e cura-me. O teu Unigênito, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência, redimiu-me com o seu sangue. Não me caluniem os soberbos, porque penso no preço da minha redenção, e como, e bebo, e distribuo, e, pobre, desejo saciar-me dele entre aqueles que dele se alimentam e saciam: e louvam o Senhor aqueles que o procuram'.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

POEMAS PARA REZAR (XV)



ROMANCE DAS IGREJAS DE MINAS

'Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Com uma candeia na mão,
Procurando nas igrejas
Da cidade e do sertão
O gênio das Minas Gerais
Que marcou estas paragens,
Estas sombras benfazejas,
Estas frescas paisagens,
Estes ares salutares,
Lavados, finos, porosos,
Minerais essenciais,
Este silêncio e sossego,
Estas montanhas severas,
Esta antiga solidão,
Com o sinal do seu lirismo,
Com a cruz da sua paixão.

Templos de Minas Gerais.
Das cidades e arraiais,
Templos em pedra-sabão
De Sabará e Mariana,
De Ouro Preto, de Ouro Branco,
De Brumado a Catas Altas,
De Santa Rita Durão,
Santa Bárbara, Congonhas,
Cachoeira, São João del Rei,
Tiradentes, Caeté:
Quantas vezes meditei
Os novíssimos do homem,
Que o século não consome
Nem a ciência destrói,
Nesses templos soberanos,
De riscos audaciosos,
De curvas acentuadas,
De linhas voluptuosas,
Íntimos, doces, profanos,
Refinados, populares,
Que inspiram poesia e dó,
Nesses Carmos e Pilares,
Nesses Rosários e Dores,
Nesses Perdões e Mercês,
Em São Francisco de Assis,
Em Nossa Senhora do Ó!
Em capelinhas caiadas
Na colina levantadas,
Vestidas de branco e azul.

Minha alma desce ladeiras,
Minha alma sobe ladeiras,
Desce becos, sobe vielas
Com uma candeia na mão,
Procurando a forma altiva
Da cruz, viva tradição,
Pedra de ângulo, base
Da rude religião.
Diviso lívidos Cristos,
Diviso Cristos sangrentos,
Monumentos de terror,
O Cristo da Pedra Fria,
O Senhor da Cana Verde,
O Cristo atado à coluna,
O Senhor morto esticado
Envolto em roxo sudário
Debaixo do próprio altar.
Vejo agora mãos chagadas,
Nossa Senhora de espadas
Cravadas no coração,
Coroas de espinhos, vasos
Por onde escorreu o fel,
Tíbias, caveiras coroadas,
Pinturas já desmaiadas
Nas telas emolduradas
Em forma de medalhão,
Figurando o Paraíso,
A Trindade, a Anunciação,
O Lava-pés, o Batismo,
A Morte e a Ressurreição.

Relicários, oratórios,
Pelicanos de coral,
Sinistro baixo-relevo
Das almas do Purgatório
Libertas por São Miguel,
Longas lanças de Longuinho,
Atlantes do Aleijadinho,
Portas, púlpitos, profetas
Marcados por seu cinzel,
Redondos anjos barrocos
Que o toreuta retorceu,
Arabescos sensuais,
Apóstolos duros, secos,
Peregrinos medievais
Revestidos de amplos sacos,
Marchando com seu bastão;
Calvários extraordinários,
Tarja com estrelas e asas,
Tocheiros, lâmpadas, lustres,
Galerias, balaústres,
Grades em jacarandá,
Querubins, anjos-aurora
De estranhos panejamentos,
Com as asas espalmadas,
Lavabos de sacristias
Feitos de pedra-sabão,
Tetos altos do Ataíde
Exaltando a religião.

Paredes em faiscado,
Consistórios, corredores
Onde vagueiam fantasmas
De poetas inconfidentes,
De frades conspiradores;
Oleogravuras mostrando
A Via-Sacra da Paixão,
Carátulas, gárgulas negras,
Colunas tremidas, gregas,
Caixas pedindo dinheiro
Em antiquados letreiros
De oremus e ora pro nobis,
Ex-votos comemorando
Curas por intercessão:
E a nobre talha dourada,
Patinada, trabalhada,
As imagens ressaltando
De nossos oragos, tantos
Santos de esgarçados mantos,
De arbitrárias cabeleiras,
Roxas, pisadas olheiras,
Os membros caídos, feridos,
Desfeitos, desmilinguidos,
Contemplando comovidos
O descimento da cruz.

Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Com uma candeia na mão,
Ilumina embevecida
Seus santos de devoção,
Companheiros vigilantes
Da cruz da sua paixão,
Que deu corpo, força e vida
Aos templos de pedra-sabão:
São Pedro, Santo Isidoro,
São Gregório, São Leão,
Santa Bárbara, São Jerônimo,
São Paulo, Santa Juliana,
Sant'Ana, São Sebastião,
Santa Águeda, Santa Mônica,
São José, Santa Verônica,
São Francisco, Santa Clara,
São Policarpo, São João.
A igreja agora agasalha
Uma densa multidão
Que procura comovida
Nos mistérios redivivos
Da nossa religião
Novo alento, luz e vida,
Sustento, consolação.
Sinos de bronze ressoam,
Ressoam sonoros sinos:
Vejo figuras de orantes,
Orantes e comungantes
Com os abraços estendidos
Orando íntima oração.

