quarta-feira, 17 de maio de 2023

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (XIX)

Constituição Apostólica DEI FILIUS [24 de abril de 1870]

Concílio Vaticano I (1869 - 1870) - Papa Pio IX (1846 - 1878)

sobre a fé católica
 

Agora, nós, juntamente com todos os bispos do mundo que conosco governam a Igreja, congregados no Espírito Santo neste Concílio Ecumênico, sob a nossa autoridade e apoiados na palavra de Deus, quer escrita quer transmitida por Tradição, conforme a recebemos santamente conservada e genuinamente exposta pela Igreja Católica, resolvemos professar e declarar, desta cátedra de Pedro, diante de todos, a salutar doutrina de Cristo, proscrevendo e condenando, com o poder divino a nós confiado, os erros contrários.

I. – Deus, Criador de todas as coisas

A Santa Igreja Católica Apostólica Romana crê e confessa que há um [só] Deus verdadeiro e vivo, Criador e Senhor do céu e da terra, onipotente, eterno, imenso, incompreensível, infinito em intelecto, vontade e toda a perfeição; o qual, sendo uma substância espiritual una e singular, inteiramente simples e incomunicável, é real e essencialmente distinto do mundo, sumamente feliz em si e por si mesmo, e está inefavelmente acima de tudo o que existe ou fora dele se possa conceber (cân. 1-4).

Este único e verdadeiro Deus, por sua bondade e por sua virtude onipotente, não para adquirir nova felicidade ou para aumentá-la, mas a fim de manifestar a sua perfeição pelos bens que prodigaliza às criaturas, com vontade plenamente livre, criou simultaneamente no início do tempo ambas as criaturas do nada: a espiritual e a corporal, ou seja, os anjos e o mundo; e em seguida a humana, constituída de espírito e corpo (IV Concílio de Latrão).

Tudo o que Deus criou, conserva-o e governa-o com a sua providência, atingindo fortemente desde uma extremidade a outra, e dispondo de todas as coisas com suavidade (cf Sb 8,1). Pois tudo está nu e descoberto aos seus olhos (Hb 4,13), mesmo os atos dependentes da ação livre das criaturas.

II – A Revelação

A mesma Santa Igreja crê e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas; pois as perfeições invisíveis tornaram-se visíveis depois da criação do mundo, pelo conhecimento que as suas obras nos dão dele (Rm 1,20); Mas que aprouve à sua misericórdia e bondade revelar-se a si e os eternos decretos da sua vontade ao gênero humano por outra via, e esta sobrenatural, conforme testemunha o Apóstolo: 'Havendo Deus outrora falado aos pais pelos profetas, muitas vezes e de muitos modos, ultimamente, nestes dias, falou-nos pelo Filho' (Hb 1,1- ; cân. 1).

A esta revelação divina deve-se certamente atribuir o poder em todos, mesmo nas condições atuais do gênero humano, conhecer expeditamente, com firme certeza e sem mistura de erro, aquilo que nas coisas divinas não é de per si inacessível à razão humana. Contudo, não se deve dizer que a revelação é absolutamente necessária por este motivo, mas porque Deus, em sua infinita bondade, ordenou o homem para o fim sobrenatural, isto é, para participar dos bens divinos, que estão inteiramente acima da compreensão humana; pois 'nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem penetrou no coração do homem, o que Deus preparou para aqueles que o amam' (1Cor 2,9 ; cân. 2 e 3).

Esta revelação sobrenatural, porém, segundo a doutrina da Igreja universal, definida pelo Concílio Tridentino, está contida nos livros e nas tradições não escritas que, recebidas pelos Apóstolos da boca do próprio Cristo, ou que transmitidas como que mão em mão pelos próprios Apóstolos sob a inspiração do Espírito Santo, chegaram até nós (Concílio Tridentino). E estes livros do Antigo e do Novo Testamento, inteiros e com todas as suas partes, conforme vêm enumerados no decreto do mesmo Concílio e se encontram na antiga edição latina da Vulgata, devem ser aceitos como sagrados e canônicos. E a Santa Igreja os tem como tais, não por terem sido redigidos somente por obra humana e em seguida aprovados pela sua autoridade, nem somente por conterem a revelação isenta de erro, mas porque, escritos sob a inspiração do Espírito Santo, têm a Deus por autor, e como tais foram confiados à mesma Igreja (cân. 4).

Todavia, já que o salutar decreto dado pelo Concílio Tridentino sobre a interpretação da Sagrada Escritura, para corrigir espíritos petulantes, é erradamente exposto por alguns, nós, renovando o mesmo decreto, declaramos que o seu sentido é que, nas coisas da fé e da moral, pertencentes à estrutura da doutrina cristã, deve-se ter por verdadeiro sentido da Sagrada Escritura aquele que foi e é mantido pela Santa Madre Igreja, a quem compete decidir do verdadeiro sentido e da interpretação da Sagrada Escritura; e que, por conseguinte, a ninguém é permitido interpretar a mesma Sagrada Escritura contrariamente a este sentido ou também contra o consenso unânime dos Santos Padres.

