quarta-feira, 27 de agosto de 2014

POEMAS PARA REZAR (XV)



ROMANCE DAS IGREJAS DE MINAS

'Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Com uma candeia na mão,
Procurando nas igrejas
Da cidade e do sertão
O gênio das Minas Gerais
Que marcou estas paragens,
Estas sombras benfazejas,
Estas frescas paisagens,
Estes ares salutares,
Lavados, finos, porosos,
Minerais essenciais,
Este silêncio e sossego,
Estas montanhas severas,
Esta antiga solidão,
Com o sinal do seu lirismo,
Com a cruz da sua paixão.

Templos de Minas Gerais.
Das cidades e arraiais,
Templos em pedra-sabão
De Sabará e Mariana,
De Ouro Preto, de Ouro Branco,
De Brumado a Catas Altas,
De Santa Rita Durão,
Santa Bárbara, Congonhas,
Cachoeira, São João del Rei,
Tiradentes, Caeté:
Quantas vezes meditei
Os novíssimos do homem,
Que o século não consome
Nem a ciência destrói,
Nesses templos soberanos,
De riscos audaciosos,
De curvas acentuadas,
De linhas voluptuosas,
Íntimos, doces, profanos,
Refinados, populares,
Que inspiram poesia e dó,
Nesses Carmos e Pilares,
Nesses Rosários e Dores,
Nesses Perdões e Mercês,
Em São Francisco de Assis,
Em Nossa Senhora do Ó!
Em capelinhas caiadas
Na colina levantadas,
Vestidas de branco e azul.

Minha alma desce ladeiras,
Minha alma sobe ladeiras,
Desce becos, sobe vielas
Com uma candeia na mão,
Procurando a forma altiva
Da cruz, viva tradição,
Pedra de ângulo, base
Da rude religião.
Diviso lívidos Cristos,
Diviso Cristos sangrentos,
Monumentos de terror,
O Cristo da Pedra Fria,
O Senhor da Cana Verde,
O Cristo atado à coluna,
O Senhor morto esticado
Envolto em roxo sudário
Debaixo do próprio altar.
Vejo agora mãos chagadas,
Nossa Senhora de espadas
Cravadas no coração,
Coroas de espinhos, vasos
Por onde escorreu o fel,
Tíbias, caveiras coroadas,
Pinturas já desmaiadas
Nas telas emolduradas
Em forma de medalhão,
Figurando o Paraíso,
A Trindade, a Anunciação,
O Lava-pés, o Batismo,
A Morte e a Ressurreição.

Relicários, oratórios,
Pelicanos de coral,
Sinistro baixo-relevo
Das almas do Purgatório
Libertas por São Miguel,
Longas lanças de Longuinho,
Atlantes do Aleijadinho,
Portas, púlpitos, profetas
Marcados por seu cinzel,
Redondos anjos barrocos
Que o toreuta retorceu,
Arabescos sensuais,
Apóstolos duros, secos,
Peregrinos medievais
Revestidos de amplos sacos,
Marchando com seu bastão;
Calvários extraordinários,
Tarja com estrelas e asas,
Tocheiros, lâmpadas, lustres,
Galerias, balaústres,
Grades em jacarandá,
Querubins, anjos-aurora
De estranhos panejamentos,
Com as asas espalmadas,
Lavabos de sacristias
Feitos de pedra-sabão,
Tetos altos do Ataíde
Exaltando a religião.

Paredes em faiscado,
Consistórios, corredores
Onde vagueiam fantasmas
De poetas inconfidentes,
De frades conspiradores;
Oleogravuras mostrando
A Via-Sacra da Paixão,
Carátulas, gárgulas negras,
Colunas tremidas, gregas,
Caixas pedindo dinheiro
Em antiquados letreiros
De oremus e ora pro nobis,
Ex-votos comemorando
Curas por intercessão:
E a nobre talha dourada,
Patinada, trabalhada,
As imagens ressaltando
De nossos oragos, tantos
Santos de esgarçados mantos,
De arbitrárias cabeleiras,
Roxas, pisadas olheiras,
Os membros caídos, feridos,
Desfeitos, desmilinguidos,
Contemplando comovidos
O descimento da cruz.

Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Com uma candeia na mão,
Ilumina embevecida
Seus santos de devoção,
Companheiros vigilantes
Da cruz da sua paixão,
Que deu corpo, força e vida
Aos templos de pedra-sabão:
São Pedro, Santo Isidoro,
São Gregório, São Leão,
Santa Bárbara, São Jerônimo,
São Paulo, Santa Juliana,
Sant'Ana, São Sebastião,
Santa Águeda, Santa Mônica,
São José, Santa Verônica,
São Francisco, Santa Clara,
São Policarpo, São João.
A igreja agora agasalha
Uma densa multidão
Que procura comovida
Nos mistérios redivivos
Da nossa religião
Novo alento, luz e vida,
Sustento, consolação.
Sinos de bronze ressoam,
Ressoam sonoros sinos:
Vejo figuras de orantes,
Orantes e comungantes
Com os abraços estendidos
Orando íntima oração.

Assim se vê nas pinturas
Das antigas catacumbas,
Nos mosaicos bizantinos,
Mulheres, moços, meninos,
Catecúmenos, anciãos,
Assim oravam outrora
Os primitivos cristãos.
Vejo beatos sofredores
Trazendo bentinhos, fitas,
Rezando gastos rosários,
De olhos fixados no céu,
Velhas bíblicas, severas,
Nos ombros escapulários,
Perfil talhado a formão,
Muitas vestem à maneira
De senhoras de outras eras
Com filó preto, fichu,
Dona Engrácia, Dona Urbana,
Don'Ana, Dona Juju;
Irmãos da santa Irmandade
Encostados às paredes,
Pensando na procissão,
Vaidosos nas opas verdes,
Vermelhas, brancas, violetas;
Pretos de vela na mão,
Pretinhas de laçarotes,
Rapazes em seus capotes
Cor de cinza e vermelhão,
Garotinhos retorcidos
Descendentes dos garotos
Que inspiraram o Aleijadinho
Nos anjos do medalhão.
A grande ação começou:
A sublime teologia
Revela a sabedoria
Do sacrifício inefável,
Do mistério universal
De que todos participam
Na terra, no ar, no céu,
Unidos na comunhão.

Do Deus eterno, uno e trino,
De um só e mesmo batismo,
Uma só fé, um só pão.
Vozes ascendem aos ares
Que desprezam o cantochão,
Rompe um canto pela nave
A Santa Maria Eterna,
Um canto sentimental
Que ofende a liturgia,
Fonte viva, genuína,
Da santa religião,
Mas que toca a alma ingênua
Do povo rústico e chão.
Agora um baixo-profundo
Canta um hino de paixão,
Esconjura o diabo imundo,
Clama os pecados do mundo
Em longa lamentação,
Chorando com gravidade,
Chorando oculto nas grades
As saudades de Sião.

Mas chega a missa ao momento
De maior concentração,
Surdo silêncio se faz.
Abre-se agora o sacrário,
No seu recesso repousa
O Cristo em sua nova lei,
Já que o antigo documento
Cede ao novo testamento,
Cede ao novo mandamento,
Mistério de caridade.
Mistério de santidade
E total despojamento
O sacramento do altar,
Ação da Comunidade,
Saúde, força, sustento,
Ante o qual todo elemento
Se inclina para adorar.

O celebrante apresenta
À Santíssima Trindade,
Em nome da humanidade,
Ao Pai eterno clemente,
Ao Filho, Verbo humanado,
Ao Espírito Divino,
Unidos na caridade
Por um nó que não desata,
O corpo de Nosso Senhor
Na santa cruz imolado,
Vencendo assim o pecado
Pela presteza do amor.
O Cristo, homem compassivo,
Deus trasladado do Céu,
Transferido à dura terra,
Solidário na sua dor,
Se reparte nos fiéis
Que traçam cruzes nos ares
Relembrando a salvação,
Curvando-se ante os altares
Onde se aprende, esculpida,
Em silêncio oferecida,
Na talha e pedra-sabão,
Ao culto do Deus criador,
A história da Encarnação,
Paixão e Ressurreição
De Cristo Nosso Senhor.
Murmuram o Agnus Dei.

O celebrante despede
O povo, 'Ite missa est',
Para este cumprir na rua
O que no templo aprendeu,
Depois lê meio apressado
O evangelho de São João,
Cosmogonia do Verbo;
E afinal com o povo todo
Recita a Salve-Rainha,
Santa e solene oração.
Senhora benigna e pura,
Mãe de esperança e doçura
A quem todos nós bradamos,
Gememos e suspiramos
Neste desterro do céu,
Os olhos consoladores,
Clementes, a nós volvei,
Vossos filhos pecadores,
E mais tarde nos mostrai,
Espelho de todo o bem,
Depois de serena morte,
A face do Cristo, amém.
A multidão se dispersa
Nos seus trajos domingueiros,
Cada um retorna ao lar.

