domingo, 23 de janeiro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Vossas palavras, Senhor, são espírito e vida!' (Sl 18B)

 23/01/2022 - Terceiro Domingo do Tempo Comum

9. O UNGIDO DO PAI


O Evangelho de São Lucas traduz, em larga escala, a personalidade ímpar do autor, de alguém que, embora possa não ter sido testemunha ocular dos acontecimentos narrados: 'como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da palavra' (Lc 1, 2), elaborou uma obra regida particularmente pelo rigor da informação e por uma ordenação lógica dos eventos associados à vida pública de Jesus: 'após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado' (Lc 1, 3), o que a torna fruto do trabalho de um eminente escritor e historiador: 'Deste modo, poderás verificar a solidez dos ensinamentos que recebeste' (Lc 1, 4).

Desta forma, a par a semelhança e a mesma contextualização geral com os demais evangelhos sinóticos (São Mateus e São Marcos), o evangelho de São Lucas é pautado por uma visão própria, objetiva e cronológica da doutrina e dos ensinamentos públicos de Jesus (tempo presente da narrativa), inserida num contexto histórico do passado (Antigo Testamento) e do futuro (tempo da Igreja), incorporando, assim, um caráter muitíssimo pessoal e, portanto, original, à transcrição das mensagens evangélicas.

Após um preâmbulo típico do rigor objetivo do historiador, São Lucas desvela o instrumento de evangelização adotado por Jesus - a pregação pública e sua estrita observância, neste sentido, aos preceitos da Lei - a leitura, aos sábados, da palavra sagrada nas sinagogas. No seu primeiro retorno à Nazaré, foi convidado a ler e a comentar uma passagem do Livro de Isaías: 'Abrindo o livro, Jesus achou a passagem em que está escrito: O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa-nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e para proclamar um ano da graça do Senhor' (Lc 1, 17 - 19).

Ao recolher o rolo de pergaminho e se sentar, ao final da leitura 'todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele' (Lc 1, 20), porque, de certa forma, compreendiam a grandiosidade deste momento, que se materializou, então, com a manifestação direta e sucinta de Jesus: 'Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir' (Lc 1, 21), anunciando aos homens ser Ele o Ungido pelo Espírito Santo para fazer novas todas as coisas, para abrir os tempos do Messias esperado por todo Israel e para testemunhar aos homens a presença viva do Reino de Deus sobre a terra.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: A MODÉSTIA DA ALMA

 

A alma interior ama a paz. Suas preferências a levam a uma vida muito simples. Ela tem gostos modestos. As ocupações mais humildes da vida cotidiana não a desagradam; muito pelo contrário. Ela se dedica a eles com prazer. Trabalha seu jardim em silêncio; cuida para que seja muito limpo e bem cultivado; encoraja pequenas virtudes; interessar-se pelas folhas de grama e pela flor que se abre e se desenvolve são coisas que a encantam. Pois, no seu entendimento, nada deve ser negligenciado quando se trata de tornar o próprio coração mais agradável ao Coração de Deus e aumentar em todos os pontos a sua semelhança com o coração de Jesus.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte III - A União com Deus; tradução do autor do blog)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A TERCEIRA GUERRA MUNDIAL

Vivemos, desapercebidos como soldados rasos e medíocres, a Terceira Guerra Mundial. Não, não é mais um conflito armado entre exércitos aliados e inimigos, resolvido à base de granadas, tanques ou mísseis. A Terceira Guerra Mundial é uma guerra silenciosa e quase escondida, que não se alimenta da violência das armas, mas que se constrói e se faz com o aniquilamento dos espíritos. Aniquilamento total, que busca subverter a ordem mundial, no seu todo, na sua plenitude. Não é mais a guerra mundial de alguns, é a guerra mundial que envolve toda e completamente a humanidade.