III – A fé

Visto que o homem depende inteiramente de Deus como seu Criador e Senhor, e que a razão criada está inteiramente sujeita à Verdade incriada, somos obrigados a prestar, pela fé, à revelação de Deus, plena adesão do intelecto e da vontade (cân. 1). Esta fé, porém, que é o início da salvação humana, a Igreja a define como uma virtude sobrenatural pela qual, inspirados e ajudados pela graça, cremos ser verdade o que Deus revelou, não devido à verdade intrínseca das coisas, conhecida pela luz natural da razão, mas em virtude da autoridade do próprio Deus, autor da revelação, que não pode enganar-se nem enganar (cân.2). Pois, segundo o testemunho do Apóstolo, 'a fé é o fundamento firme das coisas esperadas, uma prova das coisas que não se vê' (Hb 11,1).

Não obstante, para que a homenagem de nossa fé estivesse em conformidade com a razão (cf Rm 12,1), quis Deus ajuntar ao auxílio interno do Espírito Santo os argumentos externos da sua revelação, isto é, os fatos divinos, e sobretudo os milagres e as profecias, que, por demonstrarem abundantemente a onipotência e a ciência infinita de Deus, são sinais certíssimos as revelação divina, acomodados que são à inteligência de todos (cân. 3 e 4). Foi por isso que Moisés, os profetas e principalmente o próprio Jesus Cristo fizeram muitos e manifestíssimos sinais e profecias; e dos Apóstolos lemos: 'Eles, porém, partiram e pregaram em toda a parte, cooperando com eles o Senhor e confirmando a sua palavra com os sinais que a acompanhavam' (Mc 16,20). E em outro texto se lê: 'E temos ainda mais firme a palavra dos profetas, à qual fazeis bem de atender, como a uma candeia que alumia em um lugar tenebroso (2Pd 1,19).

Embora, porém, a adesão da fé não seja de modo algum um movimento cego do espírito, ninguém, contudo, pode crer na pregação evangélica, como se exige para conseguir a salvação, sem a iluminação e a inspiração do Espírito Santo, que a todos faz encontrar doçura em consentir e crer na verdade (Concílio II Arausicano). Pelo que, a própria fé em si, embora não opere pela caridade (cf Gl 5,6 ), é um dom de Deus, e o seu exercício é um ato salutar, pelo qual o homem presta livre obediência ao próprio Deus, prestando consentimento e cooperação à sua graça, à qual poderia resistir (cân. 5). Deve-se, pois, crer com fé divina e católica, tudo o que está contido na palavra divina escrita ou transmitida pela Tradição, bem como tudo o que a Igreja, quer em declaração solene, quer pelo Magistério ordinário e universal, nos propõe a crer como revelado por Deus.

Como, porém, sem a fé é impossível agradar a Deus (Hb 11,6) e chegar ao consórcio dos seus filhos, ninguém jamais pode ser justificado sem ela, nem conseguir a vida eterna se nela não permanecer até o fim (Mt 10,22;24,13). E para que pudéssemos cumprir o dever de abraçar a verdadeira fé e nela perseverar constantemente, Deus instituiu, por meio de seu Filho Unigênito, a Igreja, e a muniu com os sinais manifestos da sua instituição, para que pudesse ser por todos reconhecida como guarda e mestra da palavra revelada.

Porquanto somente à Igreja Católica pertencem todos os caracteres, tão numerosos e tão admiravelmente estabelecidos por Deus, para tornar evidente a credibilidade da fé cristã. Além disso, a Igreja em si mesma, pela sua admirável propagação, exímia santidade e inesgotável fecundidade em todos os bens, pela sua unidade católica e invicta estabilidade, é um grave e perpétuo motivo de credibilidade, e um testemunho irrefragável da sua missão divina. Donde resulta que a mesma Igreja, como um estandarte que se ergue no meio das nações (Is 11,12), não só convida os incrédulos a entrarem no seu grêmio, mas também garante a seus filhos que a fé que professam se baseia em fundamento firmíssimo. 

A este testemunho acresce o auxílio eficaz da virtude do alto. Porquanto o benigníssimo Senhor excita e ajuda com a sua graça os que vagueiam no erro, a fim de poderem chegar ao conhecimento da verdade (1Tm 2,4). E aos que chamou das trevas à luz maravilhosa (1Pd 2,9), confirma-os com sua graça, para que permaneçam nesta mesma luz, não os abandonando senão quando primeiro abandonado por eles. Pelo que, de maneira alguma é igual a condição daqueles que, pelo dom celeste da fé, abraçaram a verdade católica, e dos que, levados por opiniões humanas, seguem uma religião falsa; pois os que receberam a fé sob o Magistério da Igreja, jamais poderão ter justa razão de alterar ou por em dúvida esta mesma fé (cân. 6). E por isso, dando graças a Deus Pai, que nos fez idôneos de participar da sorte dos santos na luz (Cl 1,12), não menosprezemos tão grande vantagem, mas, pondo os olhos em Jesus, autor e consumador da fé (Hb 12,2), conservemos firme a profissão da nossa esperança (Hb 10,23).