Minha alma sobe ladeiras
De Ouro Preto e Mariana,
De Sabará e São João,
Evoca no ar lavado
O drama da Redenção.
Minha alma sobe ladeiras,
Minha alma desce ladeiras
Com uma candeia na mão,
Procurando comovida,
A cruz da sua paixão,
Que deu corpo, alento e vida
Aos templos de pedra-sabão.
Por isso escrevi um canto
Com palavras essenciais,
Baseado na beleza
Da antiga Minas Gerais,
Inspirado na grandeza
Da rude religião,
Princípio e fim da existência,
Essência da perfeição,
Origem de todo o bem,
Penhor de ressurreição,
Doutrina de vida inteira,
Em louvor do Cristo, amém.'

(Murilo Mendes)

terça-feira, 26 de agosto de 2014

MODO BREVE (10 REGRAS) PARA SERVIR A NOSSO SENHOR


10 REGRAS PARA SERVIR A NOSSO SENHOR - SÃO TOMÁS DE VILANOVA

PRÓLOGO

Antes de tudo, é necessário possuir um coração determinado a servir a Deus, e preparado para romper com quem o estorva, pensando que o que está nele, a glória ou o inferno para sempre, é tão grande coisa que não é alcançada sem grande risco e trabalho; esta determinação deve ser seguida com grande constância e perseverança, lembrando o que Nosso Senhor Jesus Cristo diz no Evangelho: aquele que coloca a mão no arado e olha para trás não está apto para o Reino de Deus [1] . E porque o mundo e os seus seguidores são contrários a isso, impõe-se romper com o mundo e descurar dele, ainda que menosprezado como néscio ou cego, ou tomado por louco, por amor a Deus e pela sua salvação uma vez que, ao final, ter-se-á a verdade quando passar a obscuridade de sonhos desta vida e se chegar à verdadeira luz do dia [2], que vai durar para sempre, gozo eterno do fim para o qual foi criado.

PRIMEIRA REGRA

Convém, perante todas as coisas, amar a Deus e ao próximo e guardar sua Lei cumprindo seus Mandamentos, porque nisto está a vida; parar de pecar, determinando-se a não cometer nenhum pecado mortal com conhecimento de causa, pela graça de Deus; procurando se exercitar em todas as virtudes, guardando seu amor de tal maneira que somente Deus seja amado e somente nEle se ame mais e continuamente.

SEGUNDA REGRA

Remediar a vida passada, confessando-se geralmente [3] e avaliando-se, com grande diligência, a consciência e fazendo reparação ao Senhor com muitas dores e lágrimas, com muita vergonha e humilhação, pensando na cegueira passada, e trazendo à memória a história da sua vida perdida, chorando e sofrendo muito por ela; e para maior desagravo, impondo-se alguma forma de jejuns, ou vigílias, ou disciplinas, ou silício que aflija a carne e reparem os deleites passados; e este exercício deve durar algum tempo, porque se for bem feito, não se cumpre aplicar um outro. Para deixar de pecar, ajuda de princípio a abstinência, a solidão e a clausura, o silêncio, a oração, a ocupação, a vigília, e a consideração da morte e do Juízo, do Céu e do Inferno.

TERCEIRA REGRA


Fugir a conversações mundanas que afogam o espírito e o bom desejo da alma devota; procurar alguma conversação de alguma pessoa verdadeiramente espiritual, em quem more Deus, porque, como um carvão aceso acende outro, assim um coração aceso e inflamado em espírito inflama a outro.

QUARTA REGRA

Fugir e menosprezar todos os prazeres passados e deleites mundanos e vãos, e procurar descobrir outros deleites interiores, muito maiores e mais perfeitos, do espírito e do entendimento, os quais dão maior fartura à alma e fazem parecer sandices aqueles carnais (isto se faz por contemplação profunda com oração e prostração); e o mesmo digo de todas as riquezas, faustos, honras e favores deste mundo; procurar sempre ter o coração limpo de toda afeição temporal e desocupado de todo amor apaixonado de criatura, porque Nosso Senhor lhe preenche de Si e do seu sagrado Espírito; porque este preciosíssimo bálsamo não cabe em vasos sujos, nem dará Nosso Bom Senhor suas pérolas aos porcos, pois assim o fez a seus discípulos. E, assim sendo, cumpre a toda pessoa que pretende ter vida espiritual assumir um grande cuidado e diligência sobre o seu coração e sobre os seus apetites, desejos e pensamentos desordenados, porque seria, sem isto, inútil o trabalhar.

