sábado, 23 de outubro de 2021

POEMAS PARA REZAR (XXXIX)

 

NAS MÃOS DE DEUS

Sou Vossa e por Vós nasci,
O que quereis de mim?

Ó majestade soberana,
Sabedoria eterna
Bondade que deleita a minha alma,
Deus Altíssimo, Fonte excelsa do Bem, 
Toma a minha alma que, sendo nada,
encanta-se toda pelo Vosso amor
O que quereis de mim?

Sou Vossa, pois me criastes
Vossa, pois me resgatastes,
Vossa, pois me sustentais,
Vossa, pois me chamastes,
Vossa, pois esperastes por mim,
Vossa, pois não me perdi,
O que quereis de mim?

Que quereis de mim, Dulcíssimo Bem,
que Vos faça uma serva tão vil?
Que obra feita das mãos
desta Vossa escrava pecadora?
Eis-me aqui, dulcíssimo Bem,
Dulcíssimo Bem, eis-me aqui.
O que quereis de mim?

Eis aqui o meu coração,
Que deponho em Vossas Mãos
Com o meu corpo, minha vida, minha alma,
O mais íntimo de todo o meu amor.
Dulcíssimo Bem, meu Redentor,
Ofereço-me inteiramente a Vós,
O que quereis de mim?

Dai-me a morte, ou dai-me a vida,
a saúde ou qualquer doença
Dai-me honrarias ou humilhações,
a guerra ou a mais profunda paz,
a debilidade ou a força absoluta,
A tudo tendes o meu eterno sim.
O que quereis de mim?

Dai-me riqueza ou privação,
Prazeres ou angústias mil,
Felicidade extrema ou tristeza,
O Céu ou mesmo o inferno,
Dulcíssimo Bem, sol desvelado, 
A vós entrego o meu tudo.
O que quereis de mim?

Dai-me a graça da oração sincera;
Ou a aridez da provação;
Dai-me a abundância da devoção,
Ou quem sabe a petição estéril.
Somente em Vós, ó Soberana Majestade,
anseio encontrar a minha paz,
O que quereis de mim?

Dai-me quem sabe a sabedoria.
Ou os frutos da pura ignorância,
Tempos plenos de abundância,
Ou anos de fome e escassez.
Escuridão ou a luz cintilante do sol,
me movam para ali ou além mais.
O que quereis de mim?

Se quereis dar-me o alento do descanso,
no descanso encontrarei alento,
Se tiver que trabalhar até morrer,
Eu vou morrer trabalhando.
Dulcíssimo Bem, basta que escolheis
o meu onde, como e quando.
O que quereis de mim?

Dai-me subir o Calvário ou o Tabor,
no deserto ou em terra fértil;
Ser como Jó no rude sofrimento
Ou João amparado em Vosso peito;
Videira estéril ou coberta de frutos,
seja qual for a Vossa Santa Vontade.
O que quereis de mim?

Ser para Vós como José escravizado
Ou tornado governador do Egito,
Davi duramente provado
Ou incensado de todos os louvores,
Jonas em mares afogado,
Ou Jonas liberto de todos os seus males?
O que quereis de mim?

Em silêncio absoluto ou em alta voz,
serva de muitos frutos ou estéril,
 feridas expostas pelas regras,
de viver em plenitude o Evangelho;
Sofrendo ou exultante de júbilo,
Vós sois a minha única morada.
O que quereis de mim?

Sou Vossa e por Vós nasci,
O que quereis de mim?

(Santa Teresa de Ávila, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

FONTE DA VIDA ETERNA


Considera, ó homem redimido, quem é aquele que por tua causa está pregado na cruz, e qual é a sua dignidade e grandeza. A sua morte dá a vida aos mortos; por sua morte choram o céu e a terra, e fendem-se até as pedras mais duras. Para que, do lado de Cristo morto na cruz, se formasse a Igreja e se cumprisse a Escritura que diz: 'Olharão para aquele que transpassaram' (Jo 19,37), a Divina Providência permitiu que um dos soldados lhe abrisse com a lança o sagrado lado, de onde jorraram sangue e água. Este é o preço da nossa salvação. Saído daquela fonte divina, isto é, no íntimo do seu Coração, iria dar aos sacramentos da Igreja o poder de conferir a vida da graça, tornando-se para os que já vivem em Cristo bebida da fonte viva que jorra para a vida eterna (Jo 4,14).