IV – A fé e a razão

O consenso constante da Igreja Católica tem também crido e crê que há duas ordens de conhecimento, distintas não só por seu princípio, mas também por seu objeto; por seu princípio, visto que numa conhecemos pela razão natural, e na outra pela fé divina; e por seu objeto, porque, além daquilo que a razão natural pode atingir, propõe-nos a crer mistérios escondidos em Deus, que não podemos conhecer sem a revelação divina (cân. 1). E eis porque o Apóstolo, que assegura que os gentios conheceram a Deus por meio das suas obras (Rm 1,20), discorrendo, todavia, sobre a graça e verdade que foram anunciadas por Jesus Cristo (cf Jo 1,17), diz: 'Falamos da sabedoria de Deus em mistério, que fora descoberta e que Deus predestinou antes dos séculos, para nossa glória. A qual nenhum dos poderosos deste mundo conheceu… a nós, porém, o revelou Deus pelo seu Espírito; porque o Espírito tudo penetra, também as coisas profundas de Deus' (1Cor 7,8-10). E o próprio Unigênito glorifica ao Pai, porque escondeu essas coisas aos sábios e entendidos e as revelou aos pequeninos (cf Mt 11,25).

Em verdade, a razão, iluminada pela fé, quando investiga diligente, pia e sobriamente, consegue, com a ajuda de Deus, alguma compreensão dos mistérios e ser esta frutuosíssima, seja pela analogia das coisas conhecidas naturalmente ou seja pela conexão dos próprios mistérios entre si e com o fim último do homem; nunca, porém, se torna capaz de compreendê-los como compreende as verdades que constituem o seu objeto próprio, pois os mistérios divinos, por sua própria natureza, excedem de tal modo a inteligência criada, que, mesmo depois de revelados e aceitos pela fé, permanecem ainda encobertos com os véus da mesma fé, e como que envoltos em um nevoeiro, enquanto durante esta vida vivermos ausentes do Senhor; pois andamos guiados pela fé, e não pela contemplação (2Cor 5,6-).

Porém, ainda que a fé esteja acima da razão, jamais pode haver verdadeira desarmonia entre uma e outra, porquanto o mesmo Deus que revela os mistérios e infunde a fé, dotou o espírito humano da luz da razão; e Deus não pode negar-se a si mesmo, nem a verdade jamais contradizer à verdade. A vã aparência de tal contradição nasce principalmente ou de os dogmas da fé não terem sido entendidos e expostos segundo a mente da Igreja ou de se terem as simples opiniões em conta de axiomas certos da razão. Por conseguinte, definimos como inteiramente falsas qualquer asserção contrária a uma verdade de fé (V Concílio de Latrão).

Ademais a Igreja que, juntamente com o múnus apostólico de ensinar, recebeu o mandato de guardar o depósito da fé, tem também de Deus o direito e o dever de proscrever a ciência falsa (1Tm 6,20), a fim de que ninguém se deixe iludir pela filosofia ou por sofismas pagãos (cf Cl 2,8; cân 2). Eis por que não só é vedado a todos os cristãos defender como legítimas conclusões da ciência tais opiniões reconhecidamente contrárias à fé, máxime se tiverem sido reprovadas pela Igreja, mas ainda estão inteiramente obrigados a tê-las por conta de erros, revestidas de uma falsa aparência de verdade.

E não só não pode jamais haver desarmonia entre fé e a razão, mas uma serve de auxílio à outra, visto que a reta razão demonstra os fundamentos da fé, e cultiva, iluminada com a luz desta, a ciência das coisas divinas; e a fé livra e guarda a razão dos erros, enriquecendo-a de múltiplos conhecimentos. Por isso a Igreja, longe de se opor ao cultivo das artes e das ciências humanas, até as auxilia e promove de muitos modos. Porquanto não ignora nem despreza as vantagens que delas dimanam para a vida humana; pelo contrário, ensina que, derivando elas de Deus, o Senhor das ciências (1Rs 2,3), se forem bem empregadas, conduzem para Deus, com o auxílio de sua graça. Nem proíbe que tais disciplinas, dentro de seu respectivo âmbito, façam uso de seus princípios e métodos próprios; mas, reconhecendo embora esta justa liberdade, admoesta cuidadosamente que não admitam em si erros contrários à doutrina de Deus ou ultrapassem os próprios limites, invadindo e perturbando o que é do domínio da fé.