QUINTA REGRA


Passar a limpo com rigor a sua consciência, de oito em oito dias, ou ao menos a cada quinze dias, confessando-se e comungando com muita devoção; porque assim se alcança a graça para perseverar e ter grande fortaleza e firmeza como princípios e começo.

SEXTA REGRA


Ter em casa um oratório para devoção, que convide a se estar com ele, para conversar com Deus e desocupar-se para o seguir, porque aqui se há de fundir como em crisol e possuir o fogo do Espírito Santo. Aí se alcança todo o bem. O que se  há de fazer no oratório é procurar a dor de lágrimas, chorando seus pecados e reparando a vida passada. Tomar-se conta de como se vive agora, ver-se e olhar-se como em um espelho se isso se aproveita ou não; ordenar sua vida em diante; pensar devotamente na Paixão e nos outros mistérios de nossa Redenção; dar graças a Deus pelos benefícios gerais, como a criação do mundo e a redenção do gênero humano, e pelos dons particulares que lhe foram dados e não a outros. Contemplar o engano do mundo, a brevidade da vida, a eternidade da Glória; baixar ao Inferno, contemplando as penas dos condenados e maus que, nesta vida, viveram mal; levantar os olhos para os moradores do Céu, saudar a cidade santa e desejá-la, e conversar com estes eleitos; olhar daí, como do alto, as coisas desta vida, os trabalhos vãos e as ânsias supérfluas dos homens e os erros dos mundanos; contemplar, como em um espelho, sua consciência; abrir a Deus o seu coração, demonstrando-lhe seus desejos, e falar com Ele com toda reverência e amor sobre as suas faltas, suas misérias, suas enfermidades, trabalhos e necessidades, seus temores, sua sequidão, sua tibieza, sua maldade, sua inquietude; e pedir perdão, socorro, remédio, luz, graça, firmeza, verdade, pureza, agradecimento, amor, espírito, sentimento e todo o resto, rogando-lhe por si e por todos os que tem a seu encargo, pelos afligidos, e pelo estado da Igreja; bem como outros exercícios espirituais similares, que são prostração, meditação, oração, contemplação. Aí se alcança graça, pureza, devoção, recolhimento, luz, conhecimento da verdade, espírito interior e todas as virtudes e riquezas espirituais; e assim faz o homem o trabalho para o qual foi criado. Esta é verdadeira vida, porque tudo o mais que se emprega em negócios e curiosidades do mundo, se perde. Muito ganha o cristão que se ocupa bem destas coisas, vivendo consigo, e não andando desterrado fora de si e envolvido com ocupações vãs e sem frutos, que perecem e são danosas para a alma. Neste oratório, gaste o máximo de tempo que puder roubar do mundo e dos cuidados à sua pessoa ou à sua casa; e busque agradar Deus em tudo, como a única coisa necessária, como Jesus falou a Marta.

SÉTIMA REGRA

Guardar a língua e o coração, e ter em alta conta seus pensamentos, desejos e palavras, expulsando logo do coração todos os pensamentos vãos e nocivos. Ouvir muito e falar pouco e bem pensado. Fugir de toda murmuração e mau juízo do outro. Não se ocupar em ler, nem contar, nem ouvir fatos sobre outros, nem ser curioso em saber sobre vidas alheias. Cuidar todo de si e se preocupar apenas consigo.

OITAVA REGRA

Ter cuidado de não perder tempo, recordando-se sempre que, deste momento de vida depende a eternidade futura na Glória; e ter por grande perda, perder uma hora, na qual se pode ganhar tanto bem perpétuo; e guardar isso na memória.

NONA REGRA

Procurar de crescer em toda virtude, olhando, como em um espelho, as virtudes dos outros e procurando-os imitar; porque nas virtudes está o alicerce de todo bem. Ser piedoso, manso e temente, amoroso e caritativo com os pobres, de conversação dócil, sem prejuízo de ninguém; fazer o bem a todos e o mal a ninguém, nem em juízo, nem por palavra, nem por obras. Suportar as fraquezas alheias, não julgar duramente os que pecam, mas, com piedade, rogar a Deus pelos que erram.