Levanta-te, pois, tu que amas a Cristo, sê como a pomba que faz o seu ninho na borda do rochedo (Jr 48,28), e aí, como o pássaro que encontrou a sua morada (Sl 83,4), não cesses de estar vigilante; aí esconde como a andorinha os filhos nascidos do casto amor; aí aproxima teus lábios para beber a água das fontes do Salvador (Is 12,3). Pois esta é a fonte que brota no meio do paraíso e, dividida em quatro rios (Gn 2,10), derrama-se nos corações dos fiéis para irrigar e fecundar a terra inteira.

Acorre com vivo desejo a esta fonte de vida e de luz, quem quer que sejas, ó alma consagrada a Deus, e exclama com todas as forças do teu coração: 'Ó inefável beleza do Deus altíssimo e puríssimo esplendor da luz eterna, vida que vivifica toda vida, luz que ilumina toda luz e conserva em perpétuo esplendor a multidão dos astros, que desde a primeira aurora resplandecem diante do trono da vossa divindade. Ó eterno e inacessível, brilhante e suave manancial daquela fonte oculta aos olhos de todos os mortais! Sois profundidade infinita, altura sem limite, amplidão sem medida, pureza sem mancha!'.

De ti procede o rio que vem trazer alegria à cidade de Deus (Sl 45,5) para que, entre vozes de júbilo e contentamento (Sl 41,5), possamos cantar hinos de louvor ao vosso nome, sabendo por experiência que em vós está a fonte da vida e que, em vossa luz, contemplamos a luz (Sl 35,10).

(São Boaventura)

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'Quando falardes, que seja de modo a não ofender ninguém e não digais senão coisas que possais dizer sem receio diante de toda a gente. Tende sempre paz interior e uma atenção amorosa para com Deus; e, quando for necessário falar, que seja com a mesma calma e a mesma paz. Guardai para vós o que Deus vos diz e lembrai-vos desta palavra da Escritura: 'O meu segredo é meu' (Is 24,16). Para avançar na virtude, é importante calar e agir, porque, falando, as pessoas distraem-se, ao passo que, guardando silêncio e trabalhando, recolhem-se. Depois de aprendermos com alguém o que é preciso para o nosso progresso espiritual, não lhe peçamos que continue a falar: ponhamos mãos à obra, com seriedade e silêncio, com zelo e humildade, com caridade e desprezo de nós mesmos. Antes de tudo, é necessário e conveniente servir a Deus no silêncio das tendências desordenadas e da língua, a fim de só ouvir palavras de amor'.

(São João da Cruz)

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XVIII)

Capítulo XVIII

Dores do Purgatório - Santa Perpétua - Santa Gertrudes - Santa Catarina de Gênova - Irmão João de Via

Como já dissemos, a dor dos sentidos tem diferentes graus de intensidade: é menos terrível para aquelas almas que não têm pecados graves para expiar, ou que, já tendo cumprido a parte mais rigorosa de sua expiação, aproximam-se do momento de sua libertação. Muitas daquelas almas não sofrem mais do que a dor da perda, e até já começam a perceber os primeiros raios da glória celestial e a ter um antegozo da bem-aventurança.

Quando Santa Perpétua (Cf. Mar., eh. 7) viu o seu irmão mais novo Dinócrates no Purgatório, a criança não parecia ter sido submetida a nenhuma tortura cruel. A própria mártir escreve o relato dessa visão em sua prisão em Cartago, onde foi confinada pela fé em Cristo durante a perseguição sob Septimus Severus no ano de 205. O purgatório apareceu para ela sob a forma de um deserto árido, onde ela viu o seu irmão Dinócrates, que morrera aos sete anos. A criança tinha uma úlcera no rosto e, atormentado pela sede, tentava em vão beber das águas de uma fonte que estava diante dele, mas cuja borda era muito alta para se alcançar. 