Pois a doutrina da fé, que Deus revelou, não foi proposta ao engenho humano como uma descoberta filosófica a ser por ele aperfeiçoada, mas foi entregue à Esposa de Cristo como um depósito divino, para ser por ela finalmente guardada e infalivelmente ensinada. Daí segue que sempre se deve ter por verdadeiro sentido dos dogmas aquele que a Santa Madre Igreja uma vez tenha declarado, não sendo jamais permitido, nem a título de uma inteligência mais elevada, afastar-se deste sentido (cân. 3). Cresçam, pois, e multipliquem-se abundantemente, tanto em cada um como em todos, tanto no homem individual como em toda a Igreja, segundo o progresso das idades e dos séculos, a inteligência, a ciência e a sabedoria, mas somente no seu gênero, isto é, na mesma doutrina, no mesmo sentido e no mesmo pensamento (Vicente de Lirino, Commonitorium, nº 28 - ML 50, 668 c. 23).

Cânones Sobre a Fé Católica

Sobre Deus - Criador de todas as coisas

Cân. 1 – Se alguém negar que há um só Deus verdadeiro, Criador e Senhor das coisas visíveis e invisíveis – seja excomungado [cf nº 1782].

Cân. 2 – Se alguém não envergonhar de afirmar que além da matéria nada existe – seja excomungado [cf nº 1783].

Cân. 3 – Se alguém disser que a substância ou essência de Deus é a mesma que a substância ou essência de todas as coisas – seja excomungado [cf nº 1782].

Cân. 4 – Se alguém disser que as coisas finitas tanto as corpóreas como as espirituais, ou ao menos as espirituais, emanaram da substância divina; ou que pela manifestação ou evolução da essência divina se originaram todas as coisas; ou, finalmente, que Deus é um ser universal ou indefinido, que, ao ir-se determinando, daria origem à universalidade das coisas, distinta em gênero, espécie e nos indivíduos – seja excomungado.

Cân. 5 – Se alguém não professar que o mundo e todas as coisas nele contidas, quer espirituais, quer materiais, foram por Deus tiradas do nada segundo toda a sua substância [cf nº 1783]; ou disser que Deus criou, não com vontade inteiramente livre, mas com a mesma necessidade com que se ama a si mesmo [cf. nº 1783]; ou negar que o mundo foi feito para a glória de Deus – seja excomungado.

Sobre a revelação

Cân.1 – Se alguém disser que o Deus uno e verdadeiro, Criador e Senhor nosso, não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas – seja excomungado [cf nº 1785].

Cân. 2 – Se alguém afirmar ser impossível ou ao menos inconveniente que o homem seja instruído por revelação divina sobre Deus e o culto a ele devido – seja excomungado [cf nº 1786].

Cân. 3 – Se alguém disser que o homem não pode ser por Deus guindado a um conhecimento e perfeição que excedam o natural, mas que ele se deve por si mesmo, progredindo sempre, chegar finalmente a possessão de toda a verdade e de todo o bem – seja excomungado.

Cân. 4 – Se alguém não admitir como sagrados e canônicos os livros da Sagrada Escritura, inteiros e com todas as suas partes, conforme foram enumerados pelo sacrossanto Concílio de Trento, ou lhes negar a inspiração divina – seja excomungado.

Sobre a fé

Cân. 1 – Se alguém afirmar que a razão humana é de tal modo independente, que Deus não possa impor-lhe a fé – seja excomungado [cf nº 1789]

Cân. 2 – Se alguém disser que a fé divina não se distingue do conhecimento natural de Deus e da moral, e que portanto para a fé divina não se requer que a verdade revelada seja crida por causa da autoridade de Deus que a revela – seja excomungado [cf nº 1789].

Cân. 3 – Se alguém disser que a revelação divina não pode tornar-se mais compreensível por meio de sinais externos, e que portanto os homens devem ser motivados à fé só, pela experiência interna individual ou por inspiração privada – seja excomungado [cf nº1790].

Se alguém disser que não pode haver milagres, e que portanto todas as narrações deles, também aquelas contidas na Sagrada Escritura, se devem relegar ao reino da fábula e do mito; ou disser que os milagres nunca podem ser conhecidos com certeza, nem se pode por eles provar a origem divina da religião cristã – seja excomungado [cf nº 1790].

Cân. 5 – Se alguém disser que o assentimento à fé cristã não é livre, mas resulta necessário dos argumentos da razão humana; ou disser que a graça de Deus só é necessária para a fé viva, que opera pela caridade [Gl 5,6 ] – seja excomungado [cf nº 1795-].

Cân. 6 – Se alguém afirmar ser idêntica a condição dos fiéis e a daqueles que ainda não chegaram a fé única e verdadeira, assim que os católicos possam ter justa razão para duvidar da fé que abraçaram sob o Magistério da Igreja, suspendendo o assentimento até terem concluído a demonstração científica da credibilidade e veracidade da sua fé – seja excomungado [cf. nº 1795 s].