DÉCIMA REGRA

Tomar conta de tudo o que se diz, exortando-se e repreendendo-se por algo indevido, com o propósito de ser melhor a cada dia, seguindo adiante sem se esquecer nunca disso; porque é no fazer que se assegura a Glória que se espera, que se semeia nesta vida para se colher na outra frutos perenes. E porque todo nosso labor depende da graça do Senhor, sempre cumpre pedir com instância saúde, socorro e luz para conhecer o bem, e graça para amá-lO; forças para segui-lO e para perseverar; porque pouco aproveitará esta regra se ela não favorecer a graça do Senhor que consiste por em obras o que as escrituras nos ensinam.

SUMA DAS REGRAS

1. Guardar a Lei de Deus e deixar de pecar.

2. Reparar os pecados passados com dor e penitência.

3. Fugir das conversações e amizades mundanas.

4. Menosprezar o mundo e seus deleites.

5. Passar a limpo a consciência, confessando-se e comungando.

6. Ter um o oratório para servir e conversar com Deus.

7. Guardar a língua e o coração.

8. Não perder o tempo em vão.

9. Crescer sempre na virtude.

10. Tomar conta de tudo que é de proveito para a Glória.

[1] Lc 9,62.
[2] Is 60,19; Ap 21,23; 22,5.
[3] Concilio de Trento, ss. 14, cap. 5 e 8.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

HOMILIAS DE SÃO GREGÓRIO MAGNO


O VALOR DAS BOAS OBRAS

'Vigiai para que a palavra que recebestes ressoe no fundo do vosso coração e aí permaneça. Tende cuidado para que a semente não caia ao longo do caminho, receando que o Espírito mau venha apagar a palavra da vossa memória. Tende cuidado para que o chão pedregoso não receba a semente e não produza uma boa ação desprovida das raízes da perseverança. Com efeito, muitos se alegram ao ouvir a palavra e se dispõem a empreender boas obras. Mas apenas as provações começaram a apertá-los, eles renunciam ao que tinham empreendido. Assim, o solo pedregoso teve falta de água, de tal forma que o germe da semente não chegou a dar o fruto da perseverança.

Mas a terra boa dá fruto pela paciência: entendamos por isso que as nossas boas obras podem ter valor se suportarmos pacientemente os inconvenientes que o nosso próximo nos provoca. Aliás, quanto mais avançamos para a perfeição, mais provas temos de suportar; uma vez que a nossa alma abandonou o amor do mundo presente, cresce a hostilidade desse mundo. É por isso que vemos muitos que penam sob um pesado fardo (Mt 11,28), sendo boas as suas obras. Mas, de acordo com a palavra do Senhor, 'eles produzem fruto pela sua perseverança', suportando humildemente essas provas, de tal forma que, após terem penado, serão convidados a entrar na paz do céu'.

A ESPERANÇA DEVE ESTAR EM DEUS

'Querer por a esperança e a confiança em bens passageiros é querer fazer fundações em água corrente. Tudo passa, Deus permanece. Agarrarmos ao que é transitório é nos desligarmos do que é permanente. Quem, portanto, levado no turbilhão agitado de um redemoinho, consegue manter-se firme em seu lugar, nessa torrente fragorosa? Se quisermos recusar ser levados pela corrente, temos de nos afastar de tudo o que corre; senão o objeto do nosso amor constranger-nos-á a chegar ao que precisamente queremos evitar. Aquele que se agarra aos bens transitórios será certamente arrastado até onde vão ter, à deriva, essas coisas a que se apega.

A primeira coisa a fazer é pois abstermo-nos de amar os bens materiais; a segunda, é não pormos total confiança naqueles bens que nos são confiados para ser usados e não para ser desfrutados. A alma que se prende a bens perecíveis, apenas, depressa perde a sua própria estabilidade. O turbilhão da vida atual arrasta quem nele se deixa ir, e torna-se mera ilusão, para aquele que é levado nesta corrente, nela querer manter-se de pé'.