É uma guerra silenciosa que visa achincalhar a religião, destruir a Igreja de Cristo, despedaçar a família e o matrimônio, fomentar a discórdia em todos os níveis, criar como propósitos coerentes e genéricos a anarquia e a indisciplina em nome de psicoses do 'politicamente correto', alçar às nuvens os direitos de minorias em detrimento de todos os princípios e valores morais da tradição cristã; flagelos distintos, medonhos e fulminantes, mas todos planejados e moldados na mesma forja do inferno. 

Estamos na crista desse tsunami gigantesco da iniquidade. Eis o tempo do domínio da iniquidade: a verdade é contestada como fake news e as mentiras e calúnias mais absurdas são retocadas e plasmadas com o verniz da certeza absoluta. Vende-se o negacionismo como moeda de troca; compra-se a preço vil a verdade científica de farsantes e bufões travestidos de doutores; incensam a libertinagem como uma conquista histórica, mas profanam a liberdade com ouvidos moucos; cancelam vozes e lobotomizam consciências, mas se locupletam com o ronco medonho de suas crenças miseráveis; riem de tudo e de todos que proclamam Deus como esperança e se fartam das gargalhadas com que incensam os seus próprios demônios e os demônios alheios. 

A Terceira Guerra Mundial é o mistério da iniquidade exposto - a todos os homens, em tudo o que é humano, como um ato de revolta contra Deus e a Igreja de Deus. Essa guerra foi pré-anunciada em Fátima com todas as letras e consequências, mas foi propositalmente olvidada, obscurecida e maquiada, particularmente pela própria Igreja (a forma mais brutal de destruir um inimigo não é confrontá-lo com armas, mas tomar posse de si mesmo, pois assim não existe mais nem mesmo o inimigo). Tudo se converte em princípios universalmente impostos, os 'ismos' da nova era da humanidade: o fetichismo, o panteísmo, o ecumenismo, o socialismo, o indiferentismo, o cinismo, o abismo.

Os homens de bem, a legião dos justos, os católicos fervorosos, onde estão? Em alguma trincheira, em alguma casamata? Armados até os dentes, como novos cruzados? Entrincheirados, sim. Em masmorras, sim. Escondidos, sim. E tristemente submissos, derrotados, prostrados em terra, sob o frenesi da tormenta impiedosa. As ondas gigantescas dos males anunciam o poderio do caos. Um tsunami de pecados varre o mundo num dilúvio universal e a salvação eterna é apenas um souvenir sem mais valia ou uma tatuagem por fazer. O que realmente nos tornamos? 

Mas um dia - um breve dia - a grande onda vai despedaçar-se no rochedo e virar só espumas. As águas revoltas serão outra vez remanso. E tudo que nasceu e floresceu do homem será então destruído. O Espírito de Deus, pairando sobre as águas, há de fazer o despertar, o recomeço, o Deus Conosco, a ratificação outra vez da mesma aliança eterna. A porta estreita terá então o vão do mundo e o Céu será herança comum de todos os homens. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

POEMAS PARA REZAR (XL)

 

TRÊS ATALHOS


Quando tudo - tudo mesmo - parecer perdido

não ficando pedra sobre pedra do que o bem seria

sendo apenas trevas as sombras de quem tem vivido

buscando no mundo apenas ter Deus por Pai e guia


Há três remédios que plasmam todas as feridas

três palavras mágicas que ofuscam a iniquidade

são três segredos que abrem todas as jazidas

três coisas apenas que têm valor da eternidade.


Espera!

Confia!

Persevera!


Eis aí teu Céu, bendita alma lavrada entre cascalhos,

refém liberta da tormenta de espasmos e redemoinhos:

esperança, confiança, perseverança - três atalhos

que à porta estreita conduzem todos os caminhos.

(Arcos de Pilares)

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXIII)

Capítulo XXIII

Duração do Purgatório - O Abade Cisterciense e o Papa Inocêncio III - João de Lierre - A irmã de São Vicente Ferrer

Na 'Vida de Santa Lutgarda', obra escrita pelo seu contemporâneo, Tomás de Cantimpre, é mencionado um religioso outrora fervoroso mas que, por excesso de zelo, foi condenado a quarenta anos do Purgatório. Este era um abade da Ordem Cisterciense, chamado Simão, que tinha por Santa Lutgarda grande veneração. A santa, por sua vez, seguiu de bom grado o seu conselho e, em consequência, formou-se entre eles uma espécie de amizade espiritual. Mas o abade, por sua vez, não era tão brando com os seus subordinados quanto era com a santa. 