Sobre a fé e a razão

Cân. 1 – Se alguém disser que na revelação divina não há nenhum mistério verdadeiro e propriamente dito, mas que todos os dogmas da fé podem ser compreendidos e demonstrados pela razão, devidamente cultivada, por meio dos princípios naturais – seja excomungado [cf nº 1795].

Cân. 2 – Se alguém disser que as ciências humanas devem ser tratadas com tal liberdade que as suas conclusões, embora contrárias à doutrina revelada, possam ser retidas como verdadeiras e não possam ser proscritas pela Igreja – seja excomungado [cf nº 1797-1799].

Cân. 3 – Se alguém disser que às vezes, conforme o progresso das ciências, se pode atribuir aos dogmas propostos pela Igreja um sentido diverso daquele que ensinou e ensina a Igreja – seja excomungado [cf nº 1800].

Por isso nós, cumprindo o supremo ofício pastoral que nos cabe exercer, pedimos insistentemente, na intimidade do coração de Jesus Cristo, a todos os fiéis cristãos, especialmente aos chefes e aos que exercem o ofício de ensinar, e mandamos, com a autoridade do mesmo Deus e Salvador nosso, que se esforcem por eliminar e afastar da Santa Igreja tais erros, e por difundir a luz da fé pura e verdadeira. Porém, já que não é possível evitar a heresia, a não ser fugindo também daqueles erros que se aproximam mais ou menos dela, lembramos a todos o dever de observar também as Constituições e os Decretos pelos quais esta Santa Sé proscreve e proíbe tais opiniões perversas, mas que não vêm aqui enumeradas.

terça-feira, 16 de maio de 2023

SOBRE A ORAÇÃO NOTURNA

 

A oração feita durante a noite tem um grande poder, maior do que aquela que é feita durante o dia. É por isso que todos os santos tinham o hábito de rezar à noite, combatendo a sonolência do corpo e o deleite do sono, vencendo a sua natureza física. O salmista assim se expressa: 'Estou exausto de tanto gemer: à noite choro na cama, rego o meu leito com lágrimas' (Sl 6,7), enquanto suspirava do fundo do coração com uma oração apaixonada. E em outro lugar ele diz: 'Levanto-me em meio à noite para agradecer os seus justos julgamentos' (Sl 118, 62). Para cada um dos pedidos que os santos queriam dirigir a Deus com confiança redobrada, eles se armavam da oração durante a noite e assim recebiam o que pediam.

O próprio Satanás nada teme tanto quanto a oração oferecida durante as vigílias. Embora sejam acompanhadas de distrações, não param de dar frutos, a menos que se peça o que não convém. Por isso, o diabo trava duras batalhas contra aqueles que fazem vigílias à noite, para fazê-los recuar desta prática, tanto quanto possível, principalmente se mostrarem ser nela perseverantes. Mas aqueles que combatem com fervor essas astúcias perniciosas e acolhem os dons de Deus concedidos nestas vigílias, experimentam pessoalmente grandes graças, desprezando e superando todas as investidas do mal e todos os seus estratagemas. 

('Sermões Ascéticos', de Santo Isaac da Síria)

segunda-feira, 15 de maio de 2023

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LVI)

 

Capítulo LVI

Auxílio às Santas Almas - A Santa Missa - A Aparição de Eugenie Van de Kerchove - O Camponês e o Príncipe Polonês

Nada é mais conforme ao espírito cristão do que oferecer o Santo Sacrifício para o alívio das almas que partiram, e seria uma grande desgraça se o zelo dos fieis esfriasse a esse respeito. Deus parece multiplicar prodígios para nos impedir de cair em tão fatal relaxamento. O seguinte incidente é atestado por um digno padre da diocese de Bruges, que o recebeu de sua fonte primitiva, e cujo testemunho carrega toda a certeza de uma testemunha ocular sobre o fato. Em 13 de outubro de 1849, morreu com a idade de cinquenta e dois anos, na freguesia de Ardoye, na Flandres, uma mulher chamada Eugenie Van de Kerchove, cujo marido, John Wybo, era agricultor. Ela era uma mulher piedosa e caridosa, dando esmolas com uma generosidade proporcional aos seus meios.

Ela teve, até o fim de sua vida, uma grande devoção à Santíssima Virgem e, em sua honra, fazia abstinência nas sextas-feiras e nos sábados de cada semana. Embora sua conduta não fosse isenta de certas falhas domésticas, ela levou uma vida exemplar e edificante. Uma criada chamada Barbara Vennecke, de vinte e oito anos, uma jovem virtuosa e dedicada, e que havia ajudado sua patroa nos momentos finais de doença, continuou a servir a John Wybo, o viúvo de Eugenie.