NÃO CHEGUEIS SOZINHOS DIANTE DE DEUS

'Vós podeis, também, se o quiserdes, merecer este belo nome de mensageiros de Deus. Com efeito, se cada um de vós, segundo as suas possibilidades, na medida em que tiver recebido a inspiração do céu, desviar o seu próximo do mal, se tomar a seu cuidado trazê-lo para o bem, se recordar ao transviado do Reino o castigo que o espera na eternidade, é evidentemente um mensageiro das santas palavras de Jesus. E que ninguém venha dizer: 'Eu sou incapaz de instruir os outros, de os exortar'. Façam ao menos o que vos é possível, para que um dia não vos peçam contas do talento recebido e mal conservado. Porque aquele que preferiu esconder o seu talento em vez de o fazer render não tinha recebido mais do que um talento (Mt 25, 14s).

Arrastai os outros convosco; que eles sejam os vossos companheiros na estrada que leva a Deus. Quando, indo à praça ou aos banhos públicos, encontrardes alguém desocupado, convidai-o a acompanhar-vos. Porque as vossas ações cotidianas servem, elas próprias, para vos unir aos outros. Ides a Deus? Tentai não chegardes lá sozinhos. Que aquele que, no seu coração, já escutou o apelo do amor divino tenha para com o seu próximo uma palavra de encorajamento'.

domingo, 24 de agosto de 2014

'E VÓS, QUEM DIZEIS QUE EU SOU?'

Páginas do Evangelho - Vigésimo Primeiro Domingo do Tempo Comum


Num dado dia, na 'região da Cesareia de Felipe', Jesus revelou a seus discípulos, num mesmo momento, a sua própria identidade divina e o primado da Igreja. Neste tesouro das grandes revelações divinas, o apóstolo Pedro será contemplado, neste dia, por privilégios extraordinários: seu ato humano de fé perfeita será convertido por Cristo na pedra angular da qual nascerá a Santa Igreja.

Nesta ocasião, as mensagens e as pregações públicas de Jesus estavam consolidadas; os milagres e os poderes sobrenaturais do Senhor eram de conhecimento generalizado no mundo hebraico; multidões acorriam para ver e ouvir o Mestre, dominados pela falsa expectativa de encontrar um personagem mítico e um Messias dominador do mundo. Então, Jesus retira-se para um lugar isolado, afastando-se do júbilo fácil do mundo e das multidões errantes, que O tomam por João Batista, por Elias, por um dos antigos profetas. E se aproxima intimamente daqueles que haverão de ser os primeiros apóstolos da Igreja nascente, compartilhando-lhes na pergunta do juízo de fé: 'E vós, quem dizeis que eu sou?' (Mt 16, 15). A resposta de Pedro é um símbolo da confissão perfeita da sua fé: 'Tu és o Messias, o Filho do Deus Vivo' (Mt 16, 16).

Sim, Jesus Cristo é o Filho de Deus Vivo: Deus feito homem na eternidade de Deus. A missão salvífica de Jesus há de passar não por um triunfo de epopeias mundanas, mas por um tributo de Paixão, Morte e Ressurreição; não pelo manejo da espada ou por eventos feitos de glórias humanas, mas pela humildade, perseverança e um legado de Cruz. A Cruz de Cristo é o caminho da nossa salvação e da vida eterna, ontem e sempre. Por isso, a mesma pergunta se impõe a todos os homens, de todos os tempos: quem é Jesus para nós, o Filho de Deus Vivo da confissão de Pedro ou um arauto de nossas próprias incertezas, refeito sob a ótica dos interesses humanos?

Em resposta ao apóstolo fiel, Jesus vai oferecer a Pedro as primícias do papado e o primado da Igreja, como privilégio da glória, poder e realeza de Cristo: 'Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu. Por isso, eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la' (Mt 16, 17 - 18). E Jesus vai declarar em seguida o poder universal e sobrenatural da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana: 'Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus' (Mt 16, 19). Ligado ou desligado. Poder absoluto, domínio universal, primado da verdade, Cátedra de Pedro. Na terra árida de algum ermo qualquer da 'Cesareia de Felipe', erigiu-se naquele dia, pela Vontade Divina, nas sementeiras da humanidade pecadora, a Santa Igreja, a Videira Eterna.

sábado, 23 de agosto de 2014

PALAVRAS DE SALVAÇÃO



'Retiras o peixe da água e dali a pouco está morto. Retira-te ou afasta-te da oração, e a tua alma vai morrer para Deus e para a graça. Para que o peixe viva, precisa de estar na água; para que a tua alma viva em graça, precisa de andar em oração. Se o peixe tivesse fé e razão, havia de compreender que tinha o dever rigoroso de não sair da água para não perder a vida; o cristão tem o dever rigoroso de não deixar a oração para não perder a vida da eterna bem-aventurança'.