Assim se vê nas pinturas
Das antigas catacumbas,
Nos mosaicos bizantinos,
Mulheres, moços, meninos,
Catecúmenos, anciãos,
Assim oravam outrora
Os primitivos cristãos.
Vejo beatos sofredores
Trazendo bentinhos, fitas,
Rezando gastos rosários,
De olhos fixados no céu,
Velhas bíblicas, severas,
Nos ombros escapulários,
Perfil talhado a formão,
Muitas vestem à maneira
De senhoras de outras eras
Com filó preto, fichu,
Dona Engrácia, Dona Urbana,
Don'Ana, Dona Juju;
Irmãos da santa Irmandade
Encostados às paredes,
Pensando na procissão,
Vaidosos nas opas verdes,
Vermelhas, brancas, violetas;
Pretos de vela na mão,
Pretinhas de laçarotes,
Rapazes em seus capotes
Cor de cinza e vermelhão,
Garotinhos retorcidos
Descendentes dos garotos
Que inspiraram o Aleijadinho
Nos anjos do medalhão.
A grande ação começou:
A sublime teologia
Revela a sabedoria
Do sacrifício inefável,
Do mistério universal
De que todos participam
Na terra, no ar, no céu,
Unidos na comunhão.

Do Deus eterno, uno e trino,
De um só e mesmo batismo,
Uma só fé, um só pão.
Vozes ascendem aos ares
Que desprezam o cantochão,
Rompe um canto pela nave
A Santa Maria Eterna,
Um canto sentimental
Que ofende a liturgia,
Fonte viva, genuína,
Da santa religião,
Mas que toca a alma ingênua
Do povo rústico e chão.
Agora um baixo-profundo
Canta um hino de paixão,
Esconjura o diabo imundo,
Clama os pecados do mundo
Em longa lamentação,
Chorando com gravidade,
Chorando oculto nas grades
As saudades de Sião.

Mas chega a missa ao momento
De maior concentração,
Surdo silêncio se faz.
Abre-se agora o sacrário,
No seu recesso repousa
O Cristo em sua nova lei,
Já que o antigo documento
Cede ao novo testamento,
Cede ao novo mandamento,
Mistério de caridade.
Mistério de santidade
E total despojamento
O sacramento do altar,
Ação da Comunidade,
Saúde, força, sustento,
Ante o qual todo elemento
Se inclina para adorar.

O celebrante apresenta
À Santíssima Trindade,
Em nome da humanidade,
Ao Pai eterno clemente,
Ao Filho, Verbo humanado,
Ao Espírito Divino,
Unidos na caridade
Por um nó que não desata,
O corpo de Nosso Senhor
Na santa cruz imolado,
Vencendo assim o pecado
Pela presteza do amor.
O Cristo, homem compassivo,
Deus trasladado do Céu,
Transferido à dura terra,
Solidário na sua dor,
Se reparte nos fiéis
Que traçam cruzes nos ares
Relembrando a salvação,
Curvando-se ante os altares
Onde se aprende, esculpida,
Em silêncio oferecida,
Na talha e pedra-sabão,
Ao culto do Deus criador,
A história da Encarnação,
Paixão e Ressurreição
De Cristo Nosso Senhor.
Murmuram o Agnus Dei.

O celebrante despede
O povo, 'Ite missa est',
Para este cumprir na rua
O que no templo aprendeu,
Depois lê meio apressado
O evangelho de São João,
Cosmogonia do Verbo;
E afinal com o povo todo
Recita a Salve-Rainha,
Santa e solene oração.
Senhora benigna e pura,
Mãe de esperança e doçura
A quem todos nós bradamos,
Gememos e suspiramos
Neste desterro do céu,
Os olhos consoladores,
Clementes, a nós volvei,
Vossos filhos pecadores,
E mais tarde nos mostrai,
Espelho de todo o bem,
Depois de serena morte,
A face do Cristo, amém.
A multidão se dispersa
Nos seus trajos domingueiros,
Cada um retorna ao lar.

Minha alma sobe ladeiras
De Ouro Preto e Mariana,
De Sabará e São João,
Evoca no ar lavado
O drama da Redenção.
Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Com uma candeia na mão,
Procurando comovida,
A cruz da sua paixão,
Que deu corpo, alento e vida
Aos templos de pedra-sabão.
Por isso escrevi um canto
Com palavras essenciais,
Baseado na beleza
Da antiga Minas Gerais,
Inspirado na grandeza
Da rude religião,
Princípio e fim da existência,
Essência da perfeição,
Origem de todo o bem,
Penhor de ressurreição,
Doutrina de vida inteira,
Em louvor do Cristo, amém.'

(Murilo Mendes)