Cerca de três semanas após a sua morte, a falecida apareceu à sua serva em circunstâncias que vamos relatar. Foi no meio da noite; Bárbara dormia profundamente, quando ouviu distintamente ser chamada três vezes pelo seu nome. Ela acordou sobressaltada e viu diante de si a sua patroa, sentada ao lado de sua cama, vestida em roupas de serviço, compostas por saia e jaqueta curta. Diante da visão, por estranho que pareça, Bárbara não se assustou nem um pouco e conservou a sua presença de espírito. A aparição falou com ela: 'Bárbara' - disse, simplesmente pronunciando seu nome.  'O que você deseja, Eugenie?' - respondeu a serva. 'Pegue o pequeno ancinho que muitas vezes lhe disse para colocar em seu lugar; remexa o monte de areia no quartinho; você sabe ao qual me refiro. Lá você encontrará uma certa quantia em dinheiro; use-a para rezar missas em minha intenção, dois francos para cada uma, pois ainda estou sofrendo'. 'Farei isso, Eugenie' - respondeu Bárbara, e no mesmo instante a aparição desapareceu. A serva, ainda bastante serena, adormeceu novamente e repousou tranquilamente até de manhã.

Ao acordar, Bárbara acreditou ter sido tudo um sonho, mas estava profundamente impressionada, pois tinha a impressão de ter ficado desperta e ter visto a sua velha patroa de forma tão distinta e tão cheia de vida, e da qual recebera instruções tão precisas, que não pôde deixar de pensar: 'Não é assim que sonhamos; vi a minha senhora pessoalmente; ela se apresentou diante dos meus olhos e falou comigo. Isto não é um sonho, mas uma realidade'. A seguir, ela pegou o ancinho conforme lhe fôra indicado, remexeu na areia e ali encontrou uma bolsa contendo a quantia de quinhentos francos.

Diante de circunstâncias tão estranhas e extraordinárias, a jovem julgou ser seu dever consultar o pastor e foi relatar-lhe tudo o que havia acontecido. O venerável Abade R., então pároco de Ardoye, respondeu que as missas pedidas pela falecida deviam ser celebradas mas, considerando a quantia em dinheiro, era necessário o consentimento prévio do marido. Este último consentiu de bom grado que o dinheiro fosse empregado para tão santo propósito, e as missas foram celebradas, sendo aplicados dois francos por cada missa. Chamamos a atenção para a circunstância da taxa, porque correspondia ao piedoso costume da falecida. A taxa para uma missa fixada pela tarifa diocesana à época era de cerca de um franco e meio, mas a esposa de Wybo, por consideração pessoal e ao clero, obrigado naquele momento de escassez a socorrer um grande número de pobres, concedia dois francos para cada missa que costumava celebrar.

Dois meses após a primeira aparição, Bárbara foi novamente acordada durante a noite. Desta vez, seu quarto foi iluminado por uma luz brilhante, e sua senhora revelou-se tão bela quanto nos seus dias de juventude, vestida com um manto de deslumbrante brancura, olhando-a com um sorriso amável. 'Bárbara' - disse com uma voz clara e audível - 'eu te agradeço; estou libertada'. Dizendo essas palavras, ela desapareceu e o quarto tornou-se escuro como antes. A serva, maravilhada com o que tinha visto, foi tomada de grande alegria. Essa aparição causou a impressão mais viva em sua mente, e ela preserva até hoje a lembrança mais consoladora de tudo. É dela que temos esses detalhes tão específicos, por especial concessão do venerável abade R., então pároco em Ardoye quando esses fatos ocorreram.

O célebre Padre Lacordaire, no início das conferências sobre a imortalidade da alma, que ministrou alguns anos antes de sua morte aos alunos de Soreze, relatou-lhes o seguinte incidente: o príncipe polonês de X., infiel e materialista declarado, acabara de compor uma obra contra a imortalidade da alma. Ele estava a ponto de enviá-la  à imprensa quando certo dia, passeando pelos seus parques, encontrou uma mulher que, em prantos, prostrou-se aos seus pés e tomada de profunda dor lhe disse: 'Meu bom príncipe, meu marido acaba de falecer. Neste momento, a sua alma talvez esteja sofrendo no Purgatório. Estou em estado de tal pobreza que não tenho nem mesmo a pequena quantia necessária para celebrar uma missa pelos defuntos. Por sua bondade, intervenha em meu auxílio em favor da alma do meu pobre marido'.

Embora o príncipe estivesse convencido da falsa credulidade daquela mulher, não teve coragem de recusar o seu pedido, dando-lhe então uma moeda de ouro. A pobre mulher correu em direção à igreja e fez a oferta ao sacerdote para oferecer algumas missas pelo repouso da alma do seu marido. Cinco dias depois, ao entardecer, o príncipe, no isolamento de seu escritório, estava lendo o manuscrito e retocando alguns detalhes do texto de sua autoria quando, erguendo os olhos, viu, diante de si, um homem vestido com trajes de camponês. 'Príncipe' - disse o visitante desconhecido - 'venho agradecer-lhe, pois sou o marido daquela pobre mulher que outro dia lhe implorou para lhe dar uma esmola, com a qual pudesse oferecer o Santo Sacrifício da Missa em intenção da minha alma. A tua caridade agradou a Deus: foi Ele quem me permitiu vir agradecer-te pessoalmente'. Ditas essas palavras, o camponês desapareceu como uma sombra. A emoção do príncipe foi indescritível e, de pronto, lançou os seus escritos às chamas, e se rendeu tão inteiramente à convicção da verdade que sua conversão foi imediata e completa, nela perseverando até a sua morte.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

domingo, 14 de maio de 2023

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Aclamai o Senhor Deus, ó terra inteira, 
cantai salmos a seu nome glorioso!(Sl 65)