A santa mártir compreendeu que o seu irmão estava no lugar de expiação e que implorava pela ajuda de suas orações. Ela então orou por ele e, três dias depois, em outra visão, viu o mesmo Dinócrates no meio de lindos jardins. Seu rosto era lindo, como o de um anjo; ele estava vestido com um manto brilhante; a beira da fonte estava abaixo dele, e ele bebia copiosamente daquelas águas refrescantes em uma taça de ouro. A santa então compreendeu que a alma de seu irmão mais novo agora desfrutava da bem-aventurança do Paraíso.

Lemos nas Revelações de Santa Gertrudes que uma jovem religiosa do seu convento, por quem nutria um amor especial pelas suas grandes virtudes, morreu nos mais belos sentimentos de piedade (Revelationes Gertrudiana ac Mechtildiana - Henri Oudin, Poitiers, 1875). Enquanto recomendava fervorosamente essa querida alma a Deus, ela ficou extasiada e teve uma visão. A irmã falecida foi mostrada a ela em pé diante do trono de Deus, rodeada por uma auréola brilhante e em ricas vestes. 

No entanto, ela parecia triste e preocupada; seus olhos estavam abaixados, como se ela tivesse vergonha de aparecer diante de Deus; parecia que ela queria fugir e se esconder. Gertrudes, muito surpresa, perguntou à Divina Esposa das Virgens a causa desta tristeza e constrangimento por parte de uma alma tão santa. 'Dulcíssimo Jesus' - ela exclamou - 'Por que a tua infinita bondade não convida a tua cônjuge a se aproximar de ti e a entrar na alegria do seu Senhor? Por que você a abandona assim, triste e receosa?'. Então Nosso Senhor, com um sorriso amoroso, fez um sinal para que aquela alma santa se aproximasse; mas ela, cada vez mais perturbada e após alguma hesitação e toda trêmula, retirou-se.

A essa visão, a santa dirigiu-se então diretamente à alma. 'O que minha filha! - disse à alma - 'você foge diante do Nosso Senhor que a chama? Você, que desejou tanto Jesus durante toda a sua vida, agora afasta-se quando Ele abre os braços para recebê-la?' 'Ah minha querida Mãe' - respondeu a alma - 'eu ainda não sou digna de comparecer perante o Cordeiro Imaculado. Ainda tenho algumas impurezas que contraí na terra. Para se aproximar do Sol da Justiça, é preciso ser tão puro quanto um raio de luz. Ainda não tenho aquele grau de pureza que Ele requer dos seus santos. Saiba que ainda que a porta do Céu fosse aberta para mim, eu não deveria ousar cruzar o limiar antes de estar totalmente purificada de todas as menores impurezas. Parece-me que o coro das virgens que rodeiam o Cordeiro me afastariam com repulsa e horror'. 'E, mesmo assim' - continuou a abadessa - 'vejo-te rodeada de luz e de glória!' 'O que você vê' - respondeu a alma - 'é apenas a orla da vestimenta da glória. Para usar este manto celestial, não devemos reter nem mesmo a sombra do pecado'.

Esta visão nos mostra uma alma muito perto da glória do Céu; mas a sua revelação sobre a santidade infinita de Deus foi de uma ordem muito diferente daquela que conhecemos. Este conhecimento pleno faz com que ela busque, como uma bênção, a expiação que sua condição requer para torná-la digna da visão do Deus três vezes santo. 

Este é exatamente o ensinamento de Santa Catarina de Gênova. Sabemos que esta santa recebeu uma luz particular de Deus sobre o estado das almas no Purgatório. Ela escreveu uma obra intitulada 'Um Tratado sobre o Purgatório', que goza de uma autoridade igual à das obras de Santa Teresa. No Capítulo VIII dessa obra, ela assim se expressa: 'O Senhor é misericordioso. Ele está diante de nós com os braços estendidos para nos receber em sua glória. Mas vejo também que a Essência Divina é de tal pureza que a alma, a menos que esteja absolutamente imaculada, não pode suportar esta visão. Se ela encontrar em si mesma o menor átomo de imperfeição, em vez de habitar com uma impureza na presença da Divina Majestade, ela preferiria mergulhar nas profundezas do Inferno. Encontrando no Purgatório um meio de apagar as suas impurezas, ela se lança ali prontamente e se considera feliz que, por meio de uma grande misericórdia de Deus, seja dada a ela um lugar onde possa se libertar dos obstáculos à felicidade suprema'.