(São João Crisóstomo)

23 DE AGOSTO - SANTA ROSA DE LIMA


Isabel Mariana de Jesus Paredes Flores y Oliva, descendente dos conquistadores espanhóis, nasceu na Vila de Quives, em Lima, capital do Peru, no dia 30 de abril de 1586. De Isabel passou a Rosa ainda criança, em virtude de sua beleza singular. De Rosa passou a ser Irmã Rosa de Santa Maria, quando ingressou, em 1606, aos vinte anos, na Ordem Terceira Dominicana. E haveria de se tornar, um dia, Santa Rosa de Lima.

Modelo de vida contemplativa e penitência, de jejuns severos e oração contínua, foi movida por diversas experiências místicas, que incluíram dons de cura, previsões, milagres, conversões e domínio sobre os fatores climáticos. Todos os anos, na festa de São Bartolomeu, dia 24 de agosto, Rosa vivia este dia ainda com mais fervor religioso de penitência, oração e despojamento do que o habitual, resumindo numa frase a justificativa por este ato diário de extremo zelo espiritual: 'Porque este é o dia das minhas núpcias eternas'.

E assim ocorreu realmente; com apenas 31 anos de idade, Rosa faleceu em 24 de agosto de 1617 para as suas núpcias eternas. Foi beatificada em 1667, pelo papa Clemente IX e canonizada pelo papa Clemente X em 12 de abril de 1671, como Santa Rosa de Lima, tornando-se a primeira santa da América do Sul. Sua festa litúrgica é comemorada no dia 23 de agosto. Santa Rosa de Lima é padroeira do Peru, das Filipinas e da América Latina.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

A PALAVRA MAIS DIFÍCIL


Falei já tantas e tantas vezes a Jesus, falo-lhe todos os dias, digo-lhe um mundo de coisas, as mais belas e as mais suaves palavras que o coração me pode sugerir; mas há uma palavra mais bela que qualquer outra, uma palavra aprendida desde criança, repetida cada dia e quase a cada hora, uma palavra sem a qual toda a oração perde a beleza e o valor, e que eu não lhe disse jamais.

Ela aflora-me espontânea aos lábios nos momentos de angústia, mas eu não a ouso pronunciar, porque o coração recusa-se a acompanhá-la. E porque havia de dizer uma palavra que será uma ficção? Jesus disse-a no Getsêmani, ordenou a todos que a repetissem, porque é a mais bela que podem pronunciar os lábios cristãos: fiat voluntas Tua — faça-se a Tua vontade.

Oh! Quantas vezes vou encontrar o meu Jesus para derramar-lhe no coração um mar de amarguras, para contar-lhe a minha dor e as minhas esperanças, para constrangê-lo a ter piedade de mim. E no fim, venho embora com o coração pesaroso por não ter dito tudo, por não lhe ter dito — fiat voluntas Tua. Enquanto oro, Jesus dá-me a perceber que quer absolutamente de mim a palavra difícil, porque lhe é mais cara; e eu repilo obstinada a inspiração santa e insisto em apresentar-lhe os desejos da minha vontade; quero receber d'Ele o que eu entendo, e não quero dar-lhe o que Ele deseja de mim. 

Compreendo a minha insensatez, mas como é difícil apresentar-se a Jesus com uma cruz sobre os ombros e o coração esmagado, e dizer-lhe com sinceridade: — ó Jesus, queres que eu sofra este martírio? Pois bem, também eu o quero! Como é difícil renunciar ao desejo e à esperança de ter ainda sobre a terra um dia sereno só para lhe ser agradável! Quando já se está cansado de sofrer, como é difícil querer sofrer ainda, só porque assim se agrada a Jesus!

Todavia, a santidade consiste nisto e só nisto: em fazer a vontade de Jesus. Portanto, que faço eu com as minhas repugnâncias ao — fiat? Jesus, para me fazer santo, talvez não espere de mim mais que esta palavra. Portanto?

'Ó Jesus, eu compreendo tudo com a mente; mas é o coração que se revolta. Toca a ti completar a obra da tua graça, pertence a ti tornar dócil este miserável coração sempre em revolta. Ó Jesus, dá-me aquilo que mandas, e depois manda aquilo que queresda quod jubes et jube quod vis'.

(Excertos da obra 'Centelhas Eucarísticas', de original italiano, 1906; trad. de Adolfo Tarroso Gomes, 1924)