Severo consigo mesmo, também foi severo em sua administração, e levou as suas exigências em matéria de disciplina até um rigor muito elevado, esquecendo a lição do Divino Mestre que nos ensina a ser mansos e humildes de coração. Tendo falecido, e enquanto Santa Lutgarda estava rezando fervorosamente e impondo a si penitências pelo repouso de sua alma, ele apareceu a ela e declarou que estava condenado a quarenta anos no Purgatório. Felizmente ele tinha em Lutgarda uma amiga generosa e poderosa. Ela redobrou as suas orações e austeridades e, tendo recebido de Deus a garantia de que a alma que partira logo seria libertada, a santa respondeu: 'Não cessarei de chorar; não deixarei de importunar a Vossa Misericórdia até vê-lo livre de suas dores'.

Uma vez que me referi a Santa Lutgarda, devo falar também da célebre aparição do Papa Inocêncio III? Reconheço que a leitura deste incidente me chocou, e gostaria de passá-lo olvidado pois relutei em pensar que um papa, e um papa assim, tivesse sido condenado a um Purgatório tão longo e terrível. Sabemos que Inocêncio III, que presidiu o célebre Concílio de Latrão em 1215, foi um dos maiores pontífices que já ocuparam a cátedra de São Pedro. Sua piedade e zelo o levaram a realizar grandes coisas da Igreja de Deus e da santa disciplina. Como, então, admitir que tal homem foi julgado com tanta severidade no Supremo Tribunal? Como conciliar esta revelação de Santa Lutgarda com a Divina Misericórdia? Quis, portanto, tratá-la como uma fantasia e procurei razões que apoiassem essa ideia. Mas descobri, pelo contrário, que a realidade desta aparição tem sido admitida pelos autores mais fidedignos, e nunca rejeitada por nenhum deles. Além disso, o biógrafo, Thomas de Cantimpre, é muito explícito e ao mesmo tempo muito reservado: 'Observe, leitor´' - escreve ele no final de sua narrativa - 'que foi da boca da própria piedosa Lutgarda que ouvi falar das faltas reveladas pelo defunto, e que omito aqui por respeito a tão grande papa'.

Além disso, considerando o evento em si, podemos encontrar alguma boa razão para questioná-lo? Não sabemos que Deus não faz distinção de pessoas – que até os papas aparecem diante do seu tribunal como os mais humildes dos fiéis – que todos os grandes e os humildes são iguais diante dele, e que cada um recebe de acordo com as suas obras? Não sabemos que aqueles que governam os outros têm uma grande responsabilidade e terão que prestar contas bastante severas? Judicium durissimum seu qui praesunt fietum julgamento mais severo será para aqueles que governam (Sb 6,6). É o Espírito Santo que o declara. Agora, Inocêncio III reinou por dezoito anos e durante os tempos mais turbulentos e, acrescentam os bolandistas, não está escrito que os julgamentos de Deus são inescrutáveis ​​e muitas vezes muito diferentes dos julgamentos dos homens? - Judicia tua abyssus multa (Sl 35,7). A realidade desta aparição não pode, então, ser razoavelmente questionada. Não vejo razão para omiti-la, visto que Deus não revela mistérios dessa natureza para nenhum outro propósito além de que eles sejam conhecidos para a edificação da sua Igreja.