A História da Ordem Seráfica (Parte 4., n. 7; cf. Merv., 83) faz menção a um santo religioso chamado Irmão João de Via, que morreu piedosamente em um mosteiro nas Ilhas Canárias. O seu enfermeiro, o Irmão Ascensão, estava na sua cela rezando e recomendando a Deus a alma dos defuntos, quando de repente viu diante de si um religioso da sua Ordem, mas que parecia transfigurado. Ele estava tão radiante que a cela se encheu de uma bela luz. O irmão, quase fora de si de espanto, não o reconheceu, mas aventurou-se a perguntar quem era e qual era o motivo da sua visita. 'Eu sou' - respondeu a aparição - 'o espírito do irmão João de Via. Agradeço-lhe as orações que elevou ao Céu em meu favor e venho pedir-lhe mais um ato de caridade'. 

'Saiba que, graças à misericórdia divina, estou no lugar da salvação, entre os predestinados para o Céu - a luz que me rodeia é uma prova disso. No entanto, ainda não sou digno de ver a face de Deus por causa de uma omissão que não foi expiada. Durante a minha vida mortal, omiti, por minha própria culpa, e por várias vezes, a recitação do Ofício dos Defuntos, conforme prescrito pela Regra. Rogo-te, meu querido irmão, pelo amor que tens a Jesus Cristo, que rezes esses ofícios de tal forma que a minha dívida seja paga e eu possa me deleitar da visão do meu Deus'. O Irmão Ascensão dirigiu-se de imediato ao seu superior e relatou o que havia acontecido, apressando-se a rezar os ofícios como solicitado. Então a alma do bem-aventurado Irmão João de Via apareceu novamente a ele mas, desta vez, mais brilhante do que antes, pois já estava na posse da felicidade eterna.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

terça-feira, 19 de outubro de 2021

A LICENCIOSIDADE DE FALAR E ESCREVER


Continuemos agora com essas considerações sobre a liberdade de exprimir pela palavra ou pela imprensa tudo o que se quer. Sem dúvida, se esta liberdade não é temperada pela boa medida, se ela ultrapassa os limites e a medida, uma tal liberdade, evidentemente, não é um direito, pois o direito é uma faculdade moral. E como nós já dissemos e devemos sempre repetir, seria absurdo pensar que essa faculdade pertence naturalmente e sem distinção nem discernimento à verdade e à mentira, ao bem e ao mal.

A verdade, o bem, pode-se propagá-lo no Estado com uma liberdade prudente para que um maior número seja beneficiado; mas as doutrinas falsas, peste mortal para as inteligências, os vícios que corrompem os corações e os costumes, é justo que a autoridade pública os reprima com diligência, para impedir que o mal se estenda e corrompa a sociedade.

E as maldades das mentes licenciosas que redundam em opressão da multidão ignorante não devem ser menos punidas pela autoridade das leis que qualquer atentado da violência cometido contra os fracos. E essa repressão é tanto mais necessária quanto mais indefesa é a grande maioria da população, impossibilitada de se defender contra esses artifícios do estilo ou as subtilezas da dialética, principalmente quando tudo isso excita as paixões.

Deem a todos a licença ilimitada de falar e escrever e nada mais será sagrado e inviolável, nada será poupado, nem mesmo estas verdades primeiras, estes princípios naturais que devemos considerar como um nobre patrimônio comum a toda a humanidade. A verdade é assim invadida pelas trevas e nós assistimos, como tantas vezes, ao fácil estabelecimento e à plena dominação dos erros os mais perniciosos e os mais diversos.

(Excertos da Encíclica Libertas Praestantissimum, do papa Leão XIII,1888)

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

SOBRE O JUÍZO PARTICULAR


Santo Hilarião (+ 371), penitente austeríssimo, próximo da morte tremia todo ao pensar em ter de render contas de todas as suas obras. E para criar coragem dizia à sua alma apavorada: 'Ó minha alma, bem sabes que servi a Deus durante 70 anos num deserto; por que então ainda temes?'