Primeira Leitura (At 8,5-8.14-17) - Segunda Leitura (1Pd 3,15-18)  -  Evangelho (Jo 14,15-21)

 14/05/2023 - Sexto Domingo da Páscoa 

25. 'NÃO VOS DEIXAREI ÓRFÃOS, EU VIREI A VÓS' 


A liturgia deste Sexto Domingo da Páscoa é centrada na ação santificadora do Espírito Santo, nas almas e na vida da Igreja, como primícias da Festa de Pentecostes que se aproxima. A graça santificante, que nos torna filhos adotivos de Deus, nos é atribuída pela apropriação do Divino Espírito Santo, na chamada 'inabitação trinitária', que procede e se faz na encarnação do próprio Deus, Uno e Trino, em nossas almas.

Estamos inseridos no contexto dos capítulos do Evangelho de São João, que integram o chamado 'testamento espiritual' de Cristo, que reproduzem o longo discurso feito por Jesus aos seus discípulos, logo após o banquete pascal, e no qual o Senhor expõe e revela, de forma abrangente e maravilhosa, a síntese e a essência dos seus ensinamentos e da sua doutrina. Doutrina que se resume no amor sem medidas, no chamado a viver plenamente a presença de Jesus Ressuscitado em nossas vidas, como testemunhas da fé e da fidelidade aos seus mandamentos: 'Se me amais, guardareis os meus mandamentos' (Jo 14, 15).

Eis aí o legado de Jesus aos seus discípulos: a graça e a salvação são frutos do amor, que é manifestado em plenitude, no despojamento do eu e na estrita submissão à vontade do Pai: 'Amai ao Senhor vosso Deus com todo vosso coração, com toda vossa alma e com todo vosso espírito. Este é o maior e o primeiro dos mandamentos' (Mt 22, 37-38). A graça nasce, manifesta-se e se alimenta do nosso amor a Deus, pois 'quem me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele ' (Jo 14, 21). Nos mistérios insondáveis de Deus, somos transformados no batismo, pela infusão do Espírito Santo em nossas almas, em tabernáculos da Santíssima Trindade, moradas provisórias do Pai, do Filho e do Espírito Santo, como sementes da glória antecipada das moradas eternas na Casa do Pai.

A presença permanente da Santíssima Trindade em nossas vidas vem por meio da manifestação do Espírito Santo, o Defensor, o Paráclito, conforme as palavras de Jesus: 'Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós' (Jo 14, 18) e ainda 'eu rogarei ao Pai, e ele vos dará um outro Defensor, para que permaneça sempre convosco' (Jo 14, 16). Como templos do Espírito Santo e tabernáculos da Santíssima Trindade, somos moldados como obras de Deus para viver em plenitude o Espírito da Verdade. Sob a ação do Espírito Santo, podemos, então, trilhar livremente o caminho da santificação, até os limites de um despojamento absoluto do próprio ser para a plena manifestação da glória de Deus em nós.

sábado, 13 de maio de 2023

FÁTIMA - 106 ANOS (1917 /2023)

  

'Santíssima Trindade, Pai, Filho, Espírito Santo, adoro-Vos profundamente e ofereço-Vos o Preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo, presente em todos os sacrários da Terra, em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido. E pelos méritos infinitos de seu Santíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria, peço-Vos a conversão dos pobres pecadores'.

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(a história completa de Fátima resumida em 100 questões):


FÁTIMA EM 100 FATOS E FOTOS

sexta-feira, 12 de maio de 2023

SOBRE A VERDADEIRA DEVOÇÃO

A palavra 'devoção' tem origem latina e significa 'dedicação'. Pessoa devota é aquela dedicada a Deus. Não há termo mais forte do que 'dedicação' para indicar a disposição da alma a tudo fazer e sofrer pela pessoa a quem se dedica.

A dedicação às criaturas (refiro-me à legítima e autorizada por Deus), tem necessariamente limites. A dedicação a Deus não os tem, nem os pode ter. Se tiver a mínima reserva, a mais leve exceção, não será mais dedicação. A verdadeira e sólida devoção é a disposição da alma pela qual se está pronto a agir e sofrer em tudo, sem exceção nem reserva, ao bel prazer de Deus. Tal disposição é o mais excelente dom do Espírito Santo. Nunca serão demais o ardor e a constância em pedi-la; ninguém deve ufanar-se de tê-la inteira e perfeita, porque esta pode sempre crescer, ou em si mesma, ou em seus efeitos.