O Papa Inocêncio III morreu em 16 de julho de 1216. No mesmo dia, apareceu a Santa Lutgarda em seu mosteiro em Aywieres, em Brabante. Surpresa ao ver o espectro envolto em chamas, ela perguntou quem seria e o que ele queria. 'Eu sou o Papa Inocêncio' - ele respondeu. 'Como é possível que você, nosso pai comum, esteja em tal estado?' 'É bem verdade: estou expiando três faltas que poderiam ter causado a minha perdição eterna. Graças à bem aventurada Virgem Maria, obtive o perdão, mas tenho que fazer expiação por eles. Infelizmente! Isto é terrível; e durará séculos se você não vier em meu auxílio. Em nome de Maria, que obteve para mim o favor de apelar para você, ajude-me'. Com essas palavras, desapareceu. Lutgarda anunciou a morte do papa às suas irmãs e todas juntas se dedicaram à oração e às obras penitenciais em favor da alma do augusto e venerado pontífice, cuja morte lhes foi confirmada algumas semanas depois por outra fonte.

Acrescentemos aqui um fato mais consolador, que encontramos na vida da mesma santa. Um pregador célebre, chamado John de Lierre, era um homem de grande piedade e bem conhecido da nossa santa. Ele havia feito um compromisso com ela, pelo qual mutuamente prometiam que aquele que morresse primeiro, com a permissão de Deus, deveria aparecer ao outro. João foi o primeiro a partir desta vida. Tendo empreendido uma viagem a Roma para tratar de certos assuntos de interesse dos religiosos, encontrou a morte entre os Alpes. 

Fiel à sua promessa, ele apareceu a Lutgarda no célebre claustro de Aywières. Ao vê-lo, a santa não teve a menor ideia de que ele estaria morto, e o convidou, de acordo com a Regra, a entrar no salão para que pudessem conversar. 'Não sou mais deste mundo' - respondeu ele - 'e venho aqui apenas em cumprimento da minha promessa.' Com essas palavras, Lutgarda caiu de joelhos e permaneceu por algum tempo bastante confusa. Então, erguendo os olhos para o seu abençoado amigo, perguntou: 'Por que você está vestido com tamanho esplendor? O que significa este manto triplo com o qual te vejo adornado'? 'A vestimenta branca' - respondeu ele - 'significa a pureza virginal, que sempre preservei; a túnica vermelha implica os trabalhos e sofrimentos que esgotaram prematuramente minhas forças e o manto azul, que cobre tudo, denota a perfeição da vida espiritual'. Ditas essas palavras, ele de repente deixou Lutgarda, que ficou dividida entre o arrependimento por ter perdido um amigo tão bom e a alegria que experimentara por causa de sua felicidade. 

São Vicente Ferrer, o célebre taumaturgo da Ordem de São Domingos, que pregou com tanta eloquência a grande verdade do Juízo de Deus, tinha uma irmã que não se comovia nem com as palavras e nem com o exemplo do seu santo irmão. Ela estava cheia do espírito do mundo, intoxicada com seus prazeres, e caminhou a passos rápidos em direção à sua eterna ruína. Entretanto, o santo rezou pela sua conversão, e sua oração foi finalmente respondida. A infeliz pecadora caiu mortalmente doente e, no momento da morte, voltando a si, fez a sua confissão com sincero arrependimento.

Alguns dias depois de sua morte, enquanto seu irmão celebrava o Santo Sacrifício, ela lhe apareceu no meio das chamas e presa dos mais intoleráveis ​​tormentos. 'Ai! meu querido irmão' - disse ela - 'estou condenada a sofrer esses tormentos até o dia do Juízo Final. Mesmo assim, você pode me ajudar. A eficácia do Santo Sacrifício é tão grande: ofereça para mim cerca de trinta missas, e assim posso esperar o resultado mais feliz'. O santo apressou-se a atender o seu pedido. Ele celebrou as trinta missas e, no trigésimo dia, viu sua irmã aparecer novamente cercada de anjos e subindo ao céu. Graças às virtudes do Sacrifício Divino, uma expiação de vários séculos foi reduzida a trinta dias.

Este exemplo nos mostra ao mesmo tempo que a duração das dores que uma alma pode incorrer e o poderoso efeito do Santo Sacrifício da Missa, quando Deus se agrada de aplicá-lo a uma alma. Mas esta aplicação, como todos os outros sufrágios, nem sempre se realiza ou, melhor dizendo, nem sempre se realiza na mesma plenitude.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)