Quando a alma estiver perante Deus, ser-lhe-á feito um rigoroso processo. Este não durará muito tempo: far-se-á num segundo; mas para compreendê-lo devemos considerá-lo de modo sensível. Eis os acusadores:

1. O demônio está ali pronto para apresentar ao pecador todas as suas iniquidades, lembrando-lhe as renúncias e as promessas feitas no batismo: Praesto erit diabolus; ante tribunal Christi recitabit verba professionis nostrae (Santo Agostinho): 'Esse pecador' - dirá o demônio - 'renunciou a mim, e depois cedeu sempre às minhas tentações e deu atenção às minhas sugestões. Eis aqui a fila dos seus pecados...'

2. A consciência dirá com a sua censura: 'Sim, é verdade: de fato cometestes esses pecados. Tua malícia será a tua condenação, e tua rebeldia gritará contra ti'. Tente o pecador dizer: 'Esse mal eu não fiz... Esse, eu não sabia que era pecado... Esse bem eu não pude fazer...'. A consciência gritar-lhe-á: 'Mentiroso! Isto são desculpas vãs! Para o bem porventura faltou tempo? E de certos pecados não sentias remorso? A ignorância?! Tu quiseste a ignorância: podias e devias instruir-te, e essa ignorância culposa te condena'.

3. E que dirá o Anjo da guarda? Ele foi testemunha de tudo... Deu sempre as suas boas sugestões, mas se nunca foi ouvido?! Como poderá servir de advogado de defesa? 'Lê aqui!...' - O Venerável São Beda conta que na Inglaterra um valoroso capitão, próximo da morte, teve essa espantosa visão. Ao pé de sua cama estavam dois homens negros com um grande livro na mão, os quais lhe disseram: ' Lê aqui: verás todas as iniquidades que cometeste em vida'. E enquanto isso os expunham ante seus olhos. Viu depois um Anjo com um livrinho em que era pouca a escrita e o resto era papel em branco. Disse-lhe o Anjo: 'Lê aqui o pouco bem que fizeste'. Fez-se, então, o confronto das partes, e os espíritos negros invocavam justiça; de sorte que o Anjo bom, muito triste, teve de dizer: 'Sim, é vosso!'

Então pedirá o Senhor contas de suas obras ao pecador: Redde rationem villicationis tuae (Lc 16,2). 'Agora me reconheces?' – Um rei da Inglaterra chamado Rocaredo, indo à caça, perdeu-se numa selva. Veio a noite, e ele ficou muito amedrontado. Andou daqui para ali, finalmente topou com uma casa. Bateu à porta e foi recebido por um aldeão. Mas este, não havendo conhecido o rei, o tratou muito mal e lhe deu até pancada. No dia seguinte, o rei retomou o caminho e, de volta à corte, mandou chamar o aldeão que o havia hospedado à noite e lhe disse: 'Agora me reconheces?' Estas palavras apavoraram de tal modo o infeliz, que ele caiu fulminado (Segneri).

'Agora me reconheces?' - dirá também o Juiz indignado ao pecador. Eu sou o Deus que te criou, e que devias amar e servir. Eu te fiz tantos benefícios; e tu, ingrato, começastes a ofender-me desde menino, antes de conhecer-me, e te uniste ao demônio para me fazeres guerra. Presta-me, pois, conta dos pecados que cometeste: de tantos olhares maus; de tantas palavras escandalosas. Presta-me contas de tantas obras más que fizeste ocultamente, dizendo: 'Ninguém me vê'; e no entanto, eu te vi, eu que sou o Juiz e a testemunha: Ego sum judex et testis' (Jer XXIX, 23).

Presta-me contas de tantas desobediências e falta de respeito aos pais e aos mais velhos. Praticaste tais pecados e eu sempre me calei (Sl 49,20). Presta-me contas de tantas festas não santificadas, que passaste em jogos e passeatas com companheiros do pecado. Quando muito ouvias uma missa: porém, mesmo esta ouvias mal, conversando, rindo, perturbando os bons. Não ias ouvir as prédicas, na doutrina. Cometestes esses pecados e eu me calei. Presta contas dos escândalos dados, e das almas que arruinaste tornando-as presa do demônio. Cometestes esses grandes pecados e eu me calei. Presta contas também do bem que podia fazer e não fizestes. Tinhas tempo para jogos, mas não para recitar umas orações; levantavas-te pela manhã e dormias a noite sem nem se lembrar de mim.