Vemos, por esta definição, ser a devoção algo de interior, de muito íntimo, visto afetar o fundo da alma e o seu ponto mais espiritual: a inteligência e a vontade. A devoção não consiste no raciocínio, nem na imaginação ou na sensibilidade. Não somos devotos, por sermos capazes de bom raciocínio a respeito das coisas de Deus, por termos grandes ideias, belas imagens dos objetos espirituais, ou porque nos enternecemos algumas vezes até as lágrimas. Vemos ainda não ser a devoção coisa passageira, mas habitual, fixa, permanente, extensiva a todos os momentos da vida e reguladora de toda a conduta.

A devoção funda-se no princípio de que Deus, sendo a única fonte e o único autor da santidade, a criatura racional deve em tudo depender dEle e deixar-se inteiramente governar pelo espírito de Deus. A criatura deve sempre aderir a Deus do mais íntimo do seu ser; atentar constantemente a ouvi-lo em seu íntimo, sempre fiel em realizar o que Ele pede a cada momento. Não podemos ser realmente devotos, se não formos almas interiores, dados ao recolhimento, habituados a entrarmos em nós mesmos, ou antes, a nunca nos dissiparmos, a possuirmos a nossa alma em paz.

O curioso, precipitado, amigo da exterioridades, inclinado a imiscuir-se nos negócios alheios, não pode habitar em si mesmo. O espírito crítico, maldizente, irônico, arrebatado, desdenhoso, altivo, susceptível em tudo que se relacione com o amor próprio, apegado ao seu parecer, indócil, teimoso ou escravo do respeito humano, da opinião pública e, por conseguinte, fraco, inconstante, instável nos princípios e na conduta, nunca será devoto, no sentido que tenho explicado. O verdadeiro devoto é homem de oração fazendo suas delícias em se entreter com Deus, sem nunca ou quase nunca sair da sua presença.

Para fazer oração não necessita de livro, de método, nem de esforços da inteligência, ou da vontade. Basta-lhe entrar docemente em si, onde sempre encontra Deus, a paz, por vezes saborosa, por vezes árida, mas sempre íntima e real. Prefere a oração na qual muito dá a Deus, a oração na qual sofre, a oração que combate pouco a pouco o amor próprio sem lhe dar alimento algum. O verdadeiro devoto não busca absolutamente a si mesmo no serviço de Deus, esforçando-se por praticar a máxima da Imitação: 'Em qualquer parte onde estiverdes, abnegai-vos'.

O verdadeiro devoto procura cumprir perfeitamente todos os deveres do seu estado e todas as conveniências reais da sociedade, é constante nos exercícios de devoção. Contanto que não faça a sua vontade, estará sempre certo de fazer a de Deus. O verdadeiro devoto não se precipita em busca das boas obras: espera apresentar-se a ocasião. Faz tudo que de si depende para obter êxito, mas abandona este a Deus. Prefere as boas obras humildes, às grandiosas, não se esquivando, porém, a estas quando interessam à glória de Deus e edificação do próximo. O homem devoto não é escrupuloso nem inquieto a respeito de si mesmo, caminha com simplicidade e confiança.

Determina-se a não recusar coisa alguma a Deus, a nada conceder ao amor próprio e não a cometer faltas voluntárias; mas não se perturba, procede com retidão, não é meticuloso. Caindo em alguma falta, não se perturba: humilha-se, ergue-se e não pensa mais nisso. Não estranha suas fraquezas, suas imperfeições, nunca desanima. Sabe que nada pode, mas que Deus tudo pode. Não se fia em seus bons propósitos e suas resoluções, senão na graça e bondade de Deus.

O verdadeiro devoto tem horror ao mal, porém, maior ainda é o seu amor ao bem. É generoso, magnânimo e havendo necessidade de arriscar-se por seu Deus, não teme feridas, nem a morte. Prefere, finalmente, praticar o bem, mesmo com risco de cometer alguma imperfeição, a omiti-lo para evitar o perigo de pecar. Nada mais agradável do que a companhia de um verdadeiro devoto: é simples, franco, reto, despretensioso, meigo, afável, sincero e verdadeiro. A sua conversa é alegre, interessante, pois sabe tomar parte em divertimentos honestos. Leva a condescendência até aos últimos limites, contanto que não haja nisso pecado. Digam o que quiserem, a verdadeira devoção não é triste. Nem para o devoto, nem para os outros.

Quem servir a Deus, como deve, há de reconhecer a verdade da sentença: 'Servir a Deus é reinar', mesmo na ignomínia e nos sofrimentos. Os que procuram neste mundo a felicidade fora de Deus, todos sem exceção acabam por referendar as palavras de Santo Agostinho: 'O coração do homem, unicamente feito para Deus, estará sempre inquieto enquanto não repousar em Deus'.

(Excertos da obra 'Manual das Almas Interiores', do Pe. Grou, 1932)