Por tua causa instituí os sacramentos, fonte de toda graça; e os recebestes bem raramente! E até recebeste o meu corpo e o meu sangue na Sagrada Comunhão em estado de pecado mortal, cometendo, ainda, enormes sacrilégios! Cometestes esses pecados horríveis e eu sempre me calei. Eis, como numa balança, as tuas iniquidades e o que eu fiz por ti. Vês? 

Por ti desci do Céu à terra; menino, vagi numa cabana; trabalhei até os 30 anos; fui injuriado, flagelado, coroado de espinhos! Por ti derramei o sangue; morri na cruz numa infinidade de espasmos... Podia eu fazer mais? E tu, ó iníquo, acreditavas talvez que eu deveria calar-me sempre? E que eu fosse igual a ti? Eis diante de ti toda a tua iniquidade: Existimasti, inique, quod erro tui similis? Arguam te, et statuam contra faciem tuam (Sl 49, 21).

(Excertos da obra 'La Parole di Dio per la Via d’Esempi', de G. Montarino)

domingo, 17 de outubro de 2021

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Sobre nós venha, Senhor, a vossa graça, pois, em vós, nós esperamos!' (Sl 32)

 17/10/2021 - Vigésimo Nono Domingo do Tempo Comum

47. QUEM ESTARÁ À DIREITA OU À ESQUERDA DO SENHOR?


A glória humana alimentava o pedido despropositado de Tiago e João, filhos de Zebedeu, feito a Jesus quando da sua derradeira subida a Jerusalém: 'Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória!' (Mc 10, 37). Aqueles dois homens (que representam o conjunto de todos os demais apóstolos, que se 'indignaram' depois pela audácia deles), mais do que moldados pela graça, ainda estavam envoltos pela penumbra das glórias terrenas e, na dimensão dos poderes de um reino fictício no mundo dos homens, pleiteavam os postos mais elevados 'à direita e à esquerda' do Senhor.

Jesus vai prometer a ambos uma glória muito maior que qualquer poder concedido na escala dos homens. Os poderes e as glórias do mundo, por maiores que sejam, são instáveis e passageiros; Jesus tem a oferecer a eles heranças eternas. Na busca dos valores humanos, imperam a cobiça, a ambição, a disputa desenfreada por aplausos e pompas; a eternidade é moldada pelo recolhimento interior, pela oração e despojamento do ser, pela via do sofrimento e da dor: 'Por acaso podeis beber o cálice que eu vou beber?' (Mc 10, 38).

Quando ambos afirmam que 'sim', estão sendo apenas suscetíveis à crença de superação de dificuldades passageiras. Não conseguem vislumbrar os eventos tão próximos da Paixão e Morte do Senhor, o drama do Calvário, tantas vezes mencionado e reafirmado por Jesus em outras ocasiões. Jesus vai, num primeiro momento, confirmar este 'sim': 'Vós bebereis o cálice que eu devo beber, e sereis batizados com o batismo com que eu devo ser batizado' (Mc 10, 39). Com efeito, São João, o discípulo amado, acompanhou Jesus até o instante derradeiro da Paixão e Morte na Cruz; São Tiago foi o primeiro apóstolo a colher as palmas do martírio.

Mas, em seguida, Jesus os alerta que as moradas eternas estão destinadas àqueles forjados pela Santa Vontade do Pai: 'não depende de mim conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para aqueles a quem foi reservado' (Mc 10, 40). Na escala dos valores eternos, o maior é o que serve a todos, o posto mais alto será destinado ao que, por amor a Deus, tornar-se o menor entre os seus irmãos. A verdadeira glória passa pelo Calvário, por uma senda de dor e de sofrimento, e quem estará 'à direita ou à esquerda' de Jesus será aquele que viver e morrer, com maior semelhança, a própria vida e morte do Senhor: 'Porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate para muitos' (Mc 10